Apostila de História do Cristianismo 2 TPT

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História do Cristianismo 2 (Reforma ao período contemporâneo)

Prof.º Lucas Roberto

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Sumário Introdução ao conteúdo ............................................................ 01 Unidade 1 – Reforma Protestante - Séc. XVI .............................. 05 Unidade 2 – Contrarreforma ..................................................... 18 Unidade 3 – 5 Solas .................................................................. 23 Unidade 4 – Protestantismo no Brasil ....................................... 32 Unidade 5 – Confissões Protestantes ......................................... 38 Unidade 6 – Liberalismo teológico e o Neocalvinismo holandês ................................................................................................ 51 Unidade 7 – Avivamentos na Inglaterra e América ..................... 56 Unidade 8 – Missões Protestantes ............................................. 64 Unidade 9 – Movimentos de Santidade e o Surgimento do Pentecostalismo ....................................................................... 66 Unidade 10 – Pentecostalismo no Brasil .................................... 69 Unidade 11 – Segunda fase do pentecostalismo no Brasil .......... 73 Unidade 12 – A Terceira Fase, o Neopentecostalismo Brasileiro . 80 Unidade 13 – Teologia da Prosperidade ..................................... 87 Unidade 14 – A Igreja na Alemanha Nazista .............................. 91 Unidade 15 – Ecclesia Reformata et Semper Reformanda est ...... 99



Introdução ao conteúdo No transcorrer das aulas que virão adiante, ao longo desta disciplina, buscaremos conhecer mais profundamente as origens históricas, teológicas e doutrinárias que marcam as denominações evangélicas ou protestantes. Aliás, gostaria de inicialmente já sublinhar esta palavra protestante, pois ela nos remete a um acontecimento fundador, que se constitui em referência comum às confissões religiosas que serão tratadas ao longo deste curso: a Reforma Protestante ocorrida no século XVI, na Europa, e que se expandiu para outros continentes, dentre os quais, a América. Veremos que esse caminho histórico, que também teve por itinerário o Brasil, foi marcado pelo surgimento de inúmeros movimentos, denominações e tipologias doutrinárias. Protestantes e/ou evangélicos são terminologias que historicamente passaram a designar uma grande parcela de cristãos identificados com acontecimentos ocorridos já a partir do final da Idade Média e que tiveram sua consolidação no advendo do mundo Moderno. Muitos destes episódios implicaram em rupturas com o Catolicismo Romano, então predominante na história de todo o período medieval. Neste aspecto, cabe uma pergunta inicial: por que foi necessária uma reforma na Igreja no século XVI? De maneira introdutória, retomaremos aqui alguns aspectos já estudados. Cabe recordar que, no período “medieval” ou Idade Média – que corresponde aos séculos V e XV –, desenvolveu-se o catolicismo mais institucionalizado, com acentuada estrutura hierárquica, sustentada na figura papal e no clericalismo de bispos e sacerdotes. Nesse mesmo período, também, foi marcante a vivência de um cristianismo mais popular, folclórico, profundamente arraigado em imaginários religiosos sincréticos, com fortes raízes fincadas no elemento da magia. Isso porque, especialmente a partir do século IV da era cristã, quando o cristianismo se tornou religião lícita e oficial do Império Romano, desenvolveu-se um intenso e crescente processo de sincretização entre doutrinas cristãs e antigas práticas pagãs que permeavam o universo religioso do mundo greco-romano. Alguns dos fatores que podem ser destacados: Primeiro, a igreja estava vivendo uma crise teológica, doutrinária e institucional. Até o séc. IV, por exemplo, o Cristianismo, sem ter posses, em meio a perseguições e conflitos internos, manteve uma linha de frente que fazia jus aos ensinamentos deixados por Jesus e os apóstolos. Após o IV século, porém, especialmente a partir do momento em que o imperador romano Constantino se declarou cristão, um outro quadro passa a se configurar. Segundo, pelas disputas e corrupção do poder. Após Constantino, os clérigos passam a ter remuneração do Estado, constroem-se suntuosos templos, o poder religioso passa a estar atrelado ao poder político etc. A

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igreja alia-se ao Império Romano, contra o qual deixa de exercer função profética de denúncia e reivindicação - O Estado passa agora a beneficiála. A igreja desempenha em tal sociedade, a partir de então, um papel semelhante ao da velha religião estatal, ou seja, concebendo Cristo apenas como um rei celestial que dá apoio ao imperador cristão que governava em seu nome. A missão histórica de Jesus foi por isso obscurecida, e a missão legítima da igreja também o foi, na mesma proporção. Terceiro, se observa o que se pode chamar de “adesão sem conversão”, ou seja, inúmeras pessoas passaram a aderir ao cristianismo por conveniência ou status, afinal, era agora a “religião do Imperador”. Com isso, trouxeram consigo, para o âmbito da igreja, antigas crenças, especialmente as que estavam associadas às divindades femininas no panteão greco-romano. Foi assim que o culto a Diana, tão popular na cidade de Éfeso, por exemplo, foi substituído a partir do século V pelo culto à Maria, mãe de Jesus; também os antigos deuses protetores das cidades foram substituídos pelos “santos protetores” cristãos, no caso, os apóstolos e mártires; e ainda, a veneração de objetos e imagens como elementos do culto. Quarto, Jesus deixa de ser o único mediador (também a mãe de Jesus e os apóstolos, especialmente, passam a exercer essa função); surge a figura papal, como representante de Cristo na Terra; a Bíblia passa a ser lida somente em latim e pelos clérigos, ficando, portanto, distante do povo; a justificação passa a se dar também por obras, daí as penitências, os autoflagelos, as indulgências como meios de redimir pecados. Quinto, surge ainda a doutrina do purgatório, mediante a qual era dada a oportunidade de salvação após a morte àqueles que não se preparam devidamente em vida. Pode ser citada ainda o surgimento da Inquisição, que se constituía num tribunal eclesiástico que dava à igreja o direito de punir e de matar se preciso fosse, aqueles que ousassem questionar as doutrinas canônicas ou a verdade que pertencia de forma exclusiva e absoluta à igreja medieval. Sexto, grande apego à magia. Nesse período, a assimilação da fé cristã pela população rural, mediante a catequese, formou uma camada de verniz sobre uma antiga realidade religiosa, desencadeando um intenso apego às relíquias como fetiches de proteção, com caráter mágico, objetos esses que supostamente teriam sido utilizados pelos apóstolos ou outros mártires do cristianismo e que eram então guardados nos lares dos devotos com o sentido de proteção contra doenças, contra infortúnios do demônio ou como ajuda contra as intempéries que poderiam ameaçar as colheitas. O historiador inglês Keith Tomas também afirma que no contexto da Idade Média: O ritual básico era o benzimento com sal e água para a saúde do corpo e expulsão dos maus espíritos. Mas os livros litúrgicos da época

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também traziam rituais para benzer casas, gados, culturas, embarcações, ferramentas, armas, cisternas e fornalhas. Havia fórmulas para abençoar homens que se preparavam para sair em viagem, para travar um duelo, para entrar em batalha ou mudar de casa. Havia métodos para abençoar os doentes e tratar de animais estéreis, para afastar o trovão e trazer a fecundidade ao leito matrimonial (...) Fundamentalmente em todo esse procedimento era a ideia de exorcismo, o esconjuro formal do demônio, expulsando de algum objeto material por meio de preces e da invocação do nome de Deus. A água benta podia ser utilizada para afastar maus espíritos e vapores pestilenciais. Era remédio contra a doença e a esterilidade. 1 Podemos traçar uma linha cronológica dos desvios que a Igreja, como instituição, foi abraçando em seu seio: Ano 310 d.C. – Inicia-se na igreja a reza pelos mortos. Ano 320 d.C. – As igrejas, começam a utilizar velas. Ano 325 d.C. – Constantino, inaugura e celebra o 1º concílio papal. Ano 375 d.C. – Culto dos santos. Ano 381 d.C. – A igreja cristã passa a se denominar "Católica" que significa “Universal”. Ano 404 d.C. – O culto cristão é abolido e passam a rezar as missas como sacramento perpétuo de Cristo. Ano 431 d.C. – Passam a cultuar Maria, mãe de Jesus. Ano 440 d.C. - Leão I torna-se o primeiro Papa Ano 500 d.C. – A igreja torna-se dona de bordéis, lucrando em cima da prostituição (cerca de 20% da clientela eram clérigos/muitas prostitutas eram modelos para imagens sacras) (termina apenas na Reforma) Ano 503 d.C. – Começam a divulgar a existência do purgatório. Ano 600 d.C. – Bonifácio III se declara bispo universal. Ano 606 d.C. – Obrigação de beijar os pés do Papa. Ano 783 d.C. – Começam com o culto às imagens e relíquias. Ano 880 d.C. – A Igreja Católica passa a usar ramos e água benta. Ano 890 d.C. – Culto de São José (protodulia). Ano 993 d.C. – Instituíram a canonização dos "santos". Ano 1003 d.C. – Instituição da festa dos fiéis defuntos. Ano 1004 d.C. – Celibato sacerdotal. Ano 1076 d.C. – Dogma da infalibilidade da igreja. Ano 1090 d.C. – Invenção do rosário. Ano 1184 d.C. – Instituição da “santa” inquisição. Ano 1190 d.C. – Instituiu-se a venda de indulgências, ou seja, pagar pelo pecado; “venda da salvação” (simonia). Ano 1200 d.C. – A hóstia passou a substituir o pão da comunhão. 1

THOMAS, Keith. Religião e declínio da magia. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 38.

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Ano 1215 d.C. – Criada a confissão auricular. Ano 1220 d.C. – Adoração da (transubstanciação/idolatria). Ano 1230 d.C. – Proibição da leitura da Bíblia. Ano 1316 d.C. – Instituição da reza “Ave Maria”. Ano 1415 d.C. – Eliminação do vinho da comunhão.

hóstia/missa

Diante desse quadro religioso e teológico, surgiram movimentos de reforma dentro da própria igreja medieval – considerados pré-reformadores – os quais prepararam o caminho para o advento da Reforma Protestante que viria a ocorrer no século XVI.

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Unidade 1 - Reforma Protestante - Séc. XVI Contexto social europeu A Espanha tinha sido finalmente unificada. Os mouros tinham sido expulsos. Fernando e Izabel foram os grandes reis da Espanha que conseguiram fazer isso. Eram Romanistas extremos, inclusive se dizia que eram mais até que o próprio Papa, o que provavelmente é verdade. Foram eles que criaram a Inquisição Espanhola, para garantir que a Espanha permanecesse sempre Católica Romana. A França nessa época já era um grande país. O rei era o rei Francisco I, que apesar de ser Católico Romano, era uma pedra no sapato do Papa e do Imperador do Santo Império Romano. Estavam sempre em guerra. A Inglaterra tinha passado pela Guerra dos 100 Anos, logo depois uma revolução que durou 30 anos, conseguindo depois a unificação por meio de Henrique VII. A Itália era formada por 5 regiões que viviam em guerra entre si o tempo todo. Foi o país da Europa que mais tempo levou para se tornar um país unificado. No entanto é um país muito avançado. Quando se fala de Renascimento, todos os indivíduos são de Florença e Milão, principalmente Florença. Contexto Teológico No século XV, a ICAR era uma máquina de extorquir dinheiro do povo. Um cardeal em Roma disse: “Deus não deseja a morte dos pecadores, mas que eles paguem e vivam”. O dinheiro era usado para manter as tropas do Papa, geralmente soldados mercenários suíços. Até hoje se diz Guarda Suíço, porque a Suíça sempre produziu mercenários contratados, soldados contratados para trabalharem a serviço do Papa. O dinheiro era usado também para a construção da catedral de São Pedro e outros projetos dos Papas do Renascimento. As relíquias eram muito importantes nesse tempo. Calvino certa vez satirizou as relíquias dizendo que havia pelo menos 15 crânios de João Batista espalhados pela Europa e pedaços da cruz suficientes para fazer uma cruz tão alta que ninguém veria o topo. As indulgências também estavam em alta naquela época, elas consistiam em documentos, um certificado, que o Papa garantia, aos fiéis poderem obter para si mesmos e também para as almas do Purgatório, a remissão das penas temporais, sequelas dos pecados. O nome “indulgência” vem de um termo em latim que significava “para ser gentil”. Com esse termo queria-se dizer que pela gentileza do Papa era possível receber a remissão da pena temporal pelos pecados.

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Outro fato estarrecedor era que a maioria do clero nunca tinha lido a Bíblia, pois não sabiam o Latim, único idioma permitido que se lesse a Bíblia; as missas, também rezadas em Latim eram decoradas. Martinho Lutero Lutero nasceu em 10 de novembro de 1483 em Eisleben, na Alemanha. Nesse tempo, a Saxônia, estado de Eisleben, era parte do Santo Império Romano. Como estudante, Martinho mostrou-se muito promissor, tendo sido enviado às escolas de latim de Magdeburg (1497) e Eisenach (1498-1501). Em abril de 1501, ingressou na Universidade de Erfurt, onde obteve o grau e bacharel em artes (1502) e de mestre em artes (1505). Influenciado por seu pai, Lutero inicia seus estudos em direito; até que, num dia, indo de Mansfeld para Erfurt, Lutero se encontra em meio a uma grande tempestade elétrica, e quase foi atingido por um raio. Ele foi derrubado por terra e em seu pavor, gritava: “Ajuda-me, Santa Ana! Eu serei um monge”. E foi assim que ele largou o direito e entrou na carreira eclesiástica num mosteiro agostiniano, tendo sido consagrado padre em 1507. Em sua primeira missa, devido ao grande temor da ira divina, Lutero não conseguiu terminá-la diante de seu desequilíbrio emocional, causado pela ideia de sacrificar Cristo na missa; isso causa mais desapontamentos para o pai de Lutero, mas não impede que Martinho continue sua carreira teológica. Em 1510, foi para Roma resolver questões administrativas do mosteiro e fica horrorizado com o mercado da fé. Em outono de 1511, Martinho foi deslocado para Wittenberg onde iniciou sua pregação e, após um ano, realizou o doutorado em teologia. Fazia conferências sobre a Bíblia, especializando-se nas epístolas aos Romanos, Gálatas e Hebreus. Até esse momento ele tinha Deus como um Juiz irado que demandava uma vida perfeita, algo que ele sabia que ninguém conseguia ter; tal temor é esclarecido quando, durante o estudo das cartas paulinas, ele lê Romanos 1:17 “Porque nele (o evangelho) se descobre a justiça de Deus de fé em fé, como está escrito: Mas o justo viverá pela fé.”. Foi durante esse período que a teologia paulina tomou conta de seu coração, e ele foi capaz de perceber claramente os erros do Romanismo à luz Martinho Lutero da Palavra de Deus. Por ser um monge agostiniano, Agostinho exerceu grande influência em sua soteriologia, enfatizando a graça e a fé. Tal foi o impacto da justificação pela fé em Lutero, que ele muda seu sobrenome Martim Ludher para Luther, usando o th da palavra grega eleutheros (liberto, livre).

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A partir de 1515 Lutero começa a denunciar os exageros de Roma, especialmente as indulgências, instituídas em 1190. Sua intenção, a princípio, foi alertar o Papa dos exageros cometidos pelos seus subalternos; o problema era que os exageros cometidos eram sob as ordenanças papais. O Papa era Leão X, um dos 6 da Renascença, assim chamados, eram Papas que só se preocupavam com luxo, pompa, poder político, e nunca fizeram coisa alguma pela Igreja. Não é à toa que Lutero foi reclamar das indulgências e mal sabia ele que quem estava por trás das indulgências, e queria o dinheiro delas, era o próprio Papa Leão X. Para levantar fundos para a construção da Basílica de São Pedro, Roma vende indulgências. Johann Tetzel, frade dominicano, foi constituído o Grande Comissário para indulgências na Alemanha, seus ditados eram: “assim que uma moeda tilinta no cofre, uma alma sai do Purgatório” e que “as indulgências papais são tão eficazes ao ponto de poderem absolver um homem mesmo que tivesse violentado a mãe de Deus”. Isso levou Lutero a escrever 95 teses contra as indulgências. Na noite anterior do Dia de Todos os Santos, 31 de outubro de 1517, Lutero fixou na porta da igreja/castelo de Wittenberg, as suas 95 teses acadêmicas, intituladas Sobre o Poder das Indulgências. Ao tornar-se professor na Universidade de Wittenberg, passou a estudar a Bíblia com os seus alunos, discutindo temas teológicos decisivos, portanto, Lutero desejava debater a questão e o seu relacionamento com a doutrina da penitência. A proposta era um debate acadêmico, e não repercutir no meio do povo, tanto que ele as escreve em latim, língua acadêmica, que posteriormente foram traduzidas para o alemão por seus alunos e seguidores, que acabam incendiando o povo. Algumas das 95 teses Quando Lutero apresentou sua objeção contra a venda de indulgências, ele era apenas mais um fiel sacerdote, professor e pregador dos dogmas católicos, que não negava o direito do papa ou da igreja de conceder perdões e penitências. É por isso que algumas das teses parecem tão difíceis de engolir. Mas vejamos algumas das que nos importam: 1. Ao dizer: “Fazei penitência”, etc. (Mt 4:17), o nosso Senhor e Mestre, Jesus Cristo, quis que toda a vida dos fiéis fosse penitência. 2 21. Erram, portanto, os pregadores de indulgências que afirmam que a pessoa é absolvida de toda pena e salva pelas indulgências do Papa.

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Aqui, Lutero se refere a um erro de tradução da Vulgata; ao invés de Jerônimo traduzir metanoeite por “arrependei-vos”, traduz como “fazei penitência”. Este termo vem da palavra metanóia que é melhor traduzido como “mudança de mente” ou “arrependimento”.

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43. Deve-se ensinar aos cristãos que, dando ao pobre ou emprestando ao necessitado, procedem melhor do que se comprassem indulgências. 45. Deve-se ensinar aos cristãos que quem vê um carente e o negligencia para gastar com indulgências obtém para si não as indulgências do Papa, mas a ira de Deus. 46. Deve-se ensinar aos cristãos que, se não tiverem bens em abundância, devem conservar o que é necessário para sua casa e de forma alguma desperdiçar dinheiro com indulgência. 50. Deve-se ensinar aos cristãos que, se o Papa soubesse das exações dos pregadores de indulgências, preferiria reduzir a cinzas a Basílica de São Pedro a edificá-la com a pele, a carne e os ossos de suas ovelhas. 51. Deve-se ensinar aos cristãos que o Papa estaria disposto – como é seu dever – a dar do seu dinheiro àqueles muitos de quem alguns pregadores de indulgências extraem ardilosamente o dinheiro, mesmo que para isso fosse necessário vender a Basílica de São Pedro. 54. Ofende-se a palavra de Deus quando, em um mesmo sermão, se dedica tanto ou mais tempo às indulgências do que à Palavra. 62. O verdadeiro tesouro da Igreja é o santíssimo Evangelho da glória e da graça de Deus. 81. Essa licenciosa pregação de indulgências faz com que não seja fácil, nem para os homens doutos, defender a dignidade do Papa contra calúnias ou perguntas, sem dúvida argutas, dos leigos. 82. Por exemplo: por que o Papa não evacua o purgatório por causa do santíssimo amor e da extrema necessidade das almas – o que seria a mais justa de todas as causas –, se redime um número infinito de almas por causa do funestíssimo dinheiro para a construção da basílica – que é uma causa tão insignificante? 86. Do mesmo modo: por que o Papa, cuja fortuna hoje é maior do que a dos mais ricos Crassos3, não constrói com seu próprio dinheiro ao menos esta uma basílica de São Pedro, ao invés de fazê-lo com o dinheiro dos pobres fiéis? 90. Reprimir esses argumentos muito perspicazes dos leigos somente pela força, sem refutá-los apresentando razões, significa expor a Igreja e o Papa à zombaria dos inimigos e desgraçar os cristãos. Em 7 de agosto de 1518, Lutero foi convocado a Roma, onde seria julgado sob a acusação de heresia. Lutero apelou para seu príncipe, Frederico, o Sábio, a fim de que o local de seu julgamento fosse mudado para o território alemão. Nas datas de 12 a 14 de outubro de 1518, 3

Referência ao político Marco Licínio Crasso, protótipo do homem rico na Antiguidade.

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compareceu Lutero diante do cardeal Caetano, em Augsburg, e recusou-se a retratar-se quanto à quinquagésima oitava sentença de suas Noventa e Cinco Teses, o que Caetano interpretou como rejeição à autoridade do papa; diz ela: “Eles (tesouro de méritos da igreja) tampouco são os méritos de Cristo e dos santos, pois estes sempre operam, sem o papa, a graça do ser humano interior e a cruz, a morte e o inferno do ser humano exterior.”4 Ao apresentar suas explicações sinceras, e vendo a inflexibilidade do clero, Lutero começa a entender a falta de base bíblica do papado. O que culmina no seu abandonando ao Romanismo. Papa o Anticristo Seus pontos de vista foram defendidos em um debate com João Eck, na Universidade de Leipzig, entre 4 e 8 de julho de 1519. Eck forçou Lutero a admitir que ele sentia que os concílios podem errar, uma doutrina especificamente combatida pela Igreja Católica Romana. Além disso, Eck fez Lutero confessar que pensava que John Huss havia sido injustamente condenado pelo Concílio de Constança. Lutero, por sua vez, ia dependendo cada vez mais da Bíblia, como sua autoridade. Sua rebelião contra o papado tornou-se mais evidente ainda, e ele chegou a crer que muitas corrupções haviam entrado na ICAR através do papado. Começou a falar sobre a influência do diabo na Igreja, dizendo que o Papa era o anticristo e o falso profeta (embora ele não soubesse determinar qual dessas duas figuras). Para ele, esse tema tornou-se uma verdadeira obsessão, em 1545, um ano antes de sua morte, ele publicou um amargo livro, intitulado Sobre o Papado em Roma, Fundado pelo Diabo. Após o debate em Leipzig, Lutero começou a reclamar abertamente que a ICAR precisava ser reformada; publicando uma série de escritos com essa finalidade. Lutero procurou obter o apoio de governantes civis para ajudá-lo em seus desígnios. Começou a ensinar o sacerdócio universal dos crentes, Cristo como o único Mediador entre Deus e os homens, e a autoridade exclusiva das Escrituras, em oposição à autoridade de Papas e concílios. Também acentuou a necessidade de pôr um fim aos abusos eclesiásticos, tendo alistado várias práticas abusivas nos jejuns, missas, dias santos, votos monásticos (dentre eles, a exigência do celibato aos clérigos). Em sua obra Sobre o Cativeiro Babilônico da Igreja, ele atacou o sacramentalismo da Igreja. Dos sete sacramentos – batismo, confirmação (ou crisma), eucaristia, reconciliação (ou penitência), unção dos enfermos (extrema unção), ordenação (sacerdócio) e matrimônio – dizia que, pelas Escrituras, só podem ser distinguidos dois sacramentos: o batismo e a Ceia do Senhor. Objetava à alegada repetição da morte sacrificial de Cristo, por ocasião da missa. Em outro livro seu, chamado Sobre a Liberdade Cristã, ele apresentou um estudo sobre a ética cristã, com base no amor. Lutero 4

Mais à frente, explicaremos sobre esse “tesouro de méritos” que Lutero se refere.

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obteve grande popularidade entre o povo, e também considerável influência entre o clero. A Dieta de Worms e o rompimento com o Romanismo A situação estava quase fora de controle. Em 15 de junho de 1520, a Cúria Romana expediu a bula Exsurge Domine, que ameaçava Lutero de ser excomungado, a menos que se retratasse de seus pontos de vista. Lutero respondeu queimando publicamente uma cópia da bula. Em retaliação, o imperador do Santo Império Romano, Carlos V, recém-eleito, mandou queimar publicamente os livros publicados por Lutero. Carlos V queria que Lutero fosse condenado mesmo sem ser ouvido. Mas essa medida não obteve o apoio de teólogos e príncipes – principalmente Frederico que lhe deu salvo-conduto. Nos dias 17 a 19 de abril de 1521, Lutero compareceu à Dieta de Worms, sob exigência de renegar seus escritos, caso contrário seria excomungado. No primeiro dia, acanhado e com medo, ele pede o adiamento de sua resposta. No dia seguinte, tenta defender sua posição, sem sucesso. Com isso ele dá sua célebre resposta: Uma vez que sua serena majestade e vossas senhorias procuram uma resposta simples, eu a darei desse modo, sem enfeites. A menos que eu seja convencido pelo testemunho das Escrituras ou por uma razão clara (pois não confio nem no Papa nem nos concílios, por ser bem sabido que eles muitas vezes erraram e se contradisseram), eu estou preso às Escrituras que citei e minha consciência é cativa à Palavra de Deus. Não posso e não vou retirar nada, já que não é seguro nem certo ir contra a consciência. Que Deus me ajude. Amém. Com isso, a Dieta respondeu dia 25 de maio de 1521, formalizando a excomunhão de Lutero. A nascente Reforma também foi condenada, e foram publicadas ameaças. As palavras finais de Lutero, em sua resposta, tomaram-se o grito de guerra da Reforma. Sabendo que Lutero corria o risco de ter seu fim igual ao de Huss, o príncipe Frederico simula um falso sequestro de Lutero, que fica escondido no castelo do príncipe por 10 meses. Isso forneceu-lhe tempo para trabalhar na tradução do Novo Testamento para a língua alemã. Essa tradução foi publicada em 1522. Com a ajuda de outros acadêmicos, a Bíblia inteira foi traduzida, e, então, foi publicada em 1532. Finalmente, essa tradução unificou os vários dialetos alemães, do que resultou o alemão moderno. Pela influência de Lutero, vários movimentos reformadores independentes surgiram em diversos países simultântenamente: Ulrich Zuínglio, na Suíça, e John Knox na Escócia

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Erros de Lutero Embora seja reconhecido como um dos principais reformadores, não podemos romantizar a pessoa de Lutero; mesmo sendo usado por Deus, ele teve grandes erros, dos quais citaremos dois para a finalidade deste estudo. Embora Lutero tenha ido contra a visão Romana da ceia, ele ainda manteve alguns conceitos Romanistas em sua visão deste sacramente, que ficou conhecida como Consubstanciação. Ao contrário da ICAR, Lutero não cria que as essências dos elementos fossem substituídas pelo corpo de Cristo, restando apenas os acidentes do pão e do vinho; ele concebeu que há literalmente o corpo de Cristo, que se une aos elementos do pão e do vinho; portanto há uma soma de elementos e não substituição. Essa visão foi motivo de debates acalorados entre os calvinistas e luteranos, e foi um dos principais desentendimentos que impossibilitaram a união desses dois grupos, embora trabalhassem com proximidade. O segundo erro de Lutero a ser citado, se deu nos últimos anos de sua vida. Em 1543, é escrito um trato sob o título de: “Sobre os Judeus e Suas Mentiras”. Nesse tratado, Martinho expressa um espírito fortemente antissemita em frases como: (…) Finalmente, no meu tempo, foram expulsos de Ratisbona, Magdeburgo e de muitos outros lugares… Um judeu, um coração judaico, são tão duros como a madeira, a pedra, o ferro, como o próprio diabo. Em suma, são filhos do demônio, condenados às chamas do Inferno. Os judeus são pequenos demônios destinados ao inferno... Queime suas sinagogas. Negue a eles o que disse anteriormente. Force-os a trabalhar e trate-os com toda sorte de severidade … são inúteis, devemos tratá-los como cachorros loucos, para não sermos parceiros em suas blasfêmias e vícios, e para que não recebamos a ira de Deus sobre nós. Eu estou fazendo a minha parte... Resumindo, caros príncipes e nobres que têm judeus em seus domínios, se este meu conselho não vos serve, encontrai solução melhor, para que vós e nós possamos nos ver livres dessa insuportável carga infernal – os judeus. É certo que a dispersão judaica e seus sofrimentos têm como causa final a ira de Deus e o cumprimento do pedido daqueles que crucificaram Cristo: “O seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos.” (Mt 27:25). Mas é importante frisar que: o próprio Cristo era judeu; 90% da humanidade tem sangue judeu5; Paulo deixa claro que não devemos nos

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Confira os cálculos que chegaram a tais estatísticas no documentário Marchando Para Sião, disponível no YouTube.

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gloriar por Deus ter enxertado os gentios em Cristo, rejeitando Israel (Rm 11). Fim de sua vida Em 1525, Lutero casou-se com Catarina von Bora, uma ex-freira que ele ajudou a fugir de um convento, junto com outras 11 freiras; eles tiveram seis filhos, dos quais, dois morreram precocemente. Em 1546, Martinho morre em sua cidade natal, deixando uma grande herança cristã para a Igreja de Cristo. Ulrico Zuínglio Nem todos os que abandonaram o Romanismo se tornaram seguidores de Lutero e dos seus pontos de vista. Logo, surgiu um movimento na Suíça, primeiramente sob a direção de Ulrico Zuínglio e depois de João Calvino, que deu origem às igrejas que hoje chamamos “reformadas” e “presbiterianas”. Zuínglio nasceu em 1484, na Suíça. Filho de camponeses, formou-se na escola dos humanistas e assumiu o pastorado de uma grande igreja em Zurique. Lá começou a sua obra reformadora. Foi influenciado grandemente pelas obras de Lutero. Seu interesse era voltar às origens do cristianismo e, portanto, repudiava tudo quanto não se encontrava no Novo Testamento. Foi também um patriota fervoroso e morreu no campo de batalha. Em 1523, foi proposto um debate para Ulrico Zuínglio decidir se Zurique seria Romanista ou Protestante. Nessa ocasião o Zwinglio foi escolhido para ser o defensor do protestantismo, e por ocasião disso escreveu os 67 artigos dando as razões à Reforma. O respeito que Zurique tinha por Zuínglio era tamanho que ninguém se prontificou a debater com Zuínglio para defender Roma. A principal contribuição de Zuínglio foi que ele lançou as bases para o princípio regulador do culto, utilizado pelas igrejas reformadas, que consiste no princípio de que o culto deve ser conforme as ordenanças de Deus expressas na Bíblia, portanto, aquilo que não é ratificado nas Escrituras, não deve fazer parte do culto público. Zuínglio também defendeu uma visão mais simbólica da ceia, entendendo que Cristo é comunicado espiritualmente ao participante. Num dado momento, ele e Lutero debateram sobre o assunto. Em determinada altura do debate, Lutero, como um alemão de modo rude, apenas batia na mesa gritando “Esse é o meu corpo! Esse é o meu corpo! Esse é o meu corpo!”, no que resultou em uma triste divisão entre ambas as tradições.

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Após morrer numa batalha, Zuínglio é sucedido por João Calvino. João Calvino Calvino nasceu em 10 de julho de 1509, em Noyon, na França, quando Martinho Lutero tinha 25 anos e começara ensinar a Bíblia em Wittenberg. Quando tinha 14 anos, seu pai o enviou para estudar teologia na Universidade de Paris, que, na época, não fora tocada pela Reforma alemã e estava imersa na teologia medieval. Mas, cinco anos depois (com 19 anos), seu pai entrou em conflito com a Igreja Romana e disse a seu filho que abandonasse o curso de teologia para estudar direito, o que ele fez nos três anos seguintes, em Orleans e Bourges. Com a morte de seu pai, aos 21 anos, Calvino se sentiu livre para mudar do curso de direito para seu primeiro amor, que eram os clássicos. Em algum tempo, durante esses anos, ele entrou em contato com a mensagem e o espírito da Reforma e, por volta de 1533, algo dramático aconteceu em sua vida. Em novembro de 1533, Nicholas Cop, um amigo de Calvino, pregou na abertura da temporada de inverno na Universidade de Paris e foi chamado para prestar contas ao Parlamento por suas doutrinas parecidas com as de Lutero, resultando em sua fuga. Irrompeu uma perseguição contra o que o rei Francisco I chamou “a maldita seita luterana”. Calvino estava entre os que escaparam. A conexão com Cop era tão próxima que alguns suspeitaram que Calvino escrevera a mensagem que Cop pregou. Assim, por volta de 1533, Calvino já havia cruzado a linha. Era totalmente dedicado a Cristo e à causa da Reforma. Calvino relata, sete anos depois, como sua conversão se realizou. Descreve como estava lutando para viver com zelo à fé católica: ... quando uma forma diferente de doutrina começou, não uma que nos afasta da profissão cristã, e sim uma que leva de volta à sua fonte... à sua pureza original. Ofendido pela novidade, ouvi com indisposição e, a princípio, confesso, resisti firme e ardentemente... a confessar que tinha passado toda a minha vida em ignorância e erro. Depois de algum tempo, percebi, como se a luz tivesse brilhado em mim, em que chiqueiro de erro eu me revolvia e, por isso, quanta poluição e impureza havia contraído. Ficando grandemente alarmado com a miséria em que eu tinha caído... como por dever, a minha prioridade foi dirigir-me ao teu caminho [ó Deus], condenando minha vida passada, não sem tristeza e lágrimas. Por meio de uma conversão repentina, Deus subjugou minha mente e trouxe-a a uma disposição ensinável... Havendo, assim, recebido o gosto e o conhecimento da verdadeira piedade, fui imediatamente inflamado com [um] intenso desejo de fazer progresso.

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Após sua conversão, Calvino busca estudar a fundo as Escrituras. Ele queria ir para Estrasburgo, na França, que já era protestante, onde buscava se refugiar e dedicar-se aos estudos e ao Senhor, escrevendo livros, estudando teologia, etc. Porém, devido à guerra na fronteira entre Carlos V e Francisco, rei da França, Calvino foi obrigado a fazer um desvio mais ao sul por Lyon, passando por Genebra para então ir para Estrasburgo via Suíça. Isso então é conhecido como Bendito Desvio, porque o fez ir à Genebra, local onde seu ministério se desenvolveria. Em Genebra, Calvino conheceu Guilherme Farel, que estava reformando a igreja da Suíça, que o convida a permanecer em Genebra pra ajuda-lo; Calvino não aceita o convite, pois diz que tem de estudar em Estrasburgo, então Farel lhe exorta: “Deus amaldiçoe teu descanso e a tranquilidade que buscas para estudar, se diante de uma necessidade tão grande te retiras e te negas a prestar socorro e ajuda”. Isso faz com que Calvino permanece em Genebra. Dois anos após, Calvino e Farel são convidados a se João Calvino retirarem de Genebra, indo para Estrasburgo. Em Estrasburgo ele conhece Martin Bucer, grande reformador daquela cidade; Bucer o convida a pastorear uma igreja com aproximadamente 500 membros. Nesse tempo Calvino faz cresce grandemente, pastoreando. Em 1541, volta pra Genebra e permanece até o fim de sua vida. Calvino estabelece uma Academia (universidade/seminário) em Genebra, a Academia oferecia educação de alto nível do primário à Universidade, tendo os melhores professores. Vale notar que, uma vez comprado o terreno para construção do edifício, Calvino passou a contar com algumas barreiras para efetivação do seu sonho: o dinheiro que deveria ser em grande soma proveniente de algum fidalgo. Outro problema enfrentado por Calvino era o fato de boa parte da população da cidade ser composta de refugiados, em torno de 30%, muitos pobres e sem condição para realização do sonho. Porém, de forma surpreendente, através de uma grande mobilização do povo, todos contribuíram com grande alegria, uns com mais e outros com menos dinheiro. Assim, deu-se finalmente a inauguração em 5 de Junho de 1559, numa segunda-feira. Foi um dia solene em Genebra. Na inauguração, houve um serviço religioso na Catedral de São Pedro, sendo a oração de consagração proferida por Calvino, que dirigiu a solenidade. Anunciada a escolha do primeiro reitor, honra conferida a Teodoro de Beza, pronunciou este, notável discurso em latim, terminando Calvino aquela cerimônia com ações de graças a Deus. Na sua visão inicial, Calvino já dava pistas do que se tornou mais tarde a Academia de Genebra: a Primeira Universidade Protestante do Mundo. Mas os começos eram humildes. Apenas cinco professores formavam o

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quadro: dois de Teologia, um de Hebraico, outro de Grego e outro de Filosofia. O próprio Calvino também se tornou um dos seus professores. Mas a novel escola em pouco tempo lançou profundas e resistentes raízes, totalizando com 900 alunos. A Academia de Genebra tornou-se um estratégico centro de preparação teológica e ministerial, responsável pela formação de inúmeros pastores e missionários, que propagaram a mensagem da Reforma em diferentes países. Mais de oitocentos estudantes de teologia foram ali consagrados para a pregação do Evangelho na França, na Alemanha, na Itália, na Holanda, na Inglaterra, na Boêmia e na Escócia. Uma das principais contribuições de Calvino foi sua obra magna A Instituição da Religião Cristã, mais conhecida como As Institutas. Tendo sua primeira edição em 1536, como um livreto; já em 1559 a última edição é lançada em 4 volumes, ultrapassando 2 mil páginas. Nessa obra, Calvino sistematizou a teologia reformada, que de imediato encontrou seguidores não somente na Suíça, mas também em todo o restante da Europa. As institutas se caracterizam por ser: Bíblica, há quase 7 mil citações bíblicas; Sistemática, pois Calvino ajusta a ordem dos temas, fazendo com que cada parte se harmonize com as demais; Devocional, pois sempre há um elemento de adoração nos temas abordados; Prática, é um dos pontos mais marcantes no trabalho de Calvino devido à síntese de um exegeta, um teólogo sistemático, um pregador e um pastor; Acessível, seu trabalho é escrito em Latim – língua acadêmica –, mas também e traduzida para o francês – língua popular. Curiosidade A vida de João Calvino foi regada por sofrimentos, perdeu sua mãe aos seis anos de idade e o pai aos 22. Casou-se após os 30, com Idelette de Bure, que lhe deu três filhos – todos morreram na infância. Com 9 anos de casamento, sua amada Idelette morreu. Ele decidiu não se casar novamente. Sua saúde sempre foi frágil. Ele teve enxaquecas por 20 anos. Sofria de artrite, gota, malária, pedras nos rins e tuberculose, por 5 anos. Morreu aos 55 anos. As igrejas que seguiam os princípios doutrinários articulados por Calvino, conhecidas como reformadas, foram nomeadas de formas distintas em diferentes países: na França, os calvinistas eram chamados de huguenotes; na Inglaterra, de puritanos; na Escócia, de presbiterianos; na Holanda, fundaram a Igreja Reformada.

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William Tyndale William Tyndale nasceu em Gloucestershire, Inglaterra, em (aprox.) 1484; foi um pastor protestante e acadêmico inglês, mestre em Artes na Universidade de Oxford. Traduziu a Bíblia para uma versão inicial do moderno inglês. Seu objetivo era fazer o Novo Testamento um livro tal que todo menino rural pudesse lê-lo e se tornasse mais conhecedor das Escrituras que o próprio clero. Apesar de numerosas traduções para inglês, parciais ou completas, terem sido feitas a partir do século VII, a Bíblia de Tyndale foi a primeira a se beneficiar da imprensa, o que permitiu uma ampla distribuição. Tyndale estudou as escrituras e começou a defender as teses da Reforma Protestante, muitas das quais eram consideradas heréticas, primeiro pela Igreja Católica que o perseguira e depois pela Igreja Anglicana. As traduções de Tyndale foram banidas pelas autoridades e o próprio Tyndale foi queimado na fogueira em 1536 em Vilvoorde (10Km a nordeste de Bruxelas), na atual Bélgica, sob a instigação de agentes de Henrique VIII e a Igreja William Tyndale Anglicana. Suas últimas palavras foram, “Senhor, abre os olhos ao rei da Inglaterra”, o que de fato aconteceu anos depois. Apenas três anos mais tarde, Henrique VIII publicou em inglês a “Grande Bíblia”, baseada na obra de Tyndale. Mesmo que a tradução de Tyndale do Antigo Testamento tenha ficado inacabada, devido sua morte, sua obra foi a base de todas as traduções inglesas posteriores da Bíblia, incluindo a versão de King James (Rei Tiago) de 1611. Conquistas da Reforma O movimento da Reforma tornou-se o marco de profundas mudanças que não se restringiram tão somente ao aspecto religioso, mas que promoveram transformações de âmbito político, sócio-econômico e cultural. Uma das grandes conquistas da Reforma foi a devolução da Bíblia aos leigos, cuja leitura estava até então restrita ao clero; Lutero e os demais reformadores se preocuparam não somente em traduzir as Escrituras para a língua comum falada pelo povo, como também em promover a criação de escolas para que, através da alfabetização, todos pudessem ter acesso à leitura sagrada. Houve também a redescoberta do sacerdócio universal de todos os crentes, cujo princípio é o de que todo cristão, e não somente o clérigo, é vocacionado por Deus para exercer dons e ministérios. João Calvino, ao lado de Lutero, foi grande responsável pela formação de um novo conceito em relação ao trabalho: durante a Idade Média, o trabalho era visto como sinônimo de castigo divino; além do que, a fé cristã projetava a realização de seus sonhos e desejos para o paraíso no “além

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celestial”. Na compreensão dos reformadores, o trabalho passaria a ser visto como vocação divina, que não só dignifica o ser humano, como também promove a glória de Deus. Reflexões finais Neste importante período, portanto, temos uma retomada da temática da cruz, quando os reformadores objetivaram reconduzir a igreja às suas origens doutrinárias e, consequentemente, às suas verdadeiras funções de ser sal da terra e luz do mundo. A teologia da Reforma salientou a cruz por ser esta o lugar único do perdão e da redenção da humanidade, possibilitando a esta a condição para promover o reino de Deus. Por isso Lutero emitiu a célebre frase: “Crux sola nostra theologia” (somente a cruz é a nossa teologia). Lutero, em sua oração pascal, expressa bem a singularidade da obra redentora da cruz de Cristo e a capacitação que da ressurreição provém àqueles que passam a ser instrumentos de Deus na libertação da morte e da estrutura de pecado que ainda existem: Sendo nosso fiador, Tu foste entregue à morte, mas eis que vives. Tu venceste a morte e aniquilaste aquele que tinha o poder da morte, Tu foste feito o primeiro entre os que dormem. Porque Tu abriste o reino dos céus para todos os que vivem. O verdadeiro cordeiro pascal, que foste oferecido por nós, Tu tiraste o pecado do mundo e pela ressurreição nos restaurastes inocência e vida eterna. Completa, pois, em nós com poder a obra da fé, cuida que ressuscitemos contigo em verdadeiro arrependimento de nossa morte natural de ofensas e pecados. Possamos vencer o mundo e o terror da morte e, na Tua vinda para julgar a mundo, aparecer contigo em glória semelhantes a Ti e com nossos corpos transformados à imagem do Teu próprio corpo glorificado.6 É importante notarmos, nesta oração de Lutero, a compreensão de que a cruz e a ressurreição não consistem em um fim em si mesmo, mas o meio pelo qual o homem é restaurado para agir na promoção da glória de Deus.

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Liturgia Luterana. Porto Alegre: Casa Publicadora Concórdia, p.286-287, s/d.

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Unidade 2 – Contrarreforma Contrarreforma Ao analisarem as ações da Igreja Católica Romana após o surgimento do protestantismo, os historiadores falam em dois aspectos: Contrarreforma e Reforma Católica. O primeiro foi o esforço da Igreja Romana para reorganizar-se e lutar contra o protestantismo. Essa reação ocorreu tanto no plano dogmático quanto político-militar. Já a Reforma Católica revelou a preocupação de corrigir certos problemas internos do catolicismo em resposta às críticas dos protestantes e de outros grupos. Foram vários os elementos dessa reação. Na Espanha, houve notáveis manifestações de uma rica espiritualidade mística, cujos representantes mais destacados foram Teresa de Ávila e João da Cruz. Além do misticismo espanhol, outro sinal da revitalização católica foi o surgimento de várias ordens religiosas, das quais a mais importante foi a Sociedade de Jesus, fundada pelo espanhol Inácio de Loiola (1491-1556) e oficializada pelo papa em 1540. Além dos votos usuais de pobreza, castidade e obediência aos superiores, os jesuítas faziam um voto adicional de submissão incondicional ao papa. Seu objetivo era a expansão e o fortalecimento da fé católica através de missões, educação e combate à heresia. Os jesuítas exerceram forte influência sobre governantes e contribuíram decisivamente para a supressão do protestantismo em várias regiões da Europa, como a Espanha e a Polônia. O instrumento mais eficaz tanto da Contrarreforma quanto da Reforma Católica foi o Concílio de Trento, que se reuniu em três séries de sessões entre 1545 e 1563. Seus decretos rejeitaram explicitamente as doutrinas protestantes e oficializaram o tomismo (a teologia de Tomás de Aquino). O concílio emitiu numerosos decretos disciplinares e especificou claramente as doutrinas católico‐romanas quanto à salvação, os sete sacramentos (como por exemplo, confirmou a presença de Cristo na Eucaristia), o Cânone de Trento (reafirmou como autêntica a Vulgata) e a Tradição, a doutrina da graça e do pecado original, a justificação, a liturgia e o valor e importância da Missa (unificou o ritual da missa de rito romano, abolindo as variações locais, instituindo a chamada “Missa Tridentina”), o celibato clerical, a hierarquia católica, o culto dos santos, das relíquias e das imagens, as indulgências e a natureza da Igreja. Regulou ainda as obrigações dos bispos e oficializou o acréscimo dos livros denominados apócrifos ou deuterocanônicos. Outros instrumentos da Contrarreforma foram o Índice de Livros Proibidos (Index Librorum Prohibitorum, 1559) e a Inquisição, especialmente em suas versões espanhola e romana. Como expressão do dinamismo católico nesse período, as ordens dos franciscanos, dominicanos e jesuítas realizaram uma grande obra missionária no Oriente e nas

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Américas. A tabela que se segue mostra as doutrinas definidas em Trento em resposta às afirmações protestantes.

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No território do Sacro Império, os conflitos entre católicos e protestantes continuaram por muitas décadas, atingindo o seu auge na tenebrosa Guerra dos Trinta Anos, que envolveu metade do continente europeu. Essa guerra terminou com a Paz de Westfália (1648), que fixou definitivamente as fronteiras político-religiosas da Europa e marcou o final do período da Reforma. Em certo aspecto, podemos dizer que a ICAR é mais recente que o protestantismo, pois esta só se organizou nos padrões atuais que conhecemos através das resoluções do Concílio de Trento. Devemos ser honestos em reconhecer que houve o emprego indevido da violência tanto por católicos quanto por protestantes devido a discordâncias doutrinárias. Também é importante ressaltar que muitas batalhas são atribuídas indevidamente à religião, pois houve outras questões particulares envolvidas. Embate protestante contra a magia Romanista Um dos principais alvos combatidos pelo protestantismo foram os traços pagãos que o Romanismo havia absorvido da prática popular, focando assim no combate à magia. Gehardus Vos dá a seguinte definição de magia: Magia é a reversão pagã do processo da religião, na qual o homem, em vez de se deixar ser usado por Deus para o propósito divino, reduz seu deus ao nível de uma ferramenta, a qual ele usa para o próprio propósito egoísta. Magia é cheia de superstição e, de certo modo, cheia do que tem a aparência de sobrenatural, mas é vazia da verdadeira religião. Em razão de que ela não tem o elemento da autocomunicação divina objetiva vinda do alto, ela tem a necessidade de criar para si mesma meios materiais de coerção que farão que a deidade cumpra sua ordem. Em função da natureza do caso, esses instrumentos de coerção mágica se multiplicarão indefinidamente. Ao tomar esses instrumentos para seu uso prático, o homem começará, mais tarde, a sentir que os poderes que habitualmente atuam por meio deles são, de alguma maneira, subtraídos à divindade e armazenados nas formas de magia. Assim, a imagem, manipulada magicamente, tenderá inevitavelmente a se tornar um segundo deus ao lado do original, e tenderá até mesmo a superar o último em poder e utilidade. A imagem não é o símbolo; ela se comporta como o rival e o substituto do deus. Desse modo, a representação sensual de Yahweh, por se tornar associada com a magia, leva diretamente ao politeísmo.7

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Gehardus Vos, Teologia Bíblia, p. 171.

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O apego à “magia” dos objetos marcou o período medieval. Multiplicaram-se os cultos às relíquias sagradas, verdadeiros fetiches milagrosos, aos quais se atribuíam poder de curar enfermidades e proteger as pessoas dos perigos. Esses objetos, que pensavam terem pertencido aos santos ou simplesmente por terem sido usados na missa, eram trocados, presenteados, roubados, vendidos ou comprados. Muitos deles eram empregados com as mais diversas finalidades, desde o auxílio no trabalho de parto até na cura de peste no gado bovino ou afastar epidemias de seca, fome ou pragas de gafanhotos. No período entre os séculos XVI e XVII, da história inglesa, os objetivos pelos quais a maioria dos homens recorria a sortilégios e a feiticeiros eram precisamente aqueles para os quais não havia alternativa técnica adequada. Assim, na agricultura, o lavrador que normalmente confiava em suas próprias habilidades e perícias, quando ficava dependente de circunstâncias fora do seu controle – a fertilidade do solo, as condições meteorológicas, a saúde do gado -, se mostrava mais propenso a acompanhar suas atividades normais com alguma precaução mágica. Na ausência de herbicidas, havia encantamentos para manter a erva daninha distante das plantações, e, em lugar de inseticida e raticida, havia fórmulas mágicas para afastar as pestes. Havia também sortilégios para aumentar a fertilidade da terra, além de precauções rituais que rodeavam a caça e a pesca, atividades especulativas, isto é, incertas ambas. Brasil, exílio da magia Com o processo de colonização do Brasil, a Insquisição europeia também viu nesse novo mundo a oportunidade de deportar ou degradar para as terras americanas adeptos de práticas proibidas pela igreja, ou seja, acusados de heresia foram embarcados nos navios e trazidos para terras brasileiras a fim de “regenerarem” ou se “penitenciarem” por aqui. Desse modo, veio nos tempos do Brasil colonial um contingente bastante considerável acusado de bruxaria, misticismo, curandeirismo, feitiçarias, necromancia. O pesquisador Antonio Gouvêa Mendonça ajuda a descrever esse compósito formador do contexto brasileiro. A cultura brasileira tem três componentes muito claros: a cultura ibero-latino-católica, a indígena e a negra. A primeira não é representada pelo catolicismo tridentino, mas pela religião popular, folclórica e festiva legada pela tradição lusitana. Dessa mistura de cultura resultou um imaginário de um mundo composto por espíritos e demônios bons e maus, por poderes intermediários entre os homens e o sobrenatural e por possessões. Trata-se de um mundo maniqueísta

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em que os poderes são classificáveis entre o bem e o mal e manipuláveis magicamente.8 Mendonça destaca algumas características fincadas nas raízes dessa religiosidade desenvolvida desde o período colonial: peregrinações a locais sagrados; mediação dos santos por meio de preces muito populares, que nem sempre seguem a canonização oficial desses pela igreja; fazer e cumprir promessas, acender velas, solicitar ajuda de rezadores. Eduardo Albuquerque comenta o arraigamento dessas práticas no catolicismo de devoção folclórica: No cristianismo popular brasileiro, a oração, a prece e a reza são fórmulas religiosas dirigidas a Deus, a Cristo, à Virgem Maria e aos santos, mediante o que o fiel pede, deseja, julga a si mesmo e avalia suas próprias necessidades. Vindas de Portugal, enfrentam a Inquisição, os médicos e os juristas e sobrevivem nos nossos dias através dos homens e mulheres que benzem. (...) instrumentos mantidos pela memória do povo brasileiro para enfrentar suas adversidades cotidianas.9 Pierre Sanchis também se refere ao capital simbólico que configura o campo religioso brasileiro, indicando como matriz religiosa um encontro de práticas, crenças e ritos de expressões culturais distintas, marcadas por raízes européias, africanas e indígenas. A “porosidade” que configura essa matriz cultural é que permite, ao mesmo tempo, crer em demônios, ter medo de pisar em trabalhos de macumba, usar fitas do Senhor do Bonfim, colocar carrancas nas entradas das casas, elefantes de costas para as portas, soltar fogos no dia de Nossa Senhora Aparecida, virar Santo Antônio de cabeça para baixo para se obter um casamento, ir à missa aos domingos, acreditar em reencarnação, tomar banho de descarrego e benzer-se com água benta, acender incensos, acreditar em “olho gordo”, cristais, gnomos...

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MENDONÇA, Antonio Gouvêa. Protestantes, pentecostais e ecumênicos. O campo religioso e seus personagens. São Bernardo do Campo: UMESP, 1997, p. 160. 9 ALBUQUERQUE, Eduardo Basto de. Orações & rezas populares. Texto disponível em: http://www.planetanews.com. Acesso em: 25 out. 2006.

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Unidade 3 - 5 Solas A Reforma buscou voltar aos princípios bíblicos que sofreram desvios ao longo do caminho. Como os escritos de Lutero e demais reformadores, foram estabelecidos cinco pilares doutrinários da Reforma, conhecidos como solas (do latim, “somente”). A principal controvérsia que instituiu as cinco Solas foi: como o homem pode ser justificado diante de um Deus santo e justo? A posição Romana, assim como a protestante, afirmava que a justificação se dá pela graça, mediante a fé em Cristo. O problema era que o Romanismo discordava do termo “somente”, eles acrescentaram coisas a esses termos, o que corrompeu esses princípios bíblicos. À graça, foi acrescentado os méritos; à fé, foi acrescentado as obras; a Cristo, foi somado a justiça própria e a mediação dos santos. Faremos uma exposição, seguindo uma linha lógica das solas: Sola Gratia (somente a graça), Sola Fide (somente a fé), Solus Christus (somente Cristo), Sola Scriptura (somente as Escrituras) e Soli Deo Gloria (glória somente a Deus). Sola Gratia Visão Romana Segundo o Romanismo, o batismo é o instrumento de Deus para infundir graça; por isso as crianças são batizadas, para receberem a salvação. Essa graça que é dada precisa ser assentida, ou seja, precisa-se cooperar e mantê-la. Caso seja cometido pecados mortais (ou capitais), mata-se a graça que foi infundida. Para restaurá-la, é preciso fazer penitências, que consiste em confissão a um sacerdote e a realização de obras de satisfação (boas obras). A penitência é conhecida como a segunda tábua de justificação (re-justificação) para aqueles que passaram por um naufrágio de suas almas. Portanto, segundo Roma, a justificação é adquirida através de instrumentos sacramentais. Antes de vermos a resposta protestante para tal posição, será esclarecido a questão do “tesouro de méritos” que Lutero critica em sua 58ª tese. O tesouro de méritos está diretamente ligado à questão de indulgências, que era fortemente enfatizado na época da Reforma. As indulgências consistiam em documentos, um certificado, que o Papa garantia aos fiéis para que pudessem obter, para si mesmos e também para as almas do Purgatório, a remissão das penas temporais, sequelas dos pecados. O nome “indulgência” vem de um termo em latim que significava “para ser gentil”. Com esse termo queria-se dizer que pela gentileza do Papa era possível receber a remissão da pena temporal pelos pecados. O Papa tinha a autoridade de remir esses pecados graças ao fato de que a Igreja tinha o poder das chaves para transferir uma porção do tesouro de mérito para aqueles que estavam no purgatório que careciam de mérito

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suficiente. O tesouro de méritos era como um cofre espiritual, onde era depositados os méritos de Cristo, da santa família e de todos os santos. Segundo essa visão, Cristo e os santos foram tão piedosos que obtiveram méritos a mais do que era necessário para si mesmos, então o que sobejou foi depositado nesse caixa-forte. Portanto, um indivíduo penitente é justificado se tem parte no tesouro de mérito e não tenha cometido um pecado mortal, pois, então, será condenado ao inferno. O sacramento da extrema unção é uma salvaguarda contra o fato de o indivíduo morrer com um pecado mortal. De acordo com a Igreja, a maioria das pessoas não morre com um pecado mortal, mas um pecado venial, em cujo caso elas vão para o purgatório a fim de serem purgadas de quaisquer impurezas. Pouquíssimas pessoas vão diretamente para o céu, e a maioria vai para o purgatório. Santos com muito mérito de justiça vão direto para o céu, e seu mérito restante é depositado no tesouro de mérito; o qual o Papa tinha o poder para transferir o mérito excedente dos santos para aqueles que necessitavam de mérito no purgatório, mediante um pagamento. Fé Reformada Agostinho ficou conhecido como “doutor da graça”, devido sua ênfase na necessidade desta para a salvação. A visão agostiniana influenciou fortemente Lutero, que foi monge agostiniano, e os reformadores, especialmente João Calvino, sendo formulado o Sola Gratia O Sola Gratia está relacionado intimamente com as doutrinas do pecado original e da eleição incondicional. Sendo todos pecadores, não há nenhum mérito que possa alcançar o favor de Deus. Sendo assim, a graça é incondicional, e concede a fé e o arrependimento para o pecador responder ao Evangelho. A Declaração de Cambridge (1996) define esta Sola do seguinte modo: Reafirmamos que na salvação somos resgatados da ira de Deus unicamente pela sua graça. A obra sobrenatural do Espírito Santo é que nos leva a Cristo, soltando-nos de nossa servidão ao pecado e erguendo-nos da morte espiritual à vida espiritual. Negamos que a salvação seja em qualquer sentido obra humana. Os métodos, técnicas ou estratégias humanas por si só não podem realizar essa transformação. A fé não é produzida pela nossa natureza não-regenerada. Um dos textos-base dessa Sola é Efésios 2:8-10: sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é vem das obras, para que ninguém se glorie; porque criados em Cristo Jesus para as boas obras, as quais, antemão] para que andássemos nelas.”

“Porque pela graça dom de Deus. Não somos feitura sua, Deus preparou [de

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Sola Fide Visão Romana Roma diz que somos justificados pela fé somado as boas obras, conhecidas como penitências; o sacramento da penitência exige a confissão do pecado, uma oração de contrição e a absolvição sacerdotal. Obras de satisfação eram o último componente do sacramento da penitência, e serviam para satisfazer as exigências da Lei de Deus. Obras de satisfação conquistavam para o penitente mérito para com Deus; uma delas era as esmolas. Fé Reformada A doutrina protestante da justificação argumentava pela justiça comunicada onde os méritos de Cristo são recebidos à parte de quaisquer obras do homem, baseada na doutrina da expiação. A doutrina do Novo Testamento da expiação significa não apenas que Cristo sofreu por nós, mas que Ele também viveu em justiça por nós, obedecendo plenamente a Lei de Deus, a qual nos é impossível. Portanto, é impossível para o homem ser justificado à parte do perfeito caráter do Filho de Deus. A fé é o instrumento através do qual o homem recebe a Cristo e é revestido da justiça de Cristo. A justiça de Cristo é uma justiça extra nos (alheia ao indivíduo), porque vem de fora daquele que a recebe. O desempenho de Jesus é transferido ao crente sem qualquer crédito indo para o crente. A imputação da justiça de Cristo ao crente à parte de qualquer esforço por parte do crente está no âmago do evangelho. Nem a fé em si procede do homem não-regenerado, ela é um dom de Deus, juntamente com o arrependimento (Ef 2:8-9). Lutero dizia que a justificação pela fé (Sola fide) é o artigo pelo qual a Igreja permanece de pé ou cai. O pastor puritano John Owen diz o seguinte sobre esta doutrina: Ouso dizer... que se perdermos a antiga doutrina da justificação pela fé no sangue de Cristo, e a imputação da sua justiça a nós, a pública profissão da religião rapidamente conduzirá ao papado ou ao ateísmo... No meu julgamento, Lutero fala a verdade quando diz: ‘a perda da doutrina da justificação implica na perda de todas as doutrinas cristãs’. A Declaração de Cambridge (1996) define esta Sola do seguinte modo: Reafirmamos que a justificação é somente pela graça somente por intermédio da fé somente por causa de Cristo. Na justificação a retidão de Cristo nos é imputada como o único meio possível de satisfazer a perfeita justiça de Deus. Negamos que a justificação se baseie em qualquer mérito que em nós possa ser achado, ou com base numa infusão da justiça de Cristo

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em nós; ou que uma instituição que reivindique ser igreja mas negue ou condene sola fide possa ser reconhecida como igreja legítima. Um dos textos-base dessa Sola é Romanos 1:16,17: “Porque não me envergonho do evangelho de Cristo, pois é o poder de Deus para salvação de todo aquele que crê; primeiro do judeu, e também do grego. Porque nele se descobre a justiça de Deus de fé em fé, como está escrito: Mas o justo viverá pela fé.”. Solus Christus Visão Romana O Concílio de Trento, em sua 25ª Sessão, diz: Os santos que reinam agora com Cristo, oram a Deus pelos homens. É bom e proveitoso invocá-los suplicantemente e recorrer às suas orações e intercessões, para que vos obtenham benefícios de Deus, por nosso senhor Jesus Cristo, único Redentor e Salvador nosso. São ímpios os que negam que se devam invocar os santos que já gozam da eterna felicidade no céu. Os que afirmam que eles não oram pelos homens, os que declaram que lhes pedir por cada um de nós em particular é idolatria, repugna a palavra de Deus e se opõe à honra de Jesus Cristo, único Mediador entre Deus e os homens (1 Tm 2:5). Roma falaciosamente diz que, por serem parte do corpo de Cristo, os santos atuam na autoridade intercessora e mediadora de Cristo, sendo lícito buscar seus auxílios. Fé Reformada Os reformadores protestantes argumentaram que a salvação é pela graça somente, através da fé somente, por causa de Cristo somente. A falácia da visão Romana é não ter Cristo como suficiente, necessitando terceirizar seu trabalho, como se fosse algo muito difícil de se fazer. Passagens que falam do sacerdócio universal da igreja, as almas celestes clamando por justiça etc., são distorcidas para embasarem tal prática que não encontra respaldo nos 66 livros canônicos da Bíblia. As Escrituras nos mostram que Deus, ao criar o universo e o homem, estabelece um pacto criacional com a humanidade; nesse pacto, Deus estabelece seu reino cósmico, tendo Cristo como seu regente. Os patriarcas, Moisés, Davi, as cerimônias, foram mediadores temporais que apontaram para Cristo o único mediador (1 Tm 2:5). O Novo Testamento é claro em dizer que Cristo é único e suficiente (Jo 14:6; Hb 1:1-3). A questão do sacerdócio de todos os crentes diz basicamente o contrário do que se quer provar pela ICAR; ele se refere ao fato de que não precisamos mais das sombras cerimoniais e mediadores imperfeitos, por

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estarmos enxertados em Cristo, o sumo sacerdote perfeito, a exata expressão do ser de Deus (Cl 1:19), que nos leva por um novo (Hb 8:6) e vivo caminho (Hb 10:20). A Declaração de Cambridge (1996) define esta Sola do seguinte modo: Reafirmamos que nossa salvação é realizada unicamente pela obra mediatória do Cristo histórico. Sua vida sem pecado e sua expiação por si só são suficientes para nossa justificação e reconciliação com o Pai. Negamos que o evangelho esteja sendo pregado se a obra substitutiva de Cristo não estiver sendo declarada e a fé em Cristo e sua obra não estiver sendo invocada. Um dos textos-base dessa Sola é João 14:6 “Respondeu-lhe Jesus: Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida; ninguém vem ao Pai, senão por mim.”. Sola Scriptura Um grande debate surgiu a respeito da autoridade de fé. A pergunta era: quais devem ser as regras de fé e prática da Igreja de Cristo? Visão Romana Roma afirma que as verdades reveladas pelo Espírito Santo, se encontram na Bíblia e na tradição. O Concílio de Trento, em sua 4ª Sessão, diz: O Sacrossanto, Ecumênico e Geral concílio de Trento, congregado legitimamente no Espírito Santo e presidido pelos três legados da Sé Apostólica, propondo-se sempre por objetivo que exterminados os erros se conserve na Igreja a mesma pureza do Evangelho, que prometido antes na Divina Escritura pelos Profetas, promulgou primeiramente por suas próprias palavras, Jesus Cristo, Filho de Deus e Nosso Senhor, e depois mandou que seus apóstolos a pregassem a toda criatura, como fonte de toda verdade que conduz à nossa salvação, e também é uma regra de costumes, considerando que esta verdade e disciplina estão contidas nos livros escritos e nas traduções não escritas, que recebidas na voz do mesmo Cristo pelos apóstolos ou ainda ensinadas pelos apóstolos, inspirados pelo Espírito Santo, chegaram de mão em mão até nós. Roma argumenta que a Escritura precisa ser interpretada de acordo com a tradição, e reivindica que a Bíblia recebeu autoridade, em primeiro lugar, da própria Igreja. A ICAR afirmou o seu exclusivo direito de

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interpretar a Bíblia para os leigos. No Concílio de Trento, em sua 4ª Sessão, diz: Decreta também [o Concílio] com a finalidade de conter os ingênuos insolentes, que ninguém, confiando em sua própria sabedoria, se atreva a interpretar a Sagrada Escritura em coisas pertencentes à fé e aos costumes que visam a propagação da doutrina Cristã, violando a Sagrada Escritura para apoiar suas opiniões, contra o sentido que lhe foi dado pela Santa Amada Igreja Católica, à qual é de exclusividade determinar o verdadeiro sentido e interpretação das Sagradas Letras; nem tampouco contra o unânime consentimento dos santos Padres, ainda que em nenhum tempo se venham dar ao conhecimento estas interpretações. Portanto a tradição e a Bíblia, sendo interpretada pela ICAR, é que são considerados regra de fé e prática. Posteriormente, no Concílio Vaticano I (1869 - 1870) o Papa é oficialmente confirmado como infalível (ex cathedra); ou seja, quando o Papa se senta na suposta cadeira de Pedro, sua palavra tem a mesma autoridade que as Escrituras. Fé Reformada Já os reformadores afirmavam que a Bíblia é a única autoridade, pela qual, a Igreja deve ser regida. Na Confissão de Fé de Westminster, no 10º parágrafo do 1º capítulo, é dito: O Juiz Supremo, pelo qual todas as controvérsias religiosas têm de ser determinadas e por quem serão examinados todos os decretos de concílios, todas as opiniões dos antigos escritores, todas as doutrinas de homens e opiniões particulares, o Juiz Supremo em cuja sentença nós devemos firmar, não pode ser outro senão o Espírito Santo falando na Escritura. Os reformadores protestantes argumentaram que o Espírito Santo unge cada crente individual com a liberdade para interpretar a Escritura de forma responsável e correta. Não que cada um deva interpretar como bem quiser, mas que seguindo as leis textuais normais, e com a iluminação do Espírito Santo, a Bíblia é clara em seus conceitos fundamentais. Foi resgatado o conceito da Analogia da Fé, que pressupõe a unidade e a coerência da Sagrada Escritura, tendo a lei de ouro da hermenêutica: a Sagrada Escritura é interpretada pela própria Escritura. A Escritura não contradiz a si mesma, e tanto a igreja quanto os indivíduos devem buscar o Espírito Santo e autor da Escritura para interpretar o texto que ele mesmo escreveu.

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Além disso, o cânon está completo, portanto não aceitamos o que é dito ex cathedra ou qualquer profecia como uma nova revelação de Deus, pois Este deu Sua máxima revelação em Cristo, “Havendo Deus antigamente falado muitas vezes, e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, a nós falou-nos nestes últimos dias pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de tudo, por quem fez também o mundo.” (Hb 1:1-2); “Amados, procurando eu escrever-vos com toda a diligência acerca da salvação comum, tive por necessidade escrever-vos, e exortar-vos a batalhar pela fé que uma vez [por todas] foi dada aos santos.” (Jd 3). John Owen encerra a questão sobre novas revelações em uma única frase: “Se as revelações privadas concordam com as escrituras, elas são desnecessárias, e se discordam, elas são falsas.”. A Declaração de Cambridge (1996) define esta Sola do seguinte modo: Reafirmamos a Escritura inerrante como fonte única de revelação divina escrita, única para constranger a consciência. A Bíblia sozinha ensina tudo o que é necessário para nossa salvação do pecado, e é o padrão pelo qual todo comportamento cristão deve ser avaliado. Negamos que qualquer credo, concílio ou indivíduo possa constranger a consciência de um crente, que o Espírito Santo fale independentemente de, ou contrariando, o que está exposto na Bíblia, ou que a experiência pessoal possa ser veículo de revelação. Um dos textos-base dessa Sola é 2 Timóteo 3:16,17: “Toda Escritura é divinamente inspirada e proveitosa para ensinar, para repreender, para corrigir, para instruir em justiça; para que o homem de Deus seja perfeito, e perfeitamente preparado para toda boa obra.”. Soli Deo Gloria Por fim, todos esses pontos culminavam para o tema abrangente da Reforma: a glória é devida a quem? Visão Romana A iconografia (uso de imagens) desempenha um forte papel no culto histórico católico romano. O papado desencorajou a adoração a estátuas, mas encorajou a veneração e o culto aos ícones, sendo feita uma distinção entre dulia (honrar) e latria (adorar). A Virgem Maria também era reverenciada e cultuada, mas não adorada, ela era merecedora de hiperdulia. Fé Reformada O pecado fundamental da humanidade é o culto a ídolos. Por natureza, somos fábricas de ídolos, como o disse Calvino. O Catecismo Nova Cidade, na pergunta 17, define idolatria da seguinte forma: “Idolatria é confiar nas

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coisas criadas, e não no Criador, para nossa esperança e felicidade, relevância e segurança.”. Os seres humanos inventaram inúmeras maneiras de se recusar a atribuir a Deus a glória devida ao seu nome. O que Roma faz ao distinguir dulia de latria é claramente uma falácia, não tendo distinção na prática. É como fazer distinção entre comer e alimentar-se, sendo sinônimos, não possuem diferenças no ato em si. Embora isso seja claro, é importante ressaltarmos com mais um exemplo. Temos milhões de romanistas devotos de Maria, imagine que apenas duas pessoas, em locais diferentes, rezem para ela simultaneamente; para ela ouvir ambos é preciso que ela tenha alguns atributos divinos como: onipresença e onipresença para conhecer os pedidos e onipotência para atendê-los. Na prática, portanto, o culto aos mortos transforma-se em politeísmo. Soli Deo Gloria era o tema abrangente da reforma, pois significa “a glória é dada somente a Deus”. A primeira pergunta do Breve Catecismo de Westminster é: “Qual é o fim principal do homem?”; a resposta para tal pergunta é: “O fim principal do homem é glorificar a Deus e gozá-lo para sempre”. A palavra “glória” é a tradução do termo grego doxa, e do termo hebraico kabod, ambos com o significado de “peso”. A glória de Deus remete à sua importância, dignidade e significância. Deus não é uma criatura, mas o Criador. Deus deve ser tratado com peso e importância absolutos. Deus declara na Escritura que ele não compartilhará a sua glória com homem algum. O homem não partilha da glória de Deus, mas a reflete ao resto da criação. Portanto, o homem tem dignidade porque Deus atribui dignidade aos portadores da sua imagem; não se pode atribuir dignidade ao homem sem reconhecer a glória de Deus. Só o Deus de eterna glória possui inerente e intrínseca glória. Toda a glória pela salvação do homem pertence somente a Deus. Deus inicia e completa a salvação, do princípio ao fim (Jn 2:9). Portanto, o louvor deve ser direcionado à glória de Deus somente. A Declaração de Cambridge (1996) define esta Sola do seguinte modo: Reafirmamos que, como a salvação é de Deus e realizada por Deus, ela é para a glória de Deus e devemos glorifica-lo sempre. Devemos viver nossa vida inteira perante a face de Deus, sob a autoridade de Deus, e para sua glória somente. Negamos que possamos apropriadamente glorificar a Deus se nosso culto for confundido com entretenimento, se negligenciarmos ou a Lei ou o Evangelho em nossa pregação, ou se permitirmos que o afeiçoamento próprio, a autoestima e a autorrealização se tornem opções alternativas ao evangelho.

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Romanos 11:36 e 1 Coríntios 10:31 são alguns dos textos-base dessa Sola: “Porque dele, e por ele, e para ele, são todas as coisas; glória, pois, a ele eternamente. Amém.”; “Portanto, quer comais quer bebais, ou façais outra qualquer coisa, fazei tudo para glória de Deus.”. As 5 Solas descrevem, praticamente, a vida do cristão: Somos salvos pela graça, mediante a fé em Jesus Cristo; fé essa dada pelo Espírito Santo, por meio da pregação da Sua Palavra, que constrange nosso viver a render glória somente a Deus!

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Unidade 4 – Protestantismo no Brasil Durante o período colonial, compreendido entre os séculos XVI e XVIII, os colonizadores portugueses estabeleceram, em solo brasileiro, uma espécie de monopólio religioso, procurando impedir a entrada de estrangeiros que não professassem a fé católica. Nesse período, o Tribunal do Santo Ofício, por meio das conhecidas “visitações”, agia com rigor para extirpar qualquer prática religiosa que fosse caracterizada como “heresia”. O conhecido escritor Gilberto Freyre registra que, em tal época, “todo navio que entrava num porto brasileiro recebia a bordo um frade capaz de examinar a consciência, a fé e a religião de um recém-chegado. O que barrava um imigrante naqueles dias era a ortodoxia (...) a possibilidade de ser herético”.10 Não obstante as restrições impostas, duas tentativas de inserção foram feitas por protestantes no Brasil colonial. Ambas acabaram sendo fortemente rechaçadas pela religião dominante, o romanismo, sob a acusação de se constituírem práticas heréticas - dado o calor dos conflitos desencadeados naquele período pelo processo de reformas na igreja, na Europa, que contrapunha protestantes e católicos - mas também por significar ameaça a outros interesses, políticos e econômicos, que envolviam disputas e controle por conquistas de mercados pelos países europeus. A primeira tentativa de inserção no país, por protestantes, data de 1555, quando se deu a chegada da expedição liderada por Nicolau Villegaignon – recém convertido ao calvinismo francês - que objetivava fundar a França Antártica e construir uma espécie de refúgio onde calvinistas franceses, conhecidos como huguenotes, pudessem praticar livremente a fé reformada, uma vez que sofriam duras perseguições religiosas em seu país de origem. Como desdobramento ainda desse projeto, em 10 de março de 1557, chegaram em solo brasileiro pastores enviados por João Calvino, da cidade de Genebra, Suíça, com o propósito de difundir o culto protestante.11 Em decorrência de conflitos com líderes políticos e religiosos portugueses, a expedição teve seu término com a expulsão, em 1860, de todos os franceses e a desativação da colônia que havia sido organizada por Villegaignon. Nesse período, aliás, ocorreram, na cidade do Rio de Janeiro, três martírios de protestantes, acusados de heresia, a mando do romanismo liderado pelo padre jesuíta José de Anchieta, encarregado responsável pelo trabalho de catequese romana no país naquele período. Antes de morrer, entretanto, os mártires foram

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FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala. Rio de Janeiro: Maria Schimidt, 1933, p. 237. Fazia parte desse grupo um jovem estudante de teologia, chamado Jean de Léry, que vinte anos mais tarde publicaria uma obra que se tornou um importante documento sobre o Brasil, em tal período, denominada Viagem à Terra do Brasil. 11

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obrigados a professar por escrito sua fé, no prazo de doze horas, respondendo uma série de perguntas que lhes foram entregues. Eles assim o fizeram, e escreveram a primeira confissão de fé na América, sabendo que com ela estavam assinando a própria sentença de morte. Essa confissão ficou conhecida como Confissão de Fé de Guanabara. Um segundo esforço de inserção no Brasil se deu no século XVII, entre 1630 e 1654, dessa vez com holandeses, através do empreendimento denominado “Companhia das Índias Ocidentais”, que se estabeleceu inicialmente em Pernambuco e, depois, em outras áreas do Nordeste brasileiro. O objetivo principal era o comércio de açúcar. Maurício de Nassau, líder do projeto, também se preocupou em trazer ao Brasil pastores da Igreja Reformada Holandesa, que chegaram a desenvolver um trabalho religioso não apenas com a comunidade holandesa, mas também com outros grupos existentes no país. Com esse propósito, foi elaborado até mesmo um catecismo nas línguas holandesa, portuguesa e tupi, sendo organizadas, inclusive, algumas igrejas que praticaram o culto reformado. Outros grupos perseguidos na Europa, na época, também vieram se estabelecer no Brasil holandês, como foi o caso dos judeus, que chegaram a construir uma sinagoga em Recife, no século XVII. Em 1654, conflitos políticos e econômicos provocaram o fim desse empreendimento, desaparecendo também com isso os vestígios institucionais do cristianismo protestante holandês em solo brasileiro. Deixando o Brasil, foram os holandeses, seguidos pelos judeus – e seu capital financeiro – se estabelecer nos Estados Unidos, onde construíram e desenvolveram a cidade de Nova York. No início do século XIX, em 7 de março de 1808, sob a alegação de refúgio frente à ameaça de invasão napoleônica em seu território europeu, a Família Real Portuguesa desembarcou na cidade do Rio de Janeiro. Com esse episódio, o Brasil deixaria de ser apenas uma colônia portuguesa, adquirindo um novo estatuto político, o de Reino Unido, fato que iria modificar substancialmente tanto sua relação com outras nações como seus arranjos sociais internos. Era o início de um novo capítulo na história da religião no país. Já em 25 de novembro do mesmo ano, D. João VI emitiu um decreto garantindo a todos os imigrantes considerados aceitáveis, “independente de nacionalidade e religião”, condições atrativas de trabalho em solo brasileiro. Um pouco mais tarde, em 19 de fevereiro de 1810, registra-se a celebração do Tratado de Aliança e Amizade e Comércio e Navegação com a Inglaterra, abrindo, com isso, os portos “às nações amigas”, permitindo que protestantes anglo-saxões começassem a chegar e se estabelecer no Brasil com relativa liberdade para suas práticas religiosas. Pela primeira vez o controle hegemônico institucional da Igreja Católica seria modificado, permitindo que o campo religioso brasileiro ganhasse um novo estatuto em relação à fé protestante.

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Assim, permitiu-se que protestantes que viessem ao país a trabalho, especialmente no comércio, pudessem aqui praticar a sua fé dentro de alguns limites que o próprio acordo estabelecido prescrevia, tais como: não realização de cultos na língua portuguesa, não construção de templo com semelhança aos templos romanos, não proselitismo dos cristãos romanos etc. Mesmo com tais restrições, houve algum contato de brasileiros com a fé reformada, pois vieram capelães para auxiliar espiritualmente os marinheiros, os quais, além de realizarem cultos no interior dos navios, também se encarregavam de distribuir algumas literaturas evangélicas. Ainda que fosse esta uma pequena mudança, na verdade já representava uma grande diferença em relação a períodos precedentes. Uma política de incentivo à imigração permitiu que mais de dois mil imigrantes provenientes do cantão de Friburgo se estabelecessem, em 1819, nas proximidades da cidade do Rio de Janeiro, onde fundaram a colônia de Nova Friburgo. Grande parte dos imigrantes, principalmente os de origem germânica, professava a fé reformada, fato esse que provocou novos debates acerca da questão religiosa no Brasil, especialmente quanto à legislação envolvendo casamento, registro de crianças e sepultamentos em cemitérios públicos. Com a Independência do país, as discussões religiosas ganharam maior evidência na elaboração da primeira Constituição, em 1824. Muitos dos parlamentares, de ideias liberais, defendiam maior abertura religiosa. E, mesmo com forte oposição no Parlamento,12 e continuando a religião romana a ser a religião do Estado e a única a ser mantida por ele, a Constituição reconheceu o Brasil como nação cristã em todas as suas confissões, garantindo liberdade religiosa, ainda que fossem mantidas algumas restrições: A Religião Católica Apostólica Romana continuará a ser a Religião do Império. Todas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou particular em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de templo.13 Também em 1824, chegaram ao país grupos de imigrantes, de origem alemã, que se estabeleceram principalmente na região sul do Brasil. Mantiveram a sua religião de origem, o luteranismo, mas, por serem um grupo étnico distinto, sofreram um processo de marginalização cultural, o que limitou sua influência sobre o conjunto da sociedade. Por muito tempo não desenvolveram uma atividade 12

Vale observar que dos 90 constituintes, 19 eram padres. Artigo 5º da Constituição do Brasil, promulgada em 24 de março de 1824. Apud FERREIRA, Júlio Andrade. Religião no Brasil. Campinas: LPC, 1992, p. 69. 13

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proselitista, pelo contrário, solicitaram à sua igreja de origem que enviasse pastores para dirigir as novas comunidades. (...) A igreja luterana começou a enviar pastores ao Brasil para atender os imigrantes luteranos.14 Os pastores se encarregavam de atender religiosamente os conterrâneos, praticamente sem nenhuma pretensão de converter brasileiros à sua fé, até porque havia grande preocupação em conservar a sua cultura e tradição, daí o fato dos seus cultos e celebrações religiosas serem realizados na língua alemã, o que dificultou ainda mais a aproximação do contexto cultural brasileiro. Vale destacar que, a distribuição de Bíblias, pela Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira, organizada em 1802, tornou-se um procedimento estratégico nos locais onde o protestantismo encontrava barreiras legais. Por isso essa estratégia também foi adotada no Brasil, através do trabalho de colportores.15 A primeira versão da Bíblia na língua portuguesa foi feita por João Ferreira de Almeida, no século XVIII16, e isso contribuiu diretamente para os primeiros empreendimentos evangelizadores do protestantismo em solo brasileiro. Com esse propósito, em 1837 chegou ao Brasil o missionário americano, metodista, Daniel Kidder, que viajou extensamente pelo país fazendo distribuição de Bíblias. Como fruto desse trabalho chegou a ser organizada uma Igreja Metodista, no Rio de Janeiro, com aproximadamente 40 membros. Trabalho que foi desativado em 1841, devido à falta de envio de recursos financeiros pela missão norteamericana, patrocinadora do sustento dos missionários, e também por dificuldades de saúde enfrentada por esses, que se viram obrigado a deixar o país. Finalmente, a partir da segunda metade do século XIX, iniciou-se o trabalho mais propriamente missionário, feito principalmente por norteamericanos, período em que também começam a ser organizadas as primeiras igrejas com a conversão de brasileiros à fé reformada.

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SIEPIERSKI, Carlos Tadeu. O sagrado em um mundo em transformação. São Paulo: ABHR, 2003, p. 33, 34. “Colportores” era a identificação que se dava aos missionários enviados pelas sociedades Bíblicas europeias e norte-americanas, com finalidade de propagar a fé protestante na América Latina, tentativa esta que já havia sido feita, esporadicamente, e sem maiores êxitos, por piratas e corsários protestantes, durante o período colonial. 16 João Ferreira de Almeida nasceu em 1628, na cidade portuguesa de Torre de Tavares. Educado num lar católico, converteu-se ao protestantismo aos quatorze anos de idade. Ligou-se à Igreja Reformada Holandesa e, mais tarde, partiu para o sudeste asiático como missionário. Em Málaca (atual Malásia), iniciou a tradução da Bíblia para o idioma português com base em versões latinas, italianas e francesas derivadas dos originais em grego e hebraico. Esta tarefa consumiu-lhe a vida, já que ao morrer, em 1691, ele ainda estava no livro de Ezequiel, no Antigo Testamento – embora o Novo Testamento já estivesse traduzido por ele desde 1677. A tradução completa da Bíblia foi concluída três anos depois, pelo pastor holandês Jacobus den Arrer. Os textos de Almeida foram submetidos a uma série de revisões e correções por parte da instituição a que estava subordinado, antes de publicá-los – o que ocorreu somente em 1748, mais de meio século após sua morte. 15

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Inicialmente, em 1855, chega ao país o casal missionário Robert Kalley e Sarah Kalley, escoceses, membro da Igreja Congregacional. Antes de chegarem ao Rio de Janeiro já haviam desenvolvido um trabalho missionário na Ilha da Madeira – território português -, de onde, aliás, saíram expulsos. Ela, musicista, tornou-se autora de conhecidos hinos do cancioneiro evangélico brasileiro. Ele, médico, soube valer-se de sua profissão para ganhar maior espaço de atuação no Brasil, chegando, inclusive, a angariar amizades importantes que beneficiariam o seu trabalho, como por exemplo, ter se tornado amigo pessoal e médico de D. Pedro II, então imperador. Foi assim que fundou a Igreja Evangélica Congregacional, na cidade do Rio de Janeiro, em meados da década de 1850. A partir de 1859, se desenvolveu o presbiterianismo no Brasil, com a chegada ao país do missionário Ashbel Green Simonton. Nascido na Pensylvania, em 1833, educado em lar protestante, Simonton decidiu dedicar-se ao trabalho pastoral quando estava na conclusão do seu curso de Direito. Daí em diante, seguiu para a Universidade de Princeton para estudar teologia e preparar-se para o exercício de sua vocação religiosa. Ao concluir o seu curso de quatro anos, decidiu dedicar-se ao trabalho missionário. Em novembro de 1858, apresentou-se à Junta de Missões, indicando o Brasil como o campo missionário de sua preferência. O tempo de atuação de Simonton no Brasil foi breve, porém, muito frutífero. Em 8 anos, fundou igrejas no Rio de Janeiro e em São Paulo, organizou concílios, fundou o primeiro jornal evangélico, chamado Imprensa Evangélica, criou escolas, fundou o primeiro seminário teológico para a formação dos futuros líderes no país. Sua morte, prematura, aos 34 anos, foi ocasionada pela febre amarela. Seu corpo está sepultado no cemitério protestante, em São Paulo. Um pouco antes, também já havia perdido a esposa, que faleceu no nascimento da primeira filha do casal. Os batistas tiveram seu início histórico no Brasil com a chegada de famílias provenientes do Sul dos Estados Unidos, no período pós-guerra civil ocorrida naquele país. Estabeleceram-se na região de Santa Bárbara do Oeste, interior de São Paulo, a partir de 1881. Em seguida vieram pastores para dar assistência religiosa a estas famílias: William Bagby e Zacarias Taylor. Estes missionários fundaram, logo depois, a primeira Igreja Batista, em 1882, na cidade de Salvador – BA. Atingiram, primeiramente, os Estados do Nordeste e depois o Rio de Janeiro. Permaneceram especialmente nas áreas urbanas onde a presença física da ICAR exercia maior controle, dificultando assim o crescimento de outra expressão de fé. Só com o advento da liberdade religiosa, assegurada com a Proclamação da República, em 1889, é que os batistas começaram a se desenvolver. Inicialmente os batistas também se dedicaram à educação. Sendo acentuadamente denominacionais mantiveram certo distanciamento em relação às demais igrejas estabelecidas no país. A partir do início do século

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XX, os batistas apresentaram crescimento surpreendente, passando à frente das demais igrejas de origem missionária. Após tentativa frustrada em 1836, a Igreja Metodista estabeleceu-se definitivamente em 1886, com o trabalho dos missionários Junius E. Newman, John J. Ranso, J. W. Koger e James L. Kennedy. O crescimento inicial dos metodistas foi lento, porque se estabeleceram em cidades, sofrendo, por isso, a presença física da ICAR. O crescimento metodista deuse quando a influência de seus colégios e o crescimento das cidades abriu as portas à burguesia em ascensão. Deram clara prioridade à educação, abrindo colégios por toda parte. Vale destacar, em relação ao protestantismo desenvolvido no Brasil, representado especialmente pelas igrejas luterana, presbiteriana, batista e metodista, os procedimentos que envolveram a formação e a atuação da liderança. As igrejas históricas entendiam a necessidade da alfabetização para que, assim, pudesse se ler a Bíblia; isso fez com que diversas escolas fossem abertas. Outro fator era a exigência para a formação pastoral, entendendo a exigência e responsabilidade que este ofício exige, pastores só podiam exercer este ofício após cursarem teologia por um período de quatro a cinco anos, com a complementação de mais um ano de licenciatura prática, sob a tutela de um pastor mais experiente. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o primeiro seminário teológico protestante criado no Brasil, nas dependências de uma Igreja Presbiteriana, em 14 de maio de 1867. Os primeiros professores do novel seminário eram os pastores-missionários. A primeira turma foi constituída por três alunos brasileiros, que receberam toda a formação segundo a teologia e os dogmas da igreja-mãe norte-americana. Já em seguida, os seus dirigentes providenciaram a chegada ao Brasil de livros que comporiam a primeira biblioteca para estudos e pesquisas. Foi assim que, em 1868, sob encomenda do missionário Ashbel Green Simonton, fundador daquela escola, vieram não apenas obras teológicas, mas também de Física e Astronomia. Segundo o pesquisador Júlio Andrade Ferreira além de matérias mais específicas do campo teológico, como Grego e Homilética, os alunos também tinham aulas de Álgebra, Aritmética, Inglês, Latim e Gramática Portuguesa. Chamberlain ficou responsável pela coordenadoria de ensino e o curso completo por ele elaborado tinha a duração de seis anos. Pouco tempo depois, em 1888, ao se expandir para a região de São Paulo, a Igreja Presbiteriana do Brasil estabeleceu outro seminário teológico na cidade de Campinas. Aos poucos, as raízes protestantes foram se firmando no solo brasileiro, embora houvesse pouca aderência da classe mais pobre, que era romanista ou seguia os cultos afro-brasileiros, ambos combatidos pelo protestantismo.

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Unidade 5 – Confissões Protestantes Já nas primeiras décadas da Reforma, haviam quatro vertentes principais: luteranismo, calvinismo, anglicanismo e os anabatistas. As duas primeiras já foram explicadas em unidades anteriores, mas as outras duas ainda não; portanto, será explanado os dois últimos movimentos. Igreja Anglicana O curso da Reforma foi diferente na Inglaterra. Desde muito tempo atrás, havia uma forte corrente anticlerical, tendo a Inglaterra já visto o movimento Lollardo17, que inspirou os hussitas18 na Boémia. No entanto, ao redor de 1520 os lollardos já não eram uma força ativa, ou pelo menos um movimento de massas. Embora Henrique VIII tivesse defendido a Igreja Romana com o livro Assertio Septem Sacramentorum (Defesa dos Sete Sacramentos), que contrapunha as 95 Teses de Martinho Lutero, Henrique promoveu a Reforma Inglesa para satisfazer as suas necessidades políticas. Sendo este casado com Catarina de Aragão, que não lhe havia dado filho homem, Henrique solicitou ao Papa Clemente VII a anulação do casamento. Perante a recusa do papado, Henrique se autoproclamou, em 1531, protetor da Igreja inglesa. O Ato de Supremacia, votado no parlamento em novembro de 1534, colocou Henrique e os seus sucessores na liderança da igreja, nascendo assim o anglicanismo. Os súditos deveriam submeter-se ou então seriam excomungados, perseguidos e executados, tribunais religiosos foram instaurados e católicos foram obrigados a assistir cultos protestantes, muitos líderes, monges e frades foram mortos. Quando Henrique foi sucedido pelo seu filho Eduardo VI em 1547, os protestantes viram-se em ascensão no governo. Uma reforma mais radical foi imposta diferenciando o anglicanismo ainda mais do catolicismo romano. Seguiu-se uma breve reação romana durante o reinado de Maria I (1553–1558). De início moderada na sua política religiosa, Maria procurou a reconciliação com Roma, consagrada em 1554, quando o parlamento votou o regresso à obediência ao Papa. Um consenso começou a surgir durante o reinado de Isabel I. Em 1559, Isabel I retornou ao anglicanismo com o restabelecimento do Ato de Supremacia e do Livro de Orações de Eduardo VI. Através da Confissão dos Trinta e Nove Artigos (1563), Isabel alcançou um compromisso entre o protestantismo e o catolicismo romano: embora o dogma se aproximasse do calvinismo, só admitindo como sacramentos o Batismo e a Eucaristia, foi mantida a hierarquia episcopal e o favorecimento das cerimônias religiosas.

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Seguidores das ideias de John Wycliffe. Seguidores das ideais de John Huss.

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A Reforma na Inglaterra procurou preservar o máximo da Tradição Romana (episcopado, liturgia e sacramentos). A Igreja da Inglaterra sempre se viu como a ecclesia anglicanae, ou seja, A Igreja cristã na Inglaterra e não como uma derivação da Igreja de Roma ou do movimento reformista do século XVI. A Reforma Anglicana buscou ser a “via média” entre Roma e o protestantismo. Em 1561, apareceu uma confissão de fé com uma Exortação à Reforma da Igreja modificando seu sistema de liderança, pelo qual nenhuma igreja deveria exercer qualquer autoridade ou governo sobre outras, e ninguém deveria exercer autoridade na Igreja se isso não lhe fosse conferido por meio de eleição. Esse sistema, considerado “separatista” pela Igreja Anglicana, ficou conhecido como congregacionalismo19. Richard Fytz é considerado o primeiro pastor de uma igreja congregacional, entre os anos de 1567 e 1568, na cidade de Londres. Por volta de 1570, ele publicou um manifesto intitulado As Verdadeiras Marcas da Igreja de Cristo. Em 1580, Robert Browne, um clérigo anglicano que se tornou separatista, junto com o leigo Robert Harrison, organizou em Norwich uma congregação cujo sistema era congregacionalista, sendo um claro exemplo de igreja desse sistema. Na Escócia, John Knox (1505 - 1572), que tinha estudado com João Calvino em Genebra, levou o Parlamento da Escócia a abraçar a Reforma Protestante em 1560, sendo estabelecido o presbiterianismo. A primeira Igreja Presbiteriana, a Igreja da Escócia (ou Kirk), foi fundada como resultado disso. Anabatistas O nome anabatista significa “re-batizadores” (do grego, ana [novamente] + baptizo [batizar]); refere-se ao movimento conhecido como “ala radical” da Reforma. Esse nome vem do fato de eles serem credobatistas, ou seja, creem que o batismo só é válido, quando a pessoa creu conscientemente em Cristo; o que os levou a não aceitar o batismo infantil, rebatizando as pessoas na fase adulta, o que gerou conflitos tanto com romanistas quanto com protestantes. Embora o primeiro uso do termo “anabatista” fosse relacionado a Novacianos, em 225, o anabatismo moderno surgiu durante a Reforma Protestante do século XVI. Diante das reformas e retrocesso aos princípios bíblicos pelos reformadores, um grupo radical, liderado por Georg Blaurock, Conrad Grebel e Félix Manz20, achava que as medidas tomadas não eram suficientes, era necessário ir além, removendo todo resquício de romanismo (especialmente o batismo infantil). Portanto, em 21 de Janeiro de 1525, 19

O nome congregacionalismo é o regime de governo eclesiástico conhecido onde cada congregação local é autônoma e independente, tanto em questões doutrinárias quanto em questões administrativas. 20 Morto em 1527, sendo o primeiro mártir do movimento.

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próxima a Zurique, na Suíça, foi fundada a primeira igreja anabatista. Perseguidos na Suíça, o movimento espalhou pelo sul da Alemanha, Vale do Reno, Caríntia e Países-Baixos. De fato, é difícil sistematizar o pensamento do grupo daquela época, pois roma e os protestantes não buscavam fazer distinções, todos que rebatizavam eram chamados de anabatistas (o mesmo que aconteceu durante a história com os grupos não conformistas, taxados pejorativamente por Roma). Católicos e protestantes perseguiram os anabatistas, recorrendo à tortura e execução na tentativa de conter o crescimento do movimento. Os protestantes sob Ulrico Zuínglio foram os primeiros a perseguir os anabatistas. Com humor negro, o rei Fernando declarou afogamento (chamado de “terceiro batismo”) o melhor antídoto para anabatistas. O regime de Tudor, mesmo aqueles que eram protestantes (Eduardo VI de Inglaterra e Isabel I de Inglaterra) perseguiu os anabatistas por eles serem considerados demasiado radicais e, portanto, um perigo para a estabilidade religiosa. Os principais remanescentes anabaptistas são: os Huteritas, Mennonitas, Amishes, cujos os principais traços são comunidades rurais isolacionistas. Os anabatistas influenciaram ainda outras denominações religiosas, como os Quakers, Batistas, Dunkers etc. Conhecendo os Termos O termo “confissão de fé”, em seu uso mais comum, designa as declarações formais da fé cristã escritas pelos protestantes desde os primeiros dias da Reforma, assim como o termo “credo” é comumente relacionado às declarações de fé da Igreja Primitiva (Ex.: Credo Apostólico, Credo de Nicéia etc.). As principais distinções entre ambos têm a ver com o tamanho (as confissões são bem maiores) e sua época de composição (Reforma e Período Patrístico). Associados às confissões de fé ainda existem os “catecismos”, elaborados na forma de perguntas e respostas que, via de regra, têm o mesmo propósito das confissões. Ainda há o uso do termo técnico “símbolo de fé”, que abarca de forma geral qualquer declaração formal de fé (credo, confissão ou catecismo), distinguindo a comunidade que a professa daqueles que não a professam. O termo “Cânones” é aplicado às decisões oficiais de concílios que estabelecem a posição da Igreja ou de um de seus ramos, movimentos ou denominações, quanto a doutrinas específicas (Ex.: Cânones de Dort). A Reforma e as Confissões As publicações de Lutero, Zuínglio e Calvino, e outros reformadores, trouxeram à tona questões teológicas sérias e que careciam de definições mais simples e claras para que o povo pudesse compreender e acatar. As

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confissões escritas por eles e seus colaboradores tinham por objetivo atingir o povo comum, mais do que as lideranças intelectuais e políticas da época. Além disso, os reformadores precisavam mostrar coerentemente e convincentemente o que seria colocado no lugar das combatidas doutrinas católicas. Eles propunham: • A autoridade das Escrituras em contraste com a tradição romana aceita. • Sacerdócio dos crentes e o testemunho interno do Espírito em contraste com as declarações do infalível magisterium de Roma. • Uma nova visão do relacionamento entre Igreja/Estado em função da influência romana sobre os reinos existentes no século XVI. • Uma nova interpretação da história para impulsionar e apoiar a Reforma. • A restauração da pureza da Igreja neotestamentária quanto à fé e ética cristãs. Assim sendo, para cada ataque contra uma crença estabelecida ou prática tradicional, era exigido dos reformadores uma base lógica, uma declaração concisa das razões para a mudança. Por outro lado, não eram apenas os reformadores que se levantavam contra a ICAR no século XVI. Toda uma geração de pensadores, filósofos, governantes e artistas plásticos vinham fazendo o mesmo noutras áreas que não na teologia, tornando necessárias a composição de novas declarações de fé cristãs; não para meramente reorientar a vida cristã, mas também para reposicionar o próprio cristianismo dentro das forças da Europa moderna que nascia com a Renascença. As Confissões de Fé tinham, pelo menos, três funções para os protestantes: 1 - Eram declarações autorizadas da fé cristã que entesouravam as novas ideias dos reformadores, sem abandonar formas que também pudessem fornecer instrução regular para os fiéis mais humildes. 2 - Erguer um estandarte em redor do qual uma comunidade local podia cerrar fileiras, tornando claras as diferenças com os oponentes. 3 - Tornar possível uma reunificação da fé (ortodoxia) e da prática (ortopraxia), visando a unidade e, ao mesmo tempo, estabelecer uma norma para disciplinar os desregrados. Essa prática propicia um compromisso moral com o sistema de fé proposto na confissão. As Confissões dos Protestantes As confissões de fé surgiram cedo na Reforma Protestante. Zuínglio, por exemplo, já na primeira década da reforma de Zurique, supervisionou a composição de não menos que quatro documentos confessionais. • Os 67 Artigos, para levar o seu cantão suíço a romper com Roma (1523).

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• As 10 Teses de Berna, para consolidar a Reforma nessa cidade (1528). • A Confissão de Fé diante de Carlos V, para informar o imperador sobre as convicções protestantes (1530). • A Exposição da Fé diante de Francisco I, rei da França, para convencêlo a adotar atitudes mais igualitárias diante dos protestantes (1531). Lutero, ao mesmo tempo publicou o Catecismo Menor (1529) ao perceber a ignorância que havia na Saxônia com respeito aos rudimentos da Reforma e da própria Bíblia. Em 1530, Filipe Melâncton – sucessor de Lutero – escreveu a Confissão de Augsburgo, que se tornou o padrão da fé luterana. Além disso, quando os magistrados ou o povo comum aceitavam a Reforma, eram convocados a escrever uma declaração definitiva da fé.21 Foi assim em Basiléia, Genebra e Zurique, na França, Alemanha, Escandinávia, Escócia, Holanda, Boêmia, Polônia e Inglaterra. Os próprios cânones do Concílio de Trento (1545 - 1563) demonstram que o romanismo recapitulou a sua fé numa declaração breve e autorizada. Foi a diversidade política do protestantismo em sua formação que impediu a formulação de uma única confissão, contudo na segunda geração da Reforma já houve uma grande consolidação. Os luteranos atribuíram autoridade ao Livro da Concórdia (1580), que determinava seus símbolos de fé: Os Credos: dos Apóstolos; de Nicéia e de Atanásio. Os Artigos de Smalcald (1537). A Fórmula da Concórdia (1577). Os Catecismos Menor e Maior de Lutero (1527). A Confissão de Augsburgo (1530). Entre os reformados foram aceitos: A Segunda Confissão Helvética, escrita por Bullinger22 para uso pessoal (Zurique - 1566). O Catecismo de Heidelberg (Alemanha - 1563). Os 39 Artigos (Inglaterra – 1563). A Confissão e os Catecismos de Westminster (1640). As confissões de fé nunca deixaram de ser escritas, especialmente nos EUA, porém os documentos mais antigos atingiram uma posição de predominância, mantida até hoje. Dois eventos de extrema importância

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Isso foi o que aconteceu, por exemplo, na ilha de Villegaignon, na Baía da Guanabara em 1557, quando foi composta a Confissão de Fé da Guanabara, no Brasil. 22 Heinrich Bullinger (1504 – 1575) foi um reformador protestante suíço, o sucessor de Ulrico Zuínglio como chefe da igreja e pastor em Zurique.

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para as igrejas reformadas até o presente são dignos de serem referidos de forma especial. Sínodo de Dort A produção confessional reformada do século 16 atingiu o seu ponto culminante em 1563, com a publicação do Catecismo de Heidelberg. Todavia, alguns dos documentos doutrinários mais significativos da tradição calvinista somente seriam elaborados no século seguinte, a começar com os Cânones do Sínodo de Dort, na Holanda. A fé reformada teve grande aceitação nos Países Baixos a partir da década de 1550. Na mesma época em que os holandeses lutavam contra a Espanha por sua independência, surgiu a Igreja Reformada Holandesa (1571), que não tinha uma identidade teológica claramente definida. Foi nesse contexto que, alguns anos mais tarde, surgiu a controvérsia arminiana. A partir de 1588, Jacó Armínio (1560-1609), um pastor que havia estudado com Teodoro Beza em Genebra, começou a questionar a doutrina calvinista da predestinação. Mesmo assim, em 1602 ele se tornou professor de teologia na Universidade de Leyden, onde enfrentou a forte oposição de seu colega Francisco Gomaro. A controvérsia dividiu a nação e se prolongou até 1609, quando Armínio morreu vitimado pela tuberculose. No ano seguinte, seus simpatizantes publicaram a “Remonstrância” (derivado da palavra remonstrance que significa “protesto”), pedindo para que mudasse os símbolos oficiais da Igreja da Holanda (Confissão Jacó Armínio Belga e Catecismo de Heidelberg) para se amoldarem às suas objeções. Os Remonstrantes fizeram uma proposta apresentando os cinco pontos a seguir: 1 - A depravação é parcial – O homem não é tão mal assim. 2 - A predestinação é presciência – Deus viu tudo, por isto Ele predestinou. 3 - Expiação universal – Cristo morreu para todo o mundo. 4 - O homem pode resistir ao Espírito Santo. 5 - O homem pode perder a salvação.23 Com o reinício dos tumultos, o Parlamento convocou um sínodo para resolver a controvérsia. O Sínodo de Dort teve 180 sessões que se estenderam de 13 de novembro de 1618 a 29 de maio de 1619. Os delegados holandeses incluíam 58 pastores e presbíteros enviados pelos 23

Armínio era contra este 5º ponto, ele cria que o homem não perdia a sua salvação, seus seguidores que acrescentaram o último ponto.

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sínodos provinciais e cinco teólogos de diferentes academias. Também compareceram 28 teólogos de diversas cidades da Inglaterra, Escócia, Alemanha e Suíça (inclusive de Genebra). Os remonstrantes participaram do sínodo por algum tempo, mas depois foram afastados. Com base nos relatórios das delegações, uma comissão de nove membros redigiu os Cânones, que condenaram as ideias dos arminianos e afirmaram as convicções reformadas. Os Cânones de Dort abordam cinco tópicos doutrinários em 59 artigos: (1) A predestinação divina; (2) A morte de Cristo e a redenção do homem; (3-4) A corrupção do homem e sua conversão a Deus; (5) A perseverança dos santos. As principais ênfases do documento são as seguintes: Deus elege e reprova não com base na previsão de fé ou incredulidade, mas por sua vontade soberana; a morte de Cristo foi suficiente para todos, mas é eficaz somente para os eleitos; mediante a queda, a humanidade ficou totalmente corrompida; a graça de Deus atua eficazmente para converter os descrentes, embora não o faça por coerção; Deus preserva os crentes de modo que não podem decair totalmente da graça. Essas declarações foram resumidas em algumas expressões conhecidas como “os cinco pontos do calvinismo”: Depravação Total (ou Radical): Entende-se, que Deus criou Adão apto a escolher livremente obedecer ou não as leis de Deus (no caso, comer da árvore do conhecimento do bem e do mal). Com a desobediência, gerada pelo pecado de buscar autonomia, o homem sofreu uma drástica corrupção em seu ser (seu coração tornou-se idólatra), portanto toda a humanidade está inapta a escolher o bem e inclinada em todas as suas ação a praticar o mal, sendo a essência deste não glorificar a Deus em seus feitos (pois tem a Deus como seu arqui-inimigo). Portanto, a Bíblia diz que todos os filhos de Adão nascem mortos espiritualmente, pois rejeitam a luz e odeiam a Deus. Total não significa que o homem é tão mal quanto poderia ser, mas que toda a humanidade está depravada, todo o ser está contaminado pelo pecado, portanto todas as obras humanas são pecaminosas diante de Deus, pois não O glorifica, por isso, merecem o derramar da totalidade da ira de Deus. Eleição Incondicional: A queda não foi um contratempo nos planos de Deus, portanto, antes de Deus criar algo, Ele estabeleceu quais pessoas seriam salvas mediante sua graça por meio da fé no sacrifício de Cristo. Essa escolha foi conforme a vontade soberana divina e não influenciada por algo que alguém pudesse fazer, pois não há nada que possuímos que não provêm de Deus. Ao escolher na eternidade aqueles que seriam salvos, os quais constituem a Igreja, o corpo místico de Cristo, Deus também decretou os meios que a salvação alcançaria seus eleitos no decorrer da história. Expiação Limitada (ou Eficaz): A Bíblia afirma que o sacrifício de Cristo não foi simplesmente para adquirir almas incorpóreas, mas que Cristo obteve poder e autoridade sobre todo o universo para trazer a redenção de

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todas as coisas. Porém, especificamente, apenas aqueles que foram eleitos por Deus se apropriarão da justiça de Cristo, perdão dos pecados e suas bênçãos salvíficas. Graça Irresistível: Tendo em mente que todos os homens são depravados e inimigos de Deus por natureza, ninguém virá a Deus de forma espontânea, é necessário que a graça de Deus aja nos corações (raiz do eu), o qual a Bíblia chama de “novo nascimento”. Esse chamado eficaz é restrito aos eleitos, que os compele a buscar a Deus em arrependimento e fé (os quais são dons de Deus). Perseverança dos Santos: Assim como Deus é aquele que começa a boa obra da redenção humana, é Ele quem garante sua conclusão no último dia. Sendo a fé dom de Deus, a perseverança dos salvos nesta fé não depende deles, mas de o próprio Deus sustentar e fortificar sua Igreja de tal forma que nenhum daqueles que Deus escolheu venha a se perder no meio do caminho. Portanto, aqueles que Deus elegeu, também os chamou eficazmente, justificando-os com as obras perfeitas de Cristo, de forma que estão unidos a Cristo e são sustentados por Ele até a glorificação, onde todo o resquício de pecado será exterminado e então não haverá mais a possibilidade de os santos pecarem. Do começo ao fim, Deus é soberano na salvação do homem. Tais pontos ficaram conhecidos pelo acróstico “TULIP” (do inglês, “tulipa”) formado pelas iniciais de cada ponto em inglês: Total Depravity, Unconditional Election, Limited Atonement, Irresistible Grace e Perseverance of the Saints. Em João 6:44 temos esses cinco pontos expostos, “Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou o não trouxer; e eu o ressuscitarei no último dia.” Ninguém pode vir a mim, - Depravação Total se o Pai que - Eleição Incondicional me enviou o não trouxer; - Graça Irresistível e eu o ressuscitarei - Expiação Limitada no último dia. - Perseverança dos Santos O Sínodo de Dort marcou um importante ponto de transição na história da fé reformada na Holanda. Estabeleceu definitivamente o calvinismo como a teologia da igreja holandesa e também tornou oficiais a Confissão Belga e o Catecismo de Heidelberg. Os cânones, que foram assinados por todos os delegados, expressaram o consenso de uma significativa diversidade teológica e representaram o triunfo de um calvinismo moderado, sendo considerados uma das melhores expressões da ortodoxia protestante. A tabela abaixo mostra as diferenças entre a posição calvinista e a posição arminiana.

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Assembleia de Westminster O calvinismo inglês atingiu o seu ponto culminante com a realização da Assembleia de Westminster, de 1643 a 1649. As circunstâncias desse grande evento são deveras interessantes. O rei Carlos I reinou simultaneamente sobre a Inglaterra e a Escócia (1625 - 1649). Embora tivesse sido criado como presbiteriano, ele tornou-se um ferrenho defensor do sistema episcopal, como todos os reis da época, e tentou impor esse sistema à Igreja da Escócia. Os escoceses se rebelaram, assinaram um Pacto Nacional e entraram em guerra contra o rei. Necessitando de recursos para enfrentá-los, Carlos convocou eleições parlamentares na Inglaterra, que resultaram, para sua grande frustração, em um parlamento majoritariamente puritano, ou seja, calvinista. Diante das tentativas de Carlos no sentido de dissolvê-lo, o parlamento também entrou em guerra contra o rei. Foi nesse contexto de guerra civil que o parlamento inglês convocou a Assembleia de Westminster para reformar a Igreja da Inglaterra (Anglicana). A Assembleia era composta de 121 dos ministros mais cultos e piedosos do país, além de 30 membros do parlamento. Os trabalhos tiveram início no dia 1º de julho de 1643, na majestosa Abadia de Westminster, em Londres. Pouco depois, o parlamento, enfrentando dificuldades na guerra contra o rei, precisou recorrer ao auxílio dos escoceses. Por exigência destes, os dois grupos assinaram um Pacto Solene, mediante o qual a Igreja da Escócia teve o direito de enviar alguns representantes à Assembleia, os quais influenciaram decisivamente o rumo dos trabalhos. Ao longo de vários anos, esses pastores calvinistas, muitos dos quais presbiterianos, elaboraram de modo paciente e criterioso vários documentos importantes nas áreas doutrinária, litúrgica e administrativa. Esses textos, que ficaram conhecidos como os “Padrões Presbiterianos”, são os seguintes: o Diretório do Culto Público a Deus, a Forma de Governo Eclesiástico e Ordenação, a Confissão de Fé, os Catecismos Maior e Breve e o Saltério. Uma vez concluído pela assembleia, cada documento era enviado ao parlamento para discussão e ratificação. Com a aprovação oficial desses documentos, a Igreja da Inglaterra tornou-se presbiteriana. Sob a liderança de Oliver Cromwell, as tropas parlamentares derrotaram o rei, que foi executado. Todavia, nos anos seguintes manifestou-se o ponto fraco do calvinismo inglês. Cromwell e o exército, assim como muitos ministros, eram congregacionais. Em 1660, a monarquia foi restaurada sob Carlos II e a Igreja da Inglaterra voltou a ser episcopal. Cerca de dois mil pastores presbiterianos foram expulsos de suas igrejas, seguindo-se um longo período de intolerância e cerceamento. Rejeitados na sua terra de origem, os Padrões Presbiterianos foram calorosamente abraçados pelos escoceses. Através da imigração e do esforço missionário, esses padrões, especialmente os de natureza

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doutrinária (a Confissão de Fé e os Catecismos), foram levados para a Irlanda do Norte, Estados Unidos, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, África do Sul, Brasil e outros países. Por mais de 350 anos, eles têm sido os principais documentos confessionais aceitos pelos presbiterianos ao redor do mundo. O Lugar das Confissões nas Igrejas As confissões de fé refletem a etapa de desenvolvimento do grupo para o qual foram escritas. O Catecismo Menor de Lutero (1529) tinha em vista a simplicidade da fé, pois foi publicado para uso familiar. A Confissão de Augsburgo (1530) foi preparada para ser apresentada ao imperador Carlos V. A Fórmula da Concórdia (1577), foi escrita para apaziguar uma longa série de controvérsias dentro do luteranismo. Refletem as questões teológicas envolvidas na sua formação. O Catecismo de Heidelberg foi escrito com propósitos pastorais e didáticos. Os Cânones de Dort são uma resposta a um conjunto de questões teológicas limitadas. Refletem o apoio de uma comunidade inteira ou o clamor de uma minoria pressionada. A Confissão de Westminster foi composta com o apoio do Parlamento inglês, com o tempo necessário para a sua composição, tornando-se uma declaração abrangente e equilibrada. Os Artigos de Schleitheim (1527) foram escritos por Michael Sattler24 debaixo de muita pressão, sendo executado três meses depois da apresentação dos mesmos. Refletem as atitudes com respeito da autoridade ou da Igreja. Cada denominação tem apresentado posturas internas variadas diante das confissões de fé. No passado, as denominações de maior concentração (episcopais ou presbiterianos) tendiam a dar mais valor às confissões do que as de menor concentração (congregacionais). Agora, porém, alguns grupos historicamente confessionais estão menos apegados a declarações de fé, em comparação com igrejas e organizações independentes. Refletem as atitudes com respeito da autoridade ou da Igreja. Havia na época da Reforma dos tipos de Confissão de Fé: as que enfatizavam o drama da redenção, destacando a pessoa de Deus e Sua bondade misericordiosa para com os pecadores e as que enfatizavam a verdade da fé, que sempre eram iniciadas com a definição da revelação nas Escrituras, para somente então passar às atividades de Deus. 24

Michael Sattler (1495 – 1527), foi teólogo e líder anabatista.

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No primeiro grupo figuram: Confissão de Augsburgo, Catecismo Menor de Lutero, 67 Artigos de Zuínglio, 10 Teses de Berna de Zuínglio, Catecismo de Heidelberg, Confissão Escocesa (1560), 39 Artigos da Igreja Anglicana. No segundo grupo encontramos: 1ª Confissão Helvética (1536), 2ª Confissão Helvética, Confissão Francesa de Calvino (1559), Confissão Belga (1561), Artigos Irlandeses de James Ussher (1615) e a Confissão de Fé de Westminster. Muitos desses documentos eram sustentados juntos nas igrejas. A igreja holandesa, por exemplo, fazia uso tanto do Catecismo de Heidelberg, quanto da Confissão Belga. Mas, por terem sido estruturadas segundo linhas diferentes, estes documentos testemunharam o modo pelo qual a visão teológica formula a ênfase confessional. O Valor das Confissões de Fé As confissões de fé têm servido aos protestantes como pontes entre a revelação bíblica e culturas específicas. Elas responderam a necessidades específicas e concretas de sua época. Algumas perderam influência rapidamente, outras, no entanto, devido à sua sensatez e equilíbrio vem permanecendo como fonte de inspiração e alimento para a fé. A autoridade das confissões de fé é relativa e limitada, submetendo-se à autoridade das Escrituras, visto que somente a Bíblia pode figurar como única regra de fé e prática para os cristãos. Cremos, contudo, que por essa razão não se deve desprezar seu papel histórico e doutrinário para as igrejas. Muitos que têm desprezado as confissões têm enveredado por caminhos que envergonham o Evangelho de Cristo e vão se desarticulando como grupos cristãos confiáveis. Os grupos que mantêm fidelidade às confissões de fé apresentam comumente duas razões para isso: 1 - Os documentos confessionais estimulam a clareza da crença e a franqueza no debate teológico, enquanto que os padrões não escritos são suscetíveis de manipulação dos detentores do poder denominacional. 2 - Existem muitos textos nas Escrituras que se utilizam de resumos formais da fé como auxílios à fé e à prática. O que pregamos – 1 Co 1:21. A verdade – 2 Ts 2:13. O Evangelho – 1 Co 15:1-8. A Palavra – Gl 6:6. A doutrina de Cristo – 2 Jo 9, 10. A palavra certa – Tt 1:9. O padrão de doutrina – Rm 6:17. As tradições – 1 Co 11:2 e 2 Ts 3:6. Aquilo que confessamos – 1 Tm 3:16. Os confessionalistas protestantes reconhecem a obra do Espírito Santo no desdobramento da doutrina no decurso da história e na composição de

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confissões, mas consideram que tal obra é sempre uma iluminação ou uma extensão dos padrões absolutos da Escritura, em contraste com o Catolicismo que supervaloriza suas promulgações doutrinárias, dando-lhes peso igual ao das Escrituras através do Magisterium. Resumindo, o valor permanente das confissões de fé, está em sua funcionalidade como: Introduções valiosas à fé cristã; resumos úteis das Escrituras; diretrizes fidedignas para a vida cristã; e defender a Igreja das heresias. Documentos Confessionais Reformados: 1537 - Catecismo e Confissão de Fé de Genebra. 1557 - Confissão de Fé da Guanabara. 1559 - Confissão Galicana. 1560 - Confissão Escocesa. 1561 - Confissão Belga. 1563 - Catecismo de Heidelberg. 1566 - 2ª Confissão Helvética. 1571 - 39 Artigos da Igreja Anglicana (1562 – 42 Artigos). 1619 - Cânones de Dort. 1647 - Confissão de Fé + Catecismos de Westminster (Maior e Breve).

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Unidade 6 – Liberalismo teológico e o Neocalvinismo holandês O Liberalismo Teológico foi um movimento forjado no meio renascentista/humanista, influenciado por três conceitos: racionalismo, deísmo e iluminismo. Cada um destes três movimentos moldaram a identidade liberal, até culminar no modernismo, onde atingiu um pensamento mais completo e maduro. José Roberto Costanza, em seu artigo sobre as raízes históricas do liberalismo, afirma sobre o racionalismo o seguinte [...] a teologia racionalista tendeu a modificar, e até mesmo destruir, as ortodoxias confessionais protestantes. Os teólogos racionalistas defendiam a tese de que a bondade em Deus não poderia diferir em essência da bondade no homem e, por conseguinte, Deus não poderia fazer o que para o homem seria imoral. Embora, em sua grande maioria, pelo menos até o final do século 18 os racionalistas aceitassem os milagres do Novo Testamento, eles suspeitavam de tudo que não se conformava com sua visão mecanicista do universo. O racionalismo teve grande influência no escolasticismo protestante, cuja teologia começou a tender para um número exagerado de definições precisas, muitas vezes acompanhadas de frieza espiritual. Para os escolásticos, ser um bom religioso era aceitar as doutrinas corretas.25 O deísmo foi um passo intermediário entre o teísmo e o naturalismo, onde a atuação de Deus não foi plenamente descartada, mas considerouse que Ele age por meio das leis naturais fixas, sendo assim, Deus age através do normativo.26 Descartou-se o conceito de queda e corrupção, onde há a distinção entre o normativo (queda) e o imperativo divino (redenção). O deísmo logicamente desemboca no panteísmo, onde tudo passa a ser divino, pois a personalidade e transcendência de Deus são descartadas, sobrando apenas uma entidade impessoal imanente que compreende toda a realidade (normativa). Por fim, o Iluminismo finalizou essa transição, unindo as influências anteriores e dando o próximo passo lógico: o ateísmo prático. O iluminismo exerceu significativa influência, embora negativa, sobre o cristianismo de um modo geral, mormente sobre o movimento evangélico, no século 19. Isso porque a ênfase dos iluministas estava centrada no homem, colocando Cristo e seu evangelho em segundo 25 26

COSTANZA, J. R. As Raízes Históricas do Liberalismo Teológico. Fides Reformata, v. 1, n. X, 2005. p, 83. COSTANZA, 2005, p. 97.

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plano. Tal entendimento os levou, naturalmente, a uma racionalização da teologia e, consequentemente, deu azo ao surgimento, identificação e desenvolvimento de várias tendências religiosas e filosóficas.27 Thomas Lang, da Universidade de Chicago, editor da conceituada Enciclopédia Britânica, considera a obra de René Descartes, filósofo do século 17, como o ponto de partida do liberalismo teológico 28. Descartes com sua máxima Dubito, ergo cogito, ergo sum (Duvido, logo penso, logo existo) colocou a razão (através da dúvida) como suprema, sendo a única via de se chegar à verdade, desconsiderando Deus como sendo a origem e doador da verdade. [...] na segunda metade do século 18, em conexão com o movimento intelectual do Iluminismo, começou a prevalecer na teologia protestante o insight de que a Bíblia é um livro escrito por homens, o qual, como qualquer outro produto da mente humana, somente pode ser entendido à luz do tempo em que apareceu, e, portanto, apenas por meio dos métodos da ciência histórica.29 Costanza (2005, p. 81) divide o liberalismo em duas fases Embora haja indicações antigas da existência de um pensamento liberal, inclusive no Antigo Testamento, ele se tornou mais evidente durante o Renascimento, quando surgiram indagações sobre o homem natural e seu espírito, e também durante a Reforma. A primeira fase do moderno liberalismo teológico, chamada Racionalismo ou Iluminismo, perdurou até meados do século 18. Os principais filósofos e teólogos dessa fase foram Baruch Spinoza (judeu holandês), Gottfried Wilhelm Leibniz e Gotthold Ephraim Lessing (alemães), John Locke (inglês), os escritores e filósofos ingleses conhecidos como Platonistas de Cambridge e também os deístas. O segundo estágio do liberalismo teológico, o Romantismo, também chamado de Modernismo, aconteceu a partir no final do século 18 e perdurou até o final do século 19. Nele se destacam Jean-Jacques Rousseau e Immanuel Kant, que foram os arquitetos do liberalismo romântico. Na teologia, o maior destaque coube ao alemão Friedrich Schleiermacher, chamado de pai da moderna teologia protestante. O alemão Albrecht Ritschl dominou a teologia liberal protestante após Schleiermacher, e outro teólogo alemão, Adolf von Harnack, foi o mais proeminente discípulo de Ritschl. 27

COSTANZA, 2005, p. 87. COSTANZA, 2005, p. 80, 81. 29 KÜMMEL, [1978] apud LINNEMANN, E. Crítica Histórica da Bíblia. São Paulo: Cultura Cristã, 2009. p. 133. 28

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Portanto, podemos dizer que esta é uma teologia secular, filha de seu contexto, pois foi fortemente influenciada pelas ideias seculares que circulavam no período renascentista/iluminista, conformando-se a essas propostas, expressando-as numa linguagem teológica. Suas propostas confirmam isso. Propostas Há certa dificuldade em se estabelecer quais são as propostas liberais, pois não há um consenso entre seus teólogos, dado os níveis diferentes de influência do humanismo na cosmovisão de seus proponentes, mas o ponto central é a desconsideração da Bíblia como um todo. Vários fatores influenciaram na elaboração deste método, mas sua proposta já estava sendo considerada antes mesmo dele ser sistematizado, o grande exemplo que temos é a afirmação de J. Solomo Semler (1725 - 1791), “A raiz de todos os males (na teologia) é usar os termos ‘Palavra de Deus’ e ‘Escritura’ como se fossem idênticos”30. A proposta deste método era separar o cânon Rudolf Bultmann normativo do cânon formal. O cânon formal consiste nos 66 livros que temos em nossa Bíblia, já o cânon normativo seria a verdadeira Palavra de Deus, contida dentro do cânon formal. Segundo os liberais, o cânon formal está cheio de erros, mitos, lendas e vícios misturados à Palavra de Deus; portanto é necessário realizar o processo que Rudolf Bultmann chamou, posteriormente, de “desmitologização” da Bíblia. Este método deu origem a diversas críticas, das quais as principais são: crítica das fontes, da forma e da redação.31 Neocalvinismo No século XIX os princípios da reforma ganharam novo fôlego na Holanda com um grupo de cristãos dos quais Abraham Kuyper (1837 – 1920) foi o principal expoente. Calvino havia articulado o pensamento reformado em resposta aos desafios do Romanismo, mas no séc. XIX o inimigo era outro. Com o Iluminismo, novos desafios surgiram e um novo contexto se estabeleceu através do secularismo e da Revolução Industrial. Um dos maiores embates foi o liberalismo com sua posição pseudocientífica que solapava a autoridade bíblica. Nesse contexto, um dos primeiros a articular uma atualização da fé reformada foi o holandês Groen van Prinsterer (1801 – 1876) que entendeu a falácia do racionalismo. 30

SEMLER, 1967 apud LOPES, Augustus N. O Dilema do Método Histórico-crítico na Interpretação Bíblica. Fides Reformata, São Paulo, v. X, n. 1, 2005. p. 121. 31 LOPES, 2005. p. 115.

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Van Prinsterer influenciou Abraham Kuyper (1837 – 1920) que popularizou essa posição holandesa. A compreensão de Kuyper das doutrinas da graça, popularizadas por Calvino, o impulsionou a atuar em vários segmentos da sociedade: foi político, pastor, jornalista, fundador de um partido político (partido antirrevolucionário), fundador da renomada Vrije Universiteit Amsterdam (Universidade Livre de Amsterdã) e primeiro ministro da Holanda de 1901 a 1905.32 Tudo isso só foi possível porque Kuyper entendia que Deus é soberano sobre todas as esferas da vida. Esse entendimento é retratado na frase tão conhecida de Kuyper em seu discurso na inauguração da Universidade Livre de Amsterdã em 20 de Outubro de 1880 “Não há um único centímetro quadrado em todos os domínios da existência humana sobre o qual Cristo, o Soberano sobre tudo, não clame: é meu!”. Embora Kuyper tenha sido o principal expoente deste movimento, Herman Dooyeweerd (1894 – 1977) foi de extrema importância para o Neocalvinismo, pois ele sistematizou o pensamento filosófico reformacional que serviu tanto para apresentar respostas satisfatórias aos críticos Abraham Kuyper modernos do cristianismo quanto uma ontologia cristã, servindo de base para outros pensadores aplicarem estes princípios em suas áreas específicas, apresentando a redenção cristã às diversas esferas da realidade. O filósofo holandês Herman Dooyeweerd desmascarou o que chamou de “dogma da autonomia religiosa da razão”, que nada mais é do que a crença iluminista/modernista da neutralidade e soberania da razão e, por conseguinte, da ciência para encontrar a verdade. Nossa realidade é composta por diversas esferas. Cada esfera da realidade possui soberania em si mesma, a partir das leis próprias estabelecidas por Deus, ou o que Dooyeweerd chamou de cosmonomia, a nomia (lei) do cosmos (mundo) estabelecida por Deus soberanamente. Portanto, uma esfera não pode se sobrepor à outra, nem ser reduzida à outra, embora todas estejam intimamente ligadas. Sendo assim, Dooyeweerd afirma: Os que pensam que podem encontrar um ponto de partida absoluto no pensamento teórico chegam a essa conclusão por meio de um impulso essencialmente religioso, mas, por causa da falta de um verdadeiro conhecimento de si próprios, permanecem sem consciência da sua própria motivação religiosa.33 32 33

REICHOW, Josué K. Reformai a Vossa Mente. Brasília: Monergismo, 2019. Não Paginado. DOOYEWEERD, H. Raízes da Cultura Ocidental. São Paulo: Cultura Cristã, 2015. p. 21

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Observando a citação acima, vê-se que a raiz que alimenta o método histórico-crítico é o historicismo – visão que nega a existência de verdades transcendentais e transculturais, sendo estas apenas construção social de um determinado período. O problema é que o mesmo tal visão vale para próprio historicismo, portanto ele se autorrefuta, pois é apenas uma construção subjetiva de seu tempo. O coração é definido por Dooyeweerd em seu sentido bíblico como sendo o centro da existência humana, onde está assentada a imago Dei (imagem de Deus), e não apenas uma referência aos sentimentos. Portanto o coração é essencialmente religioso, pois, nele estão assentados os motivos-base (cosmovisão), pelos quais irá atuar em todas as esferas inclinado à sua motivação religiosa, seja ela o Deus criador ou um ídolo que foi absolutizado pelo coração. Pois, como Calvino fez a correlação entre o conhecimento divino e humano, assim o homem precisa de um Herman Dooyeweerd absoluto (Deus) para entronizar em seu coração; independente de quem seja, todos têm motivações religiosas. Embora ainda não seja muito popular, cada vez mais o Neocalvinismo tem ganhado espaço e adeptos no Brasil, por meio de pessoas que buscam sujeitar todas as áreas da vida ao senhorio de Cristo.

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Unidade 7 – Avivamentos na Inglaterra e América O Primeiro grande despertamento nos EUA Em 1492, as naus sob o comando de Cristóvão Colombo chegaram a várias ilhas do Caribe, e Juan Ponce de León desembarcou na Flórida em 1513. Os ingleses chegaram a Virgínia, em 1607, e a Plymouth, em 1620. Em 1614, os holandeses se estabeleceram na ilha de Manhattan e, em 1674, cederam-na à Inglaterra, e daí surgiu Nova York. A colônia da baía de Massachusetts foi estabelecida em 1628, resultando em uma onda de migração puritana congregacional em fuga das perseguições na Inglaterra. Três das mais importantes universidades da atualidade foram fundadas nas colônias por reformados: o Colégio Harvard foi fundado em 1636, o Colégio Yale foi fundado em 1701 e o Colégio de Nova Jersey, em Princeton, em 1746. Os puritanos que chegaram às treze colônias almejavam “uma nação de santos”, ou “uma cidade sobre um monte”, uma sociedade pactual regida pelas Escrituras. Alguns dos principais teólogos puritanos dessa época foram: John Cotton (1584 - 1652); Thomas Hooker (1586 - 1647); Thomas Sheppard (1605 - 1649); John Eliot (1604 - 1690), um dos primeiros missionários entre os índios americanos, que traduziu as Escrituras para a língua Massachusett e fundou cidades cristãs entre os índios; e Cotton Mather (1663 - 1728), que se correspondia regularmente com Augusto Hermann Francke e uniu em seus escritos as principais ênfases puritanas e pietistas, que moldariam grande parte da fé evangélica na América do Norte. Por volta de 1700, já estavam estabelecidas as treze colônias britânicas que se tornariam os Estados Unidos, mas era visível o declínio da fé evangélica, provocado pela influência do processo colonizador, com seu aumento populacional, sucessão de guerras brutais e declínio da espiritualidade dos ministros. Entretanto, em 1726, iniciou-se um avivamento nas congregações reformadas holandesas em Nova Jersey, com as pregações de Theodore Frelinghuysen (1691 - 1747). Pouco depois, esse avivamento atingiu os presbiterianos, com as pregações de Gilbert Tennent (1703 - 1764). Jonathan Edwards (1703 - 1758) foi ordenado ao pastorado em 1727 e passou a auxiliar seu avô, Solomon Stoddart (1643 - 1729), no ministério da igreja congregacional em Northampton, Massachusetts. Após a morte do avô, ele assumiu o pastorado da igreja. No período de 1735 a 1737, durante uma série de pregações sobre a justificação pela fé, iniciou-se um avivamento em sua congregação. Seus ouvintes sentiram as grandes verdades das Escrituras de que toda boca ficará fechada no dia do juízo e que “não há coisa alguma que, por um momento, evite que o pecador caia no inferno, senão o bel-prazer de Deus”. Nas palavras de Edwards, “o

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Espírito de Deus começou a trabalhar de maneira extraordinária. Muita gente estava correndo para receber Jesus. Esta cidade estava cheia de amor, cheia de alegria e cheia de temor. Havia sinais notáveis da presença de Deus em quase cada casa”. No período de 1740 a 1742, ocorreu um novo avivamento, e seu sermão mais famoso, “Pecadores nas mãos de um Deus irado”, foi pregado nessa época, em Enfield. Contudo, por requerer uma base estrita para participar da ceia – apenas aqueles que fizessem profissão de fé e fossem avaliados podiam participar – Edwards foi demitido de sua igreja, em 1750. Ele, então, passou a servir como missionário entre os índios Mohawk e Housatonic, num posto na fronteira, em Stockbridge, Massachusetts. Em janeiro de 1958, Edwards assumiu a reitoria do Colégio de Nova Jersey, vindo a falecer dois meses depois, após receber uma vacina contra varíola, que estava sendo testada na época. Desde então, ele é considerado o maior teólogo americano em razão da influência de seus escritos. Um dos mais importantes livros escritos por Jonathan Edwards – A verdadeira obra do Espírito – foi originalmente um sermão pregado no Colégio Yale, em 1741. Edwards sabia que problemas acompanham o avivamento, pois Satanás, que, segundo ele observou, foi “treinado no melhor seminário teológico do universo”, segue a um passo de Deus, pervertendo ativamente e caricaturando tudo quanto o Senhor está fazendo. Na primeira parte daquele seu sermão, Edwards demonstrou os “sinais que supostamente negam uma obra espiritual” e, na segunda parte, os “sinais bíblicos de uma obra do Espírito Santo”. São eles: (1) “amor por Jesus, Filho de Deus e Salvador dos homens”, (2) “ação contra os interesses do reino de Satanás, que busca encorajar e firmar o pecado e fomentar as paixões mundanas nos homens”, (3) “profunda consideração pelas Sagradas Escrituras”, (4) revelação dos “caracteres opostos do Espírito de Deus e dos outros espíritos que falsificam suas obras” e confirmação de que, (5) “se o espírito que está em ação em meio a um povo opera como espírito de amor a Deus e ao homem, temos aí um sinal seguro de que este é o Espírito de Deus”. Como resultado desse avivamento, entre 25 mil a 50 mil pessoas se converteram (cerca de 5% da população), entrando para as igrejas, sem contar os convertidos que já eram membros das igrejas (chegando a aproximadamente 20% da população). Nessa época, o congregacional David Brainerd (1718-1747) serviu como missionário entre os índios Housatonic e Delaware, em Pensilvânia, Nova York e Nova Jersey. Ainda que tenha morrido aos 29 anos, deixou um diário que foi editado por Edwards e que exerceu grande influência sobre o movimento missionário protestante.

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O Avivamento evangélico na Inglaterra No começo do século XVII, a Inglaterra estava à beira de uma convulsão social, marcada por impiedade, imoralidade e corrupção. Nessa época, começou a Revolução Industrial, que, com mudanças na agricultura, na manufatura e no transporte, marcou profundamente as relações sociais, econômicas e culturais. Uma economia baseada essencialmente em trabalho manual foi substituída por uma economia industrial, assentada sobre máquinas, que se iniciou com a mecanização da indústria têxtil e o aprimoramento dos processos de produção metalúrgica. E o comércio se expandiu em razão da melhoria das rotas de transportes e o surgimento das estradas de ferro. Com a ascensão do liberalismo econômico, o capitalismo tornou-se o sistema econômico vigente no Ocidente, para onde essa revolução se expandiu. Ao mesmo tempo que essas mudanças de longo alcance ocorriam na sociedade, a Igreja da Inglaterra, na sua maior parte, era uma sombra do que havia sido. Os sermões se tornaram ensaios moralistas, sem poder para despertar, converter e salvar pecadores. Alguns pregadores anglicanos, porém, foram essenciais para o avivamento que começou na Inglaterra, na Escócia e no País de Gales. George Whitefield e John Wesley George Whitefield (1714 - 1770) converteu-se na época em que era aluno na Universidade de Oxford, em 1735. Foi ordenado diácono, recebendo autorização para pregar pela Igreja da Inglaterra, em 1737. Em 1739, influenciou John Wesley a começar a pregar ao ar livre em Bristol, e entre esse ano e 1741 ele pregou nas colônias inglesas na América, desempenhando um papel central na continuação do avivamento que lá ocorria. De 1744 a 1770, realizou mais cinco viagens às colônias americanas para pregar. Whitefield é considerado o maior pregador cristão desde os tempos apostólicos. Em 1743, foi eleito moderador dos metodistas calvinistas, uma pequena denominação nascida em meio aos avivamentos no País de Gales. Entre os que se destacaram nesse país estavam Howell Harris (1714 - 1773), Daniel Rowland (1713 - 1790) e William Williams (1717 - 1791). Até hoje Whitefield exerce grande influência sobre a ala evangélica da Igreja Anglicana. John Wesley (1703 - 1791), seu irmão Charles e George Whitefield, fundaram o “clube santo” na Universidade de Oxford. Em 1735, ele já servia como missionário na Geórgia, nas colônias americanas, mas foi em 24 de maio de 1738 que realmente se converteu – em Londres, num encontro de um grupo de irmãos morávios e durante a leitura do Prefácio à epístola de Paulo aos Romanos, escrito por Lutero. Essa experiência mudou toda a sua vida. Em 1739, John Wesley pregou ao ar livre em Bristol, porto marítimo em rápida expansão, uma mensagem de “libertação, restauração e liberdade” em Cristo a pessoas que nunca tinham ouvido essa mensagem, com resultados impressionantes. Ele também fundou as “sociedades”

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metodistas, que se separaram em 1784 da Igreja da Inglaterra para fundarem a Igreja Metodista. Quando Wesley morreu, havia, na Inglaterra, 77 mil metodistas e 470 casas de pregação. Ele viajou cerca de 400 mil quilômetros, tendo pregado cerca de 40 mil sermões. Pela média, são mais de dois sermões a cada dia – mesmo tendo sido banido de muitos púlpitos e passado a considerar “o mundo como sua paróquia”. Sua teologia foi uma síntese entre a piedade sacramental anglicana, os escritos devocionais dos pais orientais, o misticismo católico medieval, a teologia prática puritana, um entendimento semiagostiniano da salvação e a ênfase evangelística dos morávios, tudo isso associado aos temas principais da tradição da Reforma. Seu irmão, Charles Wesley (1707 - 1788), escreveu quase 6 mil hinos, que foram marcantes nos cultos durante o avivamento e se tornaram muito conhecidos. A origem da Escola Bíblica Dominical A escola dominical começou em 1780, na cidade de Gloucester, no sul da Inglaterra, e seu fundador foi o jornalista anglicano Robert Raikes (1735 - 1811). Ele, que já havia quinze anos trabalhava entre os detentos das prisões da cidade, também pensou no futuro das crianças da região. Perambulando pelas ruas, decidiu, então, fazer algo para impedir que mais tarde elas fossem parar na cadeia. Entre 1780 e 1783, fundou sete escolas dominicais somente em Gloucester, tendo cada uma 30 alunos em média. De acordo com as diretrizes de Raikes, as primeiras aulas aos domingos pela manhã para crianças eram de inglês, matemática, história e ensino no catecismo. Essas aulas deram início à escola dominical, não exatamente no modelo que temos hoje, mas nos moldes de uma escola de instrução popular gratuita – essa prática veio a ser a precursora do moderno sistema de ensino público. Assim, a escola dominical nasceu como um instituto bíblico infantil, operando de forma independente das igrejas, alfabetizando e ensinando a Bíblia às crianças carentes. Entre as crianças, logo surgiram os frutos desse trabalho, o que também se refletiu profundamente nos próprios pais. Em 1784, a escola dominical já contava com 200 mil alunos matriculados. John Newton Um autor de muitos hinos influentes nesta época foi John Newton (1725 - 1807), um ex-traficante de escravos que, após sua conversão, se tornou um clérigo anglicano. Seu hino mais conhecido é “Preciosa a graça de Jesus” (Amazing Grace). Por tudo isso, reconhece-se que a Inglaterra foi preservada de passar por algo como a Revolução Francesa, graças ao avivamento que começou pela instrumentalidade de Wesley e Whitefield e vários outros – na verdade,

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com a Revolução Industrial, a Inglaterra se tornou a grande potência do século XIX, o império “onde o sol nunca se punha”. Foi o primeiro avivamento que deu origem ao que passou a ser conhecido como tradição evangélica. Ela foi moldada por algumas compreensões doutrinárias essenciais: (1) a inspiração, autoridade e suficiência das Escrituras Sagradas; (2) a afirmação da total corrupção da natureza humana; (3) o claro testemunho de que Cristo, o Filho de Deus, morreu na cruz como o único meio de expiação para o pecado do homem, sendo o único mediador entre Deus e os homens; (4) a justificação dos pecadores por meio da graça recebida pela fé somente; (5) a necessidade da conversão do coração como uma nova criação operada pelo Espírito Santo; (6) a ligação inseparável entre verdadeira fé e santidade pessoal e social; (7) um espírito de comunhão interdenominacional. Além disso, ao mesmo tempo em que se ansiava por visitações do Espírito Santo, cria-se que (8) avivamentos não podiam ser fabricados, mas somente esperados em Deus. O Segundo grande despertamento nos EUA Em pouco tempo, a jovem nação americana começou a crescer em direção ao oeste. E essa expansão foi acompanhada por uma série de “avivamentos de fronteira”, num contexto de embriaguez, prostituição e violência. Esse avivamento começou no Colégio Yale, que tinha como reitor um neto de Jonathan Edwards, Timothy Dwight (1752 - 1817). Por meio de suas aulas e pregações na capela, um terço dos alunos se converteu, entre eles Lyman Beecher (1775 - 1863), que fundou a Sociedade Bíblica Americana, opôs-se à escravidão e envolveu-se com as primeiras reuniões de acampamento em regiões rurais. Esse avivamento em Yale durou de 1795 a 1802. Em 1800, o pastor presbiteriano James McGready (1758 - 1817) organizou uma reunião de acampamento que veio a se tornar um dos meios mais populares de evangelizar nos Estados Unidos, onde ocorriam conversões dramáticas, algumas vezes marcadas por manifestações físicas. Em 1801, em Cane Ridge, Kentucky, o pastor presbiteriano Barton Stone (1772 - 1844) adotou os métodos de McGready e convocou uma grande reunião em Lexington, também no Kentucky. Mais de 20 mil pessoas compareceram, e o encontro durou seis dias. Nele, pregadores presbiterianos, batistas e metodistas se revezavam, e a resposta foi marcada por manifestações físicas, como tremores, quedas, choro, dança e riso. Esse padrão de avivamento se repetiu por toda a fronteira oeste americana. Posteriormente, outro presbiteriano, Alexander Campbell (1788 - 1866), associou-se a Stone, tornando-se o líder de maior destaque do que passou a ser conhecido como “movimento Stone-Campbell”, que se unificou em 1832. Desse movimento surgiram a Igreja de Cristo (a capella), a Igreja

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Cristã (discípulos de Cristo) e a Igreja Cristã/Igreja de Cristo (discípulos independentes). Surgimento de seitas Vários movimentos religiosos surgiram durante o avivamento de fronteira no centro-oeste e no nordeste dos Estados Unidos em meados do século XIX. Os principais foram a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, ou Mórmons (1830), a Igreja de Cristo, Cientista (1879) e a Sociedade Bíblica Torre da Vigia, ou Testemunhas de Jeová (1884). Em linhas gerais, esses grupos têm em comum o uso de fontes extrabíblicas de autoridade, a negação da suficiência da obra de Cristo na cruz e sua morte vicária, assim como algum tipo de ênfase em salvação pelas obras e a percepção de que são a única igreja correta. Nesse contexto, também surgiram os Adventistas do Sétimo Dia, formalmente organizados em 1863. Estes se distinguiam pela observância do sábado e por uma ênfase à iminente segunda vinda de Jesus Cristo. O mais influente pregador do chamado “Segundo Despertamento” foi o pastor congregacional Charles G. Finney (1792 - 1875), que liderou, de 1825 a 1831, “reuniões” de avivamento em Nova York. Depois, durante quarenta anos, foi professor de teologia no Colégio Oberlin. Finney, reagindo contra o destaque na soberania de Deus que predominou no “Primeiro Grande Despertamento”, mudou a ênfase existente na pregação doutrinária para uma ênfase subjetiva em fazer com que as pessoas “tomassem uma decisão” ou fizessem uma escolha. Para Finney, Deus limitaria sua soberania e o homem teria livre-arbítrio, não sendo escravo do pecado. Consequentemente, rejeitava as doutrinas da expiação de Cristo e da justificação pela imputação. Em seu entendimento, a graça tornaria a salvação possível para todos, o novo nascimento não seria uma regeneração interior do coração, mas simplesmente uma mudança de escolha, e o avivamento seria o resultado de campanhas bem planejadas com os métodos corretos. Portanto, suas campanhas de evangelização e de reavivamento tinham um propósito: levar os pecadores a fazer uma escolha imediata de seguir a Cristo. Com isso, Finney introduziu novos métodos nos cultos, como o “banco de misericórdia” e apelos e convites para as pessoas “irem à frente” no final da mensagem. Além disso, valeu-se de práticas que provocassem um estado emocional propício ao pecador para que este pudesse escolher a Deus. Ele também enfatizou o perfeccionismo cristão e temas sociais como a abolição da escravatura, a temperança, escolas para todos, direitos para as mulheres e melhores condições de trabalho. Tristemente, a maior parte da vasta região da Nova Inglaterra, onde Finney conduziu as campanhas de avivamento, caiu em permanente frieza espiritual durante sua vida, e, mais de cem anos depois, a situação ainda não mudou. Isso ocorreu por influência direta do tipo de pregação

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promovida por ele. A região oeste de Nova York, outro local onde Finney desenvolveu seu ministério de pregação, tornou-se conhecida como “o distrito destruído pelo fogo” – e o próprio Finney falou dela como “um distrito queimado”, lamentando a ausência de qualquer fruto permanente de seus esforços avivalistas naquela região. Em todas essas questões, podemos ver um afastamento do modelo bíblico de avivamento, que também pode ser percebido nas pregações de Wesley, Whitefield e Edwards, cem anos antes. Nesse período, especialmente entre 1850 e 1920, grande parte da igreja americana buscou aplicar suas normas éticas na sociedade, envolvendo-se em campanhas por abstinência de bebidas alcoólicas, observância do dia do Senhor, fundação de escolas cristãs, reforma prisional e combate à pornografia. Contudo, ao se preocuparem demasiadamente com a ordem social, as igrejas negligenciaram a reforma interna e a disciplina eclesiástica, que pressupunha uma separação rígida entre as normas da sociedade e o reino de Deus. Portanto, à medida que os evangélicos americanos buscaram reformar a sociedade, deixaram de reformar a si mesmos. Em contraste, Asahel Nettleton (1783 - 1844), de Connecticut, seguindo a tradição teológica de Jonathan Edwards, foi importante pregador americano nesse avivamento. Nettleton foi um evangelista muito bemsucedido entre as igrejas congregacionais da Nova Inglaterra, sempre envolvendo os pastores locais nos avivamentos, enfatizando a necessidade de ensinar a todos que se convertiam. Quando Finney começou a se tornar popular, Nettleton foi um dos primeiros a criticá-lo por suas inovações, especialmente por Finney pressionar as pessoas a tomarem uma “decisão” por Cristo. Falsas conversões foram exceções, e não regra, durante o ministério de Nettleton. Por exemplo, dos 84 convertidos em um avivamento ocorrido em 1818, em Rocky Hill, todos permaneceram fiéis, segundo relatos feitos 26 anos mais tarde. Da mesma forma, somente três conversões espúrias entre 82 foram observadas, segundo outro relato, durante um avivamento ocorrido em Ashford. Demais avivamentos Simultaneamente, em meados do século XIX, ocorreram avivamentos em vários países europeus. No País de Gales, destacaram-se os pregadores Christmas Evans (1766 - 1838) e John Elias (1774 - 1841); na Escócia, Robert Haldane (1764 - 1842), James Haldane (1768 - 1851), Thomas Chalmers (1780 - 1847) e Robert Murray McCheyne (1814 - 1843); na Suíça, César Malan (1787 - 1864), François Gaussen (1790 - 1863) e JeanHenri Merle D’Aubigné (1794 - 1872); na França, Frédéric Monod (1794 1853) e Adolphe Monod (1802 - 1856); na Alemanha, Ludwig Harms (1808 - 1865), Johann Heinrich Volkening (1796 - 1877), Friedrich Wilhelm Krummacher (1796 - 1868), Ludwig Hofacker (1798 - 1828) e Aloys Henhöfer (1789 - 1862). Por meio desses avivamentos, novas

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denominações surgiram, como a Igreja Livre da Escócia e a União das Igrejas Evangélicas da França, assim como sociedades evangelísticas e centros de formação pastoral.

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Unidade 8 – Missões Protestantes Nos séculos XVI e XVII, as diversas denominações evangélicas pouco se envolveram no serviço missionário. Foi a época das disputas teológicas e da Guerra dos Trinta Anos, e os protestantes tinham poucas possibilidades de empreender viagens marítimas. Contudo, os séculos XVIII e XIX se tornaram o período heroico do movimento missionário protestante. Em 1705, o rei Frederico IV da Dinamarca (1671-1730), que era pietista34, querendo evangelizar os povos das suas colônias no sul da Índia, enviou sessenta missionários pietistas alemães para Tranquebar, na costa sudoeste da Índia. Como os missionários eram oriundos da Universidade de Halle, essa foi chamada de Missão Dinamarquesa-Halle. Outro grupo protestante a se envolver com missões foram os Irmãos Morávios35, sob a liderança de Zinzendorf. Quando este assistiu à coroação do rei Cristiano VI da Dinamarca (1699 - 1746), foi apresentado a duas pessoas oriundas da Groenlândia e a um escravo africano das Índias Ocidentais. Esses contatos levaram-no a se empenhar pela evangelização mundial. Em 1732, os dois primeiros missionários morávios foram enviados para as Ilhas Virgens, e nas duas décadas que se seguiram os morávios enviaram mais missionários a outras terras do que todos os protestantes tinham enviado nos últimos dois séculos, chegando à Groenlândia (1733), à África do Sul (1736), aos índios moicanos nos Estados Unidos (1740), ao Labrador no Canadá (1771), à Austrália (1771) e à fronteira do Tibete (1856). Em 1832, eles podiam contar 10 mil convertidos, 209 missionários e 41 centros missionários. No entanto, o grande impulso para as missões protestantes se deu por influência direta dos primeiros avivamentos ocorridos na Inglaterra e nos Estados Unidos. Jonathan Edwards escreveu, em 1748, um livro intitulado Humilde tentativa de promover uma clara concordância e união visível do povo de Deus em extraordinária oração, pelo avivamento da religião e o avanço do Reino de Cristo na Terra. Nesse tempo, a condição espiritual das igrejas batistas na Inglaterra era lastimável. John Sutcliff (1752 - 1814), pastor da igreja batista de Olney, leu o livro escrito por Edwards e propôs aos seus companheiros pastores, na Associação de Northamptonshire, que separassem uma hora na noite da primeira segunda-feira de cada mês para orar: “A fim de que o Espírito Santo seja derramado em nosso ministério e igreja, para que os pecadores sejam convertidos, os santos edificados, o interesse da religião revivificado, e o nome de Deus glorificado”. Um

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O pietismo foi um movimento de renovação da fé cristã que surgiu na Igreja luterana alemã em fins do século XVII, defendendo a primazia do sentimento e do misticismo na experiência religiosa, em detrimento da teologia racionalista. 35 Os Irmãos Morávios, cujo nome oficial é Unitas Fratrum (União dos Irmãos), traça suas origens a partir de João Huss, reformador religioso da Boêmia (atual República Tcheca). São chamados de Irmãos Morávios devido a região da Morávia, parte da República Tcheca.

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avivamento se seguiu a essas reuniões e, em 1792, fundou-se a Sociedade Missionária Batista, que enviou William Carey (1761 - 1834) para a Índia. Carey era sapateiro sem nenhuma instrução formal, mas é considerado o “pai das missões modernas”. Em 1793, chegou à Índia e, em 1800, estabeleceu-se em Serampur, que seria seu posto de trabalho permanente. Em meio a grande sofrimento pessoal, durante vinte anos, Carey e os seus amigos publicaram folhetos em vinte línguas e porções das Escrituras em dezoito. Durante seus anos em Serampur, fez três traduções completas da Escritura (bengalês, sânscrito e marata), ajudou em outras traduções da Escritura inteira e traduziu o Novo Testamento e porções bíblicas em muitas outras línguas e dialetos – sempre revisando essas traduções para que fossem bem compreendidas. Durante os primeiros dezoito séculos da história da igreja, apenas trinta traduções das Escrituras foram feitas – Carey e seus companheiros de Serampur e Calcutá dobraram esse número nas três primeiras décadas do século XIX. Outros missionários famosos dessa época foram: Henry Martyn (1781 - 1812), anglicano que serviu na Índia e na Pérsia e traduziu o Novo Testamento para o urdu e o persa; Adoniram Judson (1788 - 1850), batista que trabalhou na Índia e na Birmânia; David Livingstone (1813 - 1873), congregacional que despertou grande interesse em missões com suas viagens missionárias e de exploração no interior da África; William Chalmers Burns (1815 - 1868), presbiteriano, que pregou o evangelho nas cidades chinesas de Shantou, Xiamen e Pequim; e J. Hudson Taylor (1832 - 1905), que em 1865 fundou a Missão para o Interior da China, existente até hoje. Entre as mulheres, pode-se mencionar Mary Slessor (1848 - 1915), que serviu na Nigéria; Lottie Moon (1840 - 1912), que serviu quarenta anos na China; Florence Young (1856 - 1940), em Queensland, na Austrália, e também nas Ilhas Salomão e na China; e Amy Carmichael (1867 - 1951), que foi missionária na Índia. Em 1795, foi fundada pelos congregacionais a Sociedade Missionária de Londres, e os anglicanos fundaram, em 1799, a Sociedade Missionária da Igreja. Esse foi um esforço impressionante, especialmente porque o movimento missionário protestante recebeu seu primeiro impulso de igrejas livres, e não de igrejas estatais. Em menos de um século, a fé protestante alcançou todo o mundo, um feito sem paralelo, e o evangelho de fato chegou “até os confins da terra”.

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Unidade 9 – Movimentos de Santidade e o Surgimento do Pentecostalismo Movimentos de santidade Por mais que se tenham empreendidos esforços combativos ou controladores, das sementes da Reforma germinaram movimentos liminares ou paralelos às grandes instituições, com grande apelo popular. Exemplos disto são os movimentos pietistas ou de “santidade” que ganharam projeção entre os séculos XVI e XVIII, na Europa ocidental. Um desses, foi o movimento puritano Quaker. Jorge Fox (1642-1691), líder desse segmento cristão, passou a pregar que “o Espírito de Deus não fala somente pelas Escrituras”, mas que também o faz diretamente através daqueles que “interiormente são iluminados”. Afirmava ainda que era preciso “rejeitar o ministério profissional dos clérigos”.36 Outro movimento que ganhou maior projeção e desempenhou maior influência ainda, foi o metodismo, sob a liderança de John Wesley, na Inglaterra, no século XVIII. O metodismo tem sido considerado como um ramo tardio da Reforma Protestante; representou, assim, uma forma de penetração dos valores da Reforma Protestante na cultura folclórica ou popular. Dentre outras práticas, o metodismo pregava a santificação como uma segunda obra da graça após a justificação: “Não conhecemos um só caso, em qualquer lugar de uma pessoa receber, no mesmíssimo momento, a remissão dos pecados, o testemunho permanente do Espírito, e um coração novo e limpo”, dizia John Wesley. A partir do metodismo também ocorreu o chamado “reavivamento” de grupos internos das igrejas protestantes nos Estados Unidos, no século XIX, aspecto no qual podem ser encontradas as raízes mais próximas do que viria a se denominar pentecostalismo, no início do século XX. A origem do movimento de santidade norte-americano nas décadas de 1840-1850, no qual o pentecostalismo viria também fincar suas raízes, tinha a intenção de preservar e propagar o ensino de Wesley; o processo de salvação nesse movimento envolvia duas fases: a conversão (justificação), significando a libertação dos pecados cometidos; e a inteira ou plena santificação, entendida como a libertação da falha da natureza moral que leva a pecar. Conseguindo romper com controles dogmáticos e institucionais, movimentos avivalistas daquele período davam grande ênfase à experiência mística e direta com o Espírito Santo, evidenciada por êxtases e fortes emoções:

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WALKER, W. História da igreja cristã. V.1 e 2. São Paulo: ASTE, 1980, p. 160. Por volta de 1652, no Norte da Inglaterra, formou-se a primeira comunidade Quaker, que se espalhou posteriormente para vários outros lugares, inclusive nas colônias inglesas da América do Norte.

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A função do pregador era convencer seus ouvintes de seus pecados, levá-los ao arrependimento e torná-los responsáveis pela aceitação ou rejeição da salvação. Para isso, era necessário que se criasse um clima altamente emocional, onde choros, desmaios e ataques histéricos eram habituais.37 O pentecostalismo, no século XX, viria a ser a confluência dessa efervescência religiosa, fruto destes movimentos carismáticos, com grande apelo popular. O movimento pentecostal é o metodismo levado às suas últimas consequências; parece que o pentecostalismo absorveu da sua descendência metodista as convicções da experiência subsequente e instantânea, e as transferiu integralmente da santificação, segundo Wesley, para o batismo do Espírito Santo. De qualquer forma, tanto o metodismo quanto o pentecostalismo colocam sua ênfase em algum lugar depois da justificação. Pentecostalismo O marco histórico de origem do pentecostalismo pode ser situado em 1901, em Topeka, Kansas, Estados Unidos. Charles Fox Parhan, evangelista metodista – ligado aos movimentos de santidade dos séculos XVIII e XIX e fundador e dirigente da Escola Bíblica Betel – passou a ensinar a seus alunos ser possível contemporaneizar ou reviver os sinais de êxtase que teriam ocorrido com cristãos do primeiro século da era cristã, conforme relato do texto bíblico Atos 2:1-4. Segundo tal narrativa, cerca de 120 cristãos que estavam reunidos na cidade de Jerusalém teriam recebido o “dom” ou a capacidade divina de “falar outras línguas”. Esse episódio é lembrado como Pentecostes, por ter ocorrido no dia em que se celebrava uma festa judaica que trazia esse nome em alusão aos cinquenta dias que a separavam da Páscoa. Daí a atribuição do nome “pentecostalismo”. A manifestação de um fenômeno de êxtase, atribuído ao Espírito Santo, semelhantemente àquele descrito pelo texto bíblico, teria se dado inicialmente com a jovem Agnes Ozman, aluna da escola dirigida por Parhan. O fenômeno teria ocorrido posteriormente com outros estudantes, vindo também a espalhar-se rapidamente por outros lugares no âmbito de várias igrejas. Influenciado pela experiência pentecostal de Topeka, no ano de 1906, em Los Angeles - EUA, o pregador negro William J. Seymour, membro da igreja Holiness (santidade), passou a realizar cultos carismáticos em um salão alugado na Rua Azusa, 312, onde oficialmente fundou a primeira denominação pentecostal, chamada de “Missão Evangélica da Fé Apostólica”. A ênfase à obra do Espírito Santo evidenciada por êxtases tornou-se, em pouco tempo, uma sensação local e, mais tarde, um 37

FILHO, P. V.; MENDONÇA, A. G. Introdução ao protestantismo no Brasil. São Paulo: Loyola, 1984, p. 85.

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fenômeno de alcance mundial. Os jornais locais passaram a divulgar amplamente os episódios miraculosos que ali se afirmava ocorrer, o que contribuiu para que muitos visitantes de vários lugares procurassem Los Angeles no intuito de conhecer e depois, também, propagar aqueles sinais carismáticos. Essas reuniões na Rua Azusa aconteceram diariamente por três anos, da qual surgiram inúmeros pregadores responsáveis pela difusão do movimento em outras partes do mundo. Além da alusão feita ao acontecimento bíblico já anteriormente descrito, é preciso salientar que o pentecostalismo tem raízes precursoras que se reportam a imaginários de movimentos religiosos de longa duração. Uma delas pode ser localizada nas práticas montanistas ocorridas no segundo século da era cristã, sob a liderança de Montano, o qual, ao tornarse cristão e receber o batismo no ano 156, entrou em êxtase e começou a falar em línguas desconhecidas. Esse episódio foi classificado por alguns cristãos como manifestação do Espírito Santo, como ocorrera no Pentecostes, não, porém, para a igreja, a qual classificou aquele ato como algo estranho ao cristianismo. Expulso da igreja como herege, o novo profeta passou a liderar um movimento que atraiu muitos seguidores, anunciando que a revelação divina ocorre diretamente através de seus profetas, sem a mediação institucional.

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Unidade 10 – Pentecostalismo no Brasil Tendo surgido nos Estados Unidos, no início do século XX, não demorou para que o pentecostalismo lançasse no campo religioso brasileiro as suas sementes, configurando-se, inclusive, em denominações e tipologias próprias. Num primeiro momento, surgiu o que viria a ser identificado pela tipologia de “pentecostalismo clássico”,38 através da formação de duas igrejas: a Congregação Cristã no Brasil e a Igreja Evangélica Assembleia de Deus. Congregação Cristã no Brasil (CCB) A Congregação Cristã39 tem sua organização inicial oficialmente datada em 05 de junho de 1910, na cidade de Santo Antônio da Platina – PR. Seu líder-fundador foi Luís Francescon, um estrangeiro italiano que se considerava missionário autônomo e, portanto, não era mantido financeiramente por nenhuma instituição do exterior. Francescon, de origem religiosa presbiteriana-calvinista, havia residido anteriormente em Los Angeles, onde passara a frequentar o movimento pentecostal ali nascente. Decidiu expandir aquele modelo de cristianismo para a América do Sul, iniciando seu trabalho em Buenos Aires, Argentina, em 1909. Não obtendo grandes êxitos naquela cidade, quatro meses depois dirigiu-se para o Brasil, chegando a São Paulo no início de 1910, onde passou a residir no bairro do Brás, lugar de grande concentração de italianos. Naquele mesmo ano, ao saber da existência de uma colônia italiana em Santo Antônio da Platina - PR, professante do catolicismo romano, decidiu visitá-la com o propósito de fazer ali conversos à fé pentecostal. O trabalho obteve êxito e dele nasceu uma nova igreja em solo paranaense. Retornando a São Paulo, naquele mesmo ano, Francescon passou a fazer pregações na igreja Presbiteriana do bairro do Brás, até que suas ideias doutrinárias geraram conflitos com a liderança daquela igreja. Tendo um grupo simpatizante com o seu ensino, composto por italianos que frequentavam aquela comunidade, promoveu um cisma e constituiu oficialmente a sua nova igreja, à qual foi filiado o núcleo já existente no Paraná. Como bases teológico-doutrinárias, Francescon adotou e adaptou para a sua nova igreja estruturas eclesiásticas do presbiterianismo calvinista, como é o caso da doutrina da predestinação, segundo a qual Deus de antemão pré-determina os que haverão de ser salvos ou condenados. Por isso mesmo, nessa denominação não se fazem campanhas evangelísticas 38

Tipologia e classificação empregada por vários pesquisadores, dentre os quais, Antonio de Gouvêa Mendonça, no capítulo Sociologia da religião no Brasil: o pentecostalismo, suas terminologias e classificações. In: MENDONÇA, A. G. (Org.). Sociologia da religião no Brasil. São Paulo: UMESP, 1999, p. 73-84. 39 Esta denominação conta hoje com mais de dois milhões de seguidores no Brasil, cf. CAMPOS, Leonildo Silveira; GUTIÉRREZ, Benjamin (Orgs.). Na força do Espírito. Os pentecostais na América Latina: um desafio às igrejas históricas. São Paulo: AIPRAL/UMESP, 1996, p. 111.

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com apelos à conversão em locais públicos que não os templos, ou ainda através do uso dos meios de comunicação de massa, como ocorre normalmente com os demais segmentos pentecostais. Os fiéis fazem convites individuais para os cultos, principalmente para os dias de batismo. O batismo se torna, então, um apelo mudo: quem se apresenta ao batizador recebe o rito sem perguntas. Desses, alguns acabam não ficando na igreja, mas isto não é obstáculo, pois entendem que apenas os eleitos hão de permanecer, isto é, os “verdadeiros chamados”. Os “anciãos”, assim chamados os líderes da denominação, além de não possuírem formação teológica específica, são obreiros voluntários e nada recebem por seu trabalho. Para a configuração de sua fé, leem quase que exclusivamente a Bíblia tendo, quando muito, o auxílio de alguma literatura doutrinária sobre o texto bíblico, publicada pela própria denominação. Creem que os sermões pregados em seus cultos são recebidos diretamente pela revelação do Espírito Santo, o qual coloca a mensagem necessária no coração de um dos anciãos ou diáconos, que ficam estrategicamente assentados na fileira da frente de seus templos, durante as celebrações cúlticas. Em 1935, sob a vigilância do Estado Novo chefiado por Getúlio Vargas, em que se impunha rigoroso controle em relação ao estrangeirismo, a Congregação substituiu em seus cultos a língua italiana pela portuguesa, fato que também viria contribuir para a sua expansão, a partir daí, para o interior do país. A identificação com os italianos do Brás, (“pequena Itália”, bairro operário onde se concentraram os imigrantes italianos em São Paulo) era tanta, que o segundo hinário (impresso em Chicago em 1924) ainda era totalmente na língua italiana. A terceira edição (1935) tinha o total de 580 hinos e somente 250 deles estavam na língua portuguesa. Porém, a edição de 1943 foi impressa totalmente em português. Esse hinário, Louvor e Súplicas a Deus, contém os 12 pontos doutrinários da igreja, uma breve história da elaboração da obra e uma classificação dos hinos conforme os momentos litúrgicos. Na década de 1950 se deu o crescimento mais acentuado dessa igreja, quando nordestinos passaram a ocupar o lugar dos italianos no referido bairro do Brás. Atualmente, a maior concentração de templos ocorre em São Paulo e no Paraná, ainda que estejam presentes em todos os demais estados brasileiros. Assembleia de Deus A Igreja Evangélica Assembleia de Deus40 também tem suas raízes fincadas no movimento pentecostal de Los Angeles. No Brasil, foi 40

A Assembléia de Deus possui atualmente mais de 8 milhões de adeptos no Brasil. Esta denominação continua ostentando com ampla vantagem o primeiro lugar quanto ao número de membros entre as igrejas evangélicas no país.

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oficialmente estabelecida em 1911, na cidade de Belém – PA, por dois pentecostais sueco–americanos, Daniel Berg e Gunnar Vingren, que atribuíam suas motivações missionárias às revelações recebidas “diretamente de Deus”. O próprio Vingren, mais tarde, descreveu esta experiência vivenciada quando ainda se encontravam nos Estados Unidos: Num dia, no verão, Deus pôs no coração que nos deveríamos reunir num sábado à noite para oração. Quando orávamos, o Espírito do Senhor veio de uma forma poderosa sobre nós (...). Um irmão, Adolfo Ulldin, recebeu pelo Espírito Santo palavras maravilhosas e mistérios escondidos, que foram revelados. Entre muitas coisas, o Espírito Santo falou por meio deste irmão que nós deveríamos ir a um lugar chamado “Pará”, onde o povo a quem testificaríamos de Jesus era de um nível social muito simples. Nós iríamos ensinar-lhes os primeiros rudimentos do Senhor. Também escutamos pelo Espírito Santo, a linguagem daquele povo, o idioma português. (...) Nenhum dos presentes conhecia tal lugar. Após a oração, fomos a uma livraria a fim de consultar um mapa que nos mostrasse onde estava localizado o Pará. Descobrimos então que se tratava de um Estado no Norte do Brasil. A chamada divina estava, então, confirmada (...).41 Em 05 de novembro de 1910, a bordo do navio Clement, os missionários deixaram a cidade de Nova Iorque com destino ao Brasil. No dia 19 daquele mesmo mês e ano desembarcaram, em um dia de sol escaldante dos trópicos, na cidade de Belém, no Pará. Alojaram-se nas dependências da Igreja Batista, cujo pastor também era de origem sueca. Depois de alguns meses, após certo aprendizado da língua portuguesa, os suecos, por conflitos doutrinários, provocaram uma cisão na igreja ali existente e, com 19 membros, criaram a Missão de Fé Apostólica, cujo nome, após 1914, foi alterado, assim como também ocorrera nos Estados Unidos, para Igreja Assembleia de Deus. Acompanhando a migração dos nordestinos, a igreja em poucos anos se expandiu para o Sul (hoje, Sudeste) do país. Após três décadas de predominância missionária sueca, o controle passou à liderança brasileira, e a base de expansão deixou de ser Belém para centralizar-se no Rio de Janeiro, onde também existe grande presença de nordestinos. Nota-se que o pentecostalismo tem raízes fincadas no contexto do nordeste brasileiro e tem projeção ligada à inserção dos nordestinos em outras regiões do país. Na Assembleia de Deus, a hierarquização interna está centralizada na figura do pastor. Nas comunidades locais, essa liderança se subordina a dos templos–sede, e estes a uma convenção nacional. Os pastores 41

CONDE, Emílio. História das Assembleias de Deus no Brasil - Belém 1911-1961. Rio de Janeiro: Livraria Evangélica, 1960, p. 14.

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assembleianos eram, inicialmente, leigos e sem preparo teológico, o que os levava a se identificar bastante com o povo na forma de pensar, falandolhe na mesma linguagem, causando com isso grande empatia na projeção de suas mensagens. Atualmente, exige-se dos líderes ao menos uma formação teológica básica. A partir do momento em que o converso torna-se membro pelo rito do batismo de imersão em água, passa a buscar o chamado “batismo com o Espírito Santo”, evidenciado pela glossolalia e seguido de diversos dons ou carismas, mediante os quais se tem a oportunidade de provar que são “vocacionados pelo Senhor”. Além desses fatores, destaca-se ainda a dificuldade de rendimento e, consequentemente, as deficiências do ensino primário decorrentes de um choque cultural entre os conteúdos do ensino e as condições de vida econômica, social e cultural das comunidades rurais e periféricas no contexto urbano. Predomina uma orientação educacional a partir de um “ponto de vista de uma cultura dominante” que define as diretrizes e os conteúdos da escolaridade:

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Unidade 11 – Segunda fase do pentecostalismo no Brasil No início da década de 1950, desenvolveu-se no país o que alguns pesquisadores chamam de “segunda onda” pentecostal ou pentecostalismo de “cura divina”,42 notabilizado pela figura das “tendas divinas”, cujas igrejas rapidamente se implantam e passam a ganhar centenas de milhares de adeptos em velocidade crescente, sobretudo entre as camadas mais modestas da população. Esse pentecostalismo passaria a representar, de fato, ameaças à hegemonia católica e transformações no âmbito do próprio protestantismo: Missionários norte-americanos invadiram o país implantando uma nova liturgia, mais espontânea, com cultos informais e grandes concentrações de massa. O movimento evangélico se urbanizava, com surgimento de grandes grupos pentecostais, como a Igreja Quadrangular, O Brasil Para Cristo, Nova Vida e a Igreja Deus é Amor. Ao mesmo tempo, segmentos das igrejas históricas se renovavam, principalmente batistas e metodistas. O pentecostalismo se firmava como tendência irreversível da igreja brasileira.43 Uma das denominações mais ativas nesse processo foi a Igreja do Evangelho Quadrangular, fundada nos Estados Unidos, em 1922, por Aimee Semple McPherson,44 uma canadense, missionária da Igreja Metodista, que rompera com a sua denominação para organizar o seu próprio movimento, também na cidade de Los Angeles.45 Essa igreja viria a desempenhar um importante papel no campo religioso brasileiro quando, no início dos anos 1950, começou um empreendimento proselitista sob o nome de Cruzada Nacional de Evangelização. Um dos missionários responsáveis, Haroldo Williams, que já havia estado na Bolívia, chegou ao Brasil em 1946, radicando-se em São João da Boa Vista, no interior do estado de São Paulo, onde iniciou uma igreja, em 1951. O começo foi lento e, em 1953, ele convidou para auxiliá-lo um amigo, Raymond Boatright que, além de missionário da Quadrangular, também era, como ele, um ex-ator de filmes de faroeste. Juntos, passaram a realizar campanhas de curas e expulsão de 42

Terminologia empregada por Paul Freston. Cf. FRESTRON, Paul. Protestantes e política no Brasil: da constituinte ao impeachment. Campinas: UNICAMP, 1993. 350 fl. Tese (Doutorado em Sociologia) – Programa de PósGraduação em Sociologia, Universidade Estadual de Campinas, 1993. 43 FRESTRON, Paul. Protestantes e política no Brasil. 1993, p. 82. 44 A Quadrangular é ainda considerada a única grande igreja cristã fundada por uma mulher, o que pode explicar o espaço privilegiado nela existente para o ministério eclesiástico feminino, uma novidade na época. Isso certamente também contribuiu para que essa igreja se tornasse menos repressora em relação aos “usos e costumes” como “sinais externos de santidade”, como exigidos pelo pentecostalismo clássico em relação à mulher. 45 McPherson morreu em 1944 e seu filho assumiu a liderança da igreja, que já contava então com um grande número de congregações nos Estados Unidos e em vários outros países.

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demônios, ocasião em que conseguiram notadamente chamar a atenção da cidade. Devido ao sucesso alcançado, os dois missionários foram convidados, no ano seguinte, para empreenderem uma campanha semelhante na Igreja Presbiteriana Independente (IPI) do Cambuci, na cidade de São Paulo. A ênfase era na cura e na expulsão de demônios e atraiu a atenção de uma crescente multidão, de tal forma que o templo ficou pequeno. Os eventos ocorridos logo chamaram também a atenção da imprensa, tornaram-se objeto de muitos artigos nos jornais da época, que noticiavam o comparecimento de milhares de pessoas às sessões de cura, obrigando inclusive, a interdição de ruas do bairro para melhor locomoção das massas. O resultado dessa série de reuniões no Cambuci foi um conflito com as cúpulas das igrejas hospedeiras. A direção da Igreja Presbiteriana Independente (IPI) exigiu explicações do pastor daquela comunidade presbiteriana local, Rev. Silas Dias, acerca das práticas ali adotadas e que fugiam ao perfil teológico presbiteriano. Esse embate terminou com a recusa das denominações protestantes em ceder outros templos a esse tipo de atividade, bem como o desligamento da igreja do Cambuci da IPI, fato que deu origem à Igreja Evangélica do Cambuci. Com a cisão, a solução foi comprar e armar tendas – lonas de circo – em terrenos próximos à igreja, onde continuaram as reuniões. Muitas outras igrejas presbiterianas independentes também foram atingidas pelo fenômeno pentecostal, sendo, por isso, também forçadas a se desligar da IPI e se constituir de forma autônoma, abandonando a doutrina e a eclesiologia presbiterianas e assumindo uma nova identidade marcadamente pentecostal. Com o passar do tempo, o trabalho de curas e exorcismos realizado nas tendas desvinculou-se da igreja do Cambuci, expandindo-se por todo o país. As tendas eram montadas nos centros das grandes e médias cidades brasileiras. Esse “movimento de tendas” ficou conhecido como Cruzada Nacional de Evangelização. Para organizar as novas igrejas que foram surgindo em decorrência da atuação das cruzadas, os missionários criaram, ainda em 1954, a Igreja da Cruzada, mas, já no ano seguinte, associaramse formalmente à Igreja do Evangelho Quadrangular dos Estados Unidos, mudando não somente o nome, mas estabelecendo vínculos doutrinários com a igreja americana. O que tinha sido pensado inicialmente apenas como um movimento de avivamento no interior das igrejas existentes, logo se transformou em uma nova denominação. Inovaram também ao infundir sua mensagem através do rádio, principal meio de comunicação de massa da época, dos ajuntamentos itinerantes com tendas de lonas, das concentrações em praças públicas, ginásios de esportes e estádios de futebol. Ainda que mantivessem a ênfase no batismo com o Espírito Santo, como os primeiros pentecostais, sua mensagem era agora principalmente concentrada na cura divina.

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A atuação da Cruzada, portanto, causou um enorme impacto no campo evangélico-protestante brasileiro, provocando cismas em praticamente todas as denominações, sejam históricas ou pentecostais. No caso das pentecostais, que até então eram representadas quase que exclusivamente pelas igrejas Congregação Cristã e Assembleia de Deus, a fragmentação denominacional foi enorme. Como resultado, surgiram várias novas igrejas, entre elas a própria Igreja do Evangelho Quadrangular, 46 além de O Brasil para Cristo, Deus é Amor e várias outras de menor porte: A partir da Igreja do Evangelho Quadrangular, a semente do espantoso movimento de cura divina estava lançada para germinar em grande escala no país. Embora tipicamente pentecostal, essa igreja inseriu nos seus fundamentos teológicos a chave do neopentecostalismo, como por exemplo, a ênfase à cura divina e à expulsão de demônios.47 Se as primeiras igrejas pentecostais, como visto, tiveram sua origem no exterior, as que surgiram no Brasil, a partir da década de 1950, foram formadas por cisões de suas predecessoras, apresentando a emergência de lideranças carismáticas nacionais. É o caso da Igreja o Brasil para Cristo, fundada em 1956, em São Paulo, por Manoel de Mello, um pernambucano que havia migrado para a capital paulista em busca de trabalho. Mello tornou-se membro da Assembleia de Deus e depois evangelista na mesma igreja. Foi no decorrer de 1954 que se integrou ao movimento Cruzada Nacional de Evangelização, combinando as funções de pregador de multidões, nas tendas, com o de pequeno empresário de construção civil. Igreja O Brasil Para Cristo Em 1955, Manoel de Mello iniciou um programa radiofônico na Rádio América, com quinze minutos de duração, e alguns meses depois passou a transmiti-lo pela Rádio Tupi de São Paulo, então a mais potente emissora paulista. Foi, portanto, um dos pioneiros no país a utilizar programas de rádio para a propagação da sua mensagem religiosa. Assim nasceu o programa A Voz do Brasil para Cristo, nome este que acabou gerando a própria Igreja O Brasil para Cristo, que viria a ser fundada por ele em 1956. O sucesso de Mello e a projeção de seu carisma podem ser explicados, dentre outros fatores, pelas pregações radiofônicas, que provocavam grande interatividade entre o locutor e os ouvintes, principalmente pela 46

A Igreja Quadrangular, com o passar do tempo, se consolidou institucionalmente e, em 1991, segundo dados da própria denominação, contava com aproximadamente 3.000 igrejas e 4.000 congregações (igrejas menores sem autonomia, vinculadas ainda a uma igreja-mãe), comandadas por cerca de 10.000 pastores, dos quais 35% eram mulheres. 47 MENDONÇA, A. G. Protestantes, pentecostais e ecumênicos. O campo religioso e seus personagens. São Bernardo do Campo: UMESP, 1997, p. 158.

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oração e relatos de curas dela decorrentes através de tais programações diárias. O intenso emprego das emissoras de rádio como estratégia de apoio às concentrações, para divulgação das curas divinas, possibilitava também o contato com um rebanho disperso por inúmeras cidades no interior do País. A ousadia de Manoel de Mello era notória naquele contexto. A partir de 1958, ele passou a realizar grandes concentrações religiosas que lotavam estádios de futebol, em São Paulo. Essas concentrações eram chamadas de “tardes da bênção” e tinham grande ênfase em milagres e curas divinas. A mídia dava uma certa cobertura a esses eventos. Seguindo a estratégia da Cruzada, Mello também passou a usar tendas de lona e, assim, a partir de São Paulo, a igreja espalhou-se por todo o Brasil. Foi a principal igreja pentecostal a estar em evidência na mídia na década de 60, pois suas campanhas de cura divina, ao mesmo tempo em que atraíam grande multidão, também rendiam muitos processos de charlatanismo contra Manoel de Mello. Desde o final dos anos 50, a imprensa, mais a religiosa que a chamada “secular”, publicou inúmeras críticas sobre sua atuação. Ele foi o primeiro a alugar cinemas para as reuniões evangelísticas, rompendo com o que até então era considerado espaço sagrado, apropriando-se de lugares tidos profanos, como cinemas e estádios. Participou inclusive de programas de auditório, um escândalo para protestantes históricos e, principalmente, para os pentecostais. Mello realizava concentrações de cura em estádios de futebol, em dias de feriado nacional, e convidava autoridades civis e militares para participar das reuniões. Em 1958, conseguiu levar ao estádio do Pacaembu, em São Paulo, numa “tarde da bênção”, cerca de 150 mil pessoas. Nessas concentrações, embora os seguidores de Mello dissessem haver milagres, jornais da época o denunciavam por charlatanismo, como por exemplo, O Estado de São Paulo, de 08/07/1959, o que custou a Mello processos na justiça. Todavia esses processos acabaram sendo arquivados por falta de provas. Em 13/03/1960, Mello realizou, na Praça da Sé, uma “tarde da vitória”, atraindo 50 mil pessoas para comemorar o despacho da 8ª Vara Criminal de São Paulo, arquivando um processo aberto contra ele por charlatanismo e prática ilegal da medicina. Outro projeto de Manoel de Mello foi a construção de um grande templo no Largo da Pompéia, em São Paulo, que de maneira ostensiva era apresentado na época como o “maior templo evangélico do Brasil e do mundo”. A construção foi concluída em 1979. Mello já demonstrava também atitude dessacralizadora do espaço sagrado em relação a outros segmentos evangélicos: O povo precisa sentir-se à vontade no templo. Por exemplo: na minha igreja eu permito que até à hora do culto o povo converse quanto queira. É um verdadeiro mercado lá dentro, todo mundo

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conversando: “como vai a tua mãe? E aquele cavalo que você comprou?” Todos conversam. Na hora do culto entro no assunto sério. Aquela ideia do sujeito entrar no templo e pensar que está num túmulo, num cemitério, já acabou (...) Eu não permito que o povo veja o templo como coisa sagrada. Para o povo do “Brasil para Cristo” o templo não é sagrado. É sagrado o que se faz lá dentro. O templo em si tem apenas uma finalidade: ampara do sol e da chuva (...) quando começa o culto todo mundo está satisfeito (...) Fiz muita coisa radical que hoje não faria mais. Mas percebi que o culto participativo é o culto de que o povo brasileiro gosta.48 Outra inovação importante introduzida por ele foi o envolvimento político-partidário da igreja. Em 1962, apresentou um candidato a deputado federal, Levy Tavares, o qual foi eleito em 1966, mas ao tentar empreender uma atuação independente perdeu o apoio de Mello e não conseguiu se reeleger em 1970. Devido a uma atuação controvertida, tanto Manoel de Mello quanto a sua igreja encontraram forte oposição por parte das lideranças das denominações protestantes históricas. Não obstante, o seu rápido crescimento e projeção, faltou a esta igreja uma estrutura de sustentação que fosse maior que o seu próprio fundador, razão porque, com a morte de seu líder, em 1990, o movimento descentralizou-se, perdendo muito das suas marcas iniciais. Igreja Pentecostal Deus é Amor (IPDA) Davi Miranda, que viveu a infância e juventude na zona rural do município de Telêmaco Borba – PR, mudou-se, posteriormente, com sua família para São Paulo, onde se converteu ao pentecostalismo, tornando-se posteriormente membro da Igreja O Brasil para Cristo. Após ter obtido alguma liderança nesse movimento, pediu rescisão de contrato na fábrica em que trabalhava como vigilante e, com o dinheiro que recebera de seus direitos trabalhistas, alugou um pequeno salão na periferia da capital paulista, criando assim, o seu próprio movimento. Mesmo possuindo apenas a escolaridade primária, Davi Miranda logo passou a ganhar projeção no cenário religioso pentecostal, enfatizando, sobretudo, a cura divina e o rigor ascético quanto ao chamado “usos e costumes” dos seus fiéis. Miranda empregou a mesma técnica de comunicação de Manoel de Mello, fazendo do rádio o seu principal veículo de propaganda, tal prática ainda é mantida pela denominação, mesmo após a morte de Davi em 2015. À ênfase na cura divina, Miranda acrescentou o exorcismo, realizado durante os cultos e transmitidos ao vivo pelo rádio. Com o crescimento de sua denominação, com sede em uma antiga fábrica desativada próxima da Praça da Sé, no centro de São Paulo, o missionário investiu na aquisição de 48

MELLO, Manoel. Jornal Expositor Cristão, São Paulo, ano 83, n. 19, p. 11, 01 out. 1968.

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emissoras de rádio. Vale dizer que as primeiras programações radiofônicas realizadas pela IPDA provocaram forte reação e oposição da mídia, sob a acusação de que tais programas promoviam a prática de curandeirismo. A IPDA mantém em seu templo-sede, na cidade de São Paulo, uma “sala de milagres”, na qual inúmeras muletas, cadeiras de rodas e outros objetos ali expostos testificam milagres declarados pelos fiéis. A igreja também se considera possuidora do maior templo evangélico brasileiro, com capacidade para 18 mil lugares, onde funciona a sede própria, instalada no centro da capital paulista. A Igreja Deus é Amor totaliza cerca de 2,5 milhões de seguidores no Brasil, estando também presente em outros 26 países, a maioria da América Latina, sendo também proprietária de mais de 40 emissoras de rádio, que transmitem diariamente e com exclusividade seus programas religiosos. A IPDA é fortemente sectária, não colaborando com nenhuma outra igreja evangélica. Usos e Costumes Essas vertentes do pentecostalismo neoclássico, das décadas de 50 e 60, também se caracterizaram pelo chamado “sinal de santidade” expresso nos “usos e costumes”. Isso se observa nas vestimentas características – terno escuro e gravata dos homens, saias compridas das mulheres – ou nos hábitos peculiares com os quais geralmente se identificam os chamados “crentes”: cabelos longos ou atados em coques pelas mulheres, a Bíblia sempre carregada orgulhosamente na mão e a recusa de ter em casa aparelhos de televisão ou participar de festas nas quais o canto, a dança e a bebida possam incitar à depravação dos costumes. Mas, de todas as igrejas pentecostais brasileiras, a Deus É Amor é a mais rigorosa em relação ao ascetismo comportamental. Ainda hoje se proíbe toda e qualquer prática de jogos e não se permite que seus membros façam qualquer tipo de curso teológico, ou estudem qualquer instrumento musical, por entender que tanto a teologia como a arte desviam o ser humano dos caminhos de Deus. É também radicalmente contra o uso de TV como meio de diversão. Os casamentos só podem acontecer entre os que frequentam a igreja. Portanto vemos fortes traços legalistas e grande tendência destes movimentos tornarem-se seitas. Destacamos, portanto, algumas igrejas deste segundo momento vivido pelo pentecostalismo brasileiro. Sabemos que muitas outras igrejas também surgiram neste período, como por exemplo: Igreja Cristã Maranata e Casa da Benção, igrejas que ainda hoje contam com um número considerável de seguidores. Mas entendemos que as mencionadas até aqui foram as denominações principais desta segunda onda e, portanto, suficientes para nossa análise sobre o pentencostalismo deste período. A conhecida segunda onda do pentecostalismo também acabou preparando o terreno para o aparecimento de um novo movimento, pois este segundo movimento que teve início na década de 1950 haveria de

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sofrer também uma transformação, era a chegada da terceira onda. Embora haja alguma dificuldade para se fazer, hoje, a distinção das igrejas da segunda e da terceira ondas, devido as práticas às vezes muito parecidas, o nosso corte histórico entre um movimento e o outro será marcado através da chegada ao cenário pentecostal da Igreja de Nova Vida, fundada pelo bispo canadense Robert McAlister. Esta provavelmente foi quem lançou os fundamentos para o aparecimento de um novo pentecostalismo no Brasil. Este novo movimento tornou-se conhecido como terceira onda ou Neopentecostalismo, ele viria para marcar a década de 1970, não só por seus novos métodos, mas também por suas inovações.

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Unidade 12 – A Terceira Fase, o Neopentecostalismo Brasileiro O surgimento das primeiras denominações tipologicamente identificadas como neopentecostais, no Brasil, no início da década de 1970, coincide com as intensas transformações sociais ocorridas no país neste mesmo período. Aprofundamento do processo de urbanização, industrialização e deterioração das condições de vida do operariado, do trabalhador rural e da classe média urbana brasileira, são exemplos deste contexto. Diante das mudanças do mercado e a assimilação maior do povo ao consumismo, houve incertezas financeiras que foram supridas através de meios mágicos que líderes religiosos adaptaram do gosto popular – provenientes do misticismo romanista e das religiões afro-brasileiras – para um contexto evangélico (há dúvida se se pode usar o termo “protestante” para tais grupos, pois não seguem as cinco solas). A terceira onda é marcada pelo foco na pregação financeira, mais conhecida como “teologia da prosperidade”, importada dos EUA. Igreja de Nova Vida A Igreja de Nova Vida surgiu no Rio de Janeiro, na década de 1960, através da figura do bispo Robert McAlister 49, um missionário canadense que veio para o Brasil, primeiramente numa campanha missionária no ano de 1958, realizada no maracanãzinho, no Rio de Janeiro. Robert McAlister nesta oportunidade estava a convite do pastor Lester Summeral 50. Ele mudou-se definitivamente para o Brasil no ano de 1959, onde passou a residir no bairro de Santa Tereza. Foi através do rádio que surgiu a igreja, primeiro na rádio Copacabana, depois com passagens pela Mayrink Veiga e rádio Relógio respectivamente. Do rádio a igreja passou a um escritório que ficava situado no edifício Central, na avenida Rio Branco. Posteriormente McAlister sentiu a necessidade de se reunir num local de maior comodidade, isto aconteceu devido a uma grande procura por pessoas que haviam ouvido a mensagem pelo rádio e sentiam então o desejo de participarem junto com o missionário de suas pregações. O novo espaço foi na ABI (Associação Brasileira de Imprensa), local onde foi realizada a primeira reunião em local 49

Nascido em 13 de agosto de 1931, na cidade de Ontário, Canadá. Seu pai era pastor e tinha tradição ligada ao movimento pentecostal. Robert McAlister converteu-se ao evangelho no ano de 1948 aos 17 anos de idade, tornou-se missionário e pregador da Palavra. Esteve pregando em vários países e chegou a ficar por dois anos nas Filipinas, quando voltou, passou por Hong Kong, onde fundou duas igrejas (não ligadas às igrejas do Brasil). No ano de 1959 veio para o Rio de Janeiro, onde deu início à cruzada de Nova Vida. Robert McAlister faleceu no ano de 1993. 50 Evangelista e pastor pentecostal norte-americano, nascido em 15/02/1913 em New Orleans, Louisiana, EUA. Lester Summeral fez campanhas evangelísticas em vários países de diversos continentes. Foi o fundador da Associação Evangelística Sumrall e é considerado o “pai da televisão cristã”. Lester Summeral faleceu em 28/04/1996.

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fixo da cruzada de Nova Vida, em 13 de Maio de 1961. A primeira Igreja de Nova Vida surgiu no bairro de Bonsucesso, no Rio de Janeiro, no ano de 1965, e passou a ser sediada em Botafogo, no ano de 1971. Fato curioso foi a mudança de nome por parte da igreja, inicialmente era conhecida como Igreja Pentecostal de Nova Vida, passando posteriormente a chamar-se Igreja de Nova Vida. Embora se diga que a mudança se deu por conta de uma revelação dada por Deus ao bispo Robert McAlister, o fato é que a mudança aconteceu para desassociar o novo movimento iniciado por McAlister do pentecostalismo que o precedeu. Pois bem, entende-se que foi com o aparecimento da Igreja de Nova Vida no cenário evangélico brasileiro que ocorreu um novo corte histórico no pentecostalismo, esta igreja provavelmente dirigida por McAlister foi quem lançou as bases para a formação de um novo modelo pentecostal até então não presenciado, pelo menos aqui no Brasil. O próprio termo neopentecostal em si mesmo, já remete a ideia de um novo pentecostalismo. Fato digno de nota é que a Igreja de Nova Vida tornou-se aqui no Brasil uma árvore frutífera de onde brotaram muitas outras igrejas, por exemplo: a Igreja Universal do Reino de Deus, a Igreja Internacional da Graça de Deus e a Igreja Cristo Vive, assim como outras de menor porte que acabaram adotando seus métodos, sem falar nas que foram geradas pelas que surgiram dela. Mas quais foram as mudanças ou as inovações promovidas pela Igreja de Nova Vida que tanto marcou o pentecostalismo brasileiro? Estas transformações são possíveis de serem detectadas ao se comparar com os grupos da segunda onda. Ricardo Mariano diz que: Já na Nova Vida encontramos de forma embrionária as principais características do neopentecostalismo: intenso combate ao diabo, valorização da prosperidade material mediante a contribuição financeira, ausência do legalismo em matéria comportamental.51 Bem se sabe que a Igreja de Nova Vida, assim como outras denominações deste período, cultivara algumas características daqueles que os precederam, mas algumas distinções são bem marcantes como observadas no relato acima. Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) A IURD se diferencia do protestantismo e do pentecostalismo clássico, assim como promove um dinâmico processo de apropriação e ressignificação das expressões de fé arraigadas nas crenças afro-brasileiras e no catolicismo de devoção mais folclórica. 51

MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. 2. ed. São Paulo. Edições Loyola, 2005, p. 51.

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Nascido na cidade de Rio das Flores, em 18 de fevereiro de 1945, Edir Macedo Bezerra viveu sua infância em um lar extremamente pobre de migrantes nordestinos: “seu pai, Henrique Francisco Bezerra, alagoano, possuía uma pequena venda de secos e molhados, e sua mãe, Eugênia Bezerra, dona-de-casa”.52 Segundo o próprio Macedo, ele é um “sobrevivente”, pois sua mãe teve 33 filhos, dos quais 10 morreram e 16 foram abortados por terem nascido “fora de época”.53 No começo da sua adolescência, Macedo mudou-se com sua família para Petrópolis - RJ. Em 18 de dezembro de 1971, casou-se com Ester Eunice Rangel Bezerra. Do casamento nasceram três filhos, sendo as duas filhas mais velhas casadas com pastores da Igreja Universal e vivendo, atualmente, no exterior. O terceiro filho, Moisés, já na juventude, “segue o mesmo caminho vocacional do pai” – comenta o site oficial da igreja. Sua trajetória religiosa expressa os elementos que seriam assimilados posteriormente pela IURD, como diz Mafra: A própria trajetória de Edir Macedo é ilustrativa dessa fusão de referentes culturais, pois Macedo nasceu de uma família de católicos devotos, passou por uma iniciação no Candomblé, pelo pentecostalismo clássico e pelas ondas renovadas do pentecostalismo norte-americano. Mas foi de modo paulatino que a nova igreja se transformou em um marco do que viria a ser conhecido como o neopentecostalismo. (...) 54 O início de sua trajetória religiosa pelos caminhos do pentecostalismo se deu em 1963, quando, aos 18 anos, converteu-se na Igreja Pentecostal Nova Vida, onde chegou por meio de sua irmã, que testemunhava ter sido curada de uma bronquite asmática naquela denominação religiosa. A aparição definitiva de Macedo como líder religioso aconteceu pouco tempo depois, em 1974, cuja vocação é enaltecida pela Igreja: Logo após receber a plenitude do Espírito Santo na sua vida, sentiu o desejo ardente de conquistar almas para o Senhor Jesus e levar o Evangelho a todos. Começou evangelizando nas ruas e fazendo reuniões nas praças. Quando sentiu o chamado de Deus para o ministério, deixou o emprego e iniciou o trabalho da Igreja Universal do Reino de Deus.55

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MARIANO, R. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil, p. 43. Programa 25ª Hora. São Paulo, Rede Record, 15 nov. 1991. Programa de TV. 54 MAFRA, C. Os evangélicos, p. 38. 55 http://www.igrejauniversal.org.br. Acesso em 21 abr. 2004 (não mais disponível). 53

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Quando Macedo era agente da Casa de Loterias do Rio de Janeiro, com 31 anos, deixou a Igreja Pentecostal Nova Vida, que frequentava na cidade do Rio de Janeiro, para iniciar sua própria igreja. O primeiro passo foi iniciar um programa de rádio que ia para o ar logo após uma outra programação religiosa, apresentada por uma mãe-de-santo. O programa, ao vivo, garantia que Edir contrapusesse os discursos, as cosmologias e, principalmente, os resultados práticos de uma religiosidade e outra. Durante esse período, com o auxílio de Romildo Ribeiro Soares, seu cunhado, (hoje, conhecido como “missionário R.R. Soares”), Roberto Augusto Lopes e Samuel Fidélis Coutinho, fundou a Igreja Cruzada do Caminho Eterno. Logo depois, Macedo e R. R. Soares consagraram-se mutuamente pastores, sendo que Edir Macedo passou a acumular também o cargo de tesoureiro da cruzada. Vale dizer que antes de fundarem a Igreja do Caminho Eterno, esses dois líderes nunca haviam exercido qualquer cargo eclesiástico; contudo – mesmo sem qualquer formação teológica específica – obtiveram a consagração para tal função. Três anos mais tarde ocorreu uma cisão no grupo. Foi quando Macedo, após também pedir demissão de seu emprego na Loteria, com o apoio de R. R. Soares, fundou, no dia 9 de julho de 1977, a Igreja Universal do Reino de Deus. Em 1980, devido a uma divergência, R.R Soares separou-se de Macedo para fundar a sua própria denominação religiosa, a Igreja Internacional da Graça de Deus. Mais tarde, em 1981, Macedo optou pelo episcopado, sendo consagrado bispo. O crescimento da Igreja Universal se deu de modo sem precedentes no campo religioso brasileiro. Em menos de três décadas transformou-se no mais surpreendente e bem-sucedido fenômeno religioso do país. Nenhuma outra igreja havia crescido tanto em tão pouco tempo. Nos primeiros anos, a distribuição geográfica da Igreja se concentrou nas regiões metropolitanas do Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador. Em seguida expandiu-se pelas demais capitais, grandes e médias cidades. Com apenas três anos já contava com 21 templos em cinco estados brasileiros. Em 1985, avançou para 195 templos em 14 Estados e no Distrito Federal. Em 1989, eram 571 locais de culto. Na década de 1990, passou a cobrir todos os Estados do território brasileiro. Em 1999, numa vigília, reuniu multidão suficiente para lotar, ao mesmo tempo, o enorme estádio do Maracanã e o Maracanãzinho, onde a Universal ousou novamente ao alugar dois trens, cada um com oito vagões, que saíram da Baixada Fluminense, transportando os fiéis até o local da reunião. Inovação e agressividade têm sido marcas distintivas do movimento iurdiano. Isto se observa, por exemplo, no uso extensivo e impactante dos meios de comunicação, principalmente o rádio e a TV, como instrumento de evangelização de massas, tendo consequentemente acesso ao ambiente privado dos lares em horários nobres e nos horários tardios.

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A mensagem Neopentecostal Usando como slogan a frase “Pare de Sofrer”, panfletos publicados pela Igreja Universal do Reino de Deus faziam o seguinte anúncio prometendo de imediato a solução para os seguintes casos: Desemprego, caminhos fechados, dificuldades financeiras, depressão, vontade de se suicidar, solidão, casamento destruído, desunião na família, vícios (cocaína, crack, álcool, etc.), doenças incuráveis (câncer, AIDS, etc.), dores constantes (de coluna, cabeça, perna) insônia, desejos homossexuais, perturbações espirituais (você vê vultos, ouve vozes, tem pesadelos, foi vítima de bruxaria, macumba, inveja ou olho grande) má sorte no amor, desânimo total, obesidade, etc. Nós! Sim, nós temos a solução para você! É possível dizer que ao procurar satisfazer as necessidades e desejos dos que recorrem a seus templos, o Neopentecostalismo desempenha uma atividade que pode ser denominada de pastoral-mágica,56 pelo fato de se recorrer ali, por meio de certos atos e palavras, a determinados ritos, símbolos e cerimônias, baseados na crença da força sobrenatural, que pressupõe o domínio do homem sobre a natureza. São exemplos desta magia o uso de fetiches, como a arruda, a rosa ungida, além de rituais voltados para o “encosto”, o “descarrego”, a sexta-feira “forte”, etc. Em relação à magia dos símbolos e dos objetos cúlticos ali utilizados, pode-se dizer que os mesmos são tipicamente pertencentes às tradições afro e católico-popular brasileira, imaginário este que é herdeiro tanto das tradições do cristianismo quanto das velhas ideias pagãs. É característica marcante ali, o fato de os pastores aproximarem ou adaptarem os discursos e os ritos àquilo em que os fiéis já creem, ocorrendo, assim, um sincretismo, uma adaptação, uma circulação cultural. Outra marca deste movimento são as “campanhas” baseadas, principalmente, em passagens do Antigo Testamento, aplicadas sem a devida exegese com fins teatrais para impressionar os fiéis. Vemos, assim, a história se repetindo. Assim, como a ICAR buscou, a princípio, usar imagens para fins didáticos que desembocaram em idolatria e misticismo pagão, assim ocorre com as igrejas pentecostais e neopentecostais. Meios de comunicação Outra importante característica do Neopentecostalismo está no intenso uso dos meios de comunicação de massa como estratégia de propagação. Segundo dados do IBOPE, em 1991, 60% do público ouvinte dos programas 56

Por isso, Antônio Gouvêa Mendonça ao referir-se às “Agências de cura divina” e sua prática mística, emprega a terminologia “sindicato de mágicos”. Cf. MENDONÇA, A. G. “Sindicato dos Mágicos: Pentecostalismo e Cura Divina”. In: Igreja e Seita. Estudos de Religião, ano VI, n.º 8, Outubro 1992. p.49-60

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evangélicos na TV seriam de não evangélicos. A expansão da Igreja Universal do Reino de Deus é um caso exemplar neste aspecto. Em 1984, ocorreu a compra da 1ª emissora de rádio, a Copacabana Rio. Um avanço maior se deu em 1988, quando houve a aquisição de várias emissoras de rádio e TV. A partir daí, não faltaram empreendimentos milionários, como por exemplo, a compra do jornal diário Hoje em Dia e a rádio Cidade de BH, por 20 milhões de dólares. Ao final da década de 90, a IURD já possuía um verdadeiro império comunicacional formado por 22 emissoras de rádio e 16 emissoras de televisão, além da TV Record, adquirida pela igreja ao preço de 45 milhões de dólares, em 1989. Especificamente em Londrina, a Igreja Universal é proprietária da Rádio Atalaia AM, além de alugar a Rádio Gospel FM, as quais transmitem de forma ininterrupta e com exclusividade, programas da denominação. Não é diferente o caso de R.R. Soares, que desenvolve um eficaz trabalho de televangelismo, além de possuir uma gráfica, uma editora, e a revista Carta Viva, com grande tiragem e de circulação nacional. A igreja possui programas de rádio em várias emissoras espalhadas pelo país, havendo, entretanto, grande preferência pela TV, cujos programas são transmitidos diariamente em rede nacional, muitos deles em horário nobre. Neste aspecto, o uso da mídia pela Igreja Internacional da Graça de Deus é ainda mais intenso. Estima-se que o investimento para isso ultrapasse os 2 milhões de reais por mês. Templos suntuosos A partir da segunda década de sua existência, surgiu uma nova estratégia iurdiana: a construção de suntuosos templos, com capacidade para abrigar confortavelmente milhares de pessoas, chamados de “catedrais da fé”. Com auditório para comportar 12 mil pessoas confortavelmente assentadas, agrega ainda em seu complexo uma espécie de shopping-center com lojas de roupas, livrarias, praça de alimentação, cinema, parques infantis, museu com exposição de objetos trazidos de Israel. Tal prática visa tornar visível a eficácia de sua mensagem ancorada na chamada “teologia da prosperidade”, demonstrando aos fiéis uma coerência entre o discurso e a prática. Seu auge foi a inauguração do Templo de Salomão, na cidade de São Paulo, propalado como réplica do antigo templo judaico e o maior espaço religioso do País – quatro vezes maior do que o Santuário Nacional de Aparecida. O evento de inauguração – ocorrido em 31 de julho de 2014 contou com a presença de ilustres autoridades do país daquele tempo, com destaque para a ex-presidente da República, Dilma Rousseff, do vicepresidente Michel Temer, além do ex-governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, e do ex-prefeito da capital paulista, Fernando Haddad. O novo santuário impressiona pela imponência: O prédio frontal tem 11 andares e mede 56 metros de altura. Já o prédio dos fundos tem cerca de 41 metros

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de altura. A ostentação e requinte, custaram R$ 680 milhões de reais em sua edificação. Conclusão A liderança dessas igrejas é semelhante à empresarial: oferta e demanda, marketing forte, soluções instantâneas etc. A grande aceitação por parte do povo não demonstra aprovação divina, pois as Escrituras são negligenciadas. Ao longo do tempo, com a difusão de materiais bíblicos gratuitos na internet, o monopólio controlador dessas igrejas tem sido enfraquecido e, cada vez mais, pessoas tem buscado conhecer a Palavra de Deus exposta de forma séria. Por ter uma abordagem empresarial, essas igrejas são obrigadas a sempre se reinventarem para que atraiam o público, que se cansa facilmente com as mesmas histórias, e para que possam se manter financeiramente em seus estilos de vida ostensivos, que buscam ser condizentes com a teologia que pregam. Com a necessidade de sempre se reinventar, surgiram novas denominações, trazendo o que podemos chamar de Neopentecostalismo 2.0. Denominações, como Igreja Mundial do Poder de Deus (IMPD)57 e Igreja Apostólica Plenitude do Trono de Deus – representadas, respectivamente, pelos fundadores Valdemiro Santiago e Agenor Duque, ex-líderes da IURD – trazem os mesmos conceitos de sua igreja-mãe, porém se associam à Nova Reforma Apostólica, onde passam a se autodenominar de “apóstolos”.58 Com essas ondas, que progridem em construir heresia sobre heresia, cada vez mais desvios ocorrem, semelhante à ICAR.

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Que sempre teve rincha com a IURD, construindo a Cidade Mundial, em Garulhos – SP, para concorrer com o Templo de Salomão. 58 Para mais informações sobre a Nova Reforma Apostólica e como ela é antibíblica, confira o livro Apóstolos: Verdade Biblica sobre o apostolado escrito pelo Rev. Augustus Nicodemus.

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Unidade 13 – Teologia da Prosperidade A teologia da prosperidade, amplamente propagada pelo neopentecostalismo e assimilada por muitas denominações pentecostais, teve grande aceitação no Brasil; por este ser um país subdesenvolvido, promessas de enriquecimento fácil são, logicamente, vistas com bons olhos, como uma oportunidade de mudar de vida. Embora possa parecer errado, muitos subestimam tal teologia não atentando para suas origens e articulações perniciosas. Os ensinos precursores desta teologia se remontam a movimentos teosóficos59 propagados no contexto norteamericano ainda no século XIX, que enfatizavam a “confissão positiva” com finalidades terapêuticas, tendo como pressuposto o fato de que as forças mentais e espirituais estão à disposição do indivíduo para que, uma vez manipuladas, possam realizar curas e resolver problemas. São considerados pais da “teologia da prosperidade” Essek W. Kenyon (1867–1948) e Kenneth Hagin. Kenyon estudou no Emerson College of Oratory em Boston, centro de difusão destas “novas filosofias”. Na sua juventude foi participante da Igreja Metodista, transferindo-se depois para a Igreja Batista, vindo a tornar-se, finalmente, um pregador pentecostal itinerante. Ganhou projeção no meio religioso, ao ensinar que a mente e o espírito exercem influência sobre a matéria, que as doenças têm a sua origem na esfera metafísica e que a cura é decorrência da ação da mente sobre o corpo. Kenyon recebeu várias influências de religiões orientais que enfatizam a confissão positiva e a cura física, como por exemplo, o Budismo e a Seicho-no-iê. Propagou suas ideias também através da literatura, escrevendo vários pequenos livros e alcançando o auge de sua carreira nos anos 30 e 40. Como pregador de cura divina, viveu uma geração antes de Hagin e influenciou diretamente a este, principalmente quanto à confissão positiva. Também como Hagin, teve pouco treinamento teológico formal, tendo pastoreado várias igrejas, incluindo metodistas, batistas e pentecostais. Por fim, tornou-se evangelista itinerante, sem vínculos com nenhuma denominação. No final dos anos 30 e durante a década de 40, atingiu grande público, principalmente através de programas de rádio e literaturas, chegando a produzir 28 livretos sobre seus ensinos. Foi através destes livros que influenciou diretamente a Hagin quanto à cura, prosperidade e confissão positiva. Aliás, os livros de Hagin chegaram a ser quase que cópias dos escritos de Kenyon. Kenneth Hagin nasceu em 1918, nos Estados Unidos. Após concluir o ensino médio, e sem ter feito nenhum curso teológico preparatório,

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As seitas místicas que se formaram neste período nos Estados Unidos, sincretizaram conceitos elaborados na Europa por Franz A. Mesmer (1734– 1815) com cosmologias orientais (presentes no ensinamento da Seicho-noiê, por exemplo). São propagadores destas “novas filosofias”: Phineas Quimby (1802–1866), e também Mary Baker Eddy (1821–1910), este responsável pelo surgimento da seita religiosa denominada Ciência Cristã.

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começou a pastorear uma igreja Batista. Por discordâncias doutrinárias – dizia ter visões sobrenaturais – foi afastado desta denominação, filiando-se então à Assembleia de Deus. Após pastorear outras igrejas pentecostais nos Estados Unidos, durante doze anos, decidiu se tornar pregador itinerante da cura divina e da prosperidade financeira. Dedicou-se também à produção literária de suas ideias. Hagin não somente leu os textos de Kenyon; ele copiou palavra por palavra e, depois, lançou os resultados como se fossem frutos do seu trabalho. Por exemplo, quase 75% da edição original do livro Autoridade do Crente coincide palavra por palavra com um livreto anterior de Kenyon, publicado em sua origem com o mesmo título. Desse modo, não é surpresa o fato de os ensinos de ambos serem os mesmos.60 Hagin faz questão de enfatizar que estas duas coisas, saúde e riqueza, representam sempre a vontade de Deus para o cristão: Nós como cristãos, não precisamos sofrer reveses financeiros; não precisamos ser cativos da pobreza ou da enfermidade. Deus proverá a cura e a prosperidade para seus filhos se eles obedecerem aos seus mandamentos... Deus quer que os seus filhos tenham o melhor de tudo.61 São propostas como esta que tornam este modelo de pregação tão atraente. Para Hagin, Deus tem a “obrigação” de conceder prosperidade ao cristão. Segundo ele, os líderes cristãos têm o dever de pregar essa mensagem com toda a sua força. Depois de citar o texto bíblico de Josué 1:8, afirma: Você quer ser bem sucedido? Deus vos conta como prosperar, neste versículo. Ele diz que a sua palavra enche o nosso coração ao ponto de “se meditarmos nela dia e noite”, acharemos prosperidade. Subentende-se que o homem cheio da palavra de Deus prosperará espiritualmente. Mas o aspecto que quero enfatizar aqui é a promessa de que Deus dá prosperidade física ou material, e não somente espiritual.62 A teologia da prosperidade configura com elementos religiosos os desejos consumistas. Neste, as pessoas estão em constante contato com as vitrines, com os shoppings, com as concessionárias de veículos, etc., o que lhes aguça o desejo de possuir tais bens, até porque tais produtos são símbolos de status e prestígio no contexto urbanizado. Assim, é comum 60

PIERRAT, Alan B. O Evangelho da Prosperidade. São Paulo: Vida Nova, 1993. p.30 Ibid., p, 51. 62 Ibid., p, 58. 61

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ouvir dos pregadores da prosperidade a afirmação de que Deus quer que seus filhos comam a melhor comida, vistam as melhores roupas, dirijam os melhores carros e tenham o melhor de todas as coisas. Hagin chega a dizer que Jesus dirigiria o “melhor automóvel” se estivesse vivendo nos dias atuais: Um pregador certa vez me disse que fulano possuía humildade porque andava num carro muito velho. Repliquei: “isso não é humildade, isso é ser ignorante!” (...) Não havia cadillac naquela época, mas Jesus andou num jumento, e este era o melhor meio de transporte da época. Deus disse que éramos para reinar em vida como reis. Quem jamais imaginaria um rei vivendo em pobreza? A ideia de pobreza simplesmente não combina com reis.63 Também está associado a este modelo de teologia o ensino de que o cristão não deve gastar seu dinheiro com médicos e remédios, uma vez que a fé é suficiente para a cura de todas as suas doenças. Para tais pregadores, os médicos destinam-se somente aos descrentes e a profissão que eles exercem é testemunho da bondade de Deus para com o mundo. Referências a personagens bíblicos que desfrutavam de uma vida próspera e mantinham um bom relacionamento com Deus, como Abraão, são sempre trazidas à tona pelos pregadores. Quando lembrada, a pobreza de Cristo, conforme os relatos bíblicos, assume para os pregadores da prosperidade caráter de redenção divina para a humanidade: “Jesus fez-se pobre para que fôssemos ricos”, afirmam. A regra espiritual das finanças então seria: se a pessoa quer mais, ela precisa dar mais. Hagin afirma: Você gostaria de ter maiores bênçãos financeiras em sua vida? Aumente suas contribuições e ofertas, porque as Escrituras dizem que sua colheita será recalcada, sacudida e transbordante, porque com a medida com que tiverdes medido vos medirão também. Por outro lado, podemos estorvar nossas orações em prol da prosperidade financeira, se não cooperarmos com Deus.64 Para que Deus se comprometa a agir na vida financeira do fiel é necessário, portanto, que este lhe desafie. A expressão representativa deste desafio são os dízimos e as ofertas. Durante os cultos, salienta-se repetidas vezes que os milagres financeiros podem somente acontecer mediante uma atitude de fé e sacrifício da parte do ofertante. Os pregadores

63 64

Ibid., p, 59. HAGIN, K. A Oração que Prevalece para a Paz. Graça Editorial, 2005, p. 137.

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neopentecostais não cansam de afirmar que o fiel receberá cem vezes mais do que o valor ofertado. Hagin fundou a escola bíblica Centro de Treinamento Bíblico Rhema, que está presente em vários países do mundo, sendo o Centro de Treinamento Bíblico Rhema Brasil a maior delas, que propaga esta teologia distorcida tanto nas capitais como nas cidades interioranas.

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Unidade 14 – A Igreja na Alemanha Nazista Os dois reinos, liberalismo teológico e totalitarismo nazista Um tema teológico importante na tradição luterana é a doutrina dos dois reinos, aplicada à distinção entre a Igreja e o Estado. Caberia à Igreja, representada pelo altar, toda a ação evangélica, ou seja, a pregação da Palavra. E ao Estado, representado pelo trono, caberiam as questões políticas e sociais, cuja função principal é ser a “espada”, o juízo sobre o pecado. Essa posição é resumida como a afirmação de que o Estado, na pessoa do rei ou do governante, dirige a Igreja em alguns aspectos, sendo que, em outros, só a Igreja pode agir ou decidir. O gráfico abaixo esboça esta concepção:

A relação do cristão com os poderes seculares limita-se à quietude de um “estar-em-mas-não-pertencer-ao” Estado, o que produziu entre os luteranos alemães um legado de subserviência às autoridades seculares. Isto se revelou trágico num ambiente marcado pelo nacionalismo, culto da raça e dos heróis, antissemitismo e obsessão militarista que dominou a Alemanha desde 1870 até o fim da Segunda Guerra Mundial. Pensando em termos de espectro político, o gráfico abaixo ilustra as ênfases estatizantes e intervencionistas associadas com a esquerda, como no comunismo e no nazismo, o tipo de ideologia que a doutrina dos dois reinos não preparou os fiéis luteranos para enfrentar, na qual, a partir de certa concepção da transcendência do Estado ou do partido, se tem pouca ou nenhuma liberdade pessoal e nenhuma liberdade econômica nas várias esferas que compõem a sociedade.

O grande desafio da concepção luterana dos dois reinos se deu com a ascensão do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei). Após uma guinada política

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inesperada, Adolf Hitler ascendeu ao poder, quando o presidente Paul von Hindenburg tornou-o chanceler, em janeiro de 1933. E com a morte do presidente, em agosto de 1934, Hitler assumiu, com a aprovação do Parlamento (Reichstag), as funções de presidente e chanceler, passando a ser chamado de “guia” (Führer). Num plebiscito realizado nesse mesmo mês a fusão de cargos foi aprovada por 89,9% do eleitorado. Mas, ainda que esta ascensão tenha se dado pelas vias democráticas, logo a constituição foi modificada para que o partido nazista se tornasse a única autoridade na Alemanha. Então, após a humilhação da derrota na Primeira Guerra Mundial (1914 - 1918), uma mudança espantosa ocorreu na Alemanha: (1) a economia foi restaurada em menos de cinco anos; (2) a vergonha da derrota alemã na Primeira Guerra Mundial foi abrandada por meio da reivindicação da região da Renânia-Palatinado e o repúdio ao Tratado de Versalhes; (3) rearmamento das forças armadas alemãs, tornando-as em pouco tempo as mais modernas da Europa; (4) férias proporcionadas a milhões de alemães, por meio do programa “Força pela alegria” (Kraft durch Freude); (5) escolas profissionalizantes fundadas para os que não possuíam qualificações, diminuindo dramaticamente o desemprego e controlando a criminalidade; (6) construção de autoestradas e a promessa de um carro popular acessível ao alemão comum. Até mesmo a frequência à igreja aumentou: em 1932, 215.908 pessoas deixaram a igreja, e somente 49.700 se uniram a ela. Em 1933, 323.618 se uniram à igreja, enquanto somente 56.849 a abandonaram. Por tudo isto, os alemães agora podiam se orgulhar de ser novamente uma grande nação. Mas, como Dietrich Bonhoeffer escreveu a seus colegas da resistência Eberhard Bethge, Hans von Dohnanyi e o major-general Hans Oster, no final do ano de 1942: O grande baile de máscaras do mal confundiu todos os conceitos éticos. Para a pessoa que vem de nosso universo conceitual ético tradicional, é realmente desconcertante que o mal possa tomar a forma da luz, da ação beneficente, da necessidade histórica, da justiça social. Para a pessoa cristã que vive a partir da Bíblia, isto é justamente a confirmação da maldade abissal do maligno.65 De acordo com Richard Steigmann-Gall, o nazismo não era escancaradamente pagão, ainda que uma ala minoritária dele o fosse. Conforme este autor, o que os nazistas propunham era uma reinterpretação da fé cristã chamada “cristianismo positivo” (Positives Christentum).

65

BONHOEFFER, Dietrich. Resistência e submissão: cartas e anotações escritas na prisão. São Leopoldo: Sinodal, 2003, p. 28.

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Segundo este autor, tal esforço revisionista da fé cristã tem suas origens no protestantismo liberal (Kulturprotestantismus) do século 19. Em resumo, protestantes liberais e ideólogos nazistas compartilhavam da mesma cosmovisão, com sua rejeição do Antigo Testamento e da historicidade dos Evangelhos, do “rabino Paulo” como um falsificador da mensagem de Cristo, da ressurreição do corpo, do pecado original e da depravação total e, fundamentalmente, da rejeição do escândalo da cruz, sendo Jesus redefinido como um herói “ariano” que lutou contra o judaísmo capitalista. Assim a rejeição do Antigo Testamento pelos liberais e nazistas, tem como pano de fundo o antissemitismo. Os ideólogos nazistas se apropriaram da reinterpretação do protestantismo liberal do cristianismo, incorporando-a em seu discurso, numa tentativa de criar um novo sincretismo, uma nova religião nacional que uniria católicos e protestantes na Alemanha, baseada em um sistema de valores e não em uma doutrina. Em lugar das confissões de fé cristãs, consideradas ultrapassadas, raça e povo (Volk), sangue e solo passaram a ser o padrão. E um elemento comum entre o “cristianismo positivo” e os paganistas do partido nazista era a radical rejeição dos credos, da igreja institucional e do clero cristão. Karl Barth Karl Barth nasceu em Basiléia, Suíça, em 10 de maio de 1886. Era filho de Fritz Barth, um ministro reformado e professor de Novo Testamento e História da Igreja na Universidade de Berna, na Suíça, e Anna Sartorius. Ele recebeu sua educação inicial como membro da Igreja Reformada Suíça por seu pastor, Robert Aeschbacher. Essa educação deixou marcas profundas em sua mente, as quais podem ser notadas em toda a sua produção teológica. Estes estudos levaram-no a se decidir por estudar teologia. Estudou nas universidades de Bern, Berlin, Tübingen e Marburg, tendo recebido seu bacharelado em 1909. Concluídos seus estudos, foi convidado a ser pastor assistente da paróquia reformada suíço-alemã de Genebra (ele pregava de tempos em tempos no mesmo grande salão em que Calvino havia falado, três séculos e meio antes), e, em 1911, iniciou o pastorado numa pequena igreja reformada no interior da Suíça, em Safenwill (a única igreja numa pequena cidade de 2.000 habitantes), no cantão da Aargau, onde ficou até 1921. Ele deparou-se com a realidade rural e com os conflitos entre operários e patrões, que ocorriam na única fábrica existente na região e da qual dependia toda a comunidade. Barth passou, então, a envolver-se com conflitos e questões sociais. Por essa época tornou-se socialista cristão. Participou de ações políticas e ajudou a organizar um sindicato. Em 1915, filiou-se ao Partido Social-Democrata. Mas, com o início da 1ª Guerra Mundial, Barth viu sua fé liberal abalada, assim como seus ideais socialistas. Após deixar o liberalismo, seguiu a linha teológica que posteriormente ficou

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conhecida como Neo-ortodoxia que, embora tentasse rebater as ideias liberais, ainda se acomodou com as filosofias modernas, o que gerou distorções doutrinárias. Em 1931 os nazistas organizaram o Movimento de Fé, que era conhecido como os “cristãos alemães” (Deutsche Christen), fanaticamente nazista, promotor do cristianismo positivo, e que era um influente grupo minoritário dentro da igreja evangélica alemã. O alvo dos “cristãos alemães” era unificar as diversas províncias evangélicas numa nova e única igreja evangélica a Igreja Evangélica Alemã (Deutsche Evangelische Kirche), conhecida também como Igreja do Reich (Reichskirche), sob total domínio estatal. Depois de bastante controvérsia, em abril de 1933, esta nova igreja foi criada da fusão das vinte e oito igrejas territoriais. Nesta época retratos de Hitler eram expostos diante dos altares nas igrejas e crianças eram Karl Barth batizadas diante de bandeiras nazistas. Como oposição aos “cristãos alemães”, por iniciativa de Walter Künneth e Hans Lilje, surgiu, em 9 de maio de 1933, o movimento “Jovens Reformadores” (Jungreformatorische Bewegung). Karl Barth (1886 – 1968), então lecionando teologia sistemática na Universidade de Bonn, reagiu aos “cristãos alemães” escrevendo em maio O primeiro mandamento como axioma teológico e em junho A existência teológica hoje. Em 13 de novembro, uma assembleia de vinte mil “cristãos alemães” iniciada ao som do hino “Castelo Forte” foi realizada no Palácio dos Esportes de Berlim, afirmando: (1) a necessidade de se remover todos os pastores que se opusessem ao nacional-socialismo; (2) a expulsão dos membros de origem judaica; (3) a aplicação do Parágrafo Ariano; (4) a remoção do Antigo Testamento das Escrituras; (5) a remoção de aspectos que não fossem germânicos da liturgia; e (6) a revisão do Novo Testamento por meio da adoção de uma interpretação mais “heroica” e “positiva” de Jesus, não mais como o crucificado, mas como rei que lutou contra a influência judaica. Porque Karl Barth se recusou a prestar o juramento de lealdade a Hitler em novembro de 1934, e por sua resistência às tentativas do partido de unificar e subordinar a igreja ao regime, foi proibida a venda de seus livros na Alemanha e ele foi expulso do país em junho de 1935, partindo para a Suíça, a fim de lecionar na Universidade de Basel. Neste mesmo ano, cerca de 700 pastores da Igreja Confessional foram presos, pelo fato de uma declaração que denunciava os “cristãos alemães” e os “deuses falsos” da raça e do povo ter sido lida nos cultos.

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Em agosto de 1937 foi promulgado o “Decreto de Himmler”. Com isso, os fundos da Igreja Confessante foram confiscados, assim como seus pastores proibidos de recolher ofertas nos cultos. Além disto, os exames teológicos para ordenação foram proibidos, e os seminários de pregadores (Predigerseminar) considerados ilegais. Estas atividades passaram a ser consideradas criminosas e passíveis de prisão. Por fim, a partir de 1938 foi exigido que os pastores protestantes fossem obrigados a prestar um juramento de lealdade (Treneid der Pfarrer) a Adolf Hitler. Após ver a queda do nazismo e ter chegado a ser capa da revista Time, Karl Barth faleceu em 10 de dezembro de 1968, aos 82 anos, em Basiléia. A última palavra que pronunciou, na noite anterior, em telefonema a seu amigo Thurneysen, foi: “Deus não nos abandona a nenhum de nós e tampouco a nós todos juntos! – Há um governo!”. Barmen Em 4 de janeiro de 1934, por convocação de Karl Barth, 320 conselheiros sinodais e pastores representando 167 igrejas reformadas reuniram-se em Barmen, um subúrbio de Wuppertal, na Renânia do NorteWestfália. Nessa ocasião, Barth apresentou uma declaração sobre a correta compreensão das confissões na atualidade. E em 16 de maio foi realizada no Basler Hof Hotel, em Frankfurt, uma reunião da Comissão Teológica composta por Karl Barth, Hans Asmussen e Thomas Breit, a preparar uma Declaração a ser apresentada no concílio ecumênico. Finalmente, em 29 a 31 de maio de 1934 ocorreu o Sínodo de Barmen, na igreja reformada de Barmen-Gemarke, como concílio das comunidades luteranas, reformadas e unidas, sob a moderação de Karl Koch, da Igreja da Westfália. Depois de lida em voz alta, a Declaração Teológica de Barmen (Barmer Theologische Erklärung) foi aprovada unanimemente pelos 138 delegados. Hans Thimme, assistente do moderador do Sínodo, relembrou depois: Uma agitação se espalhou pelo grupo de tal forma que os homens começaram a chorar abertamente. De forma totalmente espontânea, sem que ninguém dissesse algo, alguém anunciou: “Agora vamos cantar Nun danket Gott”! [‘Agora, damos graças a Deus’]. Esse foi o ponto alto de Barmen e, em certo sentido, o ponto alto da minha vida, porque com isso, na verdade – e esta era a única coisa decisiva sobre Barmen – determinamos a identidade da igreja.66 Com isto, foi deflagrada a chamada “disputa pela igreja” (Kirchenkampf). E da “Liga Emergencial dos Pastores” surgiu a “Igreja Confessante” (Die bekennende Kirche), composta por quase sete mil 66

BARNETT, For the Soul of the People, p. 54.

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pastores. Ainda neste ano, em 30 de outubro, por ocasião das comemorações do Dia da Reforma, Barth proferiu a palestra “Reforma é decisão” (Reformation als Entscheidung) numa conferência em Berlin. A primeira tese desta Declaração afirmou a autoridade única de Jesus Cristo sobre a igreja, rejeitando tanto a autoridade eclesiástica instalada por Hitler para manipular a igreja, quanto o nazismo, considerado idolatria. A segunda tese tratou da segurança que vem de Cristo assim como de sua soberania sobre toda a vida, afirmando a unidade do evangelho e da lei em Cristo. A terceira tese declara o senhorio de Cristo sobre a igreja e afirma que o mundo não tem o direito de definir a agenda da igreja. A quarta tese ensina que as diversas funções da igreja são para mútuo serviço e ministério, não para o exercício de poder iníquo. A quinta tese modifica a teologia luterana dos dois reinos ao reconhecer a instituição divina do Estado, mas rejeitar as pretensões do Estado que se torna totalitário e assume a vocação da igreja. Por fim, a sexta tese afirma o chamado da igreja para proclamar a livre graça de Deus para todos, por meio da Palavra e dos sacramentos. A Declaração de Barmen posicionou-se não somente contra a aberração dos “cristãos alemães”, mas contra toda a tradição do sincretismo modernista que tornou isso possível. Como Barth notou posteriormente, o grande problema dos “cristãos alemães” era o resultado de dois séculos de uma longa tradição de considerar a revelação de Deus insuficiente. Por isto a necessidade de tratar a revelação ao lado de outra fonte de autoridade – daí, revelação e razão; revelação e história; revelação e humanidade; e, finalmente, revelação e Alemanha. Por isso, a Declaração é o primeiro documento extraído de uma confrontação séria da Igreja Evangélica com o problema da teologia natural67, onde esta é rejeitada categoricamente. Num contexto onde a arte, a imprensa, o rádio, o cinema, a educação, a economia, as forças armadas e a justiça cederam à pressão dos nazistas, Barth, comentando a quarta tese, lembrou que “o Estado não pode se apropriar do homem em sua totalidade, não pode querer definir a forma e a mensagem da igreja. Se reconhecemos isso, devemos também confessálo”.68 Por isso, ainda que não abordasse diretamente questões sociais ou políticas, de acordo com a Declaração Teológica, uma igreja sancionada por um governo totalitário se tornou numa igreja apóstata e herética. Aqueles reunidos em Barmen reconheceram o papel do Estado como mantenedor da ordem, mas este não deveria desempenhar a missão da igreja. Por isto, a Declaração Teológica deve ser considerada um chamado à resistência contra as tentativas do governo nazista de dominar a Igreja Evangélica, expulsando os judeus da igreja e do ministério e honrando Adolf 67 68

A teologia natural, de forma geral, tem a revelação natural como suficiente para se conhecer a Deus. Textes Symboliques (Genebra, 1960), p. 76, citado em CORNU, Karl Barth, teólogo da liberdade, p. 47.

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Hitler como o novo guia de toda a sociedade. Ao fim de junho de 1934, 25.000 cópias de uma edição da Declaração preparada por Karl Immer haviam sido vendidas. Em conjunto, o tratado A existência teológica hoje e o Sínodo de Barmen foram o primeiro movimento de oposição ao nazismo na Alemanha. Dietrich Bonhoeffer Nascido em Breslau (Alemanha) em 1906, com a irmã gêmea Sabine, Dietrich foi o sexto de oito filhos de Karl e Paula Bonhoeffer. Seu pai era um importante professor de psiquiatria e neurologia; a mãe, uma das poucas mulheres formadas da sua geração. Formando-se em teologia em Berlim, em 1927, Bonhoeffer iniciou a atividade de pastor em uma igreja alemã em Barcelona, em 1928. Em 1930, foi estudar em Nova York, no Union Theological Seminary. Em 1931, começou a lecionar na Faculdade de Teologia de Berlim e foi ordenado pastor. Como teólogo, compartilhava dos ideais neo-ortodoxos de Barth. Dois dias depois de Hitler se tornar chanceler, em 1º de fevereiro de 1933, Bonhoeffer teve sua fala no rádio cortada ao atacar o conceito do “princípio de autoridade” (Führerprinzip) hierárquico associado a Hitler, quando afirmou que “governante e governo que se divinizam afrontam a Deus”. Em 7 de abril, ele falou a um grupo de pastores sobre “A igreja e a questão judaica” (Die Kirche vor der Judenfrage). Ele convocou as igrejas para, em primeiro lugar, tomar uma atitude contra o governo, por aprovar leis racistas que não tinham legitimidade. Segundo, ele exigiu que a igreja se comprometesse incondicionalmente com os perseguidos pelo Estado – fossem eles participantes da comunidade cristã ou não. Finalmente, ele afirmou que a igreja devia “travar as rodas do Estado” caso a perseguição aos Dietrich Bonhoeffer judeus continuasse, exigindo uma ação política imediata, por parte da igreja. Bonhoeffer finalmente concluiu que a resistência não era apenas uma opção legítima para a igreja, mas um status confessionis: uma situação em que os preceitos da fé cristã exigem que os cristãos resistam, se eles quiserem manter sua integridade confessional. Muitos dos pastores presentes neste encontro saíram do recinto convencidos de que tinham ouvido a incitação para uma rebelião. Em setembro de 1933, viajou para a Inglaterra, onde pastoreou duas congregações de fala alemã em Londres, desapontado porque a Igreja Confessante não tomou uma atitude mais firme contra o antissemitismo. Retornando à Alemanha, em abril de 1935 Bonhoeffer passou a dirigir um seminário de pregadores da Igreja Confessional em StettinFinkenwalde, na Pomerânia, que foi fechado em setembro de 1937 pela

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Gestapo69. A clandestinidade tornava essa instituição, pelo menos da perspectiva estatal, subversiva. Por isto, desde o princípio, esse seminário foi uma entidade política, opondo-se ao nazismo. A partir do estudo das Escrituras, Bonhoeffer entendeu que diante da opressão secular a igreja necessita estar presente no mundo, sendo obediente em circunstâncias difíceis – como ele disse, o cristão precisa viver a “graça dispendiosa” e não a “graça barata”. Depois de alguns meses nos Estados Unidos, Bonhoeffer voltou à Alemanha em 1939, quando se tornou agente duplo da Abwehr (Serviço Secreto das Forças Armadas), dirigida pelo almirante Wilhelm Canaris, unindo-se à resistência alemã. Neste mesmo ano, em 1º de setembro, a Polônia foi invadida pelas forças armadas alemãs, tendo início a Segunda Guerra Mundial na Europa. Em 1940 Bonhoeffer foi designado para o escritório da Abwehr em Munich. Em 1941 ele viajou duas vezes para a Suíça, para mediar contatos entre a resistência e as igrejas ocidentais. Ao retornar à Alemanha, foi proibido de escrever. Em 1942 ele viajou para a Noruega, Suécia e Suíça para, em nome da resistência, manter contato com os aliados ocidentais. Inesperadamente, em 5 de abril de 1943, a Gestapo o deteve. Em todo esse tempo Bonhoeffer nunca vacilou em sua oposição cristã contra o regime nazista – o que acarretou prisão em Berlin-Tegel, perigo para sua própria família e, finalmente, a morte – por seu envolvimento na Operação Valquíria (Unternehmen Walküre), em 20 de julho de 1944.70 Seu comprometimento com a resistência é evidenciado no que ele disse para sua cunhada, Emmi: “Se eu vejo um louco dirigindo um carro na direção de um grupo de pedestres inocentes, não posso, como cristão, simplesmente esperar pela catástrofe para, depois, consolar os feridos e enterrar os mortos. Devo tentar lutar para tirar o volante das mãos do motorista.” Vítima de um dos últimos atos de vingança de Hitler, Bonhoeffer e vários colegas da resistência foram enforcados em 9 de abril de 1945, no campo de concentração de Flossenbürg, a um mês da rendição alemã. Era o cumprimento do que ele sempre crera e ensinara: “O sofrimento é, pois, a característica dos seguidores de Cristo. O discípulo não está acima do seu mestre. O discipulado é ‘passio passiva’, é sofrimento obrigatório. (...) O discipulado é união com Cristo sofredor. Por isso nada há de estranho no sofrimento do cristão, antes é graça, é alegria”.71 Suas últimas palavras registradas antes de ser enforcado foram: “É o fim, mas para mim é o início da vida”.

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Polícia secreta criada para servir o partido nazista. A Operação Valquíria foi um plano de matar Hitler para que o exército assumisse a liderança do país, mas fracassou. 71 BONHOEFFER, Discipulado, p. 46. 70

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Unidade 15 - Ecclesia Reformata et Semper Reformanda est O termo latino título desta unidade significa “Igreja Reformada está Sempre se Reformando”, este foi lema dos reformadores que entenderam a necessidade de se estar sempre voltando às Escrituras, buscando purgar os erros que continuamente insistem em se introduzirem no seio da Igreja de Cristo. Desde a Reforma, muitas mudanças ocorreram e novos embates surgiram. A ICAR continuou a oficializar heresias em seus concílios, sendo possível expressar algum destes na seguinte linha cronológica: Ano 1529 d.C. – Clemente VII, tentou impedir na Alemanha que o Evangelho fosse pregado, intitulando-os de "Protestantes". Os Cristãos não católicos, fizeram um protesto contra essa pretensão do Papa e por isso receberam este nome. Ano 1546 d.C. – Tradição equiparada à autoridade da Bíblia. Ano 1546 d.C. – A Igreja Católica inclui os "livros apócrifos" (Baruc, I e II Macabeus, Tobias, Judite, Sabedoria, Eclesiástico) na Bíblia. Ano 1600 d.C. – Invenção do escapulário (bentinhos). Ano 1854 d.C. – Criou-se o dogma da Imaculada Conceição de Maria. Ano 1870 d.C. – Reforçou-se a infalibilidade papal, ou seja, o Papa é infalível perante a interpretação da Bíblia, o porta voz de Deus na Terra. Ano 1950 d.C. – Decretou-se a "Assunção de Maria". Ano 2017 d.C. – A Associação Mariana Internacional, juntamente com mais de 100 bispos, sacerdotes, teólogos de mais de 20 países, estão pedindo que o Papa Francisco reconheça publicamente Maria corredentora com Jesus. Deus nos chamou em uma época crítica para a Igreja de Cristo, o Iluminismo do séc. XVIII fez grandes ataques à fé cristã, com pseudoteologias que não passam de ateísmo e racionalismo disfarçados numa roupagem cristã. Heresias que ressurgiram e desvios doutrinários que tomaram conta de igrejas, inclusive históricas. Seitas e falsos mestres que surgiram em grande número a partir do séc. XVIII, trazem confusão e desinformação às pessoas. Há o desafio e a necessidade de pregar o evangelho àqueles que se auto-intitulam crentes, mas que buscam segurança em coisas e pessoas, pois não têm Cristo por suficiente, evidenciando, assim, que não passaram pelo novo nascimento. As duas Grandes Guerras, a revolução sexual e o marxismo cultural trouxeram ao Ocidente um contexto sociocultural pós-cristão. No séc. XXI temos o desafio a pregar o evangelho num contexto do “politicamente correto” que nada mais é do que uma ditadura ideológica disfarçada de pretensa humildade.

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O ressurgimento do perigo Romanista, com suas sutilezas através da renovação carismática, que tem ares evangélicos, mas que ainda está impregnado de idolatria. É nesse contexto que Cristo nos chamou com o desafio de não negociarmos nossa fé, não importando o preço que pagaremos. Ao conhecer a história, vemos claramente a mão de Deus preservando sempre os “sete mil que não se dobraram a Baal”. A história também deve nos ensinar com os erros dos antepassados, para que não sejamos ludibriados por erros sedutores. Hoje, mais do que nunca, a sociedade tem exigido dos cristãos uma teologia pública que seja relevante para as áreas da vida que foram destruídas pela cosmovisão ateísta. Assim como Kuyper e Doyeweerd entenderam que o cristianismo não se limita ao templo em que a igreja se reúne para cultuar a Jesus, também precisamos estar ativos nas diversas áreas de nossa sociedade trazendo respostas bíblicas aos problemas que o mundo, nosso país e, mais especificamente, nossa cidade enfrentam. De fato, tal tarefa não será fácil, não será fácil pregar a cruz e o negarse a si mesmo para uma sociedade egocêntrica. Não será fácil, mas nossa esperança não deve estar nos homens, mas em Deus que é o Senhor da história e, de fato, Senhor de cada centímetro do universo. “Porque, se vivemos, para o Senhor vivemos; se morremos, para o Senhor morremos. De sorte que, ou vivamos ou morramos, somos do Senhor.” (Rm 14:8) Soli Deo Gloria Glória somente a Deus Bibliografia História ilustrada do cristianismo - Volume 1 e 2 – Justo González Curso História da igreja - Juliano Heyse A História da Igreja - Volume 1 - Andrew Miller A história das doutrinas cristãs – Louis Berkhof Curso 5 Solas – Fiel liderança 500 anos desobedecendo o Papa – Lucas Rosalem Panorama da História Da Igreja Parte 2 - W. Robert Godfrey A Igreja Cristã na História – Franklin Ferreira

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