Hermenêutica
Prof.º Lucas Roberto
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Sumário Unidade 1 – Princípios Introdutórios ......................................... 01 - Definição de termos - A Bíblia como Palavra de Deus - Leitura e interpretação da Bíblia
Unidade 2 – Dificuldades Espirituais e Humanas ...................... 06 - Dificuldades de ordem espiritual - Dificuldades naturais
Unidade 3 – Escolas de Interpretação e Manuscritologia no Período Antigo e Medieval ..................................................................... 13 - Texto bizantino e alexandrino - As escolas de interpretação da Bíblia
Unidade 4 – Interpretação na Reforma Protestante .................... 21 - Martinho Lutero e a interpretação individual - Exegese e Eisegese
Unidade 5 – Interpretação bíblica nos períodos da pós-reforma até o pós-modernismo ................................................................... 26 - Período da pós-reforma (1550 - 1800) - Período moderno (de 1800 até meados do século XX) - Período pós-moderno (meados do século XX até o presente)
Unidade 6 – A Bíblia Como Literatura ....................................... 30 -
A analogia da fé Interpretando a Bíblia literalmente Figuras de linguagem O método gramático-histórico
Unidade 7 – Análise do Gênero Literário .................................... 37 Unidade 8 – Regras Práticas para a Interpretação Bíblica .......... 46 - Regra 1 – A Bíblia deve ser lida como qualquer outro livro - Regra 2 – Leia a Bíblia existencialmente - Regra 3 – As narrativas históricas devem ser interpretadas pelas passagens didáticas - Regra 4 – O implícito deve ser interpretado pelo explícito
- Regra 5 – Determine cuidadosamente o significado das palavras - Regra 6 – Observe com atenção os paralelismos na Bíblia - Regra 7 – Diferenças entre provérbio e lei - Regra 8 – Observe a diferença entre o espírito da lei e a letra da lei - Regra 9 – Interprete as Escrituras teocentricamente e doutrinariamente - Regra 10 – Supostos erros e contradições - Regra 11 – Não despreze a tradição da igreja
Unidade 9 – A Bíblia e a Cultura ............................................... 57 - Princípio e costume - Orientações práticas
Unidade 10 – Ferramentas Práticas para o Estudo da Bíblia ..... 62 -
Traduções da Bíblia Bíblias anotadas Comentários Quanto ao grego e hebraico
Conclusão ............................................................................... 66
Unidade 1 – Princípios Introdutórios Definição de termos O termo que dá origem a esta matéria vem do grego, hermeneutikós, que significa interpretação, ou arte de interpretar. O vocábulo grego hermenein, significa intérprete. Essa palavra deriva-se do nome de Hermes, que era tido como mensageiro divino e intérprete dos deuses, e que também era o deus da eloquência, que os romanos chamavam de Mercúrio. Tecnicamente, hermenêutica se refere à prática da interpretação definida como uma “ciência e arte”. Considera-se a hermenêutica como ciência porque ela tem normas, ou regras, e essas podem ser classificadas em um sistema ordenado. Também é ❖ Hermenêutica é ciência considerada como arte, porque a porque tem princípios seguros e comunicação é flexível. Portanto, uma imutáveis; e arte porque aplicação mecânica e rígida das regras, estabelece regras práticas. às vezes, distorcerá o verdadeiro ❖ Exige-se do bom sentido de uma comunicação. Exige-se intérprete que ele aprenda bem do bom intérprete que ele aprenda as as regras de interpretação, bem regras da hermenêutica bem como a como a arte da aplicação para arte de aplicá-las. sua própria realidade. A teoria hermenêutica divide-se, às vezes, em duas subcategorias: hermenêutica geral e a especial. • Hermenêutica geral é o estudo das regras que regem a interpretação do texto bíblico inteiro. Inclui os tópicos das análises histórico-cultural, léxico-sintática, contextual e teológica. • Hermenêutica especial é o estudo das regras que se aplicam a gêneros específicos, como parábolas, alegorias, tipos e profecia. Tecnicamente, devemos separar a tarefa hermenêutica da exegese. Hermenêutica refere-se à disciplina que estuda e sistematiza os princípios e técnicas, com as quais, partindo de determinados pressupostos, se busca compreender o sentido original do texto bíblico; exegese ocupa-se da prática destes princípios e técnicas; e aplicação concerne à busca da observância do texto ao nosso contexto específico. Veja, portanto, que a teoria (hermenêutica) e a prática (exegese e aplicação) estão unidas. Dentre os cristãos que se abstêm da teologia, existem aqueles que desprezam qualquer procura por um conhecimento teórico de Deus, insistindo, ao contrário, em serem “práticos”. De maneira simples, o pragmatismo pode ser definido como uma abordagem da realidade que define verdade como “aquilo que funciona”. O pragmático está interessado em resultados e os resultados determinam a verdade. O problema com este tipo de pensamento, se deixado sem a instrução de uma perspectiva eterna, é que os resultados tendem a ser julgados em termos de objetivos de curto alcance.
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A pessoa que despreza a teoria e se considera prática, não é sábia. Aquele que apenas se interessa por objetivos de curto prazo enfrentará graves problemas ao considerar a imensa duração da eternidade. É um mito tentar separar teoria da prática, pois toda prática subentende uma teoria, ou como costumamos chamar, uma cosmovisão. Expressando uma cosmovisão procedente de Deus, a Bíblia é eminentemente prática. Nada poderia ser mais prático do que a Palavra de Deus, pois ela procede de uma teoria estabelecida a partir de uma perspectiva eterna. A Bíblia como Palavra de Deus Sendo a Bíblia o objeto de nosso estudo, precisamos fazer algumas considerações. A primeira e talvez mais importante afirmação é que, de fato, a Bíblia é a palavra de Deus: “... toda escritura é divinamente inspirada...” (2 Tm 3:16). Existe uma grande diferença entre ditado (palavra que cai pronta do céu) e inspiração. A inspiração pressupõe a plena participação de seus autores e sujeitos (aqueles que estão diretamente envolvidos nos fatos narrados) no processo de construção de um texto. Esse processo acontece, sempre, a partir da realidade, tanto dos sujeitos como também do autor do texto. O ditado, por usa vez, os anula e tende a ignorar a realidade. O autor bíblico não repete o que Deus, em tese, ditou, mas elabora a partir de sua vivência o que Deus inspirou. A Bíblia é a expressão de fé de um povo que conforme caminhava com seu Deus era inspirado por Ele a relatar suas experiências. Na Bíblia temos a história de fé do povo, o povo de Deus, e a revelação de Deus na vida do povo. Portanto, desmaterializar a Bíblia das condições humanas é negar sua inspiração divina para a vida cotidiana. Essas narrativas de fé acontecem dentro da história de homens e mulheres, que no processo natural da vida recebem a revelação divina, aplicada em seu contexto. Com isso, concluímos que a Bíblia é a palavra de Deus, mas simultaneamente um livro humano. Por ser humano, ainda que inspirado, tem seus limites, condicionamentos e seus distanciamentos (culturais, linguísticos, contextuais, etc.). Admitir a participação humana não significa, em hipótese alguma, eliminar seu caráter divino. Admitir que a Bíblia é um livro divino não significa negar as realidades concretas da vida em que ocorreram os fatos narrados e as realidades concretas na vida e contexto de quem relatou os fatos (autor do texto). Negar esse processo comprometeria inclusive a aplicação dos textos para nossa realidade. Admitir a participação humana em um livro divinamente inspirado é estar convencido de que os textos bíblicos precisam ser interpretados.
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Orare e labutare Orare e labutare [orar e trabalhar] foram palavras empregadas pelo reformador João Calvino (1509 – 1564) para resumir a sua concepção hermenêutica. Com estes termos ele expressou a necessidade de súplica pela ação iluminadora do Espírito Santo e do estudo diligente do texto e do contexto histórico, como requisitos indispensáveis à interpretação das Escrituras. Com o mesmo propósito, Martinho Lutero (1483 – 1546) empregou uma figura: um barco com dois remos, o remo da oração e o remo do estudo. Com um só destes remos, navega-se em círculo, perde-se o rumo, e corre-se o risco de não chegar a lugar algum. Palavras e figuras como estas revelam a consciência que os reformadores tinham do caráter divino-humano das Escrituras e o equilíbrio fundamental que caracteriza a hermenêutica da Palavra de Deus. Eis então o trabalho da hermenêutica. Eis aqui o objetivo desta matéria. Leitura e interpretação da Bíblia Por que lemos a Bíblia? Essa pergunta pode ser um norte interessante quando pensamos em nossa função de interpretes e no papel da hermenêutica bíblica. Não basta ler? Por que interpretar? Leitura e interpretação andam de mãos dadas: Ler é interpretar! Porém existe uma enorme diferença entre ler e estudar. Podemos ler descansadamente, de modo informal, algo que fazemos exclusivamente por prazer, para o nosso entretenimento. Mas estudar sugere esforço, trabalho sério e diligente. Aqui está o ponto central de nossa negligência. Falhamos em nosso dever de estudar as Escrituras, não tanto por nossa dificuldade em compreendê-la, nem tão pouco por achá-la tediosa ou aborrecida, mas porque é trabalhoso, exige esforço. Nosso problema não é falta de inteligência nem de paixão. O problema é a preguiça. Somos preguiçosos. Karl Barth (1886 – 1968), famoso teólogo suíço, escreveu certa vez que todos os pecados humanos têm suas raízes em três problemas básicos. Sua lista de pecados rudimentares inclui: pecados de orgulho, desonestidade e preguiça. A regeneração espiritual não elimina instantaneamente nenhum desses males básicos. Mesmo sendo cristãos temos que lutar contra tais dificuldades ao longo de toda nossa trajetória terrena. Ninguém está imune. Se vamos nos dedicar à disciplina do estudo bíblico, devemos reconhecer, desde o início, que precisamos da graça de Deus para perseverar. A preguiça tem habitado em nós desde a maldição da queda. Nosso trabalho hoje é mesclado com suor e esforço. Ervas daninhas crescem mais facilmente que grama. É mais fácil ler o jornal do que estudar a Bíblia. A maldição do trabalho não será automaticamente removida simplesmente porque nossa tarefa é estudar a Bíblia. Se você já leu a Bíblia toda, você faz parte de uma pequena minoria de cristãos. Se você já estudou sua Bíblia, seu grupo representa uma
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minoria ainda menos expressiva. É incrível constatar que quase todas as pessoas têm uma opinião formada sobre a Bíblia, entretanto, muito poucos se esforçaram por estudá-la. Algumas vezes parece que as únicas pessoas realmente interessadas em empregar tempo e esforço para estudar as Escrituras são exatamente as que se armam com os machados mais afiados para investir contra ela. Muitos a estudam com o objetivo de encontrar possíveis brechas que lhes deem razão para fugir de sua autoridade. A ignorância bíblica não está, de forma alguma, limitada aos leigos. O analfabetismo bíblico entre pastores e líderes tornou-se tão grande que, com frequência, encontramos pastores irritados e aborrecidos porque os membros de sua igreja pediram para os ensinar a Bíblia. Em muitos casos os pastores sofrem um medo mortal de que sua ignorância seja exposta ao se encontrarem numa situação em que seu conhecimento bíblico seja esperado e indispensável. A Bíblia não é mera história do passado, mas espelho para a nossa própria história no presente. Por isso, nosso estudo bíblico, além de um exercício de interpretação da Bíblia, é a interpretação da Vida com a ajuda da Bíblia. Além de tentar ver no texto a realidade que o gerou, lemos a Bíblia para agirmos conforme as ordenanças divinas, como povo de Deus, visando o crescimento espiritual, a edificação da igreja e a redenção das esferas da realidade para a glória de Deus. Um exemplo dessa árdua tarefa está em Atos 8:26-35: E o anjo do Senhor falou a Filipe, dizendo: Levanta-te, e vai para o lado do sul, ao caminho que desce de Jerusalém para Gaza, que está deserta. E levantou-se, e foi; e eis que um homem etíope, eunuco, mordomo-mor de Candace, rainha dos etíopes, o qual era superintendente de todos os seus tesouros, e tinha ido a Jerusalém para adoração, regressava e, assentado no seu carro, lia o profeta Isaías. E disse o Espírito a Filipe: Chega-te, e ajunta-te a esse carro. E, correndo Filipe, ouviu que lia o profeta Isaías, e disse: Entendes tu o que lês? E ele disse: Como poderei entender, se alguém não me ensinar? E rogou a Filipe que subisse e com ele se assentasse. E o lugar da Escritura que lia era este: Foi levado como a ovelha para o matadouro; e, como está mudo o cordeiro diante do que o tosquia, assim não abriu a sua boca. Na sua humilhação foi tirado o seu julgamento; E quem contará a sua geração? Porque a sua vida é tirada da terra. E, respondendo o eunuco a Filipe, disse: Rogo-te, de quem diz isto o profeta? De si mesmo, ou de algum outro? Então Filipe, abrindo a sua boca, e começando nesta Escritura, lhe anunciou a Jesus. Podemos observar no texto alguns pontos: 1. Um homem estava lendo a Bíblia, especificamente Isaías 53. Era culto e inteligente, assim requeria a posição de destaque que ocupava.
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2. Sua confissão: “Como poderei entender?”. Até certo ponto ele entendia o que estava lendo. Compreendia evidentemente que o profeta falava de grandes padecimentos e extrema humilhação que um servo do Senhor teria sofrido ou iria sofrer. Faltava-lhe, porém entender o essencial para a clareza da profecia: quem era esse servo de que falava o profeta? 3. Outro homem lhe explica o texto, fazendo uso da mesma Bíblia e guiado pelo divino Espírito. “Começando nesta escritura” quer dizer que Felipe iniciou a explicação pelos demais versículos, do mesmo parágrafo que ia lendo o eunuco, ligando o sentido do texto aos versículos anteriores e posteriores (contexto). Ele continuou a esclarecer o assunto com o auxílio de outras partes do livro de Isaias e talvez, das demais Escrituras do Antigo Testamento em que se tratava do mesmo assunto (passagens paralelas). Teria ele assim mostrado por esses outros textos, do mesmo Isaías, qual o significado que o escritor sagrado dava às suas próprias palavras; e, pelas outras escrituras, teria indicado a ele uma cadeia de profecias em plena harmonia com a passagem em apreço. 4. O viajante, apesar de não conhecer o evangelista, ouve atenciosamente a exposição, reconhecendo e aceitando a verdade, apesar dos preconceitos de raça e de religião e a desigualdade social da época. 5. Em sua exposição, o evangelista apresentou Jesus como o objeto das profecias e como o Salvador dos homens — objeto de nossa fé. Esse foi apenas um exemplo do trabalho que temos pela frente. A importância do assunto dificilmente pode ser exagerada, pois a hermenêutica é a base teórica da exegese, que, por sua vez, é o alicerce tanto da teologia (seja bíblica ou sistemática) como da pregação, das quais depende a saúde espiritual da igreja, e da nossa própria vida. Portanto, uma hermenêutica deformada fatalmente resultará numa exegese deformada, produzirá teologia e pregação deformadas, e se manifestará tragicamente em igrejas e vidas deformadas. Convém observar que o apóstolo Paulo exorta Timóteo a cuidar de si “mesmo e da doutrina”, de modo que possa ser ele mesmo salvo bem como os seus ouvintes (1 Tm 4:16). Ele o admoesta a apresentar-se a Deus “aprovado, como obreiro que não tem de que se envergonhar, que maneja bem a palavra da verdade” (2 Tm 2:15). E afirma que devem ser “estimados por dignos de duplicada honra (ou honorários), principalmente os que trabalham na palavra e na doutrina” (1 Tm 5:17). Não se pode esquecer de que “aprouve a Deus salvar os crentes pela loucura da pregação” (1 Co 1:21); e de que “a fé é pelo ouvir, e o ouvir pela palavra de Deus.” (Rm 10:17). A verdade de Deus expressa em sua Palavra é o instrumento empregado pelo Espírito Santo para salvar e santificar. São “as sagradas Escrituras, que podem fazer-te sábio para a salvação, pela fé que há em Cristo Jesus. Para que o homem de Deus seja perfeito, e perfeitamente instruído para toda a boa obra.” (2 Tm 3:15, 17).
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Unidade 2 – Dificuldades Espirituais e Humanas Como vimos, todo leitor é um intérprete. Mas ler não implica necessariamente em entender. Quando não há barreiras na compreensão de um texto, a interpretação é automática e inconsciente. Mas isso nem sempre ocorre. A Bíblia é substancialmente, mas não completamente clara. As verdades básicas necessárias à salvação, serviço e vida cristã são evidentes em um ou outro texto, mas nem todos os textos das Escrituras são igualmente claros. Por ser um livro divino-humano, inspirado por Deus, mas escrito por homens, admite-se que há dificuldades de ordem espiritual e de ordem humana para a compreensão das Escrituras. O apóstolo Pedro reconheceu essa dificuldade com relação aos escritos do apóstolo Paulo, dizendo que neles “... há pontos difíceis de entender...” (2 Pe 3:16). A Confissão de Fé de Westminster (CFW) declara: I. Ainda que a luz da natureza e as obras da criação e da providência de tal maneira manifestem a bondade, a sabedoria e o poder de Deus, que os homens ficam inescusáveis (Rm 2:14,15; Rm 1:19,20; Rm 1:32; Rm 2:1; Sl 19:1-3), contudo não são suficientes para dar aquele conhecimento de Deus e da sua vontade, que são necessários para a salvação (1Co 1:21; 1Co 2:13,14); por isso foi o Senhor servido, em diversos tempos e diferentes modos, revelar-se e declarar à sua Igreja aquela sua vontade (Hb 1:1); e depois, para melhor preservação e propagação da verdade, para o mais seguro estabelecimento e conforto da Igreja contra a corrupção da carne e malícia de Satanás e do mundo, foi igualmente servido em fazer escrever todo esta (Pv 22: 19-21; Lc 1: 3,4; Rm 15:4; Mt 4: 4,7,10; Is 8:19,20); o que torna indispensável a Escritura Sagrada (2Tm 3:15; 2Pe 1:19), tendo cessado aqueles antigos modos de revelar Deus a sua vontade ao seu povo (Hb 1:1,2). VI. Todo o conselho de Deus concernente a todas as coisas necessárias para a Sua própria glória e para a salvação, fé e vida do homem, ou é expressamente declarado na Escritura ou pode ser, por boa e necessária consequência, deduzido dela, a qual nada se acrescentará em tempo algum, nem por novas revelações do Espírito, nem por tradições dos homens (2Tm 3:15-17; Gl 1:8,9; 2Ts 2:2); no entanto, reconhecemos ser necessária a íntima iluminação do Espírito de Deus para a salvadora compreensão das coisas reveladas na palavra (Jo 6:45; 1Co 2:9-12), e que há algumas circunstâncias, quanto ao culto de Deus e ao governo da Igreja, comum às ações e sociedades humanas, as quais têm de ser ordenadas pela luz da natureza e pela
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prudência cristã, segundo as regras gerais da Palavra, que sempre devem ser observadas (1Co 11:13,14; 1Co 14:26,40). VII. Na Escritura, não são todas as coisas igualmente claras em si, nem do mesmo modo evidentes a todos (2Pe 3:16); contudo, as coisas que precisam ser obedecidas, cridas e observadas para a salvação, em um ou outro lugar da Escritura são tão claramente apresentadas e explicadas, que não só os doutos, mas ainda os indoutos, no devido uso dos meios ordinários, podem alcançar uma suficiente compreensão delas (Sl 119:109,130). Isto significa que a compreensão das Escrituras não é necessariamente automática e espontânea. E, sim, o resultado da ação iluminadora do Espirito Santo, por um lado, e por outro, do estudo diligente da língua e do contexto histórico em que foi escrita. Dificuldades de ordem espiritual O aspecto espiritual envolvido na interpretação das Escrituras é demonstrado claramente em passagens bíblicas tais como 1 Coríntios 2:14 e 2 Coríntios 4:3, 4, 6: “Ora, o homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente.” e “Mas, se ainda o nosso evangelho está encoberto, para os que se perdem está encoberto. Nos quais o deus deste século cegou os entendimentos dos incrédulos, para que lhes não resplandeça a luz do evangelho da glória de Cristo, que é a imagem de Deus. Porque Deus, que disse que das trevas resplandecesse a luz, é quem resplandeceu em nossos corações, para iluminação do conhecimento da glória de Deus, na face de Jesus Cristo.” Nestes textos o apóstolo Paulo ensina claramente a absoluta incapacidade do homem natural (não regenerado) de compreender a revelação de Deus. A razão desta incapacidade é a cegueira espiritual em que se encontra como resultado da queda do homem do seu estado original e da ação diabólica. A cura desta cegueira não é intelectual, mas espiritual. Só o Espírito Santo pode fazer resplandecer a luz do Evangelho da glória de Cristo num coração em trevas. A ação iluminadora do Espírito Santo é, portanto, indispensável na interpretação e apreensão do ensino das Escrituras. A erudição piedosa é preciosa e indispensável para a preservação da sã doutrina. Porém, um erudito, por mais bem equipado que esteja hermeneuticamente, desprovido, da ação regeneradora e iluminadora do Espírito, possivelmente não alcançará o sentido da Escritura tanto quanto um crente simples e fiel, mesmo que indouto em métodos e técnicas de interpretação. Mesmo o crente precisa da ação iluminadora contínua do Espírito Santo para progredir na compreensão das Escrituras. As Escrituras também revelam, por ensino direto e por inúmeros exemplos, que o coração do
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homem é mais enganoso do que todas as coisas e desesperadamente corrupto (Jr 17:9), não sendo, portanto, totalmente confiável. Além disso, não existe somente o Espírito da verdade; há também o espírito do erro (1 Jo 4:6). O pai da mentira está sempre pronto a enganar, se possível for, até os eleitos, afim de desencorajar a leitura e o estudo da Bíblia. Afinal, é pela própria Palavra, e através da Palavra, que o Espirito Santo realiza essa obra iluminadora. Assim, é importante que o Santo Espírito fortaleça e anime o crente diante dos desânimos naturais e dos enganos lançados por Satanás. Dois mitos Consideremos dois mitos invocados para não se estudar a Bíblia. Estas “razões” frequentemente tornam-se inquestionáveis por conta da constante repetição. Mito n.º 1: A Bíblia é de tão difícil compreensão que apenas teólogos altamente especializados e com treinamento técnico podem ocupar-se de seu estudo. Este mito tem sido repetido constantemente de diversas formas por pessoas sérias. Muitos dizem: “Sei que não posso estudar a Bíblia, pois todas as vezes que tento ler não entendo”. Quando alguém diz isso, provavelmente deseja ouvir: “Muito bem! Eu o compreendo. Realmente é um livro difícil e, a não ser que se tenha uma formação teológica, num seminário, por exemplo, talvez o melhor seja não tentar explorá-la”. Ou quem sabe a pessoa preferisse ouvir: “Reconheço que a Bíblia é uma leitura muito pesada, muito profunda. Parabéns por seu esforço incansável, seu trabalho ardoroso na tentativa de solucionar a charada sobrenatural da Palavra de Deus. É triste que Deus tenha escolhido uma linguagem tão obscura para comunicar-se conosco, algo que apenas os especialistas podem discernir”. No fundo, sentem-se culpados e anseiam anestesiar as consciências, por negligenciar o dever de todo cristão. Na verdade, sabemos que, como adultos maduros, vivendo num país civilizado, tendo chegado a um grau razoável de educação, somos capazes de compreender a mensagem da Bíblia. Se somos capazes de ler o jornal, temos capacidade também para ler a Bíblia. Na verdade, há mais palavras e conceitos difíceis expressos nas manchetes dos jornais do que na maioria das páginas da Bíblia. Mito n.º 2: A Bíblia é enfadonha. Se pressionarmos as pessoas pedindo que esclareçam o que querem dizer com o primeiro mito, em geral elas respondem dizendo: “Bem, acho que sou capaz de compreender, mas, francamente, a Bíblia não prende minha atenção”. Tal afirmação reflete não tanto uma incapacidade de
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entender o que está escrito, mas um gosto e uma preferência por aquilo que se considera interessante ou empolgante. Tal enfado é gerado mais por um preconceito e preguiça do que pelo conteúdo bíblico, pois a Bíblia é viva e empolgante. Os personagens bíblicos são cheios de vida. Há uma atmosfera singular de paixão ao seu redor. A vida deles revela drama, sofrimento, sensualidade, crime, devoção e todos os aspectos concebíveis da existência humana. Existe reprimenda, remorso, contrição, consolação, graça, sabedoria prática, reflexão filosófica e, sobretudo, verdade. Talvez o desinteresse experimentado por alguns seja consequência da antiguidade do conteúdo que pode parecer estranho e alheio a nós. De que modo a vida de Abraão – passada há tantos anos e num lugar tão distante – pode ter qualquer relação conosco? Mas os personagens da história bíblica são reais. Embora o ambiente deles seja diferente do nosso, suas lutas e preocupações se mostram praticamente as mesmas nossas. A negligência do tesouro bíblico, gerada por esses e outros mitos, resulta em cristãos fracos, levados por qualquer vento de doutrina falsa (Ef 4:14). O perfil que mais se destaca, dentre os crentes fracos na fé, pode ser chamado de “cristão sensual”. O cristão sensual O que é um cristão sensual? Sensual pode ser definido como: relativo aos sentidos, ou objetos sensíveis; altamente susceptível à influência pelos sentidos. O cristão sensual seria aquele que vive baseado nos seus sentidos e não em sua compreensão da Palavra de Deus. Não se consegue motiválo para o serviço nem para a oração ou o estudo a não ser que ele se “sinta chamado”. A eficiência de sua vida cristã depende da intensidade de seus sentimentos no instante presente. Num estado de euforia ele é um furacão de atividade espiritual, quando está deprimido é um incompetente em sua vivência religiosa. Está constantemente buscando novas e variadas experiências espirituais e as usa para avaliar a Palavra de Deus. Seus “sentimentos íntimos” tornam-se o teste definitivo da verdade. O cristão sensual não necessita estudar a Escritura pois ele já sabe, através de seus sentimentos, qual é a vontade de Deus. Ele não deseja conhecer a Deus, mas sim busca experimentá-Lo. O cristão sensual equipara a fé singela da criança com a ignorância, supondo que, quando a Bíblia nos chama a demonstrar esta confiança simples, está realmente advogando uma fé sem conteúdo, sem entendimento. Ele não sabe que a Bíblia recomenda: “... não sejais meninos no entendimento, mas sede meninos na malícia, e adultos no entendimento.” (1 Co 14:20). O cristão sensual segue seu caminho despreocupado e alegremente até encontrar-se com o sofrimento da vida, que não é assim tão alegre e, então, ele se curva. Habitualmente termina adotando um tipo de “teologia”, onde
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relacionamentos e experiências pessoais tomam a precedência sobre a Palavra de Deus. Se as Escrituras nos convocam a agir de forma que possa prejudicar um relacionamento pessoal, então as Escrituras devem ceder. A regra mais importante para o cristão sensual determina que os sentimentos ruins devem ser evitados a todo custo – um hedonista prático. O Cristianismo é altamente intelectual, embora não intelectualista. Isto é, as Escrituras dirigem-se ao nosso intelecto sem, entretanto, abraçar um espírito racionalista. A vida cristã não pode se constituir em mera conjectura ou racionalismo frio; ao contrário, deve ser uma vida de paixão vibrante. Fortes sentimentos de alegria, amor e exaltação são esperados continuamente. Tais emoções apaixonadas são nossa resposta àquilo que, com nossa mente, entendemos ser a verdade. Devemos obedecer a Palavra de Deus, gostemos ou não. É exatamente nisto que o Cristianismo implica: educar nossos sentimentos e outras faculdades segundo o propósito bíblico. De fato, o conhecimento da Palavra não garante a nossa obediência, mas, pelo menos, estaremos cientes do que deveríamos fazer em nossa busca pela realização humana, a qual tem por finalidade “glorificar a Deus e gozá-Lo para sempre”1. É importante ressaltar também que existe um abismo entre a maneira de Deus agir e a nossa. O fato de a Bíblia ser um livro sobre Deus coloca-a numa posição sem-par. Deus, que é infinito, não pode ser plenamente compreendido pelo que é finito. A Bíblia relata os milagres de Deus e suas predições sobre o futuro. Ela também fala de verdades difíceis de serem assimiladas, tais como a Trindade, as duas naturezas de Cristo, a soberania de Deus e a vontade humana. Todos estes fatores, somados a outros, agravam a dificuldade que temos de entender plenamente todo o conteúdo das Escrituras. Então, o intérprete precisa depender do Espírito Santo. A participação do Espirito Santo na interpretação bíblica indica várias coisas: em primeiro lugar, sua participação não significa que as interpretações de alguém são infalíveis. Inerrância e infalibilidade são características dos manuscritos originais da Bíblia e não de seus intérpretes. Em segundo lugar, a obra do Espírito na interpretação não quer dizer que ele desvende para alguns intérpretes um sentido “oculto”, diferente do significado normal e literal da passagem – como afirmavam os gnósticos. Em terceiro lugar, o cristão que esteja vivendo em pecado é suscetível de interpretar erroneamente a Bíblia, pois seu coração e sua mente não estão em harmonia com o Espirito Santo. Em quarto lugar, o Espirito Santo guianos a toda a verdade (Jo 16:13). O crente só tem condições de aplicar, isto é, assimilar pessoalmente as Escrituras pela capacitação do Espirito Santo. Em quinto lugar, o papel do Espírito na interpretação indica que a Bíblia foi dada para que todos os crentes a entendessem. 1
Breve Catecismo de Westminster, resposta referente à pergunta 1.
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Dificuldades naturais Basicamente, as dificuldades naturais se referem aos diversos distanciamentos que há, dos quais podemos listar pelo menos cinco: (1) distanciamento temporal; (2) distanciamento contextual; (3) distanciamento cultural; (4) distanciamento linguístico; (5) distanciamento autoral. Distanciamento Temporal: A Bíblia está séculos distante de nós. Seu último livro foi escrito pelo final do século I da Era Cristã, o que nos separa temporalmente em cerca de dois milênios. A distância temporal, num mundo em constantes mudanças, faz com que a maneira de encarar o mundo, os aspectos culturais e linguísticos dos escritores da Bíblia se percam no passado distante. Portanto, como qualquer documento antigo, a Bíblia precisa ser lida levando-se isto em conta. Os princípios de interpretação da Bíblia procuram condições de transpor este abismo temporal. Distanciamento Contextual: Os livros da Bíblia foram escritos para atender a determinadas situações, que já se perderam no passado distante. É verdade que ao serem incluídos no cânon bíblico, eles passaram a ser relevantes para a Igreja universal. Por outro lado, recuperar o contexto em que estes livros foram escritos é essencial para entendermos melhor a sua mensagem. As cartas de Paulo foram escritas visando atender às necessidades de igrejas locais. Ou ainda, que o livro de Habacuque foi escrito num contexto de iminente invasão por potências estrangeiras. A mensagem do evangelho de Marcos fica mais clara quando descobrimos que Marcos escreveu provavelmente para ajudar os crentes romanos a enfrentar as provações que sofriam por causa de Cristo. E o livro de Jonas – especialmente a atitude de Jonas contra os ninivitas – ganha maior clareza quando se descobre que havia uma antipatia natural dos judeus contra os ninivitas. Os princípios de interpretação da Bíblia procuram transpor as dificuldades criadas pela distância contextual. Distanciamento Cultural: O mundo em que os escritores da Bíblia viveram já não existe. Está no passado distante, com suas características, costumes, tradições e crenças. Muito embora a inspiração das Escrituras garanta que sua mensagem seja relevante para todas as épocas, devemos lembrar que essa mensagem foi registrada numa determinada cultura, da qual traços foram preservados na Bíblia. Os princípios de interpretação da Bíblia devem levar em conta o jeito de escrever daquela época, a maneira de expressar conceitos e ilustrar as verdades, para poder transpor a distância cultural. Distanciamento Linguístico: As línguas em que a Bíblia foi escrita também já não existem. Não se fala mais o hebraico, o grego e o aramaico bíblicos nos dias de hoje, mesmo nos países onde a Bíblia foi escrita. Como cada língua tem seu jeito próprio de comunicar conceitos (apesar de uma estrutura comum a todas), princípios de interpretação da Bíblia devem levar
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em conta estas peculiaridades, por exemplo, no hebraico e no aramaico dos manuscritos do Antigo Testamento só havia consoantes. As vogais estavam subentendidas e, portanto, não eram escritas, sendo adicionadas muito posteriormente, por volta de 900 d.C. Além disso, tanto o hebraico quanto o aramaico são lidos da direita para a esquerda, e não da esquerda para a direita. Ademais, não havia separação entre as palavras. Distanciamento Autoral: Devemos ainda reconhecer que teríamos uma compreensão mais exata da mensagem de alguns textos bíblicos reconhecidamente obscuros se os seus autores estivessem vivos. Poderíamos perguntar a eles acerca destas passagens complicadas que escreveram e que continuam até hoje dividindo os melhores intérpretes quanto ao seu significado. Por exemplo, Pedro poderia nos esclarecer o que ele quis dizer ao afirmar que Cristo “foi, e pregou aos espíritos em prisão” (1 Pe 3:19). Ou ainda, Paulo poderia nos esclarecer o que ele quis dizer com “que farão os que se batizam pelos mortos?” (1 Co 15:29). Mateus poderia finalmente tirar a dúvida sobre o sentido da frase de Jesus “não acabareis de percorrer as cidades de Israel sem que venha o Filho do homem” (Mt 10:23). Não endossamos o que alguns estudiosos afirmam, que com a morte do autor perdeu-se a possibilidade de recuperar-se a intenção dos mesmos. A razão é que a intenção deles sobrevive no que escreveram. Mas certamente a ausência do autor faz com que a interpretação de textos obscuros seja necessária. Princípios de interpretação devem levar em conta o distanciamento autoral, e buscar meios de recuperar a intenção deles nos próprios textos que escreveram. Ainda que sejam grandes os desafios, não devemos desanimar, mas nos esforçarmos em transpor essas barreiras, afim de que compreendamos, o mais claro possível, a Palavra de Deus.
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Unidade 3 – Escolas de Interpretação e Manuscritologia no Período Antigo e Medieval Para exercermos uma hermenêutica saudável e equilibrada, é importante conhecermos as controvérsias sobre a interpretação bíblica na era pós-apostólica e no decorrer da história e como os manuscritos bíblicos foram preservados. Os manuscritos originais (autógrafos) da Bíblia não mais existem – provavelmente foram destruídos devido ao manuseio excessivo –, mas temos milhares de cópias (apógrafos), em diversos idiomas, que preservaram o conteúdo dos originais. Assim aprouve a Deus para livrar a Sua Palavra de qualquer corrupção, já que é impossível adulterar ou destruir as informações nas milhares de cópias. Texto bizantino e alexandrino Os milhares de apógrafos que há são divididos em dois grupos ligados a diferentes locais e métodos interpretativos. Grupo 1 É formado pela maioria dos manuscritos denominado de texto-tipo Bizantino. Dos 5.600 manuscritos em grego que possuímos atualmente, cerca de 95% pertence a este grupo, que concordam, quase que, perfeitamente entre si. O texto-tipo Bizantino está relacionado à cidade de Antioquia, na Síria, local que serviu de refúgio para os cristãos, após a morte de Estevão, onde pregaram para os gregos de lá (At 11:19, 20). Naquele local surgiu uma igreja forte por meio, principalmente, dos ministérios de Paulo e Barnabé, onde as pessoas que compunham a igreja foram chamadas pela primeira vez de “cristãos” (At 11:22-26). Também foi dessa igreja que o apóstolo Paulo partiu para cada uma de suas viagens missionárias (At 13:1-3; 15:35, 36; 18:22, 23). Outros apóstolos visitaram a cidade, incluindo o apóstolo Pedro (Gl 2:11, 12). Não demorou muito para que Antioquia se tornasse a cidade-mãe das igrejas gentílicas e, depois da queda de Jerusalém em 70 d.C., tornou-se o centro do Cristianismo. Portanto, um texto procedente de Antioquia seria o texto aprovado pelos apóstolos nos primórdios da Igreja Cristã. Além disso, esse texto recebeu seu nome de Bizâncio2, a capital do Império Oriental, e, em razão disso, logo se estabeleceu como o texto grego padrão, estando ligado à escola de interpretação dessa cidade. Constantinopla era o centro tanto do mundo como da Igreja de fala grega. Enquanto no Ocidente, o grego havia cedido lugar ao latim, no Oriente o grego permanecia como idioma oficial e de uso comum. Isso significa, 2
Posteriormente renomeada como Constantinopla, por Constantino Magno, e atualmente é chamada de Istanbul.
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naturalmente, que os estudiosos gregos em Constantinopla eram peculiarmente qualificados para reconhecer e reproduzir o texto autêntico. Ademais, há muitos manuscritos de traduções para outras línguas, por exemplo, a Peshitta, também conhecida como a Bíblia Síria (cerca de 150 d.C.), da qual ainda sobrevivem mais de 300 manuscritos; a Itálica (cerca de 157 d.C.), também conhecida como a Bíblia Latina (e também chamada de vulgata, até o momento em que a vulgata de Jerônimo a substituiu). Estas antigas traduções são basicamente fiéis ao texto Bizantino. Este texto também tem o testemunho, nos primeiros séculos, de milhares de lecionários (livros com passagens bíblicas selecionadas, a serem lidas nas igrejas) e milhares de citações da Bíblia pelos pastores e escritores. Praticamente todos os antigos copistas eram escribas judeus contratados ou convertidos, cuja reverência à Palavra escrita de Deus os obrigava a observar uma exatidão perfeita na transcrição. O Texto Bizantino foi transmitido fidedignamente durante séculos, desde os Novacianos, até ficar aos cuidados dos Valdenses, conhecidos como “o povo do livro (Bíblia)”, como se vê na tabela abaixo: Nome da “seita”* Novacianos Donatistas Paulicianos Vaudois da França e Espanha Paterinos Gundulfianos Berengarianos Petrobussianos Henricianos Arnoldistas Valdenses e Albigenses Valdo e seus colegas Hussitas Valdenses e Picardos
Data (d.C.) 250 311 653 714 945 1025 1049 1110 1135 1140 1150 1178 1420 1450
* “Seita”, pois foram assim tratados pelo romanismo.
Com isso, podemos perceber que apenas seus nomes que mudaram – relacionados aos locais, modos de viver ou calúnias, já que o Romanismo que lhes nomeavam, inclusive classificando-os como “seitas”. Porém há uma linhagem que remonta ao tempo dos apóstolos, tal linhagem é sustentada pela perseverança nas doutrinas bíblicas e rejeição veemente das heresias que aumentavam, cada vez mais, no berço da Igreja Romana. Desde o século II os Valdenses (por meio de seus ancestrais) mantiveram o Texto Bizantino incorruptível. Os Valdenses foram os
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primeiros, dentre os povos da Europa, a obter a tradução das Sagradas Escrituras. Centenas de anos antes da Reforma, possuíam a Bíblia em manuscritos na língua materna, tinham a verdade incontaminada e isso os tornavam objetos, em especial, do ódio e perseguição; declaravam que a igreja de Roma era a Babilônia apóstata do Apocalipse (assim como todos os reformadores) e com risco de morte, erguiam-se para resistir às suas corrupções. Durante séculos de trevas e apostasia, os Valdenses negavam a supremacia de Roma; rejeitavam o culto às imagens, por ser idolatria; recusavam-se a participar das missas, dos dogmas e ensinamentos da igreja apóstata. Sob as mais ardentes perseguições, conservaram a fé. Perseguidos na França, onde também haviam chegado, ou queimados pela fogueira romana, mantiveram-se ao lado do Evangelho, sem hesitar. Em 1516, quando Erasmo de Roterdã (1466 – 1536), o principal estudioso na Europa, publicou a primeira edição do Novo Testamento grego, baseou-se em manuscritos bizantinos característicos. Outros logo seguiram seus passos. Em 1624, Bonaventura e Abraham Elzevir publicaram sua edição, semelhante à de Erasmo. O prefácio da segunda edição de Elzevir, publicada em 1633, continha as palavras: “Portanto, agora se tem um texto recebido por todos, no qual não há alteração ou corrupção”. Por essa razão o texto-tipo Bizantino foi denominado de Textus Receptus [O Texto Recebido], também conhecido como Texto Majoritário (por consistir na maioria dos manuscritos) ou Texto Tradicional. O Texto Bizantino foi o texto fundamental de todas as grandes Bíblias protestantes inglesas, incluindo aquelas associadas aos nomes de William Tyndale (1525), Miles Coverdale (1535), John Rogers (1537) e Richard Taverner (1539), bem como as conhecidas: Grande Bíblia (1539), Bíblia de Genebra (1560), Bíblia dos Bispos (1568) e, naturalmente, a Versão Autorizada King James (1611). E ainda: a Reina, em espanhol; a Karoli, em húngaro; a Lutero, em alemão; a Olivetan, em francês; a Statenvertaling, em holandês; a Almeida, em português; e a Diodati, em italiano. Grupo 2 Já esse grupo é constituído por uma pequena parcela dos manuscritos gregos (5%). Peculiaridades na ortografia mostram que eles estão associados à Alexandria, no Egito, e sua escola interpretativa. Seus maiores representantes são o Códex Sinaíticus (ou Códex Aleph) e o Códex Vaticanus (ou Códex B), ambos datados do século IV. Embora estes manuscritos sejam mais antigos que o Texto Bizantino, há diversos problemas que demonstram não serem confiáveis tais cópias: 1. As Escrituras não indicam que jamais tenha havido uma presença apostólica na região do Egito, entretanto a História da Igreja revela que muitos heréticos famosos viveram e ensinaram ali, incluindo gnósticos. Portanto, qualquer coisa que venha desse lugar deve ser considerada com cautela.
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2. Os dois grandes representantes desse texto-tipo, os Códices Aleph (Sinaíticus) e B (Vaticanus) são excepcionalmente pobres em qualidade. Quando examinado pelo Dr. Frederick Scrivener (1813 – 1891), o Códex Aleph foi declarado “grosseiramente escrito” e “repleto de dúzias de erros de transcrição”, tais como “omitir linhas inteiras do original”. O Códex B, embora “melhor”, mostrou-se “passível de falhas”, cometendo “erros do mais evidente caráter”. Esses manuscritos principais exibem suas adulterações ao não concordarem entre si em, literalmente, centenas de lugares (3.000 vezes, somente nos evangelhos), além de estarem em discrepância com a esmagadora maioria dos manuscritos gregos – há algo em torno de 6.000 diferenças entre os textos Alexandrino e Bizantino. É verdade que há expressiva perda de texto no Codex B (Vaticanus), porém, considerando-se sua idade (metade ou fim do século IV), está em notável boa condição. Uma vez que os mais exatos manuscritos dessa época pereceram em razão do uso, deve-se supor que esses foram rejeitados como defeituosos e, portanto, não foram usados pela Igreja. Apoiando essa conclusão está o fato de que somente umas poucas cópias foram feitas a partir deles. Como afirma o Dr. Gordon Clark (1902 – 1985): “Se um ou dois grupos de manuscritos têm um único ancestral, implica que um grupo ou dois de copistas criam que aquele ancestral era fiel aos autógrafos.”, porém, se um manuscrito não tem uma descendência numerosa, como no caso do ancestral do Códex B, pode-se suspeitar que os antigos escribas duvidaram de seu valor. Possivelmente os antigos cristãos ortodoxos sabiam que o Códex B era corrompido. Além disso, há visíveis marcas de rasura no Códex Aleph. Constantin von Tischendorf (1815 – 1874) – linguista que descobriu o Códex Sinaiticus – achou algumas de suas páginas na lixeira da biblioteca do monastério de Santa Catarina, no Monte Sinai, confirmando a corrupção deste. O texto dos corrompidos manuscritos alexandrinos foi completamente rejeitado pela multidão incontável das igrejas cristãs (mesmo Grega Ortodoxa e Romana), por quase 1500 anos, até que no século XIX dois estudiosos de Cambridge, B. F. Westcott (1825 – 1901) e F. J. A. Hort (1828 – 1892), elaboraram uma nova teoria radical sobre a primeira transmissão do texto do Novo Testamento. Defendiam que o melhor texto era o Alexandrino (o qual o denominaram de “Texto Neutro”, também conhecido como “Texto Crítico”), representado pelos Códex Aleph e pelo B. Uma vez que esses dois manuscritos eram ligeiramente mais antigos que outros, alegavam que seu ancestral comum estava mais próximo do original inspirado – o qual é uma falácia, pois neste caso os mais velhos são os piores. Westcott e Hort começaram a tarefa de preparar um texto grego revisado. Por coincidência, eles também faziam parte do comitê, escolhido
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pela Assembleia de Canterbury, em 1880, designado para preparar uma edição revisada da Bíblia em inglês. Embora o texto grego desses dois estudiosos ainda não havia sido publicado, uma cópia foi colocada à disposição dos revisores. Então, quando, em 1881, surgiu o Novo Testamento da Versão Revisada, ficou imediatamente evidente que o texto grego de Westcott e Hort havia não somente influenciado grandemente o comitê, mas também que ele tinha sido largamente empregado na Versão Revisada do Novo Testamento em inglês. O texto Hort/Westcott foi o precursor do que hoje se conhece como texto Nestle/Aland (United Bible Societies – [Sociedades Bíblicas Unidas]), que tem usurpado o lugar do texto Bizantino ou Tradicional e, subsequentemente, tornou-se a base de praticamente todas as traduções modernas. As escolas de interpretação da Bíblia No início do cristianismo, os cristãos eram desprezados por serem, em sua maioria, pessoas marginalizadas pela sociedade (escravos e mulheres). Após a morte dos apóstolos, inicia-se a chamada era pós-apostólica, que vai do século II até o século IV, época dos grandes concílios ecumênicos na Igreja. No período pós-apostólico, a Igreja era liderada por pastores e bispos que vieram a exercer considerável influência sobre a Cristandade daquela época, os quais ficaram conhecidos como “Pais da Igreja”. Os Pais da Igreja procuravam entender qual a verdade de Deus examinando as Escrituras. Debates vigorosos aconteceram quanto ao sentido exato das palavras dos apóstolos e profetas. Uma das questões hermenêuticas centrais era como a Igreja Cristã poderia interpretar as profecias, instituições, personagens e eventos do Antigo Testamento de forma a refletir Cristo. Além disso, esses pais eram apologetas, ou seja, defendiam a fé cristã de ataques de falsos líderes que distorciam questões essenciais da fé cristã. Duas linhas nítidas e diferentes de interpretação surgem nessa época. A primeira, mais alegórica, está relacionada com a cidade de Alexandria. A outra, que surge em Antioquia, posteriormente, é mais voltada para o sentido literal do texto bíblico. Escola de Alexandria A escola de Alexandria foi fortemente influenciada pela filosofia platônica dualista do mundo das ideias e o mundo sensível, com isso a alegorização do texto bíblico tornou-se característico desta escola interpretativa. Dentre diversos representantes dessa escola, o nome que destacaremos é Orígenes (185 - 253 d.C.). Orígenes é a figura mais importante desse período. Foi um respeitado estudioso, capaz e provavelmente o mais erudito de sua época. Sua abordagem da Escritura pode se resumir em alguns pontos essenciais:
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• A melhor maneira de se entender a Bíblia é através da perspectiva platônica. • A Bíblia contém segredos que somente a mente espiritual pode compreender. O sentido literal é valioso, mas algumas vezes obscurece o sentido primário, que é o espiritual. O literal é para iniciantes, mas o espiritual é para os maduros na fé. • Se Deus é o autor da Bíblia, ela deve ter um sentido mais profundo. A interpretação literal é própria dos judeus e não dos cristãos. A esses foi revelado o sentido mais profundo das Escrituras, que havia sido ocultado dos judeus incrédulos. Entendia-se que havia três níveis de sentido nas Escrituras, correspondentes às três dimensões da personalidade humana: 1) Carne – a interpretação literal e óbvia corresponde à carne ou ao corpo humano, que é visível e evidente a todos que o veem. Esse tipo de interpretação é para os indoutos. 2) Alma – aqueles que já fizeram algum progresso na vida cristã começam a discernir sentidos mais além do óbvio. 3) Espírito – a interpretação alegórica, própria dos que são espirituais. Exemplo da interpretação alegórica: Faraó mandando matar os meninos e preservando as meninas hebreias (Êx 1:15-16). Os meninos significam o espírito intelectual e sentidos racionais enquanto que as meninas significam paixões carnais. Escola de Antioquia A escola de Alexandria foi fundada por Luciano de Samósata (240 – 312 d.C.), teólogo cristão que deu origem a uma tradição de estudos bíblicos que ficou conhecida pela erudição e conhecimento das línguas originais. Luciano fundou em Antioquia da Síria uma escola de estudos bíblicos em oposição consciente ao método alegórico ligado a Alexandria, particularmente ao método de Orígenes. Essa escola tornou-se famosa por sua abordagem literal das Escrituras. Foi formada no início do século IV, embora já no século II houvesse em Antioquia estudiosos com uma interpretação mais sóbria da Bíblia. O princípio que regia a interpretação dessa escola era caracterizado pela sensibilidade e atenção ao sentido literal do texto. Era uma abordagem que poderia ser chamada de “gramático-histórica”. Esse termo só apareceu após a Reforma, mas os princípios que caracterizavam esse tipo de interpretação já estavam presentes em Antioquia: procurar alcançar o sentido do texto através da busca da intenção do seu autor (daí estudar-se o sentido óbvio das palavras, gramma em grego) considerando o contexto histórico em que foi escrito.
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O Estabelecimento da Escola de Alexandria Já no início da Idade Média, a escola de Alexandria se estabeleceu como a corrente dominante da Igreja Cristã. Um dos principais motivos da escola de Antioquia ter sido rejeitada, foi que alguns líderes heterodoxos ou heréticos, condenados pelos concílios ecumênicos, eram seguidores do método de Antioquia. Dois exemplos: (1) Nestório (morreu em 451 d.C.), o patriarca sírio de Constantinopla. Foi condenado pelo Concílio de Éfeso por fazer uma distinção por demais exagerada entre as duas naturezas de Cristo, ao ponto de quase admitir a existência de duas pessoas no mesmo Cristo. (2) No Ocidente, Juliano de Eclano (morreu em 454 d.C.), bispo pelagiano, era o principal defensor dos princípios de Antioquia. O pelagianismo foi condenado pelo Concílio de Éfeso, entre outros, por negar a necessidade da graça para a salvação; Agostinho de Hipona (354 – 430 d.C.) foi seu maior confrontador. Pelo fato de a escola de Alexandria ter influências platônicas em seu método interpretativo, sua predominância na Igreja deu aval para que teólogos se apropriassem de conceitos platônicos. Quadriga O método de interpretação filho da escola de Alexandria que foi predominante na Idade Média foi chamado de Quadriga – nome dado a um carro ou carroça conduzido por quatro cavalos lado a lado, utilizada nos jogos olímpicos antigos e em outros jogos. Tal método emprestou seu nome desse carro, pois analisava o texto bíblico em quatro sentidos diferentes: 1. Histórico ou literal: o sentido evidente e óbvio do texto. 2. Alegórico ou cristológico: o sentido mais profundo, geralmente apontando para Cristo. 3. Tropológico ou moral: o sentido que determinava as obrigações do cristão e a sua conduta. 4. Anagógico3 ou escatológico: o sentido que apontava para as coisas vindouras que o cristão deveria esperar. Assim, passagens que mencionavam Jerusalém, por exemplo, comportavam quatro sentidos diferentes. O sentido literal referia-se à capital da Judéia e ao santuário central da nação. O sentido moral de Jerusalém é a alma do homem, o “santuário central” da pessoa humana. Seu significado alegórico é a igreja (o centro da comunidade cristã). O significado anagógico é o céu, a esperança final e morada futura do povo de Deus. Portanto, uma simples referência a Jerusalém poderia significar quatro coisas ao mesmo tempo. Se a Bíblia mencionasse que alguém subiu para Jerusalém, isto poderia indicar que a pessoa foi a uma real cidade terrena, ou que sua alma “subiu” para um estado de excelência moral, ou que devemos ir à igreja, ou que algum dia iremos para o céu. 3
Espiritual, místico.
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No decorrer dos mil anos da Idade Média, gradativamente a Bíblia foi sendo tirada do povo. Com o objetivo de proteger a usurpação hierárquica, os monges, bispos e padres exageraram o fato de que existem passagens obscuras na Bíblia e assim a mantiveram longe das multidões. Transformaram-na em algo semelhante ao livro fechado a 7 chaves mencionado em Apocalipse, cujo sentido somente os bispos e monges podiam desvendar. Até que em 1230 foi oficialmente proibido a sua leitura. Mas o povo remanescente de Deus teve seu grito ouvido através de Martinho Lutero na Reforma Protestante.
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Unidade 4 – Interpretação na Reforma Protestante Tem sido reconhecido que a reforma teológica e eclesiástica do século XVI foi o resultado de uma reforma hermenêutico-exegética. De fato, a redescoberta das doutrinas bíblicas pelos reformadores e a renovação eclesiástica decorrente foram precedidas por um evidente rompimento com os princípios hermenêuticos e com a prática exegética medieval. Martinho Lutero e a interpretação individual Dois dos grandes legados da Reforma foram o princípio da interpretação particular (ou livre exame) e a tradução da Bíblia para o vernáculo (idioma popular). Os dois princípios seguem lado a lado e foram alcançados somente após grandes controvérsias e perseguições. Muitas pessoas pagaram com a vida sendo queimadas em praça pública (especialmente na Inglaterra) pela ousadia de traduzirem a Bíblia para a língua do povo. Uma das maiores realizações de Lutero foi sua tradução da Bíblia para o alemão, permitindo que qualquer pessoa alfabetizada pudesse lê-la por si mesmo. Foi o próprio Lutero quem trouxe a questão da interpretação particular para o centro das discussões teológicas e eclesiásticas do século 16. Ele sustentava que a igreja não deveria determinar o que as Escrituras ensinam; pelo contrário, as Escrituras é que deveriam determinar o que a igreja ensina. Rejeitou o método alegórico de interpretação da Escritura, chamando-o de sujeira, escória, e um monte de trapos obsoletos. Implícito na famosa resposta do Reformador às autoridades eclesiásticas e imperiais presentes na Dieta de Worms, estava o princípio da interpretação particular ou individual. Quando instado a retratar-se de seus escritos Lutero respondeu: A não ser que eu seja convencido pelas Sagradas Escrituras ou por razão evidente, não posso retratar-me. Minha consciência é cativa da Palavra de Deus e agir contra a consciência não é certo nem seguro. Mantenho essa posição, não posso agir de outro modo. Assim Deus me ajude. Note que Lutero afirmou: “A não ser que eu seja convencido...”. Em debates anteriores em Leipzig e Augsburg, Lutero havia ousado interpretar as Escrituras em termos contrários à interpretação oficial aceita pelos papas e concílios eclesiásticos. A presunção denunciada levou a várias acusações de arrogância, apresentadas pelos oficiais eclesiásticos contra Lutero. O Reformador não considerou tais acusações desprezíveis, mas ficou agoniado com elas. Ele aceitava que podia estar errado, mas mantinha que também os papas e concílios podiam errar. Para Lutero uma única fonte de verdade
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estava livre de erros. Dizia ele: “As Escrituras nunca erram”. Portanto, a não ser que os líderes da igreja pudessem convencê-lo de seu erro, ele se sentia compelido pelo dever de seguir o ensino das Escrituras tal como o compreendia em sua própria consciência. Com essa controvérsia o princípio da interpretação particular nasceu e foi incendiado. Após a corajosa declaração de Lutero e de seu subsequente trabalho de tradução da Bíblia para o alemão durante sua estada no castelo de Wartburg, a Igreja Romana não se recolheu simplesmente sem esboçar reação. Pelo contrário, mobilizou suas forças numa contraofensiva em três frentes que ficou conhecida como Contrarreforma. As formulações do Concílio de Trento (1545 – 1563) representam uma das frentes mais violentas deste contra-ataque. Trento denunciou muitas das questões levantadas por Lutero e outros reformadores, entre elas estava a questão da interpretação particular. Junto com o direito à interpretação vem a grave responsabilidade de uma interpretação acurada. O livre exame nos dá o direito de interpretar, mas não de distorcer. Lutero estava consciente dos perigos existentes na mudança defendida pela Reforma, mas estava também convencido da clareza das Escrituras. Assim, embora os perigos de distorção fossem grandes, ele sentia que o benefício de expor as multidões às mensagens basicamente claras do Evangelho conduziria muitos mais à salvação do que à ruína. Lutero estava disposto a assumir o risco de acionar a válvula que poderia abrir uma “comporta de iniquidade”. A interpretação particular abriu a Bíblia para o leigo, mas não dispensou o princípio de um ministério bem preparado. Sacerdócio universal de todos os crentes O princípio de interpretação particular está diretamente relacionado à doutrina do sacerdócio universal de todos os crentes. Os reformadores recusaram a distinção medieval entre os leigos e o clero, onde apenas o clero poderia interpretar as Escrituras, sendo o mediador entre o povo e Deus. Lutero deu ênfase a essa doutrina em seu ministério, especialmente na obra Da Liberdade do Cristão (1520), onde diz: De posse da primogenitura e de todas as suas honras e dignidade, Cristo divide-a com todos os cristãos para que por meio da fé todos possam ser também reis e sacerdotes com Cristo, tal como diz o apóstolo Pedro em 1 Pe 2:9 (...) Somos sacerdotes; isto é muito mais que ser reis, porque o sacerdócio nos torna dignos de aparecer diante de Deus e rogar pelos outros. (...) Tu perguntas: ‘Que diferença haveria entre os sacerdotes e os leigos na cristandade, se todos são sacerdotes?’ A resposta é: as palavras ‘sacerdote’, ‘cura’, ‘religioso’ e outras semelhantes foram
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injustamente retiradas do meio do povo comum, passando a ser usadas por um pequeno número de pessoas denominadas agora ‘clero’. A Escritura Sagrada distingue apenas entre os doutos e os consagrados, chamando-os de ministros, servos e administradores, que devem pregar aos outros a Cristo, a fé e a liberdade cristã. Já que, embora sejamos todos igualmente sacerdotes, nem todos podem servir, administrar e pregar. Como disse Paulo em 1 Co 4:1: ‘Assim, pois, importa que os homens nos considerem como ministros de Cristo, e despenseiros dos mistérios de Deus.’.4 Resumindo, o princípio do sacerdócio universal dos crentes fala do grande privilégio dado aos filhos de Deus: cada cristão é um sacerdote, cada cristão tem livre e direto acesso à presença de Deus, tendo como único mediador o Senhor Jesus Cristo. Todavia, esse princípio jamais deve ser entendido de maneira individualista. A ênfase dos reformadores está no seu sentido comunitário. Os crentes são sacerdotes uns dos outros, devendo orar, interceder e ministrar uns aos outros. À luz do Novo Testamento, todo cristão é um ministro (diákonos) de Deus, o que ressalta as ideias de serviço e solidariedade. Num certo sentido, todos os crentes são “leigos”, palavra que vem do termo grego laós, o povo de Deus. Todavia, a Escritura claramente fala de diferentes dons e ministérios. Alguns cristãos são especificamente chamados, treinados e comissionados para o ministério especial de pregação da Palavra e ministração dos sacramentos. Aqueles que não são chamados ao ministério pastoral devem exercer seus trabalhos, nas áreas em que foram chamados, para a glória de Deus; de forma a cumprirem os mandatos cultural, social e espiritual. Todos devem estudar a Bíblia para aplica-la em seu ofício, quer seja da pregação ou qualquer outro. Exegese e Eisegese Ainda que a Reforma trouxe uma subjetividade no estudo bíblico, de forma alguma foi endossado o subjetivismo. Subjetivismo e subjetividade não são sinônimos. Dizer que a verdade tem um elemento de subjetividade é uma coisa, mas afirmar que ela é totalmente subjetiva é algo muito diferente. Para que tanto a verdade quanto a falsidade tenham algum significado para minha vida, elas necessitam aplicar-se a mim de alguma forma. Quando a verdade de uma proposição toca no meu ponto vulnerável e me atinge pessoalmente, ela se torna uma questão subjetiva. A aplicação de um texto bíblico à minha vida pode ter fortes implicações subjetivas. Mas subjetivismo não é isso. Subjetivismo acontece quando distorcemos o significado objetivo dos termos para adaptá-los aos nossos interesses próprios. Subjetivismo acontece quando a verdade de uma afirmação não 4
LUTERO, Martinho. Da Liberdade do Cristão. Editora UNESP, 1998. Cap. 15 a 17.
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é meramente desenvolvida ou aplicada ao sujeito, mas sim quando essa verdade é absolutamente determinada pelo sujeito. Se vamos evitar distorções no estudo das Escrituras, devemos, desde o início, evitar o subjetivismo. Ao buscar uma compreensão objetiva das Escrituras não estamos tentando reduzi-la a um documento frio, abstrato e sem vida. Ao contrário, estamos procurando compreender o que a palavra significa no seu contexto antes de passarmos à tarefa igualmente importante de aplicá-la às nossas vidas. Uma afirmação individual pode ter numerosas aplicações pessoais possíveis, mas terá apenas um significado correto. Interpretações alternativas que se apresentam contraditórias e mutuamente exclusivas não podem ser ambas verdadeiras, a não ser que Deus fale com duplo sentido. Estudiosos da Bíblia fazem a importante e necessária distinção entre exegese e eisegese. Exegese significa explicar o que as Escrituras dizem. A palavra vem do termo grego que quer dizer “guiar para fora de”. A chave para a exegese está no prefixo “ex”, que quer dizer “de” ou “fora de”. Fazer a exegese das Escrituras significa extrair das palavras o sentido que está no texto, nem mais nem menos. Ao contrário, eisegese tem a mesma raiz, mas um prefixo diferente. O prefixo “eis”, também vindo do grego, significa “para dentro de”. Portanto, eisegese significa levar para dentro do texto, ou injetar no texto um sentido que absolutamente não está lá. Exegese é um empreendimento objetivo. Eisegese envolve um exercício de subjetivismo. Todos nós precisamos lutar com o problema do subjetivismo. A Bíblia muitas vezes diz coisas que não gostamos de ouvir. Podemos colocar algodão nos ouvidos e tampões nos olhos. É muito mais fácil e menos dolorido criticar a Bíblia do que permitir que ela nos critique. Não é de admirar que Jesus frequentemente concluía suas palavras dizendo: “Quem tem ouvidos para ouvir, ouça” (por ex.: Lc 8:8; 14:35). O subjetivismo não apenas produz erro e distorção, mas cria em nós a arrogância. Crer no que creio simplesmente porque eu o creio, ou afirmar que minha opinião é verdadeira unicamente porque é minha opinião é a síntese da arrogância. Se meus pontos de vista não resistem ao teste da análise e da verificação objetivas, a humildade exige que eu os abandone. Mas o subjetivista tem a arrogância de manter sua posição mesmo sem nenhum apoio ou corroboração objetiva. “Se você quer crer naquilo que o satisfaz, muito bem; eu vou crer no que eu quiser crer”. Tal afirmação parece indicar uma atitude humilde, mas é uma humildade apenas superficial. Pontos de vista particulares precisam ser avaliados à luz das afirmações e da evidência que vem de fora de nós, pois ao nos aproximarmos da Bíblia, trazemos conosco um excesso de bagagem interna. Ninguém na face da Terra tem uma compreensão perfeitamente pura da Palavra de Deus. Todos nós temos algumas opiniões e mantemos
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algumas ideias que não são de Deus. Talvez se soubéssemos precisamente quais das nossas opiniões são contrárias a Deus estaríamos até dispostos a abandoná-las. Mas é muito difícil escolher por nós mesmos quais são elas. Por isso, nossos pontos de vista precisam da caixa de ressonância e da pedra de amolar vindas da pesquisa e da competência de outras pessoas. O próprio Santo Agostinho afirmou: “Se você crê somente naquilo que gosta no evangelho e rejeita o que não gosta, não é no evangelho que você crê, mas, sim, em si mesmo”.
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Unidade 5 - Interpretação bíblica nos períodos da pósreforma até o pós-modernismo Período da pós-reforma (1550 - 1800) Confessionalismo O Concílio de Trento reuniu-se em várias ocasiões de 1545 a 1563 e elaborou uma lista de decretos expondo os dogmas da Igreja Romana e criticando o protestantismo. Os protestantes reagiram com o desenvolvimento de credos que definiam sua posição. A certa altura, quase todas as cidades importantes tinham seu credo predileto, com a predominância de amargas controvérsias teológicas. Os métodos hermenêuticos durante este período, com frequência, eram deficientes, porque a exegese se tornou uma criada da dogmática, e muitas vezes degenerou-se em mera escolha de texto para comprovação. Pietismo O pietismo surgiu como reação à exegese dogmática. Philipp Jakob Spener (1635 – 1705) é considerado o líder do reavivamento pietista. Em um folheto intitulado “Anseios Piedosos” ele pedia: o fim da controvérsia inútil, o retorno ao interesse cristão mútuo e às boas obras; melhor conhecimento da Bíblia por parte dos cristãos e melhor preparo espiritual para os ministros. A. H. Francke (1663 – 1727) tipificou muitas das características pedidas pelo folheto de Spener. Além de ser erudito, linguista e exegeta, ele foi ativo na formação de muitas instituições destinadas ao cuidado dos desamparados e dos enfermos. Além disso, envolveu-se na organização do trabalho missionário para a Índia. O pietismo fez significativas contribuições para o estudo da Escritura, mas não ficou imune às críticas. Nos seus mais sublimes momentos, os pietistas uniram um profundo desejo de entender a Palavra de Deus e apropriar-se dela para suas vidas com uma excelente apreciação da interpretação histórico-gramatical. Contudo, muitos pietistas mais recentes descartaram a base de interpretação histórico-gramatical, passando a depender de uma “luz interior”. Essas manifestações, baseadas em impressões subjetivas e reflexões piedosas, muitas vezes, resultaram em interpretações contraditórias, que tinham poucas relações com o significado original do autor. Racionalismo O racionalismo, posição filosófica que aceita a razão como a única via de se achar a verdade e a autoridade que determina as opções ou curso de ação de alguém, surgiu como importante modo de pensar durante este período e cedo causou profundo efeito sobre a teologia e a hermenêutica.
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Durante vários séculos, a igreja havia acentuado a racionalidade da fé. Considerava a revelação superior à razão como meio de entender a verdade, mas a verdade da revelação foi tida como inerentemente razoável. Lutero estabeleceu distinção entre o uso magisterial e o ministerial da razão. Por uso ministerial da razão ele se referia ao emprego da razão humana para ajudar-nos a compreender e a obedecer mais plenamente à Palavra de Deus. Por uso magisterial da razão ele se referia ao emprego da razão humana como juiz sobre a Palavra de Deus. Lutero afirmava claramente a primeira e rejeitava a segunda. Período moderno (de 1800 até meados do século XX) Liberalismo O racionalismo filosófico lançou a base do liberalismo teológico. Ao passo que nos séculos anteriores a revelação havia determinado o que a razão deveria pensar, no final do século XIX a razão determinava que partes da revelação (se houvesse alguma) deviam ser aceitas como verdadeiras. Onde nos séculos anteriores a autoria divina da Escritura fora acentuada, agora o foco era sua autoria humana. Alguns autores diziam que várias partes da Escritura possuíam diversos graus de inspiração, e podia ser que os graus inferiores (como detalhes históricos) contivessem erros. Outros escritores, como Schleiermacher (1768 – 1834), foram além, negando totalmente o caráter sobrenatural da inspiração. Muitos já não mencionavam a inspiração como o processo pelo qual Deus guiou os autores humanos a um produto escriturístico que fosse a sua verdade. Pelo contrário, a inspiração referia-se à capacidade da Bíblia (produzida humanamente) de inspirar a experiência religiosa. Também se aplicou à Bíblia um naturalismo consumado. Os racionalistas alegavam que tudo o que não estivesse conforme a mentalidade instruída devia ser rejeitado. Isso incluía doutrinas como a depravação humana, o inferno, o nascimento virginal, e, com frequência, até a expiação vicária de Cristo. Os milagres e outros exemplos de intervenção divina eram regularmente explicados de forma satisfatória como exemplos de pensamento pré-crítico. Sofrendo a influência do pensamento de Darwin (1809 – 1882) e de Hegel (1770 – 1831), a Bíblia chegou a ser vista como um registro do desenvolvimento evolucionista da consciência religiosa de Israel (e mais tarde da Igreja), e não como uma revelação do próprio Deus ao homem. Cada um desses pressupostos influenciou profundamente a credibilidade que os intérpretes davam ao texto bíblico, e, desse modo, teve importantes implicações para os métodos interpretativos. Neo-ortodoxia A neo-ortodoxia é um fenômeno do século XX. Ocupa, em alguns aspectos, uma posição intermediária entre os pontos de vista liberal e
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ortodoxo. Rompe com a opinião liberal de que a Escritura é só produto do aprofundamento da consciência religiosa do homem, mas detém-se antes de chegar à perspectiva ortodoxa da revelação. Os que se encontram dentro dos círculos neo-ortodoxos geralmente creem que a Escritura é o testemunho do homem à revelação que Deus fez de si próprio. Sustentam que Deus não se revela em palavras, mas apenas por sua presença. Quando alguém lê as palavras da Escritura e reage com fé à presença divina, ocorre a revelação. A revelação não é considerada como algo ocorrido em um ponto histórico, o qual agora nos é transmitido nos textos bíblicos, mas uma experiência presente que deve fazer-se acompanhar de uma reação existencial pessoal. As posições neo-ortodoxas sobre diversos problemas diferem das ortodoxas tradicionais. A infalibilidade ou inerrância não tem lugar no vocabulário neo-ortodoxo. A Escritura é vista como um compêndio de sistemas teológicos, às vezes conflitantes, acompanhados por diversos erros factuais. As histórias bíblicas da interação entre o sobrenatural e o natural são vistas como mitos — não no mesmo sentido dos mitos pagãos, mas no sentido de que não ensinam história literal. Os “mitos” bíblicos (como a criação, a queda, a ressurreição etc.) visam apresentar verdades teológicas na forma de incidentes históricos. Na interpretação neoortodoxa, a queda, por exemplo, informa-nos que o homem, inevitavelmente, corrompe sua natureza moral. A encarnação e a cruz mostram-nos que o homem não pode realizar sua própria salvação, mas que ela deve vir do além como ato da graça de Deus. A principal tarefa do intérprete é, pois, despir o mito de seus envoltórios históricos, a fim de descobrir a verdade existencial que ele contém. Período pós-moderno (meados do século XX até o presente) Em contraponto com o racionalismo moderno, as hermenêuticas pósmodernas assumiram que não há como analisar um texto racionalmente, de forma imparcial. Até certo ponto, essas novas hermenêuticas afirmam corretamente que todo leitor possui verdades axiomáticas5 e estas influenciam em seu trabalho interpretativo. Porém, se descarta a intenção do autor ou o contexto em que o escrito foi produzido, pois não creem que sejam importantes. Consequentemente, é assumido uma pluralidade de sentidos em um texto, ou seja, o significado da obra é definido pelo leitor por meio da participação decisiva das suas pressuposições e do seu ambiente. Esse novo posicionamento interpretativo segue o princípio kantiano de que “não é o sujeito que se molda ao o objeto da análise, mas o objeto da análise é quem se molda ao sujeito”. O sujeito no caso é o intérprete e o 5
Premissa considerada necessariamente evidente e verdadeira.
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objeto a Bíblia. O intérprete no caso impõe suas ideias, ansiedades, medos, preconceitos, concepção de mundo ao texto bíblico durante o processo de estudo. E o que ele obtém como resultado são suas ansiedades, medos, preconceitos, concepção de mundo. Ou seja, o que o interprete obtém como produto de seu procedimento hermenêutico é ele mesmo e não a Palavra de Deus. O homem vê a si próprio nas páginas da Bíblia e não a revelação divina. O resultado disso é que a verdade se torna relativa e diluída. Ninguém pode afirmar que possui a verdade. O que fundamenta e alimenta este método é o historicismo que nega a existência de verdades transcendentes e transculturais, mas que tudo não passaria de produtos de um determinado tempo em um determinado local, que foi útil para determinado período, mas que não possui autoridade absoluta, pois é uma construção social. A questão é que isso é uma contradição performativa, ou seja, ela contradiz a si mesma, pois então o próprio historicismo é apenas uma construção social que não é absoluto, portanto, não merece confiança. Vemos nesse tipo de interpretação um retorno à alegorização nociva da Escrituras que precisa ser combatido novamente. Dentre os principais nomes podemos citar: F. Schleiermacher, R. Bultmann (1884 – 1976), F. Saussure (1857 – 1913), H-G. Gadamer (1900 – 2002), J. Derrida (1930 – 2004), E. Fuchs (1903 – 1983), G. Ebeling (1912 – 2001), Foucault (1926 – 1984), etc. Deles proveem as hermenêuticas das minorias, como a hermenêutica feminista, a hermenêutica da libertação, a hermenêutica dos negra, a hermenêutica homossexual, etc. Além do conceito do “politicamente correto”, que é mais nocivo do que benéfico. Ainda que haja peculiaridades em cada escola hermenêutica, existem ideias comuns a todas elas: a rejeição da intenção autoral, a hermenêutica como interpretação do ser ou do processo de entendimento, a centralização do sentido no leitor, a valorização das pressuposições do leitor, e a subjetividade na interpretação.
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Unidade 6 - A Bíblia Como Literatura A analogia da fé Quando os Reformadores se apartaram de Roma e proclamaram sua convicção de que a Bíblia deveria ser a autoridade suprema da Igreja (Sola Scriptura), foram também muito cuidadosos em sua preocupação em definir princípios básicos de interpretação. A primeira regra de hermenêutica foi denominada “analogia da fé”. Analogia da fé significa que as Sagradas Escrituras são seu próprio intérprete: Sacra Scriptura sui interpres. Em termos simples, isto significa que nenhuma passagem das Escrituras pode ser interpretada de tal forma que o significado alcançado seja conflitante em relação ao ensino claramente exposto pela Bíblia em outras passagens. Por exemplo, se um versículo pode apresentar duas interpretações diferentes sendo que, uma delas é contrária ao ensino da Bíblia como um todo, enquanto a outra está em harmonia com este ensino, então esta última deve ser adotada e a anterior descartada. No primeiro capítulo da CFW diz: IX. A regra infalível de interpretação da Escritura é a própria Escritura; portanto, quando houver questão sobre o verdadeiro e pleno sentido de qualquer texto da Escritura (sentido que não é múltiplo, mas único), esse texto pode ser estudado e compreendido por outros textos que falem mais claramente (2Pe 1:20,21; At 15:15,16). Este princípio baseia-se numa confiança prévia e básica na Bíblia como Palavra inspirada por Deus, sendo, portanto, consistente e coerente. Uma vez assumido o princípio de que Deus nunca se contradiz, é ofensivo pensar que o Espírito Santo pudesse escolher uma interpretação que colocaria a Bíblia desnecessariamente em conflito consigo mesma. Dois princípios derivam-se daí: (1) O que é obscuro deve ser interpretado à luz do que é mais claro. (2) As ambiguidades periféricas devem ser interpretadas em harmonia com certezas fundamentais. Logo, nenhuma exposição de qualquer texto estará certa se não concordar, segundo Richard Bernard (1568 – 1641), “com os princípios cristãos, com os pontos do catecismo estabelecidos no Credo, com a oração do Pai Nosso, com os Dez Mandamentos e com a doutrina das ordenanças”. Mesmo não se considerando a inspiração, o método da analogia da fé é uma abordagem saudável para a interpretação de qualquer literatura. A simples norma de decência comum protege qualquer autor de acusações injustificadas de autocontradição. Se temos a opção de interpretar os comentários de alguém ou de forma coerente ou num sentido contraditório, em caso de dúvida, o autor deve ser considerado inocente.
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Interpretando a Bíblia literalmente Um dos mais significativos avanços nos estudos eruditos da Bíblia durante o período da Reforma foi alcançado como consequência do esforço militante de Lutero na defesa da segunda regra de hermenêutica: A Bíblia deve ser interpretada de acordo com o seu sentido literal. O emprego do sensus literalis era o princípio básico de Lutero para a interpretação da Bíblia. O termo “literal” vem do latim litera, isto é, “letra”. Interpretar algo literalmente significa prestar atenção à litera, ou às letras e palavras que estão sendo usadas. Interpretar a Bíblia literalmente significa interpretá-la como literatura. Isto é, o sentido natural de uma passagem deve ser interpretado de acordo com as regras normais de gramática, redação, sintaxe e contexto. A Bíblia pode ser um livro muito especial, singularmente inspirado pelo Espírito Santo, mas tal inspiração não transforma as letras das palavras ou as sentenças das passagens em frases mágicas. Mesmo inspirado, um substantivo permanece um substantivo e um verbo continua sendo um verbo. Perguntas não se transformam em exclamações e narrativas históricas não se tornam alegorias. A norma de interpretação literal exige o mais rigoroso escrutínio literário do texto. Para sermos intérpretes precisos e acurados da Bíblia necessitamos conheceras regras de gramática; e, sobretudo, precisamos estar cuidadosamente comprometidos com a chamada análise do gênero literário. Figuras de linguagem Figuras de linguagem são recursos utilizados pelo autor de um texto no intuito de dar maior expressividade à sua obra. Nos escritos bíblicos não é diferente, seus autores usaram abundantemente desses recursos. Cabe a nós, na tarefa de interpretar um texto: (1) conhecer essas figuras (apresentaremos algumas); (2) perceber de que forma aparecem nos textos; (3) de que forma influenciam nossa leitura e interpretação de um texto. Metáfora Esta figura tem por base alguma semelhança entre dois objetos ou fatos, caracterizando-se um com o que é próprio do outro. Exemplos: Quando Jesus diz: “Eu sou a videira verdadeira”, se caracteriza com o que é próprio e essencial da videira; e ao dizer aos discípulos: “Vós sois as varas”, caracteriza-os com o que é próprio das varas. Para a boa interpretação desta figura, perguntamos, pois: que caracteriza a videira? Ou, para que serve principalmente? Na resposta a tais perguntas está a explicação da figura. Para que serve uma videira? Para transmitir seiva e vida às varas, a fim de produzirem uvas, pois isso é o que, em sentido espiritual, caracteriza a Cristo: qual vinha, videira ou
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tronco verdadeiro, comunica vida e força aos crentes, para que, como as varas produzem uvas, eles produzam os frutos do Espírito Santo. Proceda-se do mesmo modo na interpretação de outras figuras do mesmo tipo, como por exemplo: “Eu sou a porta, eu sou o caminho, eu sou o pão vivo; vós sois a luz, o sal; edifício de Deus; ide, dizei àquela raposa; são os olhos a lâmpada do corpo; Judá é o leãozinho; tu és minha rocha e minha fortaleza; sol e escudo é o Senhor Deus; a casa de Jacó será fogo, e a casa de José chama e a casa de Esaú é restolho etc.” (Jo 15:1; 10:9; 14:6; 6:51; Mt 5:13, 14; 1Co 3:9; Lc 13:32; Gn 49:9; Sl 71:3; 84:11;). Sinédoque Faz-se uso desta figura quando se toma a parte pelo todo ou o todo pela parte, o plural pelo singular, o gênero pela espécie, ou vice-versa. Exemplos: Toma a parte pelo todo o salmista ao dizer: “Minha carne repousará segura” (Sl 16:9). Em lugar de dizer: meu corpo ou meu ser, que seria o todo, sendo a carne parte de seu ser. Toma o todo pela parte o apóstolo quando diz da salvação: “Porque, assim como todos morrem em Adão, assim também todos serão vivificados em Cristo.” (1 Co 15:22), em lugar de dizer “todos os eleitos serão vivificados”, isto é, parte da humanidade. Tomam também o todo pela parte os acusadores de Paulo ao dizerem: “Temos achado que este homem é uma peste, e promotor de sedições entre todos os judeus, por todo o mundo”; “todo o mundo” significa aquela parte do mundo ou do Império Romano que o apóstolo havia alcançado com sua pregação (At 24:5). Metonímia Usa-se esta figura quando se emprega a causa pelo efeito, ou o sinal ou símbolo pela realidade que indica o símbolo. Exemplos: Vale-se Jesus desta figura empregando a causa pelo efeito ao dizer: “Eles têm Moisés e os profetas; ouçam-nos” (Lc 16:29), em lugar de dizer que têm os escritos de Moisés e dos profetas, ou seja, o Antigo Testamento. Emprega também o sinal ou símbolo pela realidade que indica o sinal quando disse a Pedro: “Se eu não te lavar, não tens parte comigo” (Jo 13:8). Aqui Jesus utiliza o sinal de lavar os pés pela realidade de purificar a alma, pois para ter parte com Cristo não é necessário a lavagem dos pés, mas a purificação da alma. Do mesmo modo João faz uso desta figura pondo o sinal pela realidade ao dizer: “O sangue de Jesus Cristo, seu Filho, nos purifica de todo o pecado” (1 Jo 1:7), aludindo ao sacrifício do AT, aqui a palavra sangue indica toda a paixão e morte expiatória de Jesus, única satisfação pelo pecado e meio de purificar o homem.
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Prosopopeia Usa-se esta figura quando se personificam coisas e causas inanimadas, atribuindo-lhes os feitos e ações humanos. Exemplos: O apóstolo fala da morte como uma pessoa que pode ter vitória ou sofrer derrota, ao perguntar: “Onde está, ó morte, o teu aguilhão?” (1Co 15:55). O apóstolo Pedro emprega a mesma figura, falando do amor e referindo-se à pessoa que ama, quando diz: “o amor cobre a multidão de pecados” (1 Pe 4:8). Como é natural, ocorrem com frequência estas figuras na linguagem poética do Antigo Testamento, dando-lhe assim uma estética, vivacidade e imaginação extraordinárias; como por exemplo ao proclamar o profeta: “Os montes e os outeiros romperão em cânticos diante de vós, e todas as árvores do campo baterão palmas” (Is 55:12). Convirá observar que casos como estes não se tratam somente de uma mera personificação das coisas inanimadas, mas de uma simbolização pelas mesmas, nesta passagem os montes e outeiros representando pessoas eminentes, e as árvores pessoas humildes; uns e outros de regozijo louvando ao Redentor ante seus mensageiros. Outro caso de personificação grandiosa ocorre no Salmo 85:10-11, onde se faz referência à abundância de bênçãos próprias do reinado do Messias nestes termos: “A misericórdia e a verdade se encontraram; a justiça e a paz se beijaram. A verdade brotará da terra, e a justiça olhará desde os céus.” Ironia Faz-se uso desta figura quando se expressa o contrário do que se quer dizer, porém sempre de tal modo que se faz ressaltar o sentido verdadeiro. Exemplos: Paulo emprega esta figura quando chama os falsos mestres de os tais apóstolos, dando a entender, ao mesmo tempo, que de nenhum modo são apóstolos (2 Co 11:5; 12:11). Vale-se da mesma figura o profeta Elias quando no Carmelo disse aos sacerdotes do falso deus Baal: “Clamai em altas vozes... e despertará” (1 Re 18:27), dando-lhes a compreender, por sua vez, que era inútil gritarem. Também Jó faz uso desta figura ao dizer a seus amigos: “Vós sois o povo, e convosco morrerá a sabedoria.” (Jó 12:2). Fazendo-se saber que estavam muito longe de serem tais sábios. Hipérbole É a figura pela qual se representa uma coisa como muito maior ou menor do que na realidade é, para apresentá-la viva à imaginação. Tanto a ironia como a hipérbole são pouco encontradas nas Escrituras, porém, alguma ou outra vez ocorrem. Exemplos: Fazem uso da hipérbole os exploradores da terra de Canaã quando voltam para contar o que ali haviam visto, dizendo: “Vimos ali
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gigantes; e éramos aos nossos próprios olhos como gafanhotos... as cidades são grandes e fortificadas até aos céus” (Nm 13:33; Dt 1:28). Vemos aí que os exploradores falavam como é de costume entre nós ao dizer uma pessoa a outra, por exemplo: “Já te avisei mil vezes”, querendo dizer tão somente: “Já te avisei muitas vezes”. Também João faz uso desta figura ao dizer: “Há, porém, ainda muitas outras coisas que Jesus fez; e se cada uma das quais fosse escrita, cuido que nem ainda o mundo todo poderia conter os livros que se escrevessem” (Jo 21:25). Alegoria A alegoria é uma figura retórica que geralmente consta de várias metáforas unidas, representando cada uma, realidades correspondentes. Costuma ser tão palpável a natureza figurativa da alegoria, que uma interpretação ao pé da letra quase que se faz impossível. Às vezes, a alegoria está acompanhada, como a parábola, da interpretação que a exige. Exemplos: Tal exposição alegórica nos faz Jesus ao dizer: “Eu sou o pão vivo que desceu do céu; se alguém comer deste pão, viverá para sempre; e o pão que eu der é a minha carne... Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna” (Jo 6:51-65), etc. Esta alegoria tem sua interpretação na mesma passagem da Escritura. Outra alegoria tem o Salmo 80:8-13 representando os israelitas, seu êxodo do Egito à Canaã e sua sucessiva história sob as figuras metafóricas de uma videira com suas raízes, ramos, etc. A qual, depois da partida, lança raízes e se estende, ficando, porém, mais tarde devastada pelo javali da selva e comida pelas bestas do campo (representando os poderes gentílicos). Ainda outra alegoria nos apresenta o povo israelita sob as figuras de uma vinha em lugar fértil, a qual, apesar dos melhores cuidados, não dá mais que uvas silvestres, etc. Também essa alegoria está acompanhada de sua explicação correspondente – “Porque a vinha do Senhor dos Exércitos é a casa de Israel, e os homens de Judá são a planta das suas delícias” (Is 5:1-7). Antropomorfismo Vem do grego antropomorfos, “de forma humana”. Consiste na atribuição de qualidades humanas ao ser divino ou a ideia de que Deus tem alguma espécie de formato, similar à anatomia humana. Expressar ideias sobre Deus, sob formas humanas, física, mental, moral ou espiritual, é tendência da maioria das religiões, sendo quase impossível de ser evitada, devido às restrições da linguagem humana. Não há entre os homens uma linguagem puramente divina, pelo que não há como falar sobre Deus sem usar termos que o antropomorfizem. Essa circunstância envolve uma severa limitação em nosso entendimento e em
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nossos discursos sobre Deus, refletindo nossas atuais limitações no campo do conhecimento e do entendimento espiritual; ainda que não sejam inadequadas, pois o próprio Deus faz uso desse tipo de linguagem. Esse tipo de revelação divina é conhecido como “conhecimento éctipo”, ou seja, é uma adequação do conhecimento próprio de Deus (arquétipo) ao ser humano, como quando um adulto adapta seu vocabulário para se comunicar com uma criança. No Antigo Testamento Deus é apresentado sob forma humana (Ex 15:3; Nm 12:8), com pés (Gn 3:8; Ex 24:10), mãos (Ex 24:11; Js 4:24), boca (Nm 12:8; Jr 7:13), coração (Os 11:8). Além dessas formas, atribuímos a Deus qualidades e emoções humanas (Gn 2:2; 6:6; Ex 20:5; Os 11:8). O homem foi criado à imagem de Deus (Gn 1:27) e os teólogos usualmente são cuidadosos ao declarar que se trata de uma imagem “moral e espiritual” e não física. No Novo Testamento persistem expressões antropomórficas (Rm 1:18ss; 5:12; 1 Co 1:25; Hb 3:15; 6:17; 10:31). Contudo as realidades espirituais não são vistas diretamente, mas imperfeitamente, como num reflexo de um antigo espelho fosco, de metal polido (1 Co 13:2). Deus não habita em templos materiais (At 17:24), uma declaração que procura evitar o conceito antropomórfico. Portanto, o método clássico de inquirir sobre o sentido literal das Escrituras significa buscar conhecer e compreender o que está sendo comunicado por meio das várias formas e figuras de linguagem empregadas na literatura bíblica. Isto era feito não com o propósito de suavizar, ou enfraquecer ou relativizar as Escrituras, mas para compreendê-las corretamente, a fim de que servissem mais eficientemente como guia para a fé e a prática do povo de Deus. O método gramático-histórico Intimamente relacionado com a analogia da fé e o sentido literal das Escrituras, está o método de interpretação chamado gramático-histórico. Como o nome sugere, este método focaliza sua atenção não apenas nas formas literárias, mas também nas construções gramaticais e nos vários contextos históricos dentro dos quais a Bíblia foi escrita. Documentos escritos chegam a nós dentro de algum tipo de estrutura gramatical. A poesia tem certas regras de estrutura, assim como cartas comerciais também as possuem. Para estudar as Escrituras é importante saber a diferença entre um objeto direto e um predicado nominal ou um predicativo. Não apenas é importante conhecer a gramática da língua nacional, como é útil saber algumas peculiaridades da gramática grega e hebraica. Por exemplo, se a população tivesse um conhecimento mais amplo da gramática grega, os Testemunhas de Jeová teriam muito mais dificuldade
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para propagar sua interpretação do primeiro capítulo do Evangelho de João, segundo a qual esta seita nega a divindade de Cristo. As estruturas gramaticais determinam se as palavras devem ser interpretadas como perguntas (interrogativas), ordens (imperativas), ou afirmações (indicativas). Por exemplo, quando Jesus diz: “sereis minhas testemunhas” (At 1:8), a frase indica uma predição de Jesus a respeito de uma atuação futura, ou o pronunciamento de uma ordem soberana? A forma em português não é clara. Entretanto, a estrutura grega das palavras deixa perfeitamente claro que Jesus não está fazendo predições futuras, mas emitindo uma ordem. A análise histórica envolve a busca do conhecimento do cenário e da situação em que os livros da Bíblia foram escritos. Este é um requisito para se compreender o que a Bíblia queria dizer no seu contexto histórico. Existe a necessidade de uma compreensão apropriada do que foi dito. Perguntas sobre autoria, data e destino dos livros são importantes para o esclarecimento de seu significado. Se sabemos quem escreveu determinado livro, para quem ele foi escrito, sob quais circunstâncias e em que período da história, seremos grandemente auxiliados a reduzir nossas dificuldades para compreender o livro em questão. Autoria e data Questões de autoria e data são também importantes para a compreensão mais exata do livro. Sendo que é possível haver uma mudança no sentido das palavras de uma geração para outra, assim como de uma localidade para outra, é importante ser o mais preciso possível na determinação do lugar e da data em que um livro foi escrito. Tais esforços de datar e atribuir autoria têm representado um importante fator de controvérsia teológica, em razão dos métodos empregados. Quando as questões de data são abordadas de uma perspectiva estritamente naturalista, livros que alegam incluir profecia de predição são colocados numa data contemporânea ou posterior aos eventos que estão preditos. Aqui vemos um critério extraliterário e histórico sendo inapropriadamente imposto sobre o livro. Autoria e data estão intimamente ligadas. Se sabemos quem escreveu determinado livro e sabemos durante qual período da história aquela pessoa viveu, então, logicamente, sabemos em que ocasião o livro foi escrito. Esta é a razão por que os estudiosos discutem tanto sobre quem escreveu Isaías ou 2 Timóteo. Se o livro de Isaías foi escrito pelo profeta Isaías, estamos diante de uma impressionante peça de profecia de predição que exigiria um alto conceito de inspiração. Se Isaías não escreveu todo o livro que traz seu nome, um conceito inferior das Escrituras seria justificado.
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Unidade 7 – Análise do Gênero Literário A palavra gênero significa “espécie”, “tipo” ou “sorte de”. Análise do gênero significa o estudo das formas literárias, figuras de linguagem e estilo. Fazemos essa análise em todo o tipo de literatura. Distinguimos entre poesia lírica e citações legais, entre relatos jornalísticos de acontecimentos atuais e poemas épicos. Distinguimos entre o estilo de uma narrativa histórica e de um sermão, entre descrições realistas e hipérbole. A omissão no estabelecimento de tais distinções quando estudamos a Bíblia pode resultar numa multidão de problemas de interpretação. A análise literária é essencial para chegarmos a uma interpretação acurada e precisa. Vale observar que um texto (livro, capitulo, ou perícope6) não contém um único gênero. Antes, pode ser formado por mais de um gênero. Além disso, existem textos que ainda carecem de uma melhor classificação quanto ao seu gênero. Em linhas gerais – e de forma resumida – podemos separar os gêneros da seguinte forma: Jurídico Embora a lei esteja mais associada aos cinco primeiros livros da Bíblia, os textos jurídicos estão espalhados por toda Escritura. Encontramos na Bíblia diversas leis, códigos e normas, com o intuito de ensinar e instruir a respeito de nossa jornada, nos ajudando a viver em santidade conforme a vontade de Deus. Esse gênero é organizado de forma variada e apresenta: 1. Leis para a vida íntima; 2. Normas civis gerais (específicas para a nação de Israel); 3. Leis cerimoniais (ligadas ao culto no AT); 4. Normas para a vida comunitária; 5. Outras tantas... Basicamente, as leis se apresentam de duas formas. (1) Forma Condicional: “Se acontecer isso, então proceda assim”; (2) Forma Incondicional: “Faça aquilo, não faça isso”. A lei é um tema extremamente delicado em sua interpretação e exige mais do intérprete do que qualquer outro gênero. Três medidas são oportunas para não cairmos em armadilhas legalistas, sabendo quais leis ainda vigoram: 1. Procurar saber em qual contexto determinada lei – ou conjunto de leis – foi escrita; 2. Perguntar-se: a quem tal lei interessava? 3. Dar o devido peso a cada uma das leis e procurar entender o sentido que está por trás delas. 6
Perícope é um termo grego que significa “cortar ao redor”, ou seja, uma parte destacada de um texto, para ser analisada e estudada em separado.
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Narrativo Uma narrativa é uma história, evidentemente, mas uma narrativa bíblica é uma história relatada com o intuito de transmitir uma mensagem por meio das pessoas e de seus problemas e circunstâncias. As narrativas bíblicas são seletivas e ilustrativas. Seu objetivo não é compor biografias completas, repletas de detalhes sobre a vida das pessoas; os autores selecionavam cuidadosamente o material que incluíam (é claro que sob a inspiração do Espirito Santo) visando os propósitos determinados. Geralmente, as narrativas obedecem a uma mesma sequência: acontece um problema logo no início, que traz complicações cada vez maiores, e chega-se ao clímax. Daí em diante, a narrativa segue em direção a uma solução e termina com o problema resolvido. Conforme o problema evolui, normalmente o suspense aumenta, e as dificuldades e os relacionamentos ficam mais complicados, até que se chega num clímax dramático. Pode haver seis tipos de narrativas: • Trágica, que é a história da decadência de um indivíduo, do apogeu ao desastre. As vidas de Sansão, Saul e Salomão são exemplos de tragédia. • Épica, que é uma narrativa que contém uma série de episódios centralizados numa pessoa ou grupo de pessoas. Exemplo disso é a peregrinação dos israelitas no deserto. • Romântica, que é uma narrativa que aborda a relação de amor entre um homem e uma mulher. Os livros de Rute e Cantares apresentam esse tipo de narrativa. • Heroica, este estilo consiste numa história tecida em torno da vida e dos feitos de um herói ou protagonista, uma pessoa que por vezes representa outros ou é um exemplo para outros. Abraão, Gideão, Davi e Daniel enquadram-se neste caso. • Satírica, é uma narrativa que trata da exposição das falhas ou loucuras humanas por meio da ridicularização ou da crítica. O livro de Jonas é uma sátira, visto que Jonas, na qualidade de representante de Israel, é ridicularizado por rejeitar o amor de Deus por todo o tipo de pessoas. Ironicamente, ele estava mais preocupado com uma planta do que com os pagãos de Nínive. A razão do livro terminar de forma abrupta, sem que o problema da ira do profeta tivesse sido resolvido é comum nas sátiras. A humilhação de Jonas é um bom final para a sátira, e os israelitas haveriam de enxergar no comportamento do profeta um reflexo de si próprios e de sua atitude para com as nações pagãs. O fato de que o livro de Jonas foi escrito em tom de sátira não anula de forma alguma sua historicidade. • Polêmica, é uma narrativa que ataca agressivamente ou contesta as ideias de terceiros. Temos exemplos desse estilo no episódio da “contenda” de Elias com os 450 profetas de Baal (1 Re 18:16-46) e nas dez pragas contra os deuses do Egito.
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É importante ter muita cautela com esse tipo de texto, pois não podemos confundir um texto descritivo com um imperativo. Muitos pecados e absurdos são apenas relatados, mas não endossados, como a poligamia. Poético Há vários textos redigidos de forma poética na Bíblia, especialmente os livros do AT classificados como poéticos. Uma característica singular da poesia bíblica é o paralelismo entre duas ou mais linhas. Essa é uma diferença da poesia ocidental, que normalmente é caracterizada por métrica e rima, elementos esses que a poesia hebraica desconhece na maioria dos casos. O livro dos Salmos se destaca neste gênero. Esse conjunto de orações cantadas pode ser agrupado em sete categorias diferentes. Embora estas categorias possam coincidir parcialmente, ou tenham subcategorias, servem bem para classificar os Salmos e, assim, orientar o leitor no bom uso deles. 1. Salmos de lamentações. 2. Salmos de ações de graças. 3. Salmos de louvor. 4. Salmos da história da salvação. 5. Salmos de celebração e afirmação. 6. Salmos de sabedoria. 7. Salmos de confiança. No uso dos Salmos pelo Israel antigo e pela igreja do Novo Testamento podemos perceber três maneiras importantes para os cristãos usarem os Salmos. Em primeiro lugar, deve ser lembrado que os Salmos são uma orientação para a adoração. Em segundo lugar, os Salmos demonstram a nós como podemos ter um relacionamento honesto com Deus. Em terceiro lugar, os Salmos demonstram a importância da reflexão e da meditação sobre as coisas que Deus fez por nós. No momento de estudar e interpretar os salmos, é importante: • Distinguir essas categorias e os elementos em cada uma delas; • Reconhecer a existência das diversas figuras de linguagem; • Notar os tipos de paralelismo nos versículos; • Estudar o contexto histórico dos salmos; • Descobrir a ideia ou mensagem central do salmo. Os salmos devem ser vistos como uma orientação para a adoração e para aprendermos a ter um relacionamento honesto com Deus, onde expressamos alegria, desapontamento, raiva ou outras emoções. Os salmos podem servir ainda para nos incentivar a refletir e meditar sobre o que Deus tem feito pelo seu povo.
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Sapiencial Ainda que boa parte da literatura sapiencial seja também classificada como poética, há distinção entre os gêneros. Mesmo que praticamente toda a literatura sapiencial tenha caráter poético, nem todo texto poético pertence à literatura sapiencial. Há dois tipos de literatura sapiencial nesses livros. Um é a literatura proverbial, que é o caso do livro de Provérbios. Os provérbios são verdades gerais fundamentadas na larga experiência e na observação. São princípios gerais que se mostram verdadeiros. Consistem em diretrizes, não em garantias; preceitos, não promessas. Outro tipo de literatura sapiencial é a reflexiva, que compreende uma discussão sobre os mistérios da vida, como acontece em Jó e em Eclesiastes. Entres suas características e formas literárias aparecem: 1. Constante repetição de palavras e frases; 2. Conselhos (“Filho meu...”), advertências e exortações; 3. Comparações; 4. Perguntas didáticas para levar o leitor a pensar; 5. Canções e poesias. Profético A Bíblia pode ser caracterizada como a “palavra profética” (2 Pe 1:19). As Escrituras Sagradas foram escritas por profetas ou constituem o resultado de suas pregações. Abraão foi profeta (Gn 20:7). Moisés foi o maior profeta de Israel (Dt 18:15, 18; 34:10). Samuel recebeu a incumbência de profeta (1 Sm 3:20) e também Davi, o poeta dos Salmos, é chamado dessa forma (At 3:20). Os profetas pertenciam à categoria de pessoas significativas na composição de textos na época dos reis. Sabemos que os profetas julgaram e descreveram a história na época monárquica de Israel. O Antigo Testamento termina, finalmente, com os profetas que clamam do exílio ou que testemunharam sobre uma Jerusalém reconstruída. Na fronteira entre o Antigo e o Novo Testamento está o grande profeta: João Batista. Jesus, que vem depois dele, é ainda mais do que um profeta, é o próprio Filho de Deus eterno. Os apóstolos que Ele envia são mensageiros do Filho de Deus e têm uma posição semelhante às dos profetas do Antigo Testamento. Por isso, os apóstolos falam com a autoridade daquele que os enviou (Gl 1:69). Por fim, o Novo Testamento termina com a profecia do livro de Apocalipse (Ap 22:10, 18-19). Entre as características principais desse gênero literário/tipo de texto estão: 1. A indicação de que se trata de uma palavra que simboliza a comunicação direta de Deus; 2. Oráculos de condenação contra uma pessoa ou um sistema; 3. Oráculos de salvação; 4. Denúncia de injustiças;
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5. Anúncio de promessas ou castigos. A análise desse gênero é muitas vezes incompleta, pois se ignora o conceito de “perspectiva profética”, que se refere à múltipla concretização das profecias. Ou seja, a maioria das profecias têm diversos cumprimentos: há o cumprimento imediato, no época do profeta; há o cumprimento messiânico, na primeira vinda de Cristo; e pode haver um cumprimento escatológico, referente à segunda vinda do Senhor, e um possível cumprimento eclesiástico, onde a igreja torna-se a protagonista da profecia. Relacionados mais com os escritos do Novo Testamento (porém não exclusivamente) estão os seguintes gêneros: Evangelho Os quatro primeiros escritos do Novo Testamento recebem o nome de “evangelho” e formam um gênero literário próprio. Os três primeiros – Mateus, Marcos e Lucas – são conhecidos como sinóticos (de mesma ótica) e são muito parecidos em seus escritos – basicamente, relatam a vida de Jesus e sua atuação nos últimos três anos de sua vida. Cada um dos sinóticos tem suas particularidades, o mesmo relato apresenta uma estrutura diferente, com detalhes e, até mesmo, ênfases diferentes. Isso varia de acordo com o contexto do autor de cada evangelho e com o momento histórico de cada comunidade a quem o texto foi destinado – conhecidos como “os primeiros leitores”. Isso mesmo, cada autor selecionou e organizou alguns fatos da vida e ministério de Jesus e construiu seu texto (Lc 1:1-4) de acordo com as demandas (sociais, religiosas, políticas, econômicas, existenciais, etc.) de um determinado povo/comunidade. Havia dois princípios operantes na composição dos Evangelhos: a seletividade e a adaptação. De um lado, os evangelistas como autores divinamente inspirados selecionaram e adaptaram aquelas narrativas e ensinos que eram apropriados para os seus propósitos. Sendo assim, os relatos da vida de Jesus possuíam um significado profundo e se aplicavam de forma concreta ao que essas comunidades estavam vivenciando. Quando lemos uma passagem dos evangelhos seria bom considerar não apenas a memória da palavra e da ação de Jesus ali presente, mas também o esforço das comunidades que o seguiram em aplicar esses ensinamentos e atitudes na própria vida. É esse empenho que acaba tornando um evangelho diferente do outro, cada um reflete os desafios de uma comunidade em atualizar a prática de Jesus e de seus primeiros discípulos. Portanto, escrever um texto sobre a vida de Jesus não significava apenas relatar aquilo que Ele fez e falou, mas também estimular as comunidades a construírem sua própria caminhada de fé a partir do
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exemplo do mestre e, além disso, ter n’Ele uma esperança capaz de dar real sentido à vida. No evangelho de João (20:31), por exemplo, encontramos a seguinte conclusão: Esses sinais foram escritos para que vocês acreditem. Isso significa que quando os evangelhos foram escritos pensou-se primeiramente no “vocês”, nas comunidades leitoras. Foram os problemas e desafios do cotidiano da comunidade que conduziram o processo de escrita do evangelho, e inclusive da escolha do que faria parte da narração. Para atender às necessidades da comunidade, foram inseridos alguns textos e deixados de fora tantos outros. No caso da comunidade de João o ambiente era de perseguição, de ameaças, inclusive de morte. Resultado: vamos encontrar em João 9:1-41 e 10:19-21 um longo relato sobre alguém que enfrentou as autoridades com coragem, mesmo tendo sido expulso da sinagoga: o cego de nascença. Uma postura bem diferente da de seus pais (9:21-22). Por tudo isso, concluímos então que os evangelhos não devem ser abordados, do ponto de vista hermenêutico, como um escrito biográfico. O interesse primário do autor ao narrar alguns acontecimentos sobre Jesus é levar as pessoas – os primeiros leitores e agora todos nós – a se comprometerem com Jesus e com as causas que Ele se comprometeu e as estimularem a trilhar com perseverança e esperança os caminhos da fé. Normalmente, aqui há uma pedra no sapato já que temos o hábito de ler os Evangelhos somente como meios de se conhecer os acontecimentos históricos para os quais eles apontam. Todavia, esses escritos são muito mais que isso. Mais do que contar uma história, cada evangelista é um interprete dos fatos. Eles apresentaram seus escritos de uma forma que refletisse sua própria interpretação e aplicação dos fatos. A fidedignidade dos Evangelhos não deve ser posta em termos da historiografia moderna, que dá ênfase à sequência cronológica rígida e clara. Já os autores dos Evangelhos, são pregadores. Eles organizam o material nem sempre com base na ordem sequencial, mas com a perspectiva de imprimir sobre os leitores certas verdades. A partir de tudo que vimos, na hora de interpretar um texto do Evangelho, tenha em mente algumas perguntas cruciais: 1. Quem é o autor do texto? 2. Onde estava quando escreveu? 3. Quais eram suas condições? 4. Para quem escreveu? 5. Como viviam essas pessoas? Depois de feitas essas descobertas, é hora de interpretar e aplicar os textos para a nossa realidade. Afinal, a vida de Jesus tem muito a dizer a partir de nossas realidades.
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Parábolas A Parábola não é um gênero literário exclusivo do Novo Testamento. Ela também aparece no Antigo Testamento, principalmente em textos de sabedoria (Salmos, Provérbios, Eclesiastes). Como qualquer outra forma literária, tem suas características próprias, dentre elas: • Reflete uma situação que poderia ter acontecido, ou seja, fala de algo que poderia realmente ter ocorrido; não contém elementos explícitos de ficção; • Refere-se a uma realidade em si mesma, ou seja, deve ser interpretada a partir da lógica dos próprios fatos que narra. Não é um texto que tenta explicar outros textos ou fatos externos, como a alegoria. Possivelmente estamos diante do tipo de texto mais abusado quando o assunto é interpretação, especialmente com o uso de alegorias. Isso faz perder a mensagem que a história queria transmitir originalmente. A alegoria, muitas vezes, torna-se camisa de força que tira a riqueza de sentidos possíveis da parábola. Vejamos um exemplo do uso inadequado do método alegórico na interpretação de uma parábola feito por Agostinho. Parábola do Bom Samaritano Cena Significado Judeu que desce de Jerusalém para Adão Samaria Ele é assaltado Queda Humana Lei e Sacrifício que não podem Sacerdote e Levita ajudar o homem caído Bom Samaritano Jesus Vinho nas feridas Sangue pelos nossos pecados Levanta o homem Novo nascimento Leva até a estalagem Igreja Estalajadeiro Pastor Pede que cuide do homem até que Segunda vinda de Jesus ele volte Por mais novo e interessante que tudo isto possa ser, podemos ter a certeza de que não é isso que Jesus queria dizer. Afinal de contas, o contexto claramente exige uma compreensão de relacionamentos humanos (Quem é o meu próximo?), e não os relacionamentos divinos e humanos. Atenção Especial com os Detalhes Os detalhes, às vezes, estão cheios de significado (a partir do contexto geral) para ajudar na construção da mensagem. Mas os detalhes não são/contém a mensagem central em si, são partes que dependem de outras partes para a construção do todo. São apenas elementos para dar cor à
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história criada. A mensagem da parábola está no todo. Para tarefa hermenêutica, portanto, é importante destacar que: • É no todo (constituído pelas partes) que se encontra o significado do texto; • É do todo que se extrai o conteúdo para aplicação. Cartas Este gênero de literatura bíblica também é chamado de literatura epistolar e refere-se às epístolas do Novo Testamento, de Romanos até Judas. As epístolas normalmente incluem dois tipos de textos: • Discurso expositivo, que explica determinadas verdades ou doutrinas, quase sempre apoiado na lógica; • Discurso exortativo, que exorta a seguir determinados comportamentos ou à aquisição de certas características em face das verdades expostas no texto. Quanto ao formato, as epístolas geralmente começam por citar o autor, o destinatário (a pessoa ou pessoas a quem a epístola foi endereçada), saudações e, com frequência, mas nem sempre, agradecimentos por algum tipo de atitude ou pela conduta ou caráter dos leitores. O intérprete da Bíblia deve se atentar para certas instruções nas epístolas de natureza nitidamente universal e, portanto, válidas em todas as épocas e culturas. Além disso, é importante diferenciar entre os princípios e as aplicações específicas. Apocalíptico O gênero literário apocalíptico não é uma referência exclusiva ao livro do Apocalipse de João. Este pertence ao gênero apocalíptico, mas não é o único. Joel, Daniel e outros pequenos textos fazem parte deste gênero. Este é um tipo especial de literatura, onde o estilo é simbólico. O conhecimento do gênero literário ou do estilo de determinado livro da Bíblia é mais útil do que uma análise minuciosa. Ele ajuda a transmitir a essência do livro, de forma que versículos e parágrafos possam ser vistos à luz do todo. Assim fica mais fácil evitar o problema de tirar os versículos de seu contexto. É um meio de esclarecer a natureza e o propósito de todo um livro. As formas de construção ajudam-nos a entender por que determinadas passagens estão onde estão. E a atenção ao gênero literário impede-nos de transformar uma passagem no que ela não é, tanto para mais como para menos. Suas principais características são: 1. Remete a acontecimentos do passado para falar do presente; 2. Linguagem em forma de protesto e resistência ao poder estabelecido; 3. Surgem em períodos de perseguição com o intuito de gerar esperança no coração dos leitores;
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4. Usam linguagem simbólica e a imaginação para criarem suas cenas; 5. Fazem referências frequentemente aos escritos dos profetas e ao pentateuco. Esses princípios introdutórios já são de grande ajuda para o início dos estudos, mas recomendamos que você se aprofunde mais. Para isso, confira os livros mencionados em nossa bibliografia.
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Unidade 8 - Regras Práticas para a Interpretação Bíblica Nesta unidade tentaremos estabelecer as regras práticas mais necessárias e básicas para a interpretação da Bíblia. Regra 1 – A Bíblia deve ser lida como qualquer outro livro Esta regra é colocada logo no início por ser muito importante. Pode também ser facilmente mal interpretada. Quando afirmamos que a Bíblia deve ser lida do mesmo modo que qualquer outro livro, não consideramos a Bíblia igual a outros livros em todos os aspectos. A Bíblia é singularmente inspirada e infalível, e isto a coloca numa posição única. Mas, para fins de interpretação, a Bíblia não apresenta uma mágica que muda as normas básicas de interpretação literária. Esta regra é simplesmente a aplicação do princípio do sensus literalis. Na Bíblia um verbo é um verbo e um substantivo permanece um substantivo, como em qualquer outro livro. Quando o assunto é oração e iluminação divina entramos em áreas nas quais a Bíblia é, de fato, diferente de outros livros. Para o benefício espiritual da aplicação das Escrituras às nossas vidas, a oração é indispensável. Para iluminar o significado espiritual de uma passagem, a direção do Espírito Santo é absolutamente necessária. Mas, para discernir a diferença entre uma narrativa histórica e uma metáfora, a oração não é, em si mesma, um auxílio muito expressivo, a não ser que oremos suplicando a Deus que nos conceda mentes esclarecidas e corações puros para sobrepujar nossos preconceitos. A santificação de nossos corações é vital a fim de que nossas mentes estejam livres para ouvir o que nos diz a Palavra de Deus. Deveríamos orar também pedindo a Deus que nos auxilie a superar nossa predisposição à preguiça e nos transformar em estudantes diligentes de sua Palavra. Visões místicas não são, em geral, muito úteis no trabalho básico de exegese. Pior ainda é o método espiritual chamado “mergulho da sorte”. A expressão refere-se ao método de estudo bíblico pelo qual a pessoa ora pedindo a orientação de Deus e segura sua Bíblia permitindo que ela se abra ao acaso em qualquer página. Então, com os olhos fechados, a pessoa “mergulha” seu dedo na página e recebe a resposta de Deus por meio do versículo que seu dedo aponta. Esse não é um método íntegro e saudável de usar-se a Bíblia. Regra 2 – Leia a Bíblia existencialmente O uso aqui da expressão “existencialmente” se refere a um tipo de empatia pela qual tentamos nos colocar na pele dos personagens relatados. Muito do material bíblico é apresentado de forma extremamente reduzida e breve, mas as pessoas descritas na Bíblia são semelhantes a nós, com suas rotinas, emoções, fraquezas etc.
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Quando tentamos nos colocar nas situações vividas pelos personagens das Escrituras, chegamos a uma compreensão melhor daquilo que estamos lendo. Assim estaremos praticando a empatia, sentindo as emoções dos personagens. Esta leitura nas entrelinhas pode não ser considerada parte integrante do texto, mas facilitará nossa percepção do sabor dos acontecimentos. Imagine a dor paterna de Abraão ao levantar o punhal sobre Isaque, afim de cumprir a ordem divina; pense no luto de Arão ao ver seus filhos, Nadabe e Abiú, consumidos pelo fogo do Senhor por causa do pecado de rebeldia. Reflita sobre a coragem de Paulo em afirmar que o corpo do homem pertence à sua mulher, sendo possivelmente taxado de feminista num período em que a figura da mulher era rebaixada ao nível de um escravo. Regra 3 – As narrativas históricas devem ser interpretadas pelas passagens didáticas Já examinamos as características básicas das formas narrativas históricas. Para melhor compreendermos essa regra devemos definir a forma didática. O termo didático vem da palavra grega que significa ensinar ou instruir. Literatura didática é aquela que ensina ou explica. Muito dos escritos de Paulo apresentam um caráter didático. A ênfase nos evangelhos é o registro de eventos ao passo que as epístolas estão mais preocupadas com interpretar o significado dos eventos em termos de doutrina, exortação e aplicação. Desde que as epístolas são principalmente interpretativas e estão colocadas após os evangelhos na organização do Novo Testamento, os reformadores mantiveram o princípio de que as epístolas deveriam interpretar os evangelhos, e não o contrário. Esta regra não é absoluta, mas é um princípio geral muito útil. Tal ordem de interpretação é intrigante para muitas pessoas, uma vez que os evangelhos registram não apenas os atos de Jesus, mas também seus ensinos. Tal atitude não diminui a autoridade das palavras e ensinos de Jesus em relação aos apóstolos. Nem as epístolas nem os evangelhos receberam dos reformadores a atribuição de maior autoridade de um sobre o outro. Ao contrário, ambos têm a mesma autoridade embora possa haver uma diferença na ordem de interpretação. Com o desgaste da confiança na autoridade bíblica que constatamos em nossos dias, tem se tornado costumeiro colocar a autoridade de Jesus em contraste com a autoridade das epístolas, especialmente as epístolas de Paulo. As pessoas parecem não compreender que não estão colocando Jesus contra Paulo, mas sim um apóstolo como Mateus ou João, contra outro apóstolo. Devemos nos lembrar que Jesus não escreveu nenhuma palavra do Novo Testamento e dependemos inteiramente do testemunho apostólico para conhecer aquilo que Jesus fez e disse.
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Irineu de Lyon (c. 200) levantou este mesmo ponto contra os gnósticos da igreja primitiva que atacavam a autoridade dos apóstolos. Dizia ele: “Se vocês não obedecem aos apóstolos, não podem ser obedientes a Deus pois, se rejeitam os apóstolos, rejeitam aquele que os enviou (Jesus); e, se rejeitam a Jesus que enviou os apóstolos, rejeitam também aquele que O enviou (Deus, o Pai).”. Portanto, o princípio de interpretar-se a narrativa pela passagem didática não foi formulado para colocar apóstolos contra apóstolos, nem apóstolos contra Cristo. É meramente o reconhecimento de uma das principais tarefas do apóstolo, isto é, ensinar e interpretar a mente de Cristo para o seu povo. Regra 4 – O implícito deve ser interpretado pelo explícito Quando trabalhamos com linguagem, fazemos distinção entre aquilo que é implícito e o que é explícito. Muitas vezes a diferença é uma questão de grau e a distinção pode estar obscurecida. Mas, normalmente, conseguimos determinar as diferenças entre o que é, de fato, dito e aquilo que não é dito, embora esteja implícito. Se esta única regra fosse aplicada de maneira coerente pelas comunidades cristãs, a grande maioria das diferenças doutrinárias que nos dividem seria resolvida. É neste ponto de concordância entre o implícito e o explícito que facilmente nos tornamos descuidados. Por exemplo, muitos descrevem os seres angelicais como sendo assexuados. Onde a Bíblia diz que os anjos são assexuados? A passagem normalmente usada para sustentar tal afirmação é Marcos 12:25. Aqui Jesus diz que no céu as pessoas não se casam nem se dão em casamento, mas serão todas como os anjos. A afirmação indica que os anjos não se casam, mas será que infere também que os anjos são assexuados? Será que o texto indica que no céu também nós seremos assexuados? Pode bem ser que os anjos sejam de fato assexuados e que esta seja a razão pela qual não se casam, mas a Bíblia não diz isto. Poderiam eles permanecer solteiros por outras razões que não a assexualidade? A inferência de que os seres angelicais são assexuados é possível a partir do texto, mas não é uma inferência necessária. Há, no texto bíblico, muitas referências a respeito da natureza do ser humano como macho e fêmea que sugerem significativamente que nossa sexualidade será redimida, mas não aniquilada – e diante do contexto da fala de Jesus, podemos pensar até em casamentos nos novos céus e terra. Que muito pode ser lido nas implicações é óbvio. É tão fácil acontecer que até mesmo os mais cuidadosos especialistas podem escorregar. Um dos documentos confessionais mais precisos já escritos é a Confissão de Fé de Westminster. O cuidado e a precaução demonstrados pelos teólogos de Westminster ao esboçar o documento foram extraordinários. Entretanto, no documento original há um espantoso exemplo de demasiada inferência a
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partir de uma implicação. Diz a Confissão que não devemos orar por pessoas que tenham cometido o pecado para a morte, citando 1 João 5:16. Eis o texto: “Se alguém vir pecar seu irmão, pecado que não é para morte, orará, e Deus dará a vida àqueles que não pecarem para morte. Há pecado para morte, e por esse não digo que ore.” Nesta passagem João exorta seus leitores a orar pelos irmãos cujos pecados não são para morte. Ele não os proíbe de orar por aqueles que cometeram o pecado para morte. João diz: “por esse não digo que ore”. Isto é diferente de: “Digo-lhes que não orem por ele”. A primeira frase é apenas a ausência de uma ordem, a segunda indica uma proibição. Se especialistas altamente capazes, reunidos em assembleia solene, num esforço conjunto de exegese, podem deixar escapar um ponto sutil como este, nós deveríamos ter muito mais cuidado quando estudamos um texto sozinhos. Intimamente relacionada com a regra de interpretar o implícito pelo explícito está a regra correlata de interpretar o obscuro à luz daquilo que está claro. Se interpretamos o que é claro à luz do obscuro, escorregamos para um tipo de interpretação esotérica, própria das seitas. A regra básica é a do cuidado: leitura cuidadosa daquilo que o texto está de fato afirmando nos livrará de muita confusão e distorção. Nenhum grande conhecimento de lógica é necessário, apenas a simples aplicação do bom senso. Regra 5 – Determine cuidadosamente o significado das palavras A Bíblia é um livro que comunica informação verbalmente. Isto significa que as Escrituras estão repletas de palavras. Pensamentos são expressos pela maneira como essas palavras se relacionam. Cada palavra individual contribui com algo específico para completar o conteúdo expresso. Quanto melhor compreendermos as palavras individuais usadas nas declarações bíblicas, melhor compreenderemos a mensagem total das Escrituras. A comunicação exata e o claro entendimento são dificultados quando as palavras são usadas de maneira imprecisa ou ambígua. O mal uso das palavras e o mal entendido do conteúdo seguem lado a lado. Todos nós já experimentamos a frustração de tentar comunicar alguma coisa a alguém, mas não conseguir encontrar a combinação certa de palavras para tornar claro o que desejamos comunicar. Também já experimentamos a frustração de sermos mal entendidos apesar de havermos usado as palavras apropriadas, pelo fato de nossos ouvintes terem uma compreensão errônea quanto ao significado das palavras usadas. De maneira geral há dois métodos básicos por meio dos quais as palavras são definidas: pela etimologia e pelo uso comum. Etimologia é a ciência que estuda a origem e formação das palavras. Por exemplo, a palavra hipopótamo, se conhecemos o grego sabemos que Hipo quer dizer “cavalo”, e pótamos significa “rio”. Assim temos hipopótamo, ou “cavalo do
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rio”. Estudar a raiz e o significado original das palavras pode ser muito útil para descobrirmos o sabor especial de um termo. Além das origens e derivações é extremamente importante estudar a linguagem no contexto em que ela foi usada. Isto é importante porque as palavras mudam o seu sentido dependendo de como são usadas. Palavras com múltiplo sentido Há uma enorme quantidade de palavras na Bíblia que têm múltiplo sentido. Somente o contexto pode determinar o sentido particular de tais palavras. Por exemplo, a Bíblia nos fala constantemente sobre vontade de Deus. Há pelo menos seis maneiras diferentes em que esta expressão é usada. Algumas vezes, a palavra vontade refere-se aos preceitos que Deus revelou ao seu povo. Isto é, vontade significa os “deveres prescritos para o povo”. O termo é usado também para descrever a “ação soberana de Deus que causa ou faz acontecer aquilo que Ele deseja que aconteça”. Chamamos a isso “vontade eficaz de Deus”, porque ela causa aquilo que Ele deseja. Há também o sentido pelo qual vontade quer dizer “aquilo que agrada a Deus, no qual Ele se delicia”. Vejamos como uma passagem das Escrituras pode ser interpretada à luz desses três sentidos diferentes da palavra vontade: “... não querendo que alguns se percam” (2 Pe 3:9) (ou, não sendo de sua vontade que nenhum pereça). O texto poderia significar: (1) Deus legislou que não é permitido que ninguém pereça. Perecer é contra a lei de Deus. (2) Deus decretou soberanamente e efetua seu decreto de que ninguém, jamais perecerá. (3) Deus não se alegra quando alguém perece. Qual destas três opções lhe parece correta? Por que? Se examinarmos o contexto no qual a palavra aparece e levarmos em conta a analogia da fé e o testemunho das Escrituras, apenas uma das afirmações está certa, isto é, a terceira. Palavras cujos significados tornam-se conceitos doutrinários Há uma categoria de palavras que pode provocar em nós uma crise de interpretação. São aquelas palavras que vieram a ser usadas para comunicar conceitos doutrinários. Por exemplo, a palavra “salvar”, e sua correspondente: “salvação”. No mundo bíblico uma pessoa está “salva” quando experimenta livramento de qualquer tipo de dificuldade ou calamidade. Pessoas resgatadas de derrota militar, de doença ou ferimentos corporais, de difamação de caráter ou calúnia, todas experimentaram o que a Bíblia chama de “salvação”. Entretanto, salvação definitiva acontece quando somos resgatados do poder do pecado e da morte, e escapamos da ira de Deus. Para este tipo específico de salvação, desenvolvemos uma
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doutrina de salvação. O problema aparece quando voltamos ao Novo Testamento e aplicamos esse sentido completo e definitivo de salvação a todos os textos onde a palavra aparece. Por exemplo, em 1 Timóteo 2:15, Paulo diz que as mulheres serão salvas quando derem à luz filhos. Será que isto quer dizer que há dois caminhos para a salvação? Será que os homens devem ser salvos por Cristo, mas as mulheres podem entrar no reino do céu simplesmente dando à luz filhos? É obvio que, neste caso, Paulo está falando de um nível diferente de salvação quando usa o termo em relação a dar à luz filhos. Os exemplos apresentados devem ser suficientes para mostrar quão importante é adquirir um conhecimento cuidadoso das palavras empregadas nas Escrituras. Inúmeras controvérsias têm se desenvolvido e heresias têm nascido simplesmente por se ignorar o imenso número de significados que as palavras frequentemente apresentam. Regra 6 – Observe com atenção os paralelismos na Bíblia Uma das características mais fascinantes da literatura hebraica é o uso de paralelismo, como já vimos. Nas línguas do antigo Oriente Médio o paralelismo é comum e relativamente fácil de ser identificado. A capacidade de reconhecer sua presença num texto será um grande auxílio ao leitor para a compreensão do mesmo. A poesia hebraica, assim como outras formas de poesia, é estruturada com frequência dentro de uma métrica particular. Esta métrica, entretanto, é muitas vezes perdida na tradução. O paralelismo não sofre uma perda tão significativa na tradução porque envolve, não tanto uma questão de ritmo de palavras e vogais, mas um ritmo de pensamentos. Paralelismo pode ser definido como um relacionamento entre duas ou mais frases ou orações que se correspondem em similaridade ou são colocadas juntas. Há três tipos básicos de paralelismo: sinônimo, antitético e sintético. Paralelismo sinônimo ocorre quando linhas ou versos de uma passagem apresentam o mesmo pensamento expresso de uma forma ligeiramente alterada. Por exemplo: A falsa testemunha não ficará impune e o que respira mentiras não escapará. (Pv 19:5). ou Ó, vinde, adoremos e prostremo-nos; ajoelhemos diante do Senhor que nos criou. (Sl 95:6). Paralelismo antitético ocorre quando as duas partes são colocadas em contraste uma com a outra. Ambas podem dizer a mesma coisa, mas o fazem por meio de uma negação. O filho sábio atende à instrução do pai; mas o escarnecedor não ouve a repreensão. (Pv 13:1).
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ou O que trabalha com mão displicente empobrece, mas a mão dos diligentes enriquece. (Pv 10:4). Paralelismo sintético é um pouco mais complexo. Nesse caso a primeira parte da passagem cria um senso de expectativa que é saciado pela segunda parte. Pode também caminhar num movimento progressivo, como uma “escada” para a conclusão na terceira linha. Pois eis que os teus inimigos, Senhor, eis que os teus inimigos perecerão; serão dispersos todos os que praticam a iniquidade. (Sl 92:9) Embora Jesus não tenha usado poesia, a influência do paralelismo pode ser sentida em suas palavras. Dá a quem te pedir, e não te desvies daquele que quiser que lhe emprestes. (Mt 5:42) ou Pedi, e dar-se-vos-á; buscai, e encontrareis; batei, e abrir-se-vos-á. (Mt 7:7) A capacidade de reconhecer o paralelismo frequentemente contribui para esclarecer as aparentes dificuldades no entendimento de um texto. Pode, também, aprofundar ou enriquecer nossa percepção de várias passagens. A presença do paralelismo também pode enriquecer nossa compreensão dos conceitos bíblicos. Por exemplo, o modo como a mente hebraica compreendia o conceito de bênção, de bem-aventurança. Veja as palavras da bênção hebraica clássica e tente obter um lampejo dessa compreensão: O Senhor te abençoe e te guarde; O Senhor faça resplandecer o seu rosto sobre ti, e tenha misericórdia de ti; O Senhor sobre ti levante o seu rosto e te dê a paz. (Nm 6:24-26). Examinando a estrutura paralela da bênção, somos enriquecidos não apenas com uma compreensão mais profunda dela, mas também com um entendimento sobre o que os israelitas compreendiam por uma medida completa de “paz”. Observe como os termos “paz”, “misericórdia” e “guardar”, são usados como sinônimos. Paz significa mais que ausência de guerra. Significa experimentar a misericórdia de Deus ao sermos preservados por Ele. O que significaria “ser guardado” para um povo cuja experiência de vida era a de peregrinos? A história dos judeus é a história
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dos exilados, que constantemente enfrentam as incertezas da vida. Ser abençoados pela misericórdia de Deus e experimentar paz estão relacionados. Mas, o que é bênção? Observe que nas duas últimas partes da bênção a noção de ser abençoado, de bem-aventurança, é substituída por imagens de contemplação da face do Senhor. Para o judeu, o estado da mais perfeita bem-aventurança é alcançado quando podemos estar tão perto de Deus a ponto de contemplar a Sua face. A experiência realmente proibida para o homem decaído do Antigo Testamento era contemplar a face de Deus. O povo podia aproximar-se, Moisés pôde ver a Deus pelas costas; eles podiam ter comunhão com Deus, mas Sua face não podia ser vista. Todavia, a esperança de Israel — a bênção final e mais extraordinária — era a esperança de ver a Deus face a face. Para o cristão, o mais absoluto estado de glória é expresso em termos de uma visão beatífica, a visão de Deus face a face. Por contraste, em categorias hebraicas de pensamento, a noção de maldição de Deus é expressa pela imagem do Senhor virando suas costas ao povo — seu desvio do olhar. Proximidade de Deus é bênção; ausência de Deus é maldição. Regra 7 – Diferenças entre provérbio e lei Um erro comum em interpretação e aplicação bíblica é dar ao provérbio a mesma força ou peso de um absoluto moral. Provérbios são frases curtas e atraentes, projetadas para expressar verdades práticas. Refletem princípios de sabedoria para uma vida piedosa. Não refletem leis morais que devem ser aplicadas de forma absoluta a todas as possíveis situações da vida. Ditados populares podem ser aplicados de forma equivocada ou entrarem entre si, e com a Bíblia não é diferente. Provérbios 26:4-5 ilustra claramente como os provérbios podem ser contraditórios, se tomados como absolutos sem exceção. O versículo 4 diz: “Não respondas ao tolo segundo a sua estultícia, para que também não te faças semelhante a ele”. E o versículo 5 diz: “Responde ao tolo segundo a sua estultícia, para que não seja sábio aos seus próprios olhos”. Neste caso há ocasiões em que é tolice responder a um tolo de acordo com sua tolice e, em outras ocasiões, é sábio responder ao tolo com outra tolice. Ao distinguir entre provérbios e lei, devemos também distinguir entre diferentes tipos de lei. Os dois tipos ou formas básicas de lei que encontramos na Bíblia são: lei apodítica ou irrefutável e lei casuística. A lei apodítica expressa disposições universais e é redigida numa forma pessoal direta como: “Farás”, ou “Não farás”. Encontramos essa forma de lei claramente apresentada nos Dez Mandamentos. Lei casuística é expressa em sentenças condicionais como: “se fizer ou acontecer isso... então resultará naquilo”. A lei casuística dá uma série de “exemplos” que servem como orientação geral para a aplicação da justiça.
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É semelhante ao conceito de jurisprudência firmado em nosso sistema legal. Por exemplo, Êxodo 23:4 instrui: “Se encontrares o boi do teu inimigo, ou o seu jumento, desgarrado, sem falta lho reconduzirás”. Observe que a primeira cláusula é casuística e a segunda apodítica. Neste caso o texto dá instruções explícitas com relação ao retorno do boi ou do jumento de um inimigo. Mas, e se eu vir a vaca ou o camelo de meu inimigo perdidos, devo retorná-los também? A lei não diz explicitamente isto, mas a lei casuística dá o princípio por meio do exemplo. Ela cobre implicitamente vacas, camelos, galinhas e cavalos. Se a Bíblia apresentasse uma lei específica para cada possível eventualidade, precisaríamos de imensas bibliotecas para guardar todos os volumes legais que seriam necessários. A lei dos casos fornece a ilustração do princípio, mas o princípio em si tem um campo maior de aplicação. Regra 8 – Observe a diferença entre o espírito da lei e a letra da lei Todos nós conhecemos a reputação dos fariseus no Novo Testamento como sendo extremamente escrupulosos na observância da letra da lei, ao passo que violavam seu espírito constantemente. Existem relatos de israelitas que burlavam a lei que os impedia de viajar para muito longe no Dia de Descanso, esticando ou multiplicando com esperteza suas próprias distâncias permitidas para o sábado. Os rabinos haviam determinado que a distância que poderia ser percorrida no sábado deveria ser limitada a uma distância fixa medida a partir da residência de cada pessoa. Mas, se o legalista desejava ir mais longe que o permitido, durante a semana anterior ele encarregava alguns viajantes ou amigos de colocar uma escova de cabelo ou algum outro item de uso pessoal sob uma pedra com intervalos determinados de distância. Neste caso o legalista havia tecnicamente “fixado residência” em cada um destes pontos. Para viajar aos sábados, tudo o que ele precisava fazer era ir de “residência” em “residência” apanhando seus pertences à medida que caminhava. Neste caso, obviamente, a letra da lei era obedecida, mas o espírito era simplesmente arrasado. Durante o período do Novo Testamento podemos identificar vários tipos de legalistas. O primeiro e mais famoso era o tipo que promulgava leis e regulamentos que iam além do que Deus havia ordenado. Jesus censurou os fariseus por atribuírem à tradição dos rabinos um peso de autoridade igual ao da Lei de Moisés. Atribuir autoridade divina a leis humanas é o tipo principal de legalismo, mas não é o único. O incidente a respeito da jornada do sábado ilustra o outro tipo frequentemente encontrado. Obedecer a letra da lei à medida que viola seu espírito, torna a pessoa tecnicamente justa, mas, na realidade, ela continua sendo corrupta. Outra maneira de distorcer a lei é tentar obedecer ao seu espírito, ignorando a letra. Letra e espírito são inseparavelmente relacionados. Os
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legalistas destroem o espírito, os antinomianos (que se opõem a qualquer tipo de regulamento) destroem a letra. Regra 9 – Interprete as Escrituras teocentricamente e doutrinariamente A Bíblia é um livro doutrinário; ela nos ensina sobre Deus e sobre as coisas criadas, em relação a Ele. Segundo o puritano William Bridge (1600 – 1670), “quando você olha para um espelho, vê três coisas: o espelho, você mesmo e todas as outras coisas, móveis ou quadros que estejam na sala. Assim também, quando examinamos a Bíblia... vemos ali verdades acerca de Deus e de Cristo. Deus é visto acima de tudo, Cristo também é visto; e vemos a nós mesmos e o nosso rosto sujo; também vemos as criaturas que estão no mesmo aposento conosco...”. Além disso, as Escrituras ensinam uma visão teocêntrica (Deus sendo o centro). Enquanto o homem caído vê a si mesmo como o centro do universo, a Bíblia nos mostra Deus no centro de tudo, e pinta as criaturas, incluindo o homem, em sua devida perspectiva – o homem existe por meio de Deus e para Deus. Consequentemente, devemos interpretar as Escrituras de modo cristológico e evangelicamente. Cristo é o verdadeiro tema das Escrituras: tudo ali foi escrito para testificar sobre Ele. Segundo o pregador inglês, Thomas Adams (1583 – 1653), Cristo é “a súmula de toda a Bíblia, profetizada, tipificada, prefigurada, demonstrada, que se acha em cada página, quase em cada linha, pois as Escrituras são, por assim dizer, as roupas de nenê que envolvem o menino Jesus”. Portanto, segundo o puritano Isaac Ambrose (1604 – 1664): Tenha Jesus Cristo diante de seus olhos ao examinar a Bíblia, como o fim, escopo e substância da mesma. Que são as Escrituras, senão, por assim dizer, os ‘cueiros’ espirituais do menino Jesus? (1) Cristo é a verdade e a substância de todos os tipos e sombras. (2) Cristo é a substância e a matéria do pacto da graça e de toda a sua administração; sob o Antigo Testamento, Cristo estava oculto; sob o Novo Pacto, Ele foi revelado. (3) Cristo é o centro e o ponto de convergência de todas as promessas; pois nele as promessas de Deus acham o sim e o amém. (4) Cristo é a realidade simbolizada, selada e exibida nas ordenanças do Antigo e do Novo Testamentos. (5) As genealogias bíblicas são usadas para conduzir-nos à verdadeira linhagem de Cristo. (6) As cronologias da Bíblia mostram-nos os tempos e épocas de Cristo. (7) As leis bíblicas são nosso mestre-escola para levar-nos a Cristo: as leis morais corrigindo; as leis cerimoniais, apontando. (8) O evangelho da Bíblia é a luz de Cristo, mediante a qual nós O ouvimos e O seguimos... as cordas do amor de Cristo, por meio das quais somos enlaçados a uma doce união e comunhão com Ele; sim, o próprio poder de Deus para salvação de todo aquele que crê em
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Cristo Jesus. Portanto, devemos pensar em Cristo como a substância, a essência, a alma e o escopo de toda a Bíblia. Regra 10 – Supostos erros e contradições Os céticos afirmam ininterruptamente que a Bíblia está cheia de erros e contradições, mas a verdade é que a maioria deles podem ser facilmente resolvidos com um pouquinho de bom senso, investigação honesta das Escrituras e sabermos de algumas variáveis que podem interferir na investigação da verdade. A má tradução é uma das principais causas de mal-entendidos. Isso ocorre quando a palavra original pode não ter sido traduzida para o novo idioma perfeitamente, ou algo do tipo. Devemos entender que, às vezes, não há um termo perfeitamente equivalente ou o tradutor simplesmente cometeu um erro. Contexto e comparação resolvem isso; por exemplo, Levítico 11:13, 19 diz: “Das aves, estas abominareis; não se comerão, serão abominação... a cegonha, a garça segundo a sua espécie, e a poupa, e o morcego.”. O problema é que morcegos não são aves e sim mamíferos. Primeiramente precisamos entender que na época em que o texto foi escrito não havia as mesmas classificações de animais. Além disso, o termo original em hebraico para aves/pássaro é ha'of e apesar de corretamente traduzido como “ave” em muitos lugares, possui um significado mais amplo como “que voa” ou “eleva-se”, o que, obviamente, incluiria morcegos. Regra 11 – Não despreze a tradição da igreja A fé reformada nega qualquer autoridade que venha a se igualar ou comparar com as Escrituras. A tradição não pode ser regra de fé e prática. Entretanto, isso não quer dizer que se deva desprezar a história da igreja. Os escritos dos Pais da Igreja e dos fiéis intérpretes das Escrituras no decorrer da história são especialmente importantes na avaliação da nossa interpretação. Referindo-se a isso, Charles Spurgeon (1834 – 1892) disse: “Parece estranho que certos homens, que falam tanto do que o Espírito Santo lhes revela, considerem tão pouco o que Ele revelou a outros.”.7 Lembremos que os reformadores fizeram uso abundante da erudição antiga, citando comentaristas medievais, as obras dos pais apostólicos e obras de contemporâneos. Apesar de insistirem na necessidade da iluminação do Espírito para a correta interpretação das Escrituras, não desprezaram o que o Espírito já havia revelado a outros antes deles. Defendiam-se da acusação dos papistas de que estavam introduzindo novos ensinos na Igreja de Cristo, apontando para a doutrina da justificação pela fé nos escritos de Agostinho e de outros Pais da Igreja. E não somente com relação a essa doutrina, mas também em relação às demais.
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Charles Spurgeon. Lectwes to My Students, vol. 4. Albany, Oregon: Ages, 1996, p. 10.
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Unidade 9 - A Bíblia e a Cultura A não ser que aceitemos que a Bíblia caiu direto do céu num paraquedas, que foi escrita por uma pena celestial em linguagem celeste especial ou que afirmemos que ela foi ditada imediata e diretamente por Deus sem referências a qualquer costume, estilo ou perspectiva locais, teremos que enfrentar a realidade da distância cultural. Isto é, a Bíblia reflete a cultura de seu tempo. O problema se torna mais agudo quando descobrimos que não apenas a Bíblia é condicionada por seu contexto cultural, mas nós também somos condicionados por nossos próprios contextos culturais. Muitas vezes sentimos dificuldade em entender o que a Bíblia está dizendo porque trazemos conosco uma enorme bagagem extrabíblica. Este é, provavelmente, o maior problema de “condicionamento cultural” que enfrentamos. Dificilmente conseguimos deixar de ser um filho de nosso tempo. Princípio e costume Em muitos círculos hoje o tema em debate é princípio ou costume. A não ser que cheguemos à conclusão radical de que a Bíblia toda é princípio e, portanto, envolve todas as pessoas em todas as épocas, ou, por outro lado, que toda a Escritura é costume local sem nenhuma relevância além do seu próprio contexto histórico imediato, seremos forçados a formular algumas categorias e orientações gerais que nos permitam estabelecer a diferença. Para percebermos a complexidade do problema, vejamos a famosa passagem de 1 Coríntios 11, sobre o uso do véu. A passagem indica a exigência de que a mulher cubra sua cabeça com um véu quando profetiza. Para aplicar esta ordem à nossa cultura temos quatro alternativas: 1. É apenas um costume. A passagem como um todo reflete um costume cultural sem qualquer relevância nos dias de hoje. O véu é um adorno costumeiro local; a cabeça descoberta reflete um sinal local de prostituição. O sinal da mulher subordinando-se ao homem é um costume judaico ultrapassado à luz do ensino total do Novo Testamento. Uma vez que vivemos numa cultura muito diferente, não é mais necessário que a mulher cubra sua cabeça com o véu; não é mais necessário que a mulher cubra sua cabeça com qualquer coisa; não é mais necessário que a mulher seja submissa ao homem. 2. É um princípio em todos os seus aspectos. Neste caso, tudo na passagem é encarado como princípio que transcende a cultura. Do ponto de vista da aplicação isto significaria: a) as mulheres devem submeter-se aos homens durante a oração;
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b) as mulheres devem sempre demonstrar esta submissão cobrindo suas cabeças; c) as mulheres devem cobrir suas cabeças com véu, que é o único sinal apropriado. 3. É parcialmente um princípio e parcialmente um costume (opção A). Segundo esta abordagem, parte da passagem é considerada como princípio e, portanto, permanece válida para todas as épocas; e parte é vista como costume, e perde seu caráter de imposição. O princípio de submissão feminina transcende a cultura, mas o meio de expressá-lo (cobrindo a cabeça com véu), é um costume local e pode ser mudado. 4. É parcialmente um princípio e parcialmente um costume (opção B). Neste caso, o princípio da submissão feminina e o ato simbólico de cobrir a cabeça devem ser perpétuos. O tipo de cobertura pode variar de cultura para cultura. O véu pode ser substituído por chapéu ou lenço. Qual destas alternativas seria a preferida de Deus? Questões como essa são, em geral, extremamente complexas e não se sujeitam a soluções simplistas. Uma coisa é clara, precisamos de algum tipo de orientação que nos auxilie a solucionar tais problemas. Estas questões são, frequentemente, do tipo que exigem alguma decisão ágil, não podendo ser colocadas numa estufa teológica para serem resolvidas pelas futuras gerações. As orientações práticas que se seguem nos ajudarão. Orientações práticas 1. Examine a própria Bíblia para descobrir traços específicos de costume. Através de um escrutínio fino das Escrituras podemos perceber que elas apresentam uma certa quantidade de costumes. Por exemplo, vemos alguns princípios do Antigo Testamento (como as leis alimentares do Pentateuco) revogados no Novo Testamento. Isto não quer dizer que as leis dietéticas eram meramente uma questão de costume judaico. Mas vemos uma diferença na situação histórico-redentora dentro da qual Cristo cumpre a lei cerimonial. Devemos ser cuidadosos em nossa constatação de que nem a ideia de transportar todos os princípios do Antigo Testamento para o Novo, nem a noção contrária de não trazer nenhum, podem ser justificados pela própria Bíblia. Uma análise de modos de expressão cultural pode ser simples no que diz respeito à dieta, mas questões de instituições culturais são mais complexas. Por exemplo, a escravatura tem sido frequentemente introduzida em controvérsias modernas sobre obediência civil, assim como debates concernentes à estrutura marital de autoridade. No mesmo contexto em que Paulo exorta as mulheres a serem submissas a seus maridos, ele exorta os escravos a serem submissos a seus senhores. Alguns têm argumentado que, uma vez que as sementes da abolição da escravatura foram semeadas no Novo Testamento, assim o foram também
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as sementes da abolição da submissão feminina. De acordo com esta linha de pensamento, ambos representam estruturas institucionais culturalmente condicionadas. Aqui devemos ser cuidadosos na distinção entre instituições que a Bíblia meramente reconhece como existentes, como por exemplo “as autoridades que existem” (Rm 13:1), e aquelas que a Bíblia positivamente institui, sanciona e ordena. O princípio de submissão às estruturas de autoridade existentes (como o Império Romano) não traz consigo uma implicação necessária de que Deus sancione tais estruturas, mas representa, meramente, uma exortação à humildade e à obediência civil. Deus, em sua providência eterna, pode ordenar que haja um César Augusto, sem endossá-lo como modelo de virtude cristã. Entretanto, a instituição das estruturas e do padrão de autoridade no casamento são dados num contexto de instituição e sanção positivas em ambos os Testamentos. Colocar estruturas bíblicas do lar em pé de igualdade com questões de escravidão é obscurecer as muitas diferenças existentes entre elas. Portanto, as Escrituras fornecem uma base para o comportamento cristão no meio de situações de opressão ou de perversidade, assim como estabelece estruturas que devem espelhar o bom propósito da criação. 2. Leve em consideração características cristãs do primeiro século. Uma coisa é procurar uma compreensão mais lúcida do conteúdo bíblico investigando a situação cultural do primeiro século; outra bem diferente é interpretar o Novo Testamento como se ele fosse meramente um eco da cultura do primeiro século. Isto significaria deixar de considerar o sério conflito que a Igreja experimentou no seu confronto com o mundo do primeiro século. Os cristãos não foram lançados aos leões por sua propensão ao conformismo. Algumas maneiras muito sutis de relativizar um texto ocorrem quando injetamos considerações culturais que não deveriam estar lá. Por exemplo, com respeito à questão do véu sobre a cabeça das mulheres em Corinto, numerosos comentaristas da epístola salientam o fato de que o sinal de prostituição em Corinto era a cabeça descoberta. Portanto, diz o argumento, a razão pela qual Paulo desejava que as mulheres cobrissem suas cabeças era evitar uma semelhança escandalosa das mulheres cristãs com o aspecto exterior de prostitutas. Qual é o erro neste tipo de especulação? O problema básico neste caso é que nosso conhecimento reconstituído de Corinto do primeiro século nos levou a descobrir em Paulo uma análise racional que é estranha àquela dada por ele mesmo. Em uma palavra, não estamos apenas colocando palavras na boca do apóstolo, como também ignorando as informações que estão lá. Se Paulo tivesse meramente ordenado às mulheres em Corinto que cobrissem a cabeça sem lhes dar nenhuma razão para isto, nós nos sentiríamos fortemente inclinados a suprir esta razão por meio de nosso conhecimento cultural. Neste caso, entretanto, Paulo fornece sua exposição
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de motivos baseada num apelo à criação, e não aos costumes das prostitutas de Corinto. Devemos ser cuidadosos para não permitir que nosso zelo pelo conhecimento da cultura obscureça aquilo que está realmente escrito. Subordinar as razões expressas de Paulo às nossas razões elaboradas especulativamente é caluniar o apóstolo e transformar exegese em eisegese. 3. As ordenanças da criação são indicadores de princípios transculturais. Se algum princípio bíblico transcende os limites de costumes locais estes são os mandatos deduzidos da criação. Mandatos da criação refletem cláusulas de uma aliança que Deus fez com o ser humano enquanto Sua imagem. As leis da criação não são dadas aos humanos como hebreus, ou como cristãos, ou como coríntios, mas estão enraizadas numa responsabilidade humana básica para com Deus. Pôr de lado os princípios da criação como meros costumes locais é o pior tipo de relativização e negação da historicidade do conteúdo bíblico. É precisamente neste ponto que muitos especialistas têm relativizado os princípios escriturísticos. Deus, ao criar o universo e o homem, estabelece um pacto criacional com a humanidade dando-os três mandatos: espiritual, cultural e social. Estes são basilares para se definir os aspectos transculturais bíblicos. O mandato espiritual enfatizava a relação análoga da criação (incluindo o ser humano) com seu Criador; sendo assim, Deus deve ser a referência para a realidade e alvo de louvor de suas criaturas. O mandato cultural foi dado na ordem divina de cultivar o jardim do Éden (Gn 2:15); o termo “cultivar” provém da mesma raiz etimológica da palavra “cultura”, não limitada à questão artística. Cultura é entendido como envolver-se no processo histórico ao se desenvolver o potencial que há na criação de Deus. É desenvolver para a glória de Deus tecnologias, artes, política, educação e qualquer outra esfera da vida, segundo a capacidade dada pela imagem divina expressa no homem. Por fim, o mandato social envolve as relações pessoais, sanguíneas e sociais. A família foi instituída por Deus como célula mater da sociedade, portanto deve ter sua esfera de autoridade específica, ajudando a desenvolver uma sociedade segundo os preceitos de Deus, onde todos são irmãos, já que todos descendem de um único casal. Para ilustrar a importância do pacto criacional, examinemos o tratamento dado por Jesus à questão do divórcio. Quando os fariseus testaram o Mestre perguntando se o divórcio era legal por qualquer motivo, Jesus respondeu citando a ordenança da criação sobre o casamento: “Não tendes lido que aquele que os fez no princípio macho e fêmea os fez, e disse: Portanto, deixará o homem...? Portanto, o que Deus ajuntou não o separe o homem” (Mt 19:4-6). Reconstituindo as circunstâncias desta narrativa, é fácil constatar que o teste dos fariseus visava conseguir a opinião de Jesus sobre um debate que dividia radicalmente as escolas rabínicas. Ao invés de optar por qualquer dos lados, Jesus leva a questão de volta à criação, para colocar as
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normas sobre casamento em perspectiva. Ele, na realidade, reconheceu a modificação mosaica da lei da criação, mas recusou-se a enfraquecer ainda mais a norma, submetendo-se às pressões do público ou às opiniões culturais de seus contemporâneos. À inferência que deve ser tirada é que as ordenanças da criação são normativas, a não ser que tenham sido explicitamente modificadas por uma revelação bíblica posterior. 4. Em situações de incerteza use o princípio da humildade. E se, mesmo depois de cuidadosa consideração sobre o mandamento bíblico, ainda permanecer dúvidas quanto à sua natureza como princípio ou costume? Como agir se precisarmos decidir entre uma posição ou outra, mas não tivermos elementos conclusivos para tomar tal decisão? Neste caso, o princípio bíblico da humildade pode ser útil. A questão é simples. O que seria melhor: tratar um possível costume como princípio e ser culpado de agir de forma legalista ou tratar um possível princípio como costume e ser culpado de antinomia? Nem excesso nem falta são preferíveis. Abreviar este trabalho usando o atalho do mero escrúpulo seria obscurecer a distinção entre costume e princípio. Esta é uma orientação de última instância e seria destrutiva se usada como primeira instância. A questão do condicionamento cultural é um problema real. Barreiras de tempo, lugar e língua, frequentemente tornam a comunicação difícil. No entanto, as barreiras culturais não são tão severas ao ponto de nos levar ao ceticismo, ou fazer-nos desanimar de entender a Palavra de Deus. É confortador saber que a Bíblia tem, verdadeiramente, manifestado uma capacidade peculiar de falar às mais profundas necessidades humanas e comunicar eficazmente o evangelho a pessoas de épocas, lugares e costumes totalmente diferentes. O obstáculo da cultura não pode invalidar o poder desta Palavra.
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Unidade 10 - Ferramentas Práticas para o Estudo da Bíblia Todo trabalhador necessita de boas ferramentas para fazer bem o seu trabalho. Muitos descobrem que pode ser bem edificante e nada difícil aprender o suficiente de grego e hebraico para ser capaz de usar valiosas ferramentas acadêmicas de interpretação. O que se segue são algumas sugestões de auxílio para aqueles que anseiam se aprofundar no conhecimento e na compreensão das Escrituras. Traduções da Bíblia É difícil escolher uma tradução bíblica, já que há tantas edições excelentes disponíveis. Algumas diferem de outras apenas em estilo e formato. A escolha, então, torna-se uma questão de preferência literária do leitor. No entanto, há algumas diferenças básicas e importantes entre as traduções, que devem ser reconhecidas. Tais diferenças refletem métodos e procedimentos diversos no preparo da tradução. Dentre estas várias metodologias há três que são básicas. 1 – Equivalência formal. O primeiro método empregado é aquele que procura seguir o texto grego ou hebraico tão proximamente quanto possível, palavra por palavra. Neste caso uma estrita fidelidade à linguagem antiga é enfatizada de maneira verbal. A força de tal método encontra-se, sem dúvida, em sua precisão verbal. A fraqueza será, inevitavelmente, um estilo literário mais denso. A atualização da Bíblia Almeida Corrigida e Fiel – uma das poucas que seguem o textus receptus – consegue um equilíbrio admirável entre fidelidade aos originais e fluidez no texto. É uma das versões mais recomendadas. 2 – Precisão de conceitos. Este método, que é o predominante nas traduções modernas, procura um estilo que seja o mais facilmente legível com o mínimo possível de distorção verbal. Sabendo-se que as palavras combinadas entre si produzem pensamentos ou conceitos, o objetivo é produzir uma formulação acurada dos pensamentos ou conceitos das Escrituras. Como exemplo, temos a Nova Versão Internacional (NVI) da Bíblia que traz leveza no texto, realizando uma tradução mais funcional e dinâmica em textos mais difíceis, ainda que use bastante a equivalência formal. Um dos maiores problemas desta versão é que ela segue a teoria de Westcott e Hort, colocando notas de rodapé em textos específicos, onde afirma que tais não constam nos “melhores manuscritos”. Isso não a invalida, mas deve ser usada com cautela, principalmente no evangelismo. 3 – Paráfrase. O método da paráfrase é uma extensão do anterior. Neste caso, o conceito é expandido e elaborado para assegurar uma boa comunicação. Há vários tipos de paráfrases. Dentre as mais conhecidas
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estão a Bíblia Viva e a Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH), as quais não são recomendadas devido ao distanciamento com o texto original. Quanto mais as traduções caminham na direção da paráfrase, tanto maior é o perigo da distorção. Conquanto muitas paráfrases sejam introduções úteis à leitura da Bíblia, elas não são recomendadas para um estudo sério. Um caso extremo – que gerou (e ainda gera) muita polêmica e chacota – é a Bíblia Freestyle, idealizada pelo pr. Ariovaldo Jr. da Igreja Manifesto, em Uberlândia - MG. Essa versão tem como proposta uma “leitura bem humorada” para interagir “com a cultura pop”, como o próprio site do projeto afirma. Mas ao se analisar o trabalho, é perceptível a irreverência beirando a blasfêmia. Um dos exemplos absurdos é a paráfrase de Mateus 5:13: “Vocês são a vodka da caipirinha, mas se a vodka for vagabunda, como alguém vai beber essa porcaria? Não serve pra mais nada, senão pra acender a churrasqueira.”, além de chamar Judas de “X9”, e colocar a seguinte frase na boca de Pedro quando negou o Senhor: “Puta que o pariu, viu! Quantas vezes vou ter que falar que eu juro que não conheço esse homem?”8. Uma das poucas versões (ou única) recomendada é A Mensagem, do pastor americano Eugene Peterson (1932 – 2018), ainda que não substitua a leitura direta da Bíblia. Dica: Se você conhece alguma língua estrangeira, pode colocar esse conhecimento em uso no seu estudo da Bíblia. Ler uma tradução estrangeira pode contribuir com nuanças sutis de significado que são melhor expressas em outra língua que o português. Expressões idiomáticas são particularmente úteis. Bíblias anotadas Notas marginais e notas de rodapé são adicionadas a muitas edições da Bíblia. Na maioria dos casos tais anotações são muito úteis. Definições marginais de palavras, costumes ou objetos arcaicos podem livrar o leitor da necessidade de recorrer a um dicionário bíblico. O uso do itálico para indicar palavras adicionadas ao texto pelos tradutores também é útil. Notas remissivas são uma característica comum de muitas Bíblias. Este auxílio torna possível ao leitor seguir linhas de pensamento ao longo das Escrituras sem uma referência constante às concordâncias. Há vários métodos disponíveis para a utilização de notas remissivas. Indicamos a Bíblia de Estudo de Genebra e a Bíblia de Estudo Herança Reformada, como as melhores disponíveis em língua portuguesa. Comentários - Algumas Bíblias contêm, não apenas notas marginais breves, mas apresentam um comentário paralelo. O exemplo mais famoso 8
Referente a Mateus 26:74. Desculpem-me pelo baixo calão, mas o propósito foi chocá-los mesmo.
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deste tipo é a Bíblia de Estudo Scofield, a qual apresenta diversos problemas doutrinários que beiram à heresia. Além disso, tais edições são perigosas, pois a memória humana é frágil. Vezes sem conta pessoas ficam aborrecidas ao ouvirem professores ou pastores criticando uma ideia ou posição encontradas nas anotações de tais bíblias; o ouvinte estava convencido de que a crítica havia sido feita à Bíblia em si. O problema é que a pessoa abre sua Bíblia e lê a página escrita. Talvez três quartos do texto impresso representem o texto bíblico propriamente dito, o outro um quarto corresponde ao comentário ou notas ampliadas. Com muita frequência o leitor normal deixa de fazer a distinção (especialmente mais tarde, ao recordar o que foi lido), entre o texto das Escrituras e o comentário humano. Dado que o comentário aparece na mesma página das Escrituras, tal método tende a “canonizar” estas anotações na mente do leitor. Traduções e comentários - Num certo sentido, toda tradução é um comentário; toda tradução envolve um processo de decisão no que diz respeito a palavras e ideias. Portanto, uma tradução perfeita e absoluta não é possível. Até mesmo aquelas produzidas dentro de um sistema de checagem e imparcialidade, realizadas por um grupo de especialistas, inevitavelmente refletirão as pressuposições individuais ou coletivas dos tradutores. Tais pressuposições são, normalmente, mantidas numa proporção mínima e não devem ser causa de alarme. Mas o leitor deve estar consciente desta fragilidade humana na tradução. De modo geral, a Bíblia de Jerusalém é uma tradução esplêndida, mas numa investigação mais cuidadosa não é difícil perceber que ela foi produzida por especialistas romanistas. Isto não é razão para rejeitar-se qualquer tradução, mas um alerta para que tais tendências não sejam ignoradas. Comentários Comentários são uma ferramenta indispensável para o estudioso da Bíblia. Sem o uso de comentários competentes estou abusando do princípio da “interpretação particular”, dependendo do meu próprio julgamento e somente dele para a compreensão das Escrituras. Comentários fornecem a averiguação e a ponderação necessárias contra minhas próprias tendências preconceituosas. Existe uma enorme variedade de comentários disponíveis para o leitor comum. Variam desde comentários da Bíblia toda em um único volume, até trabalhos altamente técnicos escritos para cada livro. Vão da exposição simples até exegeses mais profundas. Podemos destacar os de João Calvino, Hernandes Dias Lopes, William Hendriksen e Simon Kistemaker, e os Estudos Bíblicos Expositivos da editora Cultura Cristã.
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Quanto ao grego e hebraico Tendemos a nos sentir, de certa forma, intimidados diante de línguas antigas, especialmente grego e hebraico. Uma das principais razões para este medo está na grafia estranha usada por estas línguas. Uma vez que não estamos familiarizados com os caracteres fora do comum, à primeira vista nos parece ser “tudo grego”. Entretanto, não é difícil obter um conhecimento funcional destas línguas, enriquecendo, assim, nosso estudo bíblico. Lembremos que não é necessário adquirir profundo conhecimento do grego e hebraico para podermos usá-los numa tarefa específica. Estamos interessados em obter a habilidade necessária para trabalhar com um livro, não num estudo de toda a gama da literatura desses idiomas. Neste caso a tarefa é muito simplificada e existem numerosos instrumentos já preparados, que a tornam ainda mais fácil. Eis algumas: 1. Traduções interlineares. Uma tradução interlinear apresenta o texto original e a tradução em português em linhas paralelas. 2. Gramáticas. Há muitas gramáticas disponíveis e perfeitamente suficientes para o leitor comum. 3. Léxicos. Dicionários podem ser usados por qualquer pessoa que conheça a escrita e o alfabeto de determinado idioma, tarefa que vale o pequeno esforço exigido. Alguém com instrução normal aprende o alfabeto em algumas horas. Com este conhecimento um novo campo de instrumentos de trabalho, tais como dicionários, se abre para o estudante. 4. Aplicativos. O mundo digital também facilitou muito o estudo bíblico. Diversos softwares estão disponíveis gratuitamente ou por um preço acessível como: Logos Bible e Bible with Strong’s (para Android e iOS). Mas será difícil encontrar algum material baseado no textus receptus. 5. Outras ferramentas. Site com toda a Bíblia Hebraica lida por um rabino judeu. Bom para acostumar os ouvidos com a pronúncia e treinar a fala: <www.torahclass.com/audio-bible-in-hebrew>. Página de um biblista católico romano brasileiro. Contém um curso básico de hebraico e grego com as informações morfológicas mais importantes. A página contém muito material para consulta: <www.airtonjo.com/site1/linguas.htm>. Quanto mais eficiência adquirirmos na utilização destas ferramentas, tanto maior enriquecimento encontraremos em nosso estudo. É um grande mito pensar que esses instrumentos de trabalho só servem para especialistas. Os especialistas poderão usá-los de modo mais sofisticado, mas eles são úteis também para os leigos. Ninguém precisa ser carpinteiro profissional para aprender a usar um martelo.
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Conclusão Pois bem, chegamos ao final de nossa disciplina. Veja bem, ao final da disciplina e não ao esgotamento do tema – estamos longe disso. O estudo hermenêutico exige tempo e dedicação. Portanto, o objetivo central de nossos estudos foi apenas introduzi-los a esse fascinante universo e principalmente desafiá-los a refletir sobres suas práticas interpretativas da Bíblia. Espero que você se aprofunde nos temas aqui desenvolvidos, veja outros que não conseguimos abordar, e principalmente reconsidere o uso que fará das Escrituras em seus estudos e também na forma de comunicála. Confira nossa bibliografia para o aprofundamento do assunto. Soli Deo Gloria A Deus seja toda glória! Bibliografia A Arte de Profetizar – William Perkins A Bíblia e Seus Intérpretes – Augustus Nicodemus A Espiral Hermenêutica – Grant R. Osborn Entendes o Que Lês? – Gordon Fee e Douglas Stuart O Conhecimento das Escrituras – R. C. Sproul
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