Apostila de Eclesiologia TPT

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ECLESIOLOGIA Prof.ยบ LUCAS ROBERTO

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Sumário Unidade 1 – O significado de Igreja ............................................ 01 Unidade 2 – Pedro, um homem que nunca foi Papa ................... 06 Unidade 3 – O caráter da Igreja ................................................. 13 - A teologia do pacto e a Igreja - Os atributos da Igreja

Unidade 4 – As marcas da verdadeira Igreja .............................. 19 Unidade 5 – O Princípio Regulador do Culto .............................. 27 - Elementos apropriados para o culto público Unidade 6 – A autoridade e os deveres da Igreja ........................ 33 - A autoridade da Igreja - A relação Igreja-Estado - Os deveres da Igreja

Unidade 7 – O governo e os oficiais da Igreja ............................. 40 - O governo da Igreja - Os oficiais da Igreja

Unidade 8 – Música Eclesiástica ............................................... 49 Conclusão ............................................................................... 53



Unidade 1 – O significado de Igreja Você já ouviu alguém falando que igreja é no original ekklesia significa “chamados para fora”, então “a igreja é um povo chamado para fora do_____ (inclua aqui tudo o que a pessoa não concorda: mundo, sistema religioso, parede e por aí vai)”. O problema é que a raiz de uma palavra nem sempre fornece o significado no tempo em que foi usada. Por exemplo, entendemos hoje gentileza como cortesia, mas no latim gentilis era quem pertencia à mesma família ou clã. Então, apesar de algumas vezes útil, devemos tomar cuidado com o “significado oculto da raiz da palavra”. Veja o que Robert Cara, em artigo bem interessante chamado “Cuidado com o Significado Oculto da Raiz de uma Palavra”, escreve sobre ekklesia: No grego, mais do que no português, muitas palavras são uma combinação de duas outras palavras, mas geralmente o estudo etimológico do porquê e de quando essas palavras foram combinadas é completamente desconhecido pelo autor do Novo Testamento. A palavra grega ekklesia, que é geralmente traduzida por “igreja”, é uma combinação das palavras “chamar” e “fora”. Contudo, os dicionários gregos acadêmicos não dão a definição de “os chamados para fora” para a palavra ekklesia, porque ela não está sendo usada dessa maneira no Novo Testamento. Embora seja teologicamente verdadeiro que cristãos tenham sido chamados para fora do mundo pecaminoso para ser a igreja, essa verdade não é derivada da palavra ekklesia. Semelhantemente, no inglês moderno a palavra butterfly (borboleta) é claramente composta das palavras butter (manteiga) e fly (mosca), mas isso não nos ajuda a entender melhor o inseto. A Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã traz a seguinte definição para igreja: “No NT, “igreja” traduz a palavra grega ekklēsia. No grego secular, ekklēsia designava uma assembleia pública, e este significado ainda foi mantido no NT (At 19:32, 39, 41). No AT hebraico a palavra qahal designa a assembleia do povo de Deus (e.g. Dt 10:4; 23:2-3; 31:30; Sl 22:23), e a LXX (septuaginta), a tradução grega do AT, traduz esta palavra por ekklēsia e synagōgē, igualmente. Até mesmo no NT, ekklēsia pode significa a assembleia dos israelitas (At 7:38; Hb 2:12); mas, à parte destas exceções, a palavra ekklēsia no NT designa a igreja cristã, tanto local (ex. Mt 18:17; At 15:41; Rm 16:16; 1 Co 4:17; 7:17; 14:33; Cl 4:15) quanto universal (ex. Mt 16:18; At 20:28; 1 Co 12:28; 15:9; Ef 1:22).

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É interessante notar que algumas das pessoas que enfatizam o “chamados para fora” são também contra a reunião dos crentes em um prédio para cultuar a Deus. Contudo, como o uso do termo ekklēsia mostra, a igreja é uma assembleia (ou seja, uma reunião) e a igreja em Atos se reunia sim em locais fechados para cultuar a Deus, orar e ouvir a Palavra.1 Na Bíblia, a palavra “igreja” (ekklesia) tem uma variedade de significados distintos, porém intimamente relacionados. Em primeiro lugar, os teólogos distinguem entre igreja visível e invisível. Como declarado na Confissão de Westminster (25:1, 2), a igreja invisível “consiste do número total dos eleitos que já foram, dos que agora são e dos que ainda serão reunidos num só corpo, sob Cristo, seu cabeça; ela é a esposa, o corpo, a plenitude daquele que cumpre tudo em todas as coisas”. A igreja visível, por outro lado, consiste de membros batizados em todas as congregações locais “pelo mundo inteiro”. Portanto, a igreja invisível é composta dos eleitos, o corpo completo das pessoas, seja nos céus ou na terra, que tenham sido ou serão unidas salvificamente a Cristo (Mt 16:18-19). Elas constituem a verdadeira igreja de Cristo, a sua noiva, aqueles pelos quais Ele morreu (Ef 5:25; At 20:28). Nas palavras de Calvino, em seu Catecismo de 1536 e 1541: “O que é a igreja? O corpo e a sociedade dos crentes que Deus predestinou para a vida eterna”. Nesse sentido, a igreja não pode restringir-se a uma denominação ou limitar-se a um povo ou congregação. Os crentes em Cristo são membros da igreja universal do Deus Todo-Poderoso, que transcende povos, gênero e nacionalidade. Os membros da igreja invisível são visíveis para Deus, que é quem sonda os corações (1 Sm 16:7; Ap 2:23); porém não são necessariamente visíveis para nós (1 Tm 5:24-25). Há outro sentido em que a palavra “igreja” é usada quando se refere à “igreja visível” (At 7:38; 1 Co 1:2). Nessa outra concepção, “igreja” é identificada com os membros que fizeram uma aceitável profissão de fé em Cristo, que se separaram do mundo pelo batismo, que participam da ceia do Senhor, cuja vida manifesta santidade e obediência à Palavra de Deus, que se submetem à disciplina da igreja, que são fiéis à Grande Comissão. Como lemos na Confissão (25:2): A Igreja visível, que também é católica ou universal, sob o Evangelho [NT] (não sendo restrita a uma nação, como antes no [AT]) consiste de todos aqueles que, pelo mundo inteiro professam a verdadeira religião, juntamente com seus filhos; é o Reino do Senhor

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https://voltemosaoevangelho.com/blog/2014/08/igrejaeclesia-significa-chamados-para-fora-no-novotestamento/

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Jesus, a casa e família de Deus, fora da qual não há possibilidade ordinária de salvação. Algumas vezes a igreja visível é citada como a igreja militante, como envolvida numa batalha espiritual com as forças do mal (Ef 6:10-18). Quando um verdadeiro membro (regenerado) da igreja visível morre e vai estar com o Senhor, ele se torna membro da vitoriosa igreja triunfante. Os verdadeiros membros da igreja visível são também membros da igreja invisível. Porém, há os que estão na igreja visível que não são salvos (Mt 7:21-23; 25:1-13). Isto é, a igreja invisível não coincide com o rol de membros de várias igrejas visíveis. Essa é a razão pela qual Agostinho falou da igreja visível como sendo um “corpo misto” de eleitos e não eleitos. Há, obviamente, alguns fora da igreja visível que são eleitos de Deus. Porém Deus estabeleceu os “meios ordinários de salvação” dentro da sua igreja visível. Ser membro da igreja visível nunca deveria ser visto de modo leviano, como se alguém acreditasse que estar na igreja visível seja uma salvaguarda suficiente para perseverar em santidade. O terceiro uso de ekklesia tem a ver com a congregação local, “a igreja sobre a pedra angular”. Aqui “igreja” significa um corpo dos que professam o Senhor Jesus Cristo em qualquer lugar, junto com seus filhos, unidos todos sob os presbíteros, na adoração e culto ao Deus triúno conforme sua Palavra e para sua glória (At 14:23; Rm 16:3-5; 1 Co 16:19). Essa é a congregação local. A igreja de Deus é apenas uma, mas também muitas. Apesar de as congregações locais não serem autônomas e independentes, “totalmente” completas em si mesmas sem qualquer conexão ou dependência com toda a igreja visível, contudo a Bíblia não fala delas como “partes do corpo” ou “filiais da igreja”. Pelo contrário, é dito de cada uma como sendo “a igreja” ou “o corpo”, enfatizando o fato de cada assembleia possuir um tipo de completude em si mesma (1 Co 1:4-9). Nesse sentido, Berkhof escreveu: “Toda igreja local é uma igreja de Cristo completa, plenamente equipada com tudo que se requer para o seu governo. Não há absolutamente necessidade de se lhe impor nenhum governo de fora”2. Em quarto lugar, o termo “igreja” também significa um número de congregações locais associadas sob uma confissão de fé comum e um governo comum de igrejas (At 8:3; 9:31; Gl 1:22; Fp 3:6; 1 Co 12:28). Essa estrutura conectada, organizada e confessionalmente relacionada de igrejas locais no Novo Testamento também implicava no fato de que sobre a Terra há uma igreja única, visível e universal, da qual todos os crentes fazem parte (Hb 12:22-24). Em Atos 8:1, vemos os cristãos em Jerusalém descritos como “a igreja em Jerusalém”. Certamente essa “igreja” era composta de mais de uma 2

Louis Berkhof, Teologia sistemática. Campinas: Luz Para o Caminho, 1990, p. 542

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congregação naquela cidade, uma vez que o número de convertidos em Jerusalém (bem como a variedade das línguas — At 2:6), mencionados em Atos, torna possível pensar que eles poderiam reunir-se em congregações locais nas casas dos fiéis. Além disso, Atos 6:1-2 demonstra esse fato. O primeiro versículo nos diz que surgiu um problema porque o número dos discípulos “multiplicouse”. O versículo dois continua informando-nos que era necessário aos doze ministros separados (os apóstolos) permanecerem estritamente ocupados na obra de pregação do evangelho. Como aponta o versículo quatro, era costume dos apóstolos entregarem-se exclusivamente à “oração e ao ministério da palavra”. Se fosse o caso de haver uma única congregação na cidade de Jerusalém, seria difícil imaginar que doze homens não tivessem encontrado tempo para “servir às mesas” (v.2) em favor das viúvas. Mas se houvesse numerosas congregações, então a objeção de que simplesmente não tinham tempo para esse tipo de trabalho, sem que fosse em detrimento do chamado deles, faria todo o sentido. Também é significante o fato de que os apóstolos não estavam simplesmente interessados em ver seus próprios números crescerem, mas queriam homens aos quais fosse dada essa tarefa em contrapartida à pregação da Palavra e dos sacramentos. É claro que seis homens não poderiam realizar sozinhos todo o trabalho, então não foram instruídos a fazer todo o trabalho, mas foram postos como “encarregados desse serviço” (v. 3). Isso indica a possibilidade bem real de que a distribuição diária [de alimentos] fosse muito maior que uma distribuição da qual apenas seis homens pudessem cuidar sem alguma assistência. Três mil adultos foram batizados no dia do Pentecostes em Jerusalém, conforme Atos 2. O Senhor aumentava-lhes o número diariamente (At 2:47). Milhares de judeus criam em Jesus ali (At 21:20). Todos esses números nos ensinam, não que houvesse uma monstruosa mega-congregação reunindo-se num único local em Jerusalém; porém, que havia uma pluralidade de congregações na cidade, conectadas como um único corpo sob uma mesma fé comum e governo, e chamadas de “a igreja em Jerusalém” (At 8:1, veja também 2:47; 14:23; 15:2, 4, 6; 20:17). Essa verdade bíblica em relação à estrutura e unidade organizacional das congregações locais é chamada de “conectividade”. Nenhuma congregação local é plenamente autônoma, no sentido de estar isolada de todas as demais congregações. A igreja de Cristo é uma confederação de igrejas. Para demonstrar nossa unidade em Cristo, e seguir o modelo da igreja na Bíblia, as congregações têm de estar organizacionalmente conectadas entre si, sem trair a integridade de nenhuma congregação; sob uma mesma confissão de fé e forma comum de governo da igreja por meio do pastoreio dos presbíteros (At 20:28). Esse princípio da “conectividade” ou “associação” repousa sobre a base da instituição da igreja e está presente em todo o sistema da igreja

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apostólica. Indivíduos cristãos e famílias, ligados entre si formando uma igreja (Rm 16:3-5); presbíteros individualmente ligados entre si formando um presbitério, isto é, um conselho, na igreja local (At 14:23); e as congregações e seus presbíteros numa região particular estão ligados entre si formando um presbitério regional (1 Tm 4:14). Quando, num país, todas as congregações e seus presbíteros estão ligados entre si com propósitos eclesiásticos, isso é chamado de assembleia geral (Hb 12:22-24). Finalmente, “igreja” significa um corpo de cristãos em qualquer localidade representados pelos presbíteros (Mt 18:17; 1 Co 5:4). No Antigo Testamento, quando se reuniam numa “sessão” oficial, os anciãos de Israel representavam toda a congregação diante de Deus, bem como representavam a Deus e a seu pacto com Israel. Dirigir-se aos anciãos de Israel era dirigir-se a toda a congregação do Senhor. De fato, quando se reuniam numa sessão oficial, esses anciãos poderiam dizer que eram a congregação de Israel ou, representativamente, os filhos de Israel (Êx 3:13-18; 4:29-31; 19:7-8). Em Apocalipse, capítulos 4 e 5, toda a igreja de Cristo está reunida ao redor do trono de Cristo por meio de seus representantes: os vinte e quatro anciãos, isto é, os doze patriarcas do Antigo Testamento e os doze apóstolos do Novo Testamento. Mateus 18:17 usa “igreja” nesse sentido, onde nos é dito que, como último recurso da disciplina da igreja, devemos levar um membro desviado para a “igreja”, ou seja, aos presbíteros-representantes da igreja, ao parecer deles, ao conselho, à decisão de julgamento e, se necessário, à excomunhão do ofensor. Quando enviavam suas cartas à igreja, muitas vezes os escritores apostólicos do Novo Testamento as endereçavam aos presbíteros da igreja, como representantes de toda a congregação dos membros (Fp 1:1). Noutras palavras, o governo bíblico da igreja é um governo representativo, isto é, um republicanismo eclesiástico — uma congregação governada por presbíteros-representantes, eleitos pela congregação para ministrar a Palavra de Deus.

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Unidade 2 – Pedro, um homem que nunca foi Papa O catolicismo romano ensina que Pedro foi o primeiro papa e que os papas são legítimos sucessores de Pedro. Essa tese, porém, é vulnerável e dificilmente pode ser provada. Vejamos alguns importantes argumentos que provam de forma definitiva que Pedro nunca foi papa. Em primeiro lugar, o texto básico usado para provar o primado de Pedro está mal interpretado pelo catolicismo romano. Para o catolicismo romano, Mateus 16:18, “E digo-te ainda que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela”, é a carta magna do papado. A palavra “Pedro”, do grego, Pétros, significa “fragmento de pedra”, enquanto a palavra “pedra”, do grego pétra, significa “pedra, rocha”. Pétros é um substantivo masculino, enquanto pétra é um substantivo feminino. Ademais, o demonstrativo te toute (esta) encontra-se no feminino, ligando-se, portanto, gramatical e logicamente, à palavra feminina pétra, a que imediatamente precede. O demonstrativo feminino não pode concordar em número e gênero com um substantivo masculino. Se Cristo tencionasse estabelecer Pedro como fundamento da igreja, teria dito: “Tu és Pedro, e sobre ti (epi soi) edificarei a minha igreja”. Além do mais, todo o contexto próximo está focado na pessoa de Cristo (Mt 16:13-23): 1) a opinião do povo a seu respeito como Filho do homem (termo messiânico); 2) a opinião dos discípulos a seu respeito; 3) a correta declaração de Pedro de sua messianidade e divindade; 4) a declaração de Jesus de que Ele é o fundamento, o dono, o edificador e protetor da igreja; 5) a declaração de que ele veio para morrer; 6) a demonstração da sua glória na transfiguração. Não se tratava de uma conversa particular de Pedro com Cristo, mas de uma dinâmica de grupo em que Jesus discutia o propósito da sua vinda ao mundo. O contexto mostra que Jesus está se referindo a si próprio na terceira pessoa desde o começo, e isso concorda com o uso que faz de pétra na terceira pessoa. Veja outros exemplos em que Cristo usou a terceira pessoa: João 2:19,21 e Mateus 21:42-44. Jesus elogiou Pedro pela inspirada declaração de que Cristo é o Filho do Deus vivo, e é sobre essa pétra, Cristo, que a igreja é fundada. Os teólogos romanos dizem que, no aramaico, “Cefas” significa “pedra”. Mas, no aramaico, “Cefas” não é traduzido por petra, pedra, mas por Pétros, fragmento de pedra (Jo 1:42). Outro ponto importante é que “pedra”, pétra, é radical, e Pedro, Pétros, deriva-se de pétra, e não pétra de Pétros; assim como Cristo não vem de cristão, mas cristão de Cristo. O catolicismo romano diz, ainda, que, se Cristo é o fundamento da igreja, não pode ser o seu edificador. Mas aqui há uma superposição de

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imagens, como em João 10 onde Jesus diz que é o pastor das ovelhas e também a porta das ovelhas. É importante observar que no Antigo Testamento pétra nunca é usado para nenhum homem, mas só para Deus (Is 28.16; Sl 118.22). Além dos argumentos anteriores, temos ainda a prova insofismável de que Pedro não é a pedra sobre a qual a igreja está edificada, porque o próprio Pedro elucidou pessoalmente essa questão. Depois de ser preso pelo Sinédrio, o apóstolo Pedro proclama diante das autoridades religiosas de Jerusalém: Seja conhecido de vós todos, e de todo o povo de Israel, que em nome de Jesus Cristo, o Nazareno, aquele a quem vós crucificastes e a quem Deus ressuscitou dentre os mortos, em nome desse é que este está são diante de vós. Ele é a pedra que foi rejeitada por vós, os edificadores, a qual foi posta por cabeça de esquina. E em nenhum outro há salvação, porque também debaixo do céu nenhum outro nome há, dado entre os homens, pelo qual devamos ser salvos. (At 4:1012). Para que não haja nenhum resquício de dúvida, o apóstolo Pedro, cerca de trinta anos mais tarde, escreve sua primeira carta e mantém a mesma posição de que Cristo, e não ele, é a pedra sobre a qual a igreja está edificada. Ouçamos o apóstolo: E, chegando-vos para ele, pedra viva, reprovada, na verdade, pelos homens, mas para com Deus eleita e preciosa, Vós também, como pedras vivas, sois edificados casa espiritual e sacerdócio santo, para oferecer sacrifícios espirituais agradáveis a Deus por Jesus Cristo. Por isso também na Escritura se contém: Eis que ponho em Sião a pedra principal da esquina, eleita e preciosa; e quem nela crer não será confundido. E assim para vós, os que credes, é preciosa, mas, para os rebeldes, a pedra que os edificadores reprovaram, essa foi a principal da esquina, e uma pedra de tropeço e rocha de escândalo, para aqueles que tropeçam na palavra, sendo desobedientes; para o que também foram destinados. (1 Pe 2:4-8) Se não fosse suficiente apenas o testemunho de Pedro sobre essa magna questão, o apóstolo Paulo, também, é meridianamente claro, quando afirma que Cristo é o único fundamento sobre o qual a igreja está edificada. Ao escrever à igreja de Corinto, o apóstolo dos gentios diz: Porque ninguém pode lançar outro alicerce, além do que já está posto, o qual é Jesus Cristo (1 Co 3:11). Ainda nessa mesma carta, o apóstolo faz referência à experiência vivida por Moisés em Redifim, quando o povo de Israel estava sedento e não havia água. O povo murmurou contra Moisés,

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e este clamou ao Senhor. Deus, então, lhe disse: [...] Bate na rocha, e dela sairá água para que o povo possa beber [... | (Êx 17:6). Fazendo uma aplicação espiritual desse fato, o apóstolo Paulo diz à igreja de Corinto: E beberam todos de uma mesma bebida espiritual, porque bebiam da pedra espiritual que os seguia; e a pedra era Cristo. (1 Co 10:4). É irrefutável a verdade de que a pedra não é Pedro, mas Cristo. Não fossem esses fatos suficientes, o apóstolo Paulo ainda diz: edificados sobre o fundamento dos apóstolos e profetas, sendo o próprio Cristo Jesus a principal pedra de esquina (Ef 2:20). Ninguém pode ir contra a verdade de Deus. Ela é como a luz, e diante dela as trevas do engano são dissipadas. Em segundo lugar, a afirmação de que Cristo entregou as chaves do reino de Deus apenas a Pedro está equivocada. As chaves do reino de Deus não foram dadas só a Pedro (Mt 18:18; 28:18-20). Em Mateus 18:18, essas chaves são dadas aos demais apóstolos, no contexto da aplicação da disciplina eclesiástica. Quando a igreja aplica a disciplina de acordo com a Palavra de Deus, o Senhor ratifica essa disciplina, seja para ligar, seja para desligar. O reformador João Calvino entendia que a prática da disciplina bíblica é uma das marcas da igreja verdadeira. As chaves dadas a Pedro, bem como aos demais apóstolos, foram usadas sabiamente por ele. Essas chaves são a pregação do evangelho. Pedro pregou poderosamente a Palavra para os judeus em Jerusalém no dia de Pentecostes (At 2:14-41). Cerca de três mil pessoas foram convertidas. Pedro pregou um sermão centralizado na pessoa de Cristo, falando sobre sua morte, ressurreição, ascensão e senhorio. Mais tarde, Pedro pregou aos samaritanos (At 8:25). Ainda somos informados de que Pedro pregou aos gentios, apresentando o evangelho a Cornélio e sua casa (At 10:34-48). Pedro não só recebeu as chaves, mas as usou com grande destreza, abrindo a porta da salvação, pregando o evangelho aos judeus, aos samaritanos e aos gentios. No concílio de Jerusalém, o apóstolo Pedro deu o seu testemunho de como Deus o usara para anunciar o evangelho tanto aos judeus como aos gentios (At 15:7-11). Contudo, se paira alguma dúvida na mente do leitor sobre a questão de essas chaves serem a pregação do evangelho, precisamos informar, calçados na verdade das Escrituras, que a porta do céu não é aberta por Pedro. A porta é Jesus (Jo 10:9), e quem tem a chave que abre e ninguém fecha e fecha e ninguém abre é só Jesus (Ap 3:7). Em terceiro lugar, a vulnerabilidade de Pedro para ser a pedra fundamental da igreja. Pedro não é símbolo de estabilidade, muito menos de infalibilidade. Ao cotejarmos as passagens dos Evangelhos, encontramos reiteradas vezes Pedro claudicando (tropeçando em suas palavras), tendo avanços ousados e recuos vergonhosos, ora alcançando alturas excelsas, ora descendo aos abismos mais profundos de suas quedas infelizes. Pedro

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é símbolo de fraqueza, de inconstância, de vulnerabilidade. Pedro é símbolo do homem frágil, apoiado no bordão da autoconfiança. Vejamos alguns exemplos: Pedro, o contraditório. Logo após afirmar a messianidade e a divindade de Cristo, Pedro tenta impedir Jesus de ir para a cruz. Imediatamente Jesus repreende a ação de Satanás em sua vida, dizendo: [...] Para trás de mim, Satanás! Tu és para mim motivo de tropeço, pois não pensas nas coisas de Deus, mas, sim, nas que são dos homens (Mt 16:23). Pedro, o desprovido de entendimento. Logo em seguida, na transfiguração, sem saber o que falava, tentou colocar Jesus no mesmo nível de Moisés e Elias (Mc 9:5, 6). Pedro, o autoconfiante. No cenáculo, disse para Jesus que, ainda que todos o abandonassem, ele jamais o faria e que estaria pronto a ir com Cristo tanto para a prisão como para morte (Lc 22:33, 34; Mt 26:33-35), mas Jesus o alertou de que ele o negaria naquela mesma noite, três vezes, antes de o galo cantar. Pedro, o dorminhoco. No Getsêmani, no auge da grande batalha travada por Cristo, Pedro não vigia com Cristo, mas dorme (Mt 26:40). Pedro, o violento. Pedro sacou a espada no Getsêmani e cortou a orelha de Malco (Jo 18:10, 11), no que foi repreendido por Cristo. Pedro, o medroso. Quando Cristo foi preso, Pedro passou a segui-Lo de longe e não foi ao monte Calvário (Lc 22:54). Pedro, o discípulo que nega Jesus. Pedro negou, jurou e praguejou, dizendo que não conhecia Jesus (Mt 26:70, 72, 74). A igreja de Cristo não pode estar edificada sobre nenhum homem. Deus conhece a estrutura do homem e sabe que ele é pó. Em quarto lugar, o primado de Pedro não é reconhecido pelos demais apóstolos. Se Pedro tivesse a primazia entre os apóstolos e fosse o bispo universal, certamente teria recebido dos demais apóstolos esse reconhecimento. Entretanto, o Novo Testamento não tem nenhuma palavra a dar em favor dessa pretensão do catolicismo romano. Vejamos alguns argumentos: Pedro não nomeia apóstolo para o lugar de Judas. O único caso de substituição de apóstolo, Matias no lugar de Judas, não foi uma escolha de Pedro (At 1:15-26). Pedro obedece a ordens dos apóstolos. Pedro é enviado junto com João pelos apóstolos a Samaria em vez de Pedro enviar alguém. Ele obedece a ordens em vez de dar ordens (At 8:14, 15). Pedro não dirige o primeiro concilio da igreja. As decisões doutrinárias da igreja não são tomadas por Pedro. O primeiro concílio da igreja, em Jerusalém, foi dirigido por Tiago, e não por Pedro (At 15:13-21). Todas as vezes que os discípulos discutiram quem era o mais importante entre eles, receberam de Cristo severa exortação. Em três

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circunstâncias, os discípulos discutiram a questão da primazia entre eles, e Cristo os repreendeu (Mc 9:35; Mt 20:25-28; Lc 22:24). Pedro não é primaz de Jerusalém. Paulo o chama de coluna da igreja, junto com outros apóstolos, mas não o menciona em primeiro lugar (Gl 2:9). O pastor das igrejas gentílicas não é Pedro, e sim Paulo. Paulo não se considera inferior a nenhum apóstolo (2 Co 12:11) e diz que sobre ele pesa a preocupação com todas as igrejas (2 Co 11:28). Pedro é repreendido pelo apóstolo Paulo. Pedro tornou-se repreensível em Antioquia, no que é duramente exortado por Paulo (Gl 2:11-14). No Novo Testamento, os apóstolos se associam como iguais em autoridade. Nenhuma distinção foi feita em favor de Pedro (1 Co 12:28; Ef 2:20). Paulo não deu prioridade a Pedro quando combateu a primazia dada por um grupo a Pedro, equiparando-o a ele e a Apoio, dando suprema importância apenas a Cristo (1 Co 1:12). Em quinto lugar, Pedro não reivindicou autoridade papal. Outro argumento insofismável para provar que Pedro não foi bispo de Roma, nem bispo universa, é que ele não reivindicou autoridade papal. Vejamos: Pedro não aceitou veneração de homens. Quando Cornélio ajoelhou-se diante de Pedro e o adorou, imediatamente Pedro o levantou e disse: [...] levanta-te, pois eu também sou um homem (At 10:26). Pedro não ousou perdoar os pecados de Simão, o mágico, quando este pediu a Pedro e João que rogassem por ele (At 8:22, 23). Pedro autodenominou-se apenas servo e apóstolo de Cristo. Quando Pedro escreveu suas cartas, se fosse de fato bispo universal ou papa da igreja, teria de defender seu primado, mas ele não o fez. Ao contrário, apresentou-se como apóstolo de Cristo (1 Pe 1:1) e como servo de Cristo (2 Pe 1:1). Pedro considerou-se presbítero entre os outros presbíteros, e não acima dos demais. Pedro reprovou a atitude de um presbítero querer dominar o rebanho de Deus e chamou a si mesmo de presbítero entre os demais, e não acima deles (1 Pe 5:1-4). Em sexto lugar, Pedro não foi bispo da igreja de Roma. De acordo com a tradição do catolicismo romano, Pedro foi bispo da igreja de Roma durante 25 anos, ou seja, de 42 a 67 d.C., quando foi crucificado de cabeça para baixo, por ordem de Nero. Vários são os argumentos que podemos usar para refutar essa pretensão romana. A Bíblia não tem nenhuma palavra sobre o bispado de Pedro em Roma. A palavra “Roma” aparece apenas nove vezes na Bíblia, e Pedro nunca foi mencionado em conexão com ela. Não há nenhuma alusão à Roma em nenhuma das epístolas de Pedro. O livro de Atos nada mais fala de Pedro

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depois de Atos 15, senão que ele fez muitas viagens com sua mulher (1 Co 9:5). Curiosidade Paulo escreve sua carta à Não há nenhuma menção de que igreja de Roma em 58 d.C. e não Pedro tenha sido o fundador da menciona Pedro. Nesse período, igreja de Roma. Possivelmente os Pedro estaria no auge do seu romanos presentes no Pentecostes pontificado em Roma, mas Paulo (At 2:10,11) foram os fundadores da não dirige sua carta a Pedro. Ao igreja. contrário, dirige a carta à igreja como seu instrutor espiritual (Rm 1:13). No capítulo 16 da carta aos Romanos, Paulo faz 26 saudações aos mais destacados membros da igreja de Roma e não menciona Pedro. Se Pedro já era bispo da igreja de Roma há dezesseis anos (42 d.C. a 58 d.C.), por que Paulo diz: Porque desejo muito ver-vos, para compartilhar convosco algum dom espiritual, afim de que sejais fortalecidos (Rm 1:11)? Não seria um insulto gratuito a Pedro? Não seria presunção de Paulo com o papa da igreja? Se Pedro fosse papa da igreja de Roma, por que Paulo diz que não costumava edificar sobre o fundamento de outrem: Desse modo, esforcei-me por anunciar o evangelho não onde Cristo já havia sido proclamado, para não edificar sobre fundamento alheio (Rm 15:20)? Paulo diz isso porque Pedro não estivera nem estava em Roma. Paulo escreve cartas de Roma e não menciona Pedro. Enquanto Paulo esteve preso em Roma (61 d.C. a 63 d.C.), os judeus crentes de Roma foram visitá-lo, e nada se fala de Pedro, visto que os judeus nada sabem acerca dessa “seita” que estava sendo impugnada. Se Pedro estava lá, como esses líderes judeus nada sabiam sobre o cristianismo (At 28:16-30)? Paulo escreve várias cartas da prisão em Roma (Efésios, Filipenses, Colossenses, Filemom) e envia saudações dos crentes de Roma às igrejas, mas não menciona Pedro. Durante sua segunda prisão, Paulo escreveu sua última carta (2 Timóteo), em 67 d.C. Paulo diz que todos os seus amigos o abandonaram e que apenas Lucas estava com ele (2 Tm 4:10, 11). Pedro estava lá? Se Pedro estava, faltou-lhe cortesia por nunca ter visitado e assistido Paulo na prisão. Não há nenhum fato bíblico ou histórico em que Pedro transfira seu suposto posto de papa a outro sucessor. Não apenas está claro à luz da Bíblia e da história que Pedro não foi papa, como também não há nenhuma evidência bíblica ou histórica de que os papas são sucessores de Pedro. Ainda que Pedro tenha sido o bispo de Roma, o primeiro papa da igreja (o que já está fartamente provado com irrefutáveis provas que não foi), não temos prova de que haja legítima sucessão apostólica; e, se tivesse, os supostos sucessores deveriam subscrever as mesmas convicções teológicas de Pedro. É absolutamente incoerente afirmar que o papa possa ser um legítimo sucessor de Pedro, quando sua teologia e sua prática estão em

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flagrante oposição ao que o apóstolo Pedro creu e pregou. Pedro condenou o que os papas aprovam!3

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Texto retirado do apêndice de Hernandes Lopes. Pedro, pescador de homens. Hagnos, 2015.

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Unidade 3 – O caráter da Igreja A teologia do pacto e a Igreja A teologia reformada ensina que quando criou o homem (Adão), Deus entrou num “pacto de obras” com ele. Nas palavras da Confissão de Fé de Westminster (7:2): “O primeiro pacto feito com o homem era um pacto de obras; nesse pacto a vida foi prometida a Adão e, nele (como cabeça federal de toda a raça humana), à sua posteridade, sob a condição de perfeita obediência pessoal”. Contudo, como lemos em Romanos 5, Adão desobedeceu a Deus. E como ele era o cabeça federal ou pactual de toda a humanidade, seu pecado foi imputado a toda a humanidade. Como é dito no Breve catecismo de Westminster (P. 16): “Visto que o pacto foi feito com Adão, não só para ele, mas também para sua posteridade, todo o gênero humano, que dele procede por geração ordinária, pecou nele, e caiu com ele na sua primeira transgressão”. Portanto, como resultado da Queda, todos os homens são judicialmente culpados. O pecado de Adão foi imputado a todos. No entanto, como o Breve catecismo (P. 20) ensina, Deus não abandonou toda a humanidade para perecer nesse estado: “Tendo Deus, unicamente por sua boa vontade, desde toda a eternidade, escolhido alguns para a vida eterna, entrou com eles num pacto de graça, para livrá-los do estado de pecado e miséria, e trazê-los a um estado de salvação, por meio de um Redentor”. Esse Redentor é Jesus Cristo. E o pacto da graça, como diz o Catecismo maior (P. 31), “foi feito com Cristo, como o segundo Adão; e, nele, com todos os eleitos, como sua semente”. A teologia reformada sustenta que há apenas um pacto da graça que percorre toda a Bíblia. Como declarado na Confissão (7:5, 6): esse pacto “no tempo da Lei [AT] não foi administrado como no tempo do Evangelho [NT]. Porém, não há dois pactos de graça diferentes em substância, mas um e o mesmo sob várias dispensações”. O pacto da graça foi inicialmente revelado em Gênesis 3:15 com a primeira promessa messiânica ou “promessa do evangelho” (o protoevangelium), imediatamente após a Queda. Conforme a Confissão (7:3): Tendo-se o homem tornado, pela sua queda, incapaz de ter vida por meio deste pacto, o Senhor dignou-se a fazer um segundo pacto, geralmente chamado o pacto da graça; neste pacto da graça ele livremente oferece aos pecadores a vida e a salvação por meio de Jesus Cristo, exigindo deles a fé [nele], para que sejam salvos. Como Paulo ensina em Efésios 2:12, há uma unidade temática de todos os pactos; ele fala de “as alianças” (plural) da “promessa” (singular). “A

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promessa” é o pacto de graça. Todas as alianças (pactos)4 que Deus estabeleceu com seu povo (ex. Adão, Noé, Abraão, Moisés, Davi) são um desenvolvimento de um único pacto de graça. Sendo assim, não é estranho afirmar que a igreja tem suas raízes no Antigo Testamento. “A ‘promessa’ está no singular, significando que o pacto, na realidade, e substancialmente, é apenas um e o mesmo em todos os tempos, mas apenas diferente quanto a seus acidentes e circunstâncias externas (compare Hebreus 1:1, ‘muitas vezes e de muitas maneiras’).” Obviamente, com a chegada da Nova Aliança, “a promessa”, que percorreu todo o Antigo Testamento, atingiu seu cumprimento com o advento do próprio Redentor: Jesus Cristo. Como nos ensina o Novo Testamento, Cristo realizou a redenção em favor do seu povo e trazendo, portanto, a concretização de todos os tipos dos antigos pactos (Hebreus 810). Cristo é o “Amém” a todas as promessas de Deus (2 Co 1:20). Nele todas as coisas que estavam escritas na “Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos” atingiram seu cumprimento (Lc 24:44). Em numerosos textos, os escritos do Novo Testamento testemunham a unicidade entre a Igreja e Israel. Gálatas 3, por exemplo, ensina que tanto a Antiga quanto a Nova Aliança apresentam a mesma mensagem do evangelho (v. 8), a mesma necessidade da fé (vv. 6-11), os mesmos motivos de maldições e bênçãos (vv. 9, 10, 13), o mesmo Cristo e o mesmo Espírito Santo (vv. 13, 14, 16), substancialmente as mesmas promessas pactuais (vv. 15-25), e em ambos os tempos, os verdadeiros crentes são chamados de filhos de Abraão (vv. 26-29). Ainda em Gálatas 6:16 lemos que a igreja é “o Israel de Deus”. Além disso, Hebreus 13:8 e 1 Timóteo 2:5 ensinam que Cristo é o único mediador de todo o povo de Deus do Antigo e do Novo Testamento. Como declarado na Confissão (8:6), a obra da cruz de Cristo alcança o que está tanto para trás quanto pela frente: “Ainda que a obra da redenção não tenha sido de fato realizada por Cristo senão depois da sua encarnação, contudo sua virtude, eficácia e benefícios foram comunicados aos eleitos, em todas as épocas sucessivas desde o princípio do mundo”. Isso porque a Queda e a necessidade da obra da cruz de Cristo não pegaram Deus “de surpresa”. Antes, pelo contrário, a Escritura apresentanos Jesus Cristo como “o Cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo” (Apocalipse 13:8), e ainda, afirma que a vida foi prometida “antes dos tempos eternos” (Tito 1:2). Porque o plano de salvação de Deus opera fora dos limites do tempo, não é algo impossível para Deus imputar a justiça de Cristo aos santos do Antigo Testamento, antes dos “dias de sua carne” (Hb 5:7). Em 1 Pedro 2:4-10, Pedro chama a igreja de “geração eleita, sacerdócio real, nação santa” assim como Israel era “propriedade 4

Aqui intercambiamos os termos “pacto” e “aliança” como sinônimos.

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exclusiva”, “reino de sacerdotes” e sua “nação santa” durante a época do Antigo Testamento (Êx 19:5-6). Na mesma perícope, Pedro compara a construção da igreja do Novo Testamento à construção do templo do Antigo Testamento. Como já vimos, Paulo usa a mesma imagem em Efésios 2:1922 e 2 Coríntios 6:16. Logo, a partir disso, fica suficientemente claro, como observado acima, que não há “dois pactos de graça diferentes em substância, mas um e o mesmo sob várias dispensações”. Os atributos da Igreja Nos primeiros anos do cristianismo, os autores do Credo Nicenoconstatinopolitano (381 d.C.), confessaram: “[Cremos] na igreja una, santa, católica e apostólica”. Aqui temos o que é conhecido como os quatro atributos da igreja de Jesus Cristo. Ou dito de outra maneira, são as descrições apropriadas da igreja. A unidade da igreja A igreja de Cristo é “uma”. Há uma unidade na igreja. Em Efésios 4:46 lemos: “Há somente um corpo e um Espírito, como também fostes chamados numa só esperança da vossa vocação; há um só Senhor, uma só fé, um só batismo; um só Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos, age por meio de todos e está em todos”. O corpo mencionado nesse texto é a igreja de Cristo. A igreja cristã é a noiva de Cristo (Ef 5:31-32; Ap 19:7; 21:2, 9-10). Ele é o cabeça da sua igreja, que é seu corpo (Cl 1:18). Há um único fundamento da igreja: Cristo (1 Co 3:11). Ele é o cabeça federal ou o cabeça pactual de cada um dos membros da sua igreja (invisível), os quais estão unidos com Ele; Ele os representa — a todos (Rm 5:12-19). Por conseguinte, há uma “comunhão dos santos”, cada membro está em comunhão com o Senhor e uns com os outros (1 Co 10:16-17;12). Paulo escreve a respeito da solidariedade corporativa da igreja, em Gálatas 3, Efésios 4, e 1 Coríntios 12. O apóstolo afirma que há uma unidade do Espírito dentro da comunidade cristã, uma unidade que, como vimos, transcende as distinções de etnia, sexo e classe. Os dons espirituais são usados para o avanço do Reino de Deus. Contudo, há diversidade de dons, que são necessários para que o corpo funcione adequadamente. Diversidade é existir sem que haja desunião. A principal função dos pastores e mestres é pregar e ensinar a Palavra de Deus aos leigos, equipando-os, portanto, para que sirvam adequadamente no Reino de Cristo (Ef 4:11-12). Nota-se que a unidade à qual se convoca a igreja não é primariamente uma unidade organizacional, mas doutrinária; é uma unidade de mente (1 Co 1:10; Fp 1:27; 1 Pe 3:8). Nessa mesma linha, Gordon Clark afirmava que “é uma unidade da proclamação, uma unidade de mensagem, uma unidade doutrinária que é a prioridade maior da exortação de Paulo [1 Co 1:10]. Quando há unidade doutrinária, poderá haver também unidade

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organizacional dentro de uma cidade ou área geográfica conveniente; mas sem unidade doutrinária, unidade organizacional não é unidade”5. A santidade da igreja A igreja de Cristo é uma nação “santa” de acordo tanto com o Antigo (Êx 19:6) quanto com o Novo Testamento (1 Pe 2:9-10). Os membros da igreja de Cristo são chamados de “santos” ou “santificados”. Foram “colocados à parte” para Deus (1 Co 1:1-2; Cl 1:2; o mesmo grupo de palavras gregas: hagios, hagiazo, é usado para “santo”, “santos” e “separados”). Os cristãos são santos porque estão unidos com Jesus Cristo (1 Co 6:17; Ef 5:31-32). Foram declarados justos (Rm 5:17-19). Foram regenerados pelo Espírito Santo (Jo 3:3-8) e receberam novos corações para guardar os mandamentos de Deus (Jr 31:31-34; Ez 36:25-27). Como declarou Kuiper: “A igreja de Cristo é uma só e a única organização no mundo que é sagrada, nessa acepção. Isso a faz incomparavelmente a mais gloriosa de todas as sociedades terrenas. A santidade constitui a igreja. A igreja é sinônimo de santidade”6. Sendo esse o caso, os santos devem estar envolvidos na busca de santidade (Hb 12:14). Seu Deus é santo e eles são chamados ao mesmo padrão (Mt 5:48; 1 Pe 1:15-16). A santidade inclui amor e obediência à lei de Deus: Cristo declarou: “Se me amais, guardareis os meus mandamentos… Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda, esse é o que me ama… Se alguém me ama, guardará a minha palavra” (João 14:15, 21, 23). Nesse sentido, é correto falar de santidade tanto definitiva quanto progressiva da igreja. A santidade da igreja é definitiva no sentido de que a igreja é santa em Cristo (1 Co 1:2; Hb 10:10); há uma separação radical do pecado devida à obra da sua cruz em favor da igreja, a qual se retrata no sacramento do batismo, ou do lavar. Por outro lado, a santidade da igreja é progressiva no sentido de que, tendo a igreja sido declarada justa, sua santificação segue-se inevitavelmente (Hb 10:14). É importante notar aqui que a santidade (a salvação) dos eleitos, de maneira completa, tem a ver com a sua relação com Jesus Cristo. Como dito anteriormente, os eleitos estão em união espiritual com Jesus (Jo 15:18; Rm 6:3-6). Estão em união com Cristo por ser Ele o seu cabeça federal. Ele os representa exatamente como Adão representava todos os homens no jardim do Éden. Conforme Paulo, ou alguém está “em Adão” ou “em Cristo” (Rm 5:12-19; 1 Co 15:22). A união que os eleitos têm com Cristo provém da obra do Espírito Santo (1 Co 12:13). Portanto, essa é uma “união espiritual”. Como ensina o Breve catecismo de Westminster (P. 30), o 5

Gordon H. Clark. What Do Presbyterians Believe? Phillipsburg, New Jersey: Presbyterian and Reformed Publishing Company, [1956], 1965, p. 221. 6 R.B. Kuiper. The Glorious Body of Christ. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans Publishing Company, 1958, p. 58.

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Espírito gera a fé em Cristo na mente dos pecadores eleitos: “O Espírito aplica-nos a redenção adquirida por Cristo, operando em nós a fé, e unindonos a Cristo por meio dela, em nossa vocação eficaz”. Dessa maneira, os eleitos tornam-se “co-participantes da natureza divina” (2 Pe 1:4), isto é, têm “a mente de Cristo” (1 Co 2:16). A respeito dessa doutrina da “união com Cristo”, John Murray escreveu: A união com Cristo é um tema muito abrangente. Abraça a grande amplitude da salvação desde sua fonte última na eterna eleição de Deus até sua fruição final na glorificação dos eleitos. Não é simplesmente uma fase da aplicação da redenção: constitui cada aspecto da redenção tanto em sua realização quanto em sua aplicação. A união com Cristo une todos conjuntamente e assegura que a todos para os quais obteve a redenção, Cristo do mesmo modo aplica e comunica essa redenção eficazmente.7 Há muitos textos bíblicos que fazem referência à união espiritual que a verdadeira igreja tem com Cristo. As Escrituras ensinam que um crente é identificado (unido) com Cristo quando é batizado nele (1 Co 12:13; Gl 3:27); é uma nova criação em Cristo (2 Co 5:17). Em Efésios 1 lemos que os crentes são abençoados em Cristo (v. 3), escolhidos eternamente nele (v. 4), predestinados para adoção por meio dele (v. 5), redimidos nele (v. 7), e selados nele com o Espírito Santo (v.13). Efésios 2 declara que a igreja é vivificada e ressuscitada em Cristo (vv. 5, 6), criada nele para as boas obras (v. 10), e nele edificada como templo santo (v. 22). Além disso, Colossenses 2 sustenta que os eleitos estão radicados e edificados em Cristo (v. 7), têm a plenitude nele (v. 9), estão circuncidados nele por serem batizados nele (vv. 11-12). As Escrituras identificam os crentes com Cristo na sua morte (Rm 6:3), no seu sepultamento (Rm 6:4), na sua ressurreição (Cl 3:1), na sua ascensão (Ef 2:6), no seu reino (2 Tm 2:12) e na sua glória (Rm 8:17). Em 1 Coríntios 1:30, lemos que a justiça, a santificação e a redenção dos cristãos estão todas relacionadas à sua união com Jesus Cristo. E Romanos 8:28-30 resume a ordem da salvação (ordo salutis), demonstrando que tudo isso depende da identificação espiritual dos crentes com Cristo. A santidade da igreja, portanto, está intrinsicamente vinculada à sua relação com Cristo, à sua união com Ele. A catolicidade da igreja Como estudamos, a igreja é uma só e é várias. É local, e é universal. E há uma “conectividade” indispensável na igreja. A igreja é católica, isto é, universal. Não está confinada a qualquer época ou etnia, nem restrita a 7

John Murray. Redemption: Accomplished and Applied. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans Publishing Company, [1955], 1980, p. 165.

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uma só língua, nacionalidade ou denominação. Em Gálatas 3:28, lemos: “… não pode haver judeu nem grego, nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus”. Sob a Nova Aliança a igreja universal abrange todas as nações. Como ensinado na Confissão de Fé de Westminster (25:3): A esta igreja católica visível, Cristo deu o ministério, os oráculos e as ordenanças de Deus, para congregação e aperfeiçoamento dos santos, nesta vida, até o fim do mundo, e por sua própria presença e por seu Espírito, os torna eficientes para esse fim, segundo a sua promessa. Contudo, deve-se afirmar que nem todos os grupos que se declaram igrejas devem ser reconhecidos como tal. Novamente, para mencionar a Confissão (25:5): As igrejas mais puras debaixo do céu estão sujeitas à mistura e ao erro; algumas têm-se degenerado ao ponto de não serem mais igrejas de Cristo, e, sim, sinagogas de Satanás; não obstante, haverá sempre sobre a terra uma igreja para adorar a Deus segundo a vontade dele mesmo. A apostolicidade da igreja A igreja é apostólica pelo fato de ser “edificada sobre o fundamento dos apóstolos e profetas, sendo ele mesmo, Cristo Jesus, a pedra angular” (Ef 2:20). Sendo veículos da revelação verbal de Deus, os apóstolos, bem como os profetas constituíram o fundamento da igreja, com Cristo sendo o suporte principal e causa do crescimento dela. Cristo, não os apóstolos nem os profetas, sustenta toda a casa de Deus e a leva a sua plenitude (Hb 3:16; 1 Co 3:11). No entanto, é o Espírito revelado, — os ensinos escritos dos embaixadores comissionados por Cristo, os apóstolos — que são o fundamento da organização e da doutrina de toda a igreja cristã através dos séculos (Jo 13:20; 17:20; Mt 10:40; Lc 10:16). Mateus 16:19 referese a esse fundamento como “as chaves do reino dos céus”. Elas é que “ligam e desligam”. Crer em Cristo é crer na sua Palavra (Jo 5:45-47; 17:20). Como afirma Apocalipse 21:14, os escritos apostólicos são as pedras de fundação [o alicerce] da igreja. É a Palavra de Deus que estabelece a igreja, e não o contrário (como no catolicismo romano). A Bíblia vem primeiramente. O que assegura a apostolicidade da igreja é sua conformidade às doutrinas apostólicas.

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Unidade 4 – As marcas da verdadeira Igreja Como declarado na Confissão de fé de Westminster (CFW) (25:4): “Esta igreja Católica tem sido ora mais, ora menos visível. As igrejas particulares, que são membros dela, são mais ou menos puras conforme nelas é, com mais ou menos pureza, ensinado e abraçado o Evangelho, administradas as ordenanças e celebrado o culto público”. Com toda a heresia, falsa doutrina, falsos pregadores e falsas igrejas no mundo de hoje, como seria possível reconhecermos a verdadeira igreja? Haverá na igreja de Cristo marcas claras e definidas pelas quais possamos identificá-la com certeza? A resposta a essas perguntas é “Sim!”. A teologia reformada afirma que há três marcas definidas que identificam a genuína igreja de Cristo. Essas marcas são definidas nos principais credos reformados: Confissão escocesa (1560), Confissão belga (1561), Catecismo de Heidelberg (1563), Segunda confissão helvética (1566), Confissão de Westminster (1643-1648), Declaração de Savoy (1658), Confissão batista de Londres (1689). As marcas são: a verdadeira proclamação da Palavra de Deus, a correta administração dos sacramentos e o fiel exercício da disciplina da igreja. Como Calvino afirmou, na Carta ao Cardeal Sadoleto: “Há três coisas sobre as quais a segurança da igreja está fundada, a saber, a doutrina, a disciplina e os sacramentos”. Quando uma dessas marcas estiver faltando numa igreja, essa igreja não está mais funcionando como uma “igreja bíblica”. A verdadeira proclamação da Palavra de Deus Essa é a marca fundamental, a mais enfatizada pelos reformadores; e a razão disso é ser a Palavra de Deus o principal “meio de graça” (Jo 8:3132; 14:23; 1 Jo 4:1-3; 2 Jo 9-11). Nas palavras de Gordnon Clark: “a igreja proclama, defende, propaga o evangelho. Sua missão é declarar toda a verdade de Deus… Se a igreja não for um baluarte da verdade, não há igreja”. Além disso, é pela Palavra de Deus que toda controvérsia na igreja deve ser julgada hoje (At 15:15ss), e por ela todos os homens serão julgados no último dia (Rm 2:16; 16:25). Por meio do evangelho é que os pecadores eleitos conhecem a Cristo como Salvador e Senhor (Rm 1:16-17). Em Romanos 10, Paulo afirma que todo aquele que invocar o nome de Cristo será salvo (v. 13). Mas o apóstolo também diz que não podem invocar aquele de quem nunca tenham ouvido; “a fé é pelo ouvir, e o ouvir pela da Palavra de Deus” (vv. 14-17). A ideia fundamental do evangelho (euangelion, que significa “boas notícias”) encontra-se em 1 Coríntios 15:3-4: “… que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, e que foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras”. A mensagem do evangelho são as

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“boas novas” que Jesus, por seus méritos, concedeu em favor da salvação de todos os eleitos de Deus, realizando assim a salvação desses eleitos. Os reformadores destacavam que a pregação da Palavra estava acima dos sacramentos, pois a Palavra de Deus é “o meio de graça” em si mesma. Isto é, a Escritura é absolutamente necessária para a salvação, enquanto os sacramentos, mesmo sendo importantes, são “meios de graça” apenas junto com a Palavra. Pois ninguém pode compreender os meios que são os sacramentos à parte da revelação bíblica. Conforme Calvino: “o sacramento nunca existe sem uma promessa”. Toda graça comunicada pelos sacramentos é comunicada pela Palavra de Deus e jamais é uma graça diferente ou independente do que é comunicado pela Palavra de Deus. A correta administração dos sacramentos A segunda marca da verdadeira igreja é a correta e fiel administração dos sacramentos. A CFW (27:1) define os sacramentos como “santos sinais e selos do pacto da graça, imediatamente instituídos por Deus para representar Cristo e os seus benefícios, e confirmar nosso interesse nele; bem como para fazer uma diferença visível entre os que pertencem à Igreja e o restante do mundo; e solenemente obrigá-los ao serviço de Deus em Cristo, segundo a sua Palavra”. Há dois sacramentos no Novo Testamento: o batismo e a ceia do Senhor, ambos instituídos por Jesus Cristo (Mt 28:19; Lc 22:14-20). Podemos dizer que esses sacramentos sem sangue substituíram os dois sacramentos com sangue, do Antigo Testamento: a circuncisão (Cl 2:1112; Fp 3:3; Rm 2:28-29) e a Páscoa (1 Co 5:7; 10:15ss). Uma vez que o sangue de Cristo foi derramado de uma vez por todas em favor do seu povo, não há mais nenhuma necessidade de sacramentos de sangue. Batismo O batismo com água, como ensina o Breve catecismo de Westminster (P. 94), é um sacramento no qual o lavar com água em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo significa e sela nossa união com Cristo, a participação das bênçãos do pacto da graça, e a promessa de pertencermos ao Senhor. Portanto, o batismo é um sinal de entrada num relacionamento pactual com o Senhor. Logo, deve ser administrado uma única vez. O sinal da água indica o verdadeiro batismo do Espírito Santo de Deus (Lc 3:16). O batismo não regenera (1 Pe 3:20-21); é, porém, um símbolo da obra regeneradora do Espírito (Tt 3:5-6). Quem pode receber o batismo? Os pedobatistas reformados sustentam, juntamente com a Confissão de fé de Westminster (28:4), que o batismo não é apenas para os “que de fato professam sua fé em Cristo e obediência a ele, mas também [para os] filhos de pais crentes, ainda que só um deles o seja, devem ser batizados”. Os batistas reformados, por outro

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lado, ensinam em seu Breve catecismo (P. 98) que “o batismo deve ser administrado a todos os que sinceramente professam arrependimento diante de Deus e fé em nosso Senhor Jesus Cristo, e a ninguém mais”. Em relação aos dois sacramentos do Novo Testamento, a Igreja católica romana ensina a doutrina do sacramentalismo. Nessa falsa teoria, a graça é transmitida aos comungantes ex opere operato (“pela eficácia em si mesma”), e é necessária à salvação. O Concílio de Trento definiu um sacramento como “algo apresentado aos sentidos, que tem poder, por instituição divina, não apenas significando, mas também eficazmente comunicando graça”. No batismo com água, por exemplo, a graça regeneradora é transmitida aos comungantes pelo ato do batismo em si. Muitos textos do Novo Testamento negam o ensino de Roma. Primeiro, há o ladrão da cruz sem batismo (Lc 23:39-43). Segundo, há João 4:2 e 1 Coríntios 1:17. A partir desses dois versículos, aprendemos que nem Jesus nem Paulo se envolveram com o batismo como uma parte essencial de sua pregação. Isso dificilmente seria verdade se o batismo com água fosse necessário à salvação. Terceiro, 1 Pedro 3:21 é uma reprovação completa de que o batismo, em si mesmo, tenha o poder de salvar. O luteranismo também ensina que o batismo transmite graça aos comungantes, mas não ex opere operato. A fé ativa é necessária da parte do indivíduo que recebe o sacramento, exceto no caso dos infantes. Quanto a esse último caso, dos filhos dos crentes, Lutero dizia que possuíam uma “fé inconsciente”, isto é, uma fé que não exigia a capacidade de raciocínio, na qual, de alguma forma, a fé dos pais estava envolvida. Falando francamente, tais afirmações não fazem sentido. Primeiro, “fé inconsciente” é uma contradição de termos. A fé é definida como consistindo de notitia (ideia, noção ou concepção), assensus (concordância, consentimento) e fiducia (confiança, certeza). É claro: alguém incapaz de compreender, assentir ou confiar é incapaz de fé. E quem é “inconsciente” é incapaz de compreender, assentir ou confiar. Portanto, a própria expressão “fé inconsciente” é autocontraditória. Seja o que for argumentado quanto às crianças saberem ou não, claramente não se pode afirmar que elas possuam “fé inconsciente”. Em segundo lugar, conforme Ezequiel 18, filhos e filhas não levarão sobre si a culpa dos seus pais, nem receber deles a justiça. Cada homem, mulher e criança, ficará diante de Deus e responderá por si mesmo ou por si mesma. Quanto à questão do modo adequado do batismo, e contrapondo-se à Confissão batista de Londres de 1689, a maioria dos teólogos reformados concorda com a Confissão de fé de Westminster (28:3) a qual defende que o batismo pode ser administrado por imersão, efusão ou aspersão: “Não é necessário imergir o candidato na água, mas o batismo é corretamente administrado por efusão ou aspersão”.

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A ceia do Senhor Em relação à ceia do Senhor, a CFW (29:1) declara: “Na noite em que foi traído, nosso Senhor Jesus instituiu o sacramento do seu corpo e sangue, chamado ceia do Senhor, para ser observado em sua igreja até ao fim do mundo, para ser uma lembrança perpétua do sacrifício que em sua morte ele fez de si mesmo; para selar, aos verdadeiros crentes, os benefícios provenientes desse sacrifício para o seu nutrimento espiritual e crescimento nele, e seu compromisso de cumprir todos os seus deveres para com ele; e ser um vínculo e penhor da sua comunhão com ele e de uns com os outros, como membros do seu corpo místico”. Então, a ceia do Senhor é um sinal de se estar continuamente numa relação pactual com o Senhor. Deve, portanto, ser administrada com frequência. Como um sinal, seu primeiro significado é a morte de Cristo e todos os benefícios que fluem dessa morte. Um dos benefícios que decorre da morte de Cristo é a santificação de todos os que são verdadeiramente seus, o que também aponta para a obra do Espírito de Deus na santificação (2 Ts 2:13; 1 Pe 1:2). A teologia reformada geralmente reconhece um tríplice aspecto da Ceia: Passado: Quando “pela fé” participa dos elementos da ceia do Senhor, o cristão olha para trás e se lembra do sacrifício de Cristo que, por seus próprios méritos, adquiriu a sua salvação. Nesse sentido, a Ceia é um memorial; “uma lembrança perpétua do sacrifício [de Cristo] em sua morte”. Jesus instruiu sua igreja: “fazei isso em memória de mim” (Lucas 22.19). Presente: Quando “pela fé” toma a ceia, o cristão se alimenta de Cristo “para o seu nutrimento espiritual e crescimento nele”. Na ceia do Senhor os elementos recebem um significado especial: o pão representa o corpo de Cristo e o vinho representa seu sangue (1 Co 11:23-25). Quando os elementos são consagrados ou separados para o sacramento, pela oração e pregação da Palavra, há uma união sacramental entre os elementos e o que eles representam. E “os que comungam dignamente”, como a CFW (29:7) ensina, “da mesma maneira que participam exteriormente do pão e do vinho, também recebem intimamente, pela fé, a Cristo crucificado e a todos os benefícios da sua morte, e dele se alimentam, não carnal ou corporalmente, mas real, verdadeira e espiritualmente”. A razão pela qual os crentes comungantes recebem nutrição espiritual na ceia significa que, como diz o Catecismo maior de Westminster (P. 177), ela “deve ser celebrada frequentemente… para confirmar a nossa continuação e crescimento nele”. Os escritos do Novo Testamento indicam que a igreja primitiva participava da ceia na mesma medida que se reunia para o culto (At 2:42-47; 20:7; 1 Co 5:7-8; 11:17-34). Sendo esse o caso, tudo leva a crer que uma celebração semanal (a cada Dia do Senhor) da ceia do Senhor deveria ser a norma para a igreja hoje.

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Futuro: A ceia do Senhor deve ser observada “em sua igreja até ao fim do mundo”. Daí porque, quando os cristãos “pela fé” participam da ceia, eles assim o fazem olhando à frente para o segundo advento de Cristo, quando todo o povo de Deus participará da grande ceia das bodas do Cordeiro (Mt 26:29; 1 Co 11:26; Ap 19:7-9). Quem pode participar da ceia do Senhor? Como Paulo escreve em 1 Co 11:23-32, a ceia do Senhor é para os que pertencem ao Senhor. É para os que buscam viver uma vida piedosa em conformidade aos mandamentos do Senhor. Daí porque, como lemos no Breve catecismo de Westminster (P. 97): Exige-se daqueles que desejam participar dignamente da ceia do Senhor que se examinem sobre o seu conhecimento em discernir o corpo do Senhor, sobre a sua fé para se alimentarem dele, sobre o seu arrependimento, amor e nova obediência; para não suceder que, vindo indignamente, comam e bebam para si a condenação. Dentro dos, assim chamados, círculos cristãos há uma variedade de opiniões em relação à “presença de Cristo” na ceia. O catolicismo romano ensina a falsa doutrina da transubstanciação, ou seja, que Cristo está fisicamente presente nos elementos, devido ao “milagre” da missa. Conforme essa falsa teoria, quando o sacerdote abençoa os elementos, eles são miraculosamente transformados no real corpo e sangue de Cristo. O romanismo ensina que eles são substância, não acidentes, no qual são transformados (de acordo com a metafísica de Aristóteles, adotada por Tomás de Aquino). Então, os elementos continuam mantendo sua forma, textura, sabor, etc., mesmo que a substância mude. Somente um sacerdote ordenado (sacerdotalismo) pode realizar esse “milagre”. Desse modo, participar da eucaristia (ceia do Senhor) expiaria os pecados veniais (não mortais, conforme a distinção de Roma). Roma afirma que a razão disso é que cada eucaristia é uma missa, isto é, um novo e real sacrifício de Cristo. O Concílio de Trento declara: Neste divino sacrifício que é celebrado na Missa, está contido e é incruentamente imolado aquele mesmo Cristo… este sacrifício é verdadeiramente propiciatório… e dessa forma, não apenas pelos pecados, castigos, satisfações e outras necessidades dos fiéis que estão vivos, mas também por todos aqueles que estão apartados de Cristo e que não foram ainda completamente purificados, pelos quais também corretamente é oferecido. Isso é pura e simples heresia. Em primeiro lugar, de acordo com as Escrituras, Cristo não pode ser sacrificado novamente; morreu uma única vez pelos pecados dos eleitos (Hb 9:28; 1 Pe 3:18). Em segundo lugar, em

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relação à instituição da ceia do Senhor no Cenáculo (Lc 22:14-20), é manifestamente um absurdo crer que Jesus declarou estar segurando seu próprio corpo e sangue em suas mãos carnais. Em terceiro lugar, em 1 Coríntios 10:16-17 e 11:26-28, Paulo refere-se aos elementos como elementos, mesmo após a mudança que supostamente teria ocorrido. Paulo afirmou, por exemplo, em 1 Coríntios 10:16 que o que partimos é pão. Em 1 Coríntios 11:26 vai mais longe ainda ao ponto de declarar: o que os participantes do culto estavam comendo era pão. O luteranismo ensina a doutrina equivocada da consubstanciação, ou seja, que a presença de Cristo está fisicamente “em, com e sob” os elementos. Lutero rejeitou o sacerdotalismo e a missa. Porém, ainda manteve erroneamente a posição que exigia a ubiquidade8 do corpo humano do Senhor. Isso, obviamente, é contrário à verdadeira humanidade e seria uma negação da dupla natureza de Cristo. Um terceiro ponto de vista errado é o zwinglianismo (embora seja questionável se Zwinglio mesmo sustentou o que será descrito aqui). Essa visão afirma que Cristo está espiritualmente presente na ceia, mas declara que ela seja apenas um memorial ou celebração da morte de Cristo. Portanto, é meramente um sinal ou símbolo, nos quais os elementos apenas representam o corpo e sangue de Cristo. Contudo, 1 Coríntios 10:16, 17 por outro lado ensina: os crentes realmente são “alimentados” de Cristo na ceia. O conceito zwingliano da ceia do Senhor implicitamente nega a característica “presente” do tríplice aspecto acima mencionado na visão reformada. A teologia reformada ensina que Cristo está realmente, embora espiritualmente, presente na ceia do Senhor. Daí a razão de a CFW (29:7) declarar: Os que comungam dignamente, participando exteriormente dos elementos visíveis deste sacramento, também recebem intimamente, pela fé, a Cristo crucificado e a todos os benefícios da sua morte, e dele se alimentam, não carnal ou corporalmente, mas real, verdadeira e espiritualmente; não estando o corpo e o sangue de Cristo, corporal ou carnalmente nos elementos, pão e vinho, nem com eles ou sob eles, mas estão, espiritual e realmente, presentes à fé dos crentes nessa ordenança, como estão os próprios elementos em relação a seus sentidos corporais. O fiel exercício da disciplina da igreja A terceira marca da verdadeira igreja é o fiel e amoroso exercício da disciplina da igreja (Mt 18:15-20; 1 Co 5:1-5,13; 14:33,40; Ap 2:14-16). Isso é necessário para a manutenção da pureza da doutrina e da vida da igreja. Como Berkhof declara: “As igrejas que relaxarem na disciplina, 8

É a presença física, humana, de Cristo concomitantemente presente em mais de um lugar.

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descobrirão mais cedo ou mais tarde em sua esfera de influência um eclipse da luz da verdade e abusos nas coisas santas”9. Por meio de seus presbíteros eleitos, a igreja é responsável por pastorear seus membros (1 Pe 5:1-4). A autoridade concedida à igreja por Cristo inclui o poder de aplicar a disciplina na igreja, admitir e excluir da membresia da igreja, e dirigir a conduta dos membros enquanto permanecem membros. A disciplina envolvida não é uma disciplina física, nem qualquer aplicação corporal. É uma disciplina espiritual, e nesse sentido, é estritamente ministerial e declaratória. Quando há pecadores impenitentes na congregação, a disciplina da igreja torna-se necessária. Cristo deu orientações para a disciplina da igreja em Mateus 18:15-20, onde lemos sobre o tríplice procedimento no processo disciplinar. O primeiro e o segundo deles devem ser realizados pelos próprios membros da igreja; o terceiro deve ser tratado pelos governantesrepresentantes da igreja. Em primeiro lugar, o pecador deve ser abordado sozinho pela parte ofendida. Se isso não levar a parte ofensora ao arrependimento, então o segundo passo é envolver uma testemunha. Se a ação disciplinar dos membros da igreja não surtir efeito, e ainda não houver arrependimento, então finalmente a questão deve ser tratada no âmbito da igreja. Nessa terceira fase, a igreja é representada pelos presbíteros, isto é, o “tribunal” da igreja. Em todos os casos de queixas particulares, esses passos devem ser seguidos. Contudo, no caso de pecados públicos em que não haja apenas uma parte prejudicada, mas a honra de toda a igreja de Cristo esteja envolvida, torna-se necessário que o conselho da igreja seja a parte que se interponha perante a denúncia. Sempre que o arrependimento seja manifesto no processo, o pecador deve ser perdoado e restaurado à comunhão da igreja. Se não houver arrependimento manifesto, então, como ensinado pela CFW (30:4), … os oficiais da igreja devem proceder dentro da seguinte ordem, segundo a natureza do crime [isto é, do pecado] e demérito da pessoa: repreensão, suspensão do sacramento da ceia do Senhor por algum tempo e exclusão da igreja. A Bíblia ensina que a disciplina da igreja serve para três propósitos: para a glória de Deus (1 Co 10:31); para a pureza da igreja (1 Co 5:4-8) e para a restauração do pecador (2 Co 2 e 7). Em sua “Carta ao Duque de Somerset”, Calvino escreveu: Pois assim como a doutrina é a alma da igreja para vivificá-la, da mesma forma a disciplina e a correção dos vícios são como nervos para manter o corpo de uma forma saudável e vigorosa. 9

Louis Berkhof. Teologia sistemática. Campinas: Luz Para o Caminho, 1990, p. 530.

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Deve-se notar que enquanto as três marcas estudadas nesta unidade são, de fato, testes adequados para a verdadeira igreja de Cristo, elas não têm o mesmo grau de importância. Isto é, a segunda e a terceira marcas são necessárias para o “bem-estar” da igreja, porém, não são necessárias para o “ser” da igreja. Somente a verdadeira proclamação da Palavra de Deus é necessária para o “ser” da igreja. É a Palavra que determina a correta administração dos sacramentos e o fiel exercício da disciplina da igreja. Sem a primeira e a segunda marcas uma igreja não está funcionando como uma igreja bíblica. Porém, sem a primeira marca não há, de modo nenhum, uma igreja de Cristo. João Calvino diz: “Esta é a marca perpétua com a qual nosso Senhor assinalou os seus: ‘Quem é da verdade ouve a minha voz’”.

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Unidade 5 – O Princípio Regulador do Culto As pessoas frequentemente se surpreendem quando ouvem ou aprendem que Deus nem sempre se agrada do culto que lhe é oferecido. Somos inclinados a pensar que Deus deveria sentir-se agradecido com qualquer tipo de atenção que lhe dispensássemos dentro de nosso tempo escasso e cheio de compromissos. Mas culto não tem a ver com a gratidão de Deus para conosco; mas com nossa gratidão a Ele. Deus não se agrada de qualquer coisa que apresentemos diante d’Ele. O Senhor poderoso do céu e da terra exige que nosso culto, na realidade toda a nossa vida, seja governada por Sua Palavra. Desde o início, em Gênesis 4, aprendemos que “Deus não olhou com favor para Caim e sua oferta” (v. 5). Em Levítico 10:1-13, Deus destrói Nadabe e Abiú, filhos de Arão, por terem oferecido “um fogo não autorizado diante do Senhor, contrário à sua determinação” (Veja também: 1Sm 13:714; 2Sm 6:6, 7 [compare 1Cr 13:9-14; 15:11-15]; 1Rs 12:32, 33; 15:30; 2Cr 26:16-23; 28:3; Jr 7:31; 1Co 11:29, 30). Os primeiros quatro mandamentos do Decálogo ocupam-se do culto em vários aspectos. Eles regulam nosso relacionamento com o sagrado. O primeiro proíbe o culto a deuses falsos. O segundo veta o culto a qualquer deus (até mesmo o Deus verdadeiro) por meio do uso de ídolos. O terceiro proíbe o uso errado do santo nome de Deus. O quarto exige que nos lembremos de seu dia santo. Por conseguinte, as Escrituras traçam uma linha clara entre culto verdadeiro e falso. A condenação à idolatria permeia toda a Bíblia (no Novo Testamento, veja: At 17:16; Rm 1:21-23; 1Co 10:622; 2Co 6:16; Gl 5:20; 1Pe 4:3; 1Jo 5:21; Ap 21:8; 22:15). Portanto, é uma questão da maior importância, literalmente uma questão de vida ou morte, saber como adorar a Deus corretamente, de acordo com sua vontade. O tipo errado de culto provoca a ira de Deus, não a sua bênção. Portanto, as perguntas que surgem são: como descobrir a maneira aceitável de adorar ao Senhor? Onde encontrar as normas para o culto? Para todos os cristãos, a resposta básica para essas perguntas é: “nas Escrituras”. Deus dirige toda a vida humana com a sua Palavra e, dessa mesma forma, isto é, por meio das Escrituras, regulamenta o serviço de culto. Esse princípio doutrinário é reflexo do Sola Scriptura, que afirma a Bíblia como única regra de fé e prática. Mas há controvérsias nas diversas vertentes cristãs se a regulamentação do culto pelas Escrituras é de forma negativa ou positiva. Católicos Romanos, Episcopais e Luteranos assumiram a posição de que podemos fazer qualquer coisa, menos aquilo que as Escrituras proíbem. Nesse caso, as Escrituras regulamentam o culto de forma negativa, exercendo o poder de veto. Igrejas Presbiterianas e Reformadas,

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entretanto, utilizam um princípio mais rígido: tudo aquilo que a Bíblia não ordena é proibido. Nesse caso, a autoridade bíblica é mais ampla do que um poder de veto, sua função é essencialmente positiva. Dentro dessa perspectiva, as Escrituras devem positivamente exigir um tipo de prática ou ordem que seja aceitável para o culto de Deus. A Confissão de Fé de Westminster (21:1) coloca da seguinte forma: O modo aceitável de cultuar a Deus é instituído por ele mesmo e limitado por sua própria vontade, de maneira que ele não pode ser adorado de acordo com a imaginação e invenções dos homens ou com as sugestões de Satanás, sob qualquer representação visível ou qualquer outro modo não prescrito nas Santas Escrituras. Tal princípio não anula os pensamentos, planejamentos e decisões humanas no culto. A confissão ainda esclarece: ... há algumas circunstâncias concernentes ao culto a Deus e ao governo da igreja que são comuns às ações e grupos ou sociedades humanas e que, portanto, devem ser dirigidas à luz da natureza e da prudência cristās, de acordo com as regras gerais da Palavra que devem ser sempre observadas. (1:6) As Escrituras são suficientes para nos dizer o que é básico com respeito ao culto, mas não nos dão uma orientação detalhada quanto às “circunstâncias”. Dentro dessa compreensão, o princípio regulador limita o que podemos fazer no culto, mas também permite diferentes tipos de aplicação e, portanto, abre uma área significativa de liberdade. Tal liberdade reflete a manifestação multiforme da graça divina na Igreja de Cristo (1Pe 4:10). Certamente, o princípio regulador é uma carta de liberdade, não um jugo pesado. Ele nos liberta de tradições humanas para cultuarmos a Deus ao seu modo. Elementos apropriados para o culto público No Antigo Testamento, Deus deu a Israel um conjunto elaborado de instruções para a construção do tabernáculo e do templo e estabeleceu em detalhes as exigências para o sacerdócio, as ofertas e as festas. Mas não há nenhuma orientação específica para o culto nas sinagogas. Aliás, as sinagogas quase nem sequer são mencionadas no Antigo Testamento; sabemos que Deus aprovava sua existência, especialmente, porque Jesus as frequentava e ensinava ali. O Novo Testamento fala um pouco mais sobre as reuniões cristãs (que eram mais parecidas com a sinagoga do que com o culto sacrificial do templo), mas não nos dá qualquer lista sistemática ou exaustiva de elementos, isto é, ações que requeiram autorização escriturística específica,

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em oposição às circunstâncias ou aplicações que não exigem tal autorização. Entretanto podemos apelar para princípios teológicos amplos, aumentando assim nossa segurança quanto àquilo que Deus deseja que façamos quando nos reunimos em seu nome. Usando esse tipo de raciocínio, podemos considerar os seguintes atos a serem realizados no culto. 1. Saudações e Bênçãos – Não há nenhum mandamento bíblico específico para incluí-las no culto público, nem tampouco qualquer exemplo histórico de que tenham sido usadas na introdução ou na conclusão do culto público durante o período do Novo Testamento. Entretanto, com certeza faziam parte da vida da igreja, uma vez que representam uma porção regular das cartas de Paulo (veja Rm 1:7; 15:33; 1Co 1:3; 16:23,24; 2Co 13:14). Uma vez que suas cartas eram, muito provavelmente, lidas em reuniões da igreja (Cl 4:16; 1Ts 5:27; Fm 2), suas saudações e bênçãos também faziam parte do culto público. Nessas bênçãos paulinas, assim como na grande bênção aarônica de Números 6:24-27, Deus identifica a congregação como seu povo, a quem ele deseja abençoar com sua graça e paz. A mensagem da bênção é parte da Palavra de Deus e, portanto, apropriada para o culto público. 2. Leitura das Escrituras – Havia leitura pública da Bíblia na igreja do Novo Testamento (1Tm 4:13). Textos do Antigo Testamento essenciais para a vida da igreja podem muito bem ter sido lidos (2Tm 3:15-17). As cartas de Paulo eventualmente eram lidas também. Suas cartas eram normativas em todas as igrejas e, portanto, deveriam ser do conhecimento dos membros como Palavra de Deus para eles (2Ts 3:14; 1Co 14:37; 2Pe 3:15). De fato, quando a Palavra de Deus é lida, Deus está pessoalmente presente com os leitores e com os ouvintes. Portanto, a leitura pública das Escrituras sempre cria um encontro ou uma confrontação divino-humana, isto é, um evento de culto público. 3. Pregação e ensino - É intenção de Deus que sua Palavra seja ensinada, assim como lida, diante do povo reunido em comunidade (Ver Ne 8:8; Lc 4:20; At 20:7; 1Tm 4:6; 5:17; 6:2; 2Tm 2:2; 3:16; 4:2; Tt 1:9). Os textos citados não especificam que o ensino deveria ocorrer em um serviço oficial específico, e, sem dúvida, era realizado em várias situações (Ver At 2:1-14; 13:5; 20:20; etc.). Mas ensinar é uma atividade pública e, sendo uma comunicação entre Deus e seu povo, cria uma situação de culto em qualquer ocasião ou lugar em que ocorra. Certamente, ele é apropriado a qualquer situação na qual o povo de Deus se encontre para cultuá-lo. 4. Orações – Não há necessidade de qualquer argumento para demonstrar que a oração comunitária é parte legítima do culto público (Ver At 2:42; 1Co 14:16; 1Tm 2:1, 2). Encontramos muitos tipos de oração na Bíblia: louvor, petição, lamento, confissão de pecado, expressões de arrependimento e gratidão.

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5. Cânticos – Certamente, Deus deseja que seu povo cante quando se reúne em seu nome (Ver 1Cr 16:9; 1Co 14:26; Ef 5:19, 20; Cl 3:16). O cântico não tem uma função independente no culto; ao contrário, é um meio para realizarmos muitos outros atos: orar, ensinar, abençoar, construir um espírito comunitário, etc. 6. Votos – Ao fazermos um voto solenemente, invocamos a Deus como testemunha de nossas afirmações e promessas. Nas Escrituras, isto é um ato tipicamente público, envolvendo outras pessoas como testemunhas. Portanto, na Bíblia, o voto é associado ao culto público (Sl 22:25; 50:14; 65:1; 76:11). Os votos fazem parte do batismo, da Ceia do Senhor (como renovação da aliança de Deus conosco), da recepção de novos membros, da ordenação de oficiais da igreja, de casamentos e, sem dúvida, de modo mais amplo, da consagração de nossas vidas aos propósitos de Deus. Todo culto público inclui um voto da congregação ao serviço de Cristo como Senhor. 7. Confissão de Fé – Na confissão de fé, professamos nossa fé perante os homens. Todo culto público é confissão; pois, ao irmos à igreja, dizemos ao mundo que somos servos de Jesus. Confissão resulta em salvação (Mt 10:32; Lc 12:8; Rm 10:9, 10) e faz distinção entre o povo de Deus e aqueles que são do mundo (1Jo 4:2, 3, 15). As Escrituras frequentemente se referem à confissão no contexto do culto público (1Rs 8:33-35; 2Cr 6:2426; 30:22; Hb 13:15). Paulo, referindo-se a Timóteo, fala de sua “boa confissão na presença de muitas testemunhas”, refletindo a boa confissão do próprio Jesus perante Pilatos (1Tm 6:12, 13). É, portanto, inteiramente apropriado que o povo de Deus recite credos durante o culto público para confessar sua fé como um “corpo de crentes”. 8. Sacramentos – Não há, no Novo Testamento, nenhuma ordem para se administrar o batismo numa reunião dominical e não há nenhum registro histórico de que isso tenha sido praticado no período do Novo Testamento. Os batismos, no Novo Testamento, são tipicamente celebrados fora das reuniões formais. Mas a natureza do batismo como sinal e selo da aliança da graça e como um voto público e solene ao Senhor e profissão de fé nele, sem dúvida o torna uma parte apropriada do culto público. Primeiro, o batismo não pode ser outra coisa, senão público. Segundo, ele é administrado em nome de Cristo e, portanto, será apropriadamente celebrado numa reunião realizada em nome de Jesus. Terceiro, é o rito de entrada na igreja, portanto, deve ser testemunhado pelo menos por um grupo da liderança da igreja. Semelhantemente, os cristãos do Novo Testamento certamente observavam a Ceia do Senhor juntos (1Co 11:1734). A descrição feita por Paulo da Ceia do Senhor como nova aliança no sangue de Jesus (11:25), uma proclamação da morte do Senhor (11:26) e uma participação no corpo e no sangue de Cristo (10:16) torna evidente que a Ceia é parte do culto público.

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9. Disciplina da Igreja – Em Mateus 18:15-20, Jesus ensina seus discípulos como lidar com o pecado na igreja. Eles não devem ignorá-lo; ao contrário, devem confrontar o pecador. Primeiro a parte ofendida deve ir ao agressor em particular. Se a questão não for resolvida, o agredido deve tentar novamente levando algumas testemunhas. Se a segunda tentativa falhar, a questão deve ser levada à igreja, podendo chegar à excomunhão. Embora, hoje em dia, as igrejas ignorem suas responsabilidades quanto a esse problema, Jesus promete sua presença especial com a igreja que assume sua responsabilidade nesses casos (v. 20). A referência à presença especial de Jesus sugere que o Senhor considera a disciplina como um ato de culto. O apóstolo Paulo, em 1 Coríntios 5:4, 5, deixa claro que alguns julgamentos devem ser pronunciados em assembleia. 10. Coletas e Ofertas – No Antigo Testamento, o termo “ofertas” geralmente se referia aos sacrifícios trazidos ao tabernáculo ou ao templo. No culto do Novo Testamento, não existem ofertas desse tipo, uma vez que Jesus deu sua vida como sacrifício definitivo. Mas nós nos trazemos a Deus como sacrifício vivo. Há também oportunidades de fazermos ofertas para os propósitos de Deus e para assistência aos pobres (Gl 2:103; 1Co 9:312). Em 1 Coríntios 16:1, 2, Paulo diz às igrejas para coletar ofertas no primeiro dia da semana, o dia da reunião comunitária. Em outra ocasião, ele menciona que o dar ofertas é um ato de culto: “(As ofertas) são como aroma suave, como sacrifício aceitável e aprazível a Deus” (Fp 4:18). Assim, muitas igrejas se referem ao levantamento de coletas como “ofertas”, embora o termo possa causar certa confusão com os sacrifícios do Antigo Testamento. De qualquer modo, não importa o termo empregado, é apropriadamente um ato de culto, algo que a igreja deve fazer quando reunida em nome de Deus. 11. Expressões de Comunhão – Levemos em consideração a verticalidade (Deus-homem) e a horizontalidade (homem-homem) do culto; portanto, deveríamos estar atentos, sobretudo em glorificar a Deus, mas também deveríamos mostrar nossa preocupação e cuidado com as outras pessoas, nossos irmãos e irmãs em Cristo. Esse foco horizontal pode ser visto em nossas orações uns pelos outros, na exortação mútua por meio do ensino e da pregação (Hb 10:24, 25), nas saudações e bênçãos, confissões e votos, na disciplina da igreja, nos sacramentos (ver 1Co 10:1417; 11:17-34) e no levantamento das ofertas. Há também outras maneiras por meio das quais os cristãos do Novo Testamento demonstravam seu amor uns pelos outros e sua união com Cristo. a. Uma delas era a “festa do amor” (agape), uma refeição comunitária realizada em associação com a Santa Ceia. Apenas Judas 12 (e possivelmente 2Pe 2:13, numa determinada tradução) se refere diretamente à festa do amor, mas existem muitas referências a ela após o período do Novo Testamento. Paulo a descreve claramente em 1 Coríntios 11:20-23; 33, 34 (veja também At 2:42-47; 4:35; 6:1; 20:7-11). Em razão

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dos abusos apresentados em 1 Coríntios, o agape eventualmente separouse da celebração da Ceia do Senhor e, mais tarde, foi completamente abandonado. Assim sendo, isso levanta a possibilidade, até mesmo para nós, de que uma refeição comunitária possa ser considerada parte do culto. Certamente, ela representava um evento público, uma reunião da igreja e o amor celebrado era o amor de Jesus. b. Outra expressão do amor cristão era o “beijo (ósculo) santo” (Rm 16:16; 1Co 16:20; 2Co 13:12; 1Ts 5:26; 1Pe 5:14). Beijos santos eram trocados talvez durante o culto assim como muitas pessoas se cumprimentam apertando as mãos hoje em dia em nossas igrejas. Seria isso culto? Bem, não se trata de um beijo qualquer, mas de um beijo santo. O significado desse gesto esteja no fato de que o cumprimento na presença de Deus identifica os crentes como membros do corpo de Cristo declarando seu amor uns pelos outros em Jesus. Deveríamos nos lembrar de que o amor é, num sentido muito importante, uma “marca da igreja”: aquilo que a distingue do mundo (Jo 13:34, 35). Portanto, é apropriado que digamos e façamos no culto aquilo que fortalece nossa amizade uns pelos outros no Senhor. É também apropriado, durante o culto, agradecer publicamente às pessoas da congregação que, de modo especial, serviram a Deus e a seus irmãos e irmãs em Cristo (assim como agradecer a Deus por elas). Verifique como Paulo faz isso em Filipenses 1:3-6; 4:10-19; uma carta que, sem dúvida, foi lida durante o culto na igreja de Filipos. Não está errado honrar as pessoas durante o culto, desde que isso não comprometa a honra suprema devida unicamente ao Senhor. Nem tampouco está errado a congregação expressar essa honra com um cântico, mãos dadas ou abraços. Essas atitudes são linguagens do amor cristão. Não existe nenhuma passagem ou princípio nas Escrituras que imponha ou determine uma ordem invariável para os eventos do culto. Há, entretanto, relações lógicas entre seus vários aspectos que não devem ser ignorados quando planejamos nossos cultos, um dos pontos é que deve-se ter uma unidade na mensagem litúrgica. É importante lembrar, ainda, que existe mais de uma sequência lógica aceitável nas Escrituras. Uma recuperação da flexibilidade bíblica pode trazer um novo vigor ao nosso culto e o vigor aumenta a inteligibilidade, o poder de nossa comunicação com a Palavra de Deus. Sem dúvida, existe valor na constância também. Por isso, é necessário a busca por equilíbrio.

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Unidade 6 – A autoridade e os deveres da Igreja A autoridade da Igreja O próprio Cristo nos ensina que toda a autoridade lhe foi dada nos céus e na terra (Mt 28:18). Essa autoridade foi-lhe confiada, pelo Pai, como um aspecto da sua investidura messiânica ou mediadora (Mt 11:27; Lc 22:29; Jo 5:22, 27; 17:2). E como Paulo escreve em Colossenses 1, Cristo não é apenas o criador soberano e regente do universo (vv. 15-17), ele também é o que tem plena e exclusiva autoridade sobre sua igreja (vv. 18-20). Sendo assim, somos assegurados, como ensinado na CFW (25:6), de que “não há outro cabeça da igreja senão o Senhor Jesus Cristo”. No entanto, Cristo também ensina que pelo fluir de sua autoridade, ele concedeu, ao seu grupo de apóstolos, autoridade para disciplinar as nações (Mt 28:18-19). Naturalmente, essa é a autoridade dos escritos apostólicos, os quais, como já estudamos, são o fundamento da igreja de Cristo (Ef 2:20). Portanto, a CFW (25:3) corretamente afirma: “A esta igreja católica visível Cristo deu o ministério, os oráculos e as ordenanças de Deus, para congregação e aperfeiçoamento dos santos, nesta vida, até o fim do mundo, e pela sua própria presença e pelo seu Espírito os torna eficientes para esse fim, segundo a sua promessa”. Na igreja de Cristo somente a Palavra é lei (Tg 4:12). A Bíblia e apenas a Bíblia é o padrão de norma, governo e autoridade para o culto e obra da igreja. A visão bíblica da autoridade da igreja está muito bem exposta no prefácio do Livro de ordem eclesiástica, da Presbyterian Church in America [Igreja presbiteriana na América]: Jesus Cristo, sobre cujos ombros repousa o governo, e cujo nome é ‘Maravilhoso, Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade, o Príncipe da Paz; para que se aumente o seu governo, e venha paz sem fim sobre o trono de Davi e sobre o seu reino para o estabelecer e o firmar mediante o juízo e a justiça, desde agora e para sempre’ (Is 9:6-7); tendo todo o poder que foi lhe dado nos céus e na terra pelo Pai, o qual o ressuscitou dos mortos e fazendo-o assentar-se à sua destra, muito acima de todos os principados e potestades, e poder, e domínio, e todo nome a que se possa referir, não só no presente século, mas também no vindouro. E tendo posto todas as coisas debaixo dos seus pés, e para ser ele o cabeça sobre todas as coisas, o deu à igreja, a qual é seu corpo, a plenitude daquele que a tudo enche em todas as coisas (Ef 1:20-23). Aquele que subiu acima de todos os céus, para encher todas as coisas, recebeu dons com vistas ao aperfeiçoamento dos seus santos (Ef 4:10-12).

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Jesus, o Mediador, o único Sacerdote, Profeta, e Rei, Salvador, e Cabeça da Igreja, inclui em si mesmo, por meio de sua proeminência, todos os ofícios de sua igreja, e possui muitos nomes atribuídos a ele nas Escrituras. Ele é Apóstolo, Mestre, Pastor, Ministro, Bispo e o único Legislador em Sião. Isso pertence à majestade do seu trono de glória de onde rege e ensina a igreja por meio de sua Palavra e Espírito e pela pregação dos homens; exercendo assim, de forma mediata, sua própria autoridade e fazendo cumprir suas próprias leis, para a edificação e estabelecimento do seu Reino. Cristo, como Rei, concedeu, à sua igreja, oficiais, oráculos e ordenanças; e especialmente ordenou seu sistema de doutrina, governo, disciplina, e culto, todos os quais são, ou expressamente estabelecidos nas Escrituras, ou a partir delas deduzidos por boa e necessária inferência; a respeito das quais ele ordena que nada seja adicionado, nem retirado. Em oposição ao catolicismo romano, a teologia reformada afirma que a natureza da autoridade dada por Cristo a sua igreja é estritamente ministerial e declaratória; não é imperial, jurídica ou legislativa. É um poder espiritual e moral, não um poder físico. As forças físicas pertencem ao Estado na punição de crimes (Rm 13:1-6); a autoridade espiritual é utilizada pela igreja para tratar do pecado (2 Co 10:3-5). A relação Igreja-Estado Já que abordamos a distinção dos papéis da Igreja e do Estado, vale a pena darmos uma palavra sobre essas duas esferas distintas. Na história da relação entre igreja e Estado, dois grandes erros se desenvolveram: papismo e erastianismo. O primeiro ensina que a igreja (isto é, o papa) deve governar tanto a igreja quanto o Estado. O último sustenta que ambas as instituições estão sob o comando do magistrado civil. Por outro lado, nos ensinos de Cristo (Mt 16:13-20; 22:15-22), de Paulo (1 Tm 3:14-16; Rm 13:1-6) e de Pedro (1 Pe 2:4-10; 2:13-17), aprendemos que a igreja e o Estado são, ambos, instituições estabelecidas por Deus, sob a lei de Deus. Devem estar separadas quanto a suas funções, porém, não quanto à autoridade. O magistrado civil é um ministro da justiça, obedecendo e fazendo cumprir a lei de Deus como castigo ao infrator e proteção aos que obedecem à lei. A igreja é um ministro da graça, obedecendo e fazendo cumprir a lei de Deus por meio da pregação e ensino do evangelho de Jesus Cristo. Deus deu ao Estado o poder da espada para se fazer cumprir a supremacia de Cristo nas questões civis. E Deus deu à igreja o poder das chaves do Reino para se fazer cumprir a supremacia de Cristo nas questões espirituais e morais. Portanto, a lei de Deus deve ser

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suprema tanto no Estado quanto na igreja. A igreja não deve governar sobre o Estado, nem o contrário. Mas a lei de Deus deve reinar sobre ambos. A responsabilidade dos magistrados está sintetizada na CFW (23:1), onde lemos que Deus tem soberania absoluta sobre o Estado, e concedeulhe certas funções: “Deus, o supremo Senhor e Rei de todo o mundo, para sua própria glória e para o bem público, constituiu sobre o povo magistrados civis, a ele sujeitos, e para este fim os armou com o poder da espada para defesa e incentivo dos bons e castigo dos malfeitores”. Num sermão sobre 1 Samuel 8:11-22, João Calvino afirmou isso da seguinte maneira: Contudo, certamente que todo domínio régio tem o dever de servir. De fato, devo acrescentar que os reis devem ser servos e ministros de Deus. Portanto, cabe-lhes considerarem-se oficiais comissionados dados para o povo, que devem administrar fielmente seus negócios e cuidar do povo. Embora o poder dos príncipes terrenos seja grande neste mundo, ainda assim eles devem perceber que são ministros e servos de Deus e do povo. A CFW (23:3) ainda segue dizendo que o Estado não deve interferir nas questões da igreja: “Os magistrados civis não podem tomar sobre si a administração da Palavra e dos sacramentos ou o poder das chaves do Reino do Céu”. A igreja, como instituição, é diferente da instituição do Estado. A CFW diz (30:1): “O Senhor Jesus, como Rei e Cabeça da sua Igreja, nela instituiu um governo nas mãos dos oficiais dela; governo distinto da magistratura civil”. Aqui se deve acrescentar que a igreja tem certas responsabilidades em relação ao Estado, assim como o Estado tem algumas responsabilidades em relação à igreja. A igreja tem um dever profético para com o magistrado civil. Exige-se da igreja que o Estado seja instruído em seus deveres sob a lei de Deus (Rm 13:1-6). Além disso, quando o Estado se desvia dos seus deveres, a igreja deve chamá-lo ao arrependimento (1 Rs 17:1; 18:17-18; Mc 6:14-18). Por outro lado, o Estado deve proteger a igreja, não apenas daqueles que possam prejudicá-la, mas também daqueles que venham a impedi-la de cumprir a Grande Comissão (Is 49:23). Como corretamente ensinado na CFW (23:3): ... como pais solícitos, os magistrados civis têm o dever de proteger a igreja do nosso comum Senhor, sem dar preferência a qualquer denominação cristã acima das outras, de tal maneira que todos os eclesiásticos, sem distinção, gozem plena, livre e indisputada liberdade de cumprir todas as partes das suas sagradas funções, sem violência ou perigo.

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Como Jesus Cristo constituiu em sua Igreja um governo regular e uma disciplina, nenhuma lei de qualquer Estado deve proibir, impedir ou embaraçar o seu devido exercício entre os membros voluntários de qualquer denominação cristã, segundo a profissão e crença de cada uma. E é dever dos magistrados civis proteger a pessoa e o bom nome de todos os que lhe são relacionados, de modo que a ninguém seja permitido, sob pretexto de religião ou de incredulidade, ofender, perseguir, maltratar ou injuriar a quem quer que seja; e bem assim providenciar para que todas as assembleias religiosas e eclesiásticas possam reunir-se sem ser perturbadas ou molestadas. Os deveres da Igreja O dever de cultuar e servir a Deus A CFW (21:1) nos ensina que a primeira obrigação do homem, por levar a imagem de Deus, é adorá-lo e servi-lo como criador e sustentador: A luz da natureza mostra que há um Deus, que tem domínio e soberania sobre tudo; é bom e faz bem a todos, e que, portanto, deve ser temido, amado, louvado, invocado, crido e servido de todo o coração, de toda a alma e de toda a força. Porém, como Robert Reymond destaca, “se a igreja tem o dever de adorar e servir a Deus como sua primeira obrigação, também é verdadeiro que a igreja (como de fato é verdadeiro para todos os homens) deve adorar a Deus como ele próprio determina”10. O que significa dizer que, à parte da revelação bíblica, os homens não poderiam saber como adorar a Deus. Assim, mais uma vez, a natureza essencial da Palavra de Deus é destacada na vida da igreja. Adoração pública e corporativa é um mandamento bíblico enfatizado tanto no Antigo quanto no Novo Testamento. Sob o antigo pacto, os israelitas se reuniam em vários “dias santos” para o culto público no tabernáculo e no templo (Êx 23:14-17). Também realizavam cultos em suas sinagogas e/ou igrejas nas casas (Sl 74:8; Lv 23:3). O Novo Testamento enfatiza a importância do culto, em textos como Atos 2:42; 20:7-12; e Hb 10:24-25. Sob o novo pacto essa adoração deve ocorrer no Dia do Senhor (Ap 1:10), isto é, no primeiro dia da semana (At 20:7; 1 Co 16:1-2). Como afirmado pelos teólogos de Westminster em “No tocante a dias e lugares para o culto público”: “Na Bíblia, não há nenhum dia que seja para ser guardado como santo sob o Evangelho [NT], senão o Dia do Senhor, que é o sábado (shabbath) cristão”11. 10

Robert L. Reymond. A New Systematic Theology of the Christian Faith. Nashville, Tennessee: Thomas Nelson Publishers, 1998, p. 868. 11 O diretório de culto de Westminster. São Paulo: Editora Os Puritanos, 2000, p. 66.

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O shabbath cristão,12 como dito pela CFW (21:8), é “santificado ao Senhor quando os homens, tendo devidamente preparado os seus corações e de antemão ordenado os seus negócios ordinários, não só guardam, durante todo o dia, um santo descanso das suas obras, suas palavras e seus pensamentos a respeito dos seus empregos seculares e das suas recreações, mas também ocupam todo o tempo em exercícios públicos e particulares de culto e nos deveres de necessidade e misericórdia”. E no Dia do Senhor, conforme a CFW (21:5), junto com a oração, as “partes do ordinário culto de Deus” se limitam a: A leitura das Escrituras com santo temor; a sã pregação da Palavra e a consciente atenção a ela em obediência a Deus, com entendimento, fé e reverência; o cântico de salmos, com gratidão no coração, bem como a devida administração e digna recepção dos sacramentos instituídos por Cristo. Em contraposição ao catolicismo romano e a outros grupos protestantes, as igrejas reformadas têm insistido na observância do “princípio regulador do culto”. Isto é, nos cultos públicos no Dia do Senhor, somente Deus pode ser adorado da forma que ordenou em sua Palavra (Dt 12:1-11, 32; Jo 4:24; Hb 8:5). Aquilo que Deus ordena é adequado e necessário no culto; aquilo que não ordenou é proibido. A CFW (21:1) afirma isso da seguinte maneira: O modo aceitável de adorar o verdadeiro Deus é instituído por ele mesmo, e é tão limitado pela sua vontade revelada, que ele não pode ser adorado segundo as imaginações e invenções dos homens, ou sugestões de Satanás, nem sob qualquer representação visível, ou de qualquer outro modo não prescrito nas Santas Escrituras. Esse “princípio regulador” é ensinado na Escritura em numerosos textos. Em João 4:24, por exemplo, Cristo ensina que o culto deve ser dirigido por seu Espírito de acordo com a sua verdade. Paulo o confirma em Colossenses 3:16, onde fala que o culto genuíno deve ser conforme a “Palavra de Cristo… com gratidão, em vosso coração”. E em Levíticos 10:13, lemos sobre o juízo de Deus sobre os que buscavam adorá-lo conforme suas próprias imaginações e meios. O Deus da Escritura é muito sério quanto à forma como deve ser adorado. No Breve catecismo de Westminster somos informados de que o segundo dos Dez Mandamentos 12

Sábado ou sabbath cristão. Na literatura reformada, especialmente na época dos puritanos, o Domingo era referido como o “sábado cristão”. Essa designação ocorre na CFW 21:7,8; igualmente no Catecismo maior de Westminster nas perguntas 116 a 118; e notadamente no Breve catecismo de Westminster na pergunta 59.

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ensina o princípio regulador. Esse mandamento, diz o catecismo (P. 50, 51), “exige que recebamos, observemos e guardemos puros e íntegros todo o culto e ordenanças religiosas que Deus instituiu na sua Palavra… [e] proíbe o adorar a Deus por meio de imagens, ou de qualquer outra maneira não prescrita na sua Palavra”. O dever do uso dos meios de graça Em 2 Pedro 3:18 é ordenado à igreja crescer “na graça e no conhecimento do nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo”. Os teólogos reformados geralmente se referem aos meios exteriores pelos quais Deus concede o crescimento espiritual ao cristão como “meios de graça”. E como ensinado no Breve catecismo (P. 88), há três “meios de graça”: a Palavra, os sacramentos e a oração. Desses três, a Palavra é o principal. Embora tanto a Palavra quanto os sacramentos tenham o mesmo autor, e ambos tenham o mesmo conteúdo central — Cristo —, e requeiram fé para deles se beneficiar espiritualmente, contudo, a Palavra é essencial para salvação, enquanto os sacramentos não. Como já vimos também, a Palavra determina a correta administração dos sacramentos. Além disso, a oração, como ensinada pelo Breve catecismo (P. 98), é “um oferecimento dos nossos desejos a Deus, por coisas conformes à sua vontade (revelada), em nome de Cristo, com a confissão dos nossos pecados, e um agradecido reconhecimento das suas misericórdias” e para ser eficaz, tem de estar de acordo com a Palavra. Como o catecismo (P. 99) prossegue dizendo, a regra que Deus nos deu para dirigir as nossas orações é “toda a Palavra de Deus”, mas especialmente “aquela forma de oração que Cristo ensinou aos seus discípulos, e que geralmente se chama Oração Dominical” (Mt 6:9-15). Da igreja se diz que ela é “coluna e baluarte da verdade” (1 Tm 3:15). Tem o dever de testemunhar da verdade da Escritura como o principal meio de graça. À igreja é ordenado que discipule as nações (Mt 28:19-20) pela pregação e ensino de “todo o desígnio de Deus” (At 20:27). Isto é, o povo de Deus tem o dever de evangelizar os perdidos e fazer crescer a igreja (Lc 24:47; 2 Tm 4:5). Como o professor Reymond perspicazmente afirma, o fato de a igreja ter sempre o dever de se dedicar ao estudo e ao ensino da Palavra como o principal meio de graça “também significa que a igreja deve refletir profundamente sobre a verdade da Palavra de Deus e modelar ou expressar o que encontra lá em seus símbolos e confissões, a fim de produzir em seus membros uma melhor e mais clara concepção de sua fé e comunicar aos de fora uma definição compreensível de suas doutrinas”13. 13

Robert L. Reymond. A New Systematic Theology of the Christian Faith. Nashville, Tennessee: Thomas Nelson Publishers, 1998, p. 878.

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O dever da disciplina e o ministério dos santos Como já estudamos, a disciplina bíblica da igreja é uma de suas marcas. Esse dever ela nunca deve menosprezar. Porém, a igreja também é responsável por atender às necessidades dos membros, ou seja, nutrir e edificar os santos; o que é ensinado em textos como Mateus 25:37-40; Atos 6:1-6; Romanos 12:6-7; e Hebreus 10:24-25; 13:1-3. Como resumido na CFW (26:2), porque a igreja existe como uma “comunhão de santos”, “os santos são, pela profissão de fé, obrigados a manter uma santa sociedade e comunhão no culto de Deus e na observância de outros serviços espirituais que contribuem para a sua mútua edificação, bem como a socorrer uns aos outros em coisas materiais, segundo as suas várias habilidades e necessidades; esta comunhão, conforme Deus oferecer ocasião, deve estender-se a todos aqueles que, em todo lugar, invocam o nome do Senhor Jesus”. O dever de sustentar o trabalho da igreja Para realizar o trabalho da igreja e o avanço do Reino de Cristo, a igreja tem o dever de convocar seus membros a ofertar generosa e voluntariamente (2 Co 8 e 9). Essa dádiva é o principal meio pelo qual a igreja é sustentada. O texto de 2 Coríntios 8 e 9 apresenta sete princípios sobre a atitude do cristão com relação ao dinheiro: 1) Nossas ofertas para Deus e sua obra devem ser compreendidas à luz da encarnação e da humilhação do Senhor da glória. Ele se deu totalmente, na vida e na morte (2 Co 8:9; 9:15). 2) A principal oferta do cristão em resposta a Deus e à dedicação da própria vida (2 Co 9:5). 3) Embora toda contribuição cristã seja inspirada pela graça de Deus (2 Co 8:1; 9:14), ela deve ser voluntária (2 Co 9:5, 7), sacrificial (2 Co 8:2,3; 9:6, 11) e revestida de muito ânimo (2 Co 8: 4) e alegria (2 Co 8:2; 9:7). 4) A doação deve ser feita de acordo com os bens que o cristão possui (2 Co 8:11-14), com senso de igualdade (2 Co 8:14), ou seja, compartilhando com os necessitados. 5) Deus não contrai dívidas com homem nenhum (2 Co 9:8). 6) Os cristãos devem ser corretos e honestos no trato com o dinheiro (2 Co 8:20, 21). 7) Esse empenho pelo bem-estar dos demais gera um elo de amor entre o doador e o receptor, levando-os ao louvor a Deus (2 Co 9:12-14). Se a contribuição é dada irrefletida e formalmente, ela será irrelevante e mecânica. Se, porém, em vez disso, a coleta for encarada como parte integrante da adoração e da resposta ao chamado do evangelho, ela assumirá um significado novo e rico.

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Unidade 7 – O governo e os oficiais da Igreja O governo da Igreja A igreja é uma organização, portanto, precisa de uma estrutura de governo. Uma igreja sem um governo simplesmente não é uma igreja. (Essa é a razão pela qual alguns teólogos consideram o governo da igreja como a quarta marca de uma igreja bíblica). Em 1 Coríntios 14:40, Paulo fala sobre a necessidade de ordem: “Mas faça-se tudo decentemente e com ordem”. Ao longo dos séculos, tem havido três formas básicas de governo da igreja: hierárquico ou episcopal, congregacional ou independente, e presbiteriano. Todos os três creem corretamente que Cristo é o cabeça da igreja e que deu à sua igreja a sua Palavra, pela qual existe a autoridade para governar. Todas as três afirmam que têm uma base bíblica para os seus respectivos governos. Obviamente, todas elas não podem estar corretas, se uma é verdadeira, então as outras devem ser falsas. A forma hierárquica ou episcopal defende que a igreja deve ser governada pelo bispo (episkopos). Esse é o governo adotado pelos episcopais, católicos romanos, ortodoxos gregos, anglicanos e metodistas, com vários níveis de autoridade assentados sobre o bispo. O catolicismo romano, por meio do papado, possui a mais rigorosa forma de hierarquia. O argumento para o episcopalismo é baseado na “sucessão apostólica”. Isto é, os bispos de hoje têm a autoridade que os apóstolos tinham no primeiro século (por exemplo, a ordenação de ministros ou sacerdotes). Mateus 28:18-20 e Atos 1:8 são usados como apoio à sucessão apostólica: com a ascenção de Cristo, sua autoridade coube de direito aos apóstolos e permanece com eles e seus sucessores, isto é, os papas, supostamente os descendentes espirituais de Pedro, até o fim dos tempos (que vimos na Unidade 2 se falso). Atos 15 é também mencionado como um texto prova, ao se afirmar que Tiago, como moderador do Concílio de Jerusalém, era um bispo da antiguidade. Contudo, esses argumentos são frágeis. Primeiro, Cristo nunca apontou ou ordenou qualquer apóstolo além do primeiro século (Mt 10:14; At 9). O próprio Paulo tinha a convicção de ser o último apóstolo (1 Co 15:8), e falou contra outros que alegavam possuir a apostolicidade (2 Co 11:13). Da mesma forma, por todo o seu ministério Paulo ensinou que a igreja deveria ser governada por uma pluralidade de presbíteros com a mesma paridade (At 14:23; 20:17, 28; Tt 1:5, 7). Além disso, as evidências bíblicas são insuficientes para um sistema altamente estruturado no Novo Testamento. Em 3 João 9-10, uma séria advertência é pronunciada contra uma forma ditatorial de governo. Historicamente, não havia distinção entre os bispos do Novo Testamento e

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os presbíteros até que Inácio o fizesse no início do segundo século. Claramente, a igreja hierárquica é um desenvolvimento pós-bíblico. Deve-se ainda destacar que os reformadores também mantiveram uma forma de sucessão apostólica, mas não conforme o catolicismo romano. Os reformadores viam a sucessão apostólica como unicamente vinculada à doutrina dos apóstolos. Como já estudado, o atributo da apostolicidade tem a ver com os ensinos dos apóstolos como fundamento da igreja (Ef 2:20). O congregacionalismo, ou governo autônomo, defende o governo da igreja por meio do voto democrático. A igreja é conduzida pelo governo congregacional da maioria. Fala-se muito aqui do sacerdócio dos crentes (1 Pe 2:9), e a votação das congregações em Atos 6:1-6; 14:23. Há, contudo, muitos problemas internos nessa visão. Em primeiro lugar, embora tenha votado conforme os textos acima mencionados, a congregação estava votando em oficiais que seriam seus líderes representantes. Em segundo lugar, o fato de a igreja ser “um sacerdócio de crentes” não tem nada a ver com a economia ou função administrativa dos vários crentes dentro da igreja. Igualdade ontológica (referente ao ser) não deve afetar a função administrativa. E em terceiro lugar, essa visão entra em conflito com textos que ensinam o governo por meio de presbíteros-representantes (ex. Tt 1:5; 1 Tm 5:17). Fazendo um parêntese, uma distinção precisa ser feita aqui entre o congregacionalismo moderno atual e a forma de congregacionalismo ensinada na Declaração de Savoy (1658) e na Confissão batista de Londres (1689). Os autores dessas confissões defendiam uma forma presbiteriana de governo em igrejas autônomas, sem a necessidade de um sistema com juízos mais amplos. A última forma de governo é o presbiteriano. Nesse sistema, o governo está nos presbíteros (presbuteroi), que governam, não pelo voto democrático, mas de acordo com a lei bíblica. Esse sistema tem uma longa história na Bíblia. Moisés e os líderes da igreja do Antigo Testamento foram todos auxiliados no seu governo da nação por anciãos14. Os exemplos disso são numerosos: Êxodo 3:16, 18; 4:29; 17:5-6; 18:13-27; Levítico 4:15; 9:1-2; Números 11:14-25; Deuteronômio 5:23; 22:15-17; Josué 7:6; 8:33; Juízes 21:16; 1 Reis 8:1-3; 1 Crônicas 21:16; Salmo 107:32; etc. Essa prática claramente continuou na época do Novo Testamento, como se pode perceber em Lucas 22:66 e Atos 22:5, onde Jesus e Paulo, respectivamente, são examinados perante o “presbitério” ou “concílio” dos anciãos. O presbiterianismo é a forma mais bíblica de governo da igreja, uma vez que cumpre os princípios fundamentais dados na Escritura. Essa é a 14

Que realizavam o papel de presbíteros, tanto que em inglês o termo elder é utilizado tanto para “ancião” quanto para “presbítero”.

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razão pela qual podemos e devemos falar do jus divinum (“direito divino”) do presbiterianismo. Em primeiro lugar, como a CFW (30:1) ensina, “O Senhor Jesus, [é] Rei e Cabeça da sua Igreja”. Conforme a Escritura, Cristo é o único cabeça da Igreja (Ef 1:22; 4:15; 5:23; Cl 1:18). É a fonte de vida da igreja e seu regente. E é a Palavra de Cristo que deve ser a norma de autoridade na igreja (Mt 16:17-19). Em segundo lugar, a CFW (30:1) diz que Cristo, como cabeça da sua Igreja, “nela instituiu um governo nas mãos dos oficiais dela; governo distinto da magistratura civil”. A Palavra de Deus confia a investidura da liderança da igreja aos presbíteros ou bispos (essas palavras são usadas no Novo Testamento como correlatas; veja Tt 1:5, 7; At 20:17, 28). Esses homens (e não as mulheres) devem governar o corpo no qual servem. Em terceiro lugar, Cristo ensinou que os oficiais da igreja, que foram dados pelo Espírito Santo (At 20:28), devem ser eleitos pelo voto popular das congregações nas quais eles servem. Em Atos 6:1-6, a fim satisfazer uma determinada necessidade da igreja em relação à distribuição diária de alimentos aos necessitados, os apóstolos recomendaram a escolha de sete homens para servirem como diáconos. Após terem sido declaradas as qualificações necessárias para o exercício de tal ofício na igreja, a congregação escolheu sete homens que julgou adequados. Esses sete foram então apresentados aos apóstolos que os ordenaram como diáconos. Em Atos 14:23 lemos que Paulo e Barnabé conduziram a eleição dos presbíteros. A leitura literal do versículo afirma que os presbíteros foram “designados pelo levantar das mãos”, isto é, por voto. Os líderes não devem ser impostos à congregação. Tendo sido dados pelo Espírito Santo (At 20:28), foram eleitos como oficiais pela congregação. É importante observar aqui: embora sejam eleitos democraticamente pelo voto, os líderes da igreja são eleitos para representar Cristo, o Rei, e ministrar sua Palavra à congregação. Esse é o republicanismo eclesiástico. Quem está autorizado a votar em oficiais da igreja nas reuniões da congregação? A implicação clara da Bíblia em relação a essa questão é que homens e mulheres adultos batizados na congregação, que não estejam sob disciplina da igreja, têm a autoridade para votar em oficiais da igreja. Uma palavra adicional é oportuna aqui. Embora os papéis ou funções da mulher na igreja sejam de submissão ou subordinação (1 Co 14:34-35; 1 Tm 2:8-14; 1 Co 11:8), a mulheres cristãs são, ontologicamente falando, tão iguais e preciosas para Deus como o são os homens cristãos. São coherdeiras do Reino de Deus (Gl 3:28). Em quarto lugar, como aludido acima, o bispo não está “mais acima” que o presbítero, nem ainda o presbítero mais “acima” que o bispo; nem o pastor-mestre, que é um presbítero docente, “acima” dos presbíteros regentes. Há uma igualdade de ofícios entre todos os presbíteros-bispos,

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sejam eles presbíteros docentes, isto é, ministros da Palavra ou presbíteros regentes (veja a distinção feita entre esses dois em 1 Timóteo 5:17). Todos devem exercer o governo em harmonia, e em paridade (equivalência e igualdade) entre si. Essa paridade é, com certeza, evidente em 1 Pedro 5:14, onde o apóstolo Pedro chama a si mesmo de um presbítero como eles entre outros pastores do rebanho de Deus. Em quinto lugar, deve haver uma pluralidade de presbíteros em cada igreja, o que fica óbvio a partir de textos como Atos 14:23; 20:17 e Filipenses 1:1. Isto é, cada congregação deve eleger mais de um presbítero. Isso permite os “pesos e contrapesos” necessários para se resguardar de uma “banda de um homem só”. Paridade e pluralidade seguem de mãos dadas. John Murray escreve: “O princípio da paridade está vinculado à pluralidade. Estritamente falando, não pode haver pluralidade se não houver paridade. Pois se apenas um estiver em um nível acima dos outros, então, em relação a essa hegemonia, não há mais pluralidade. A pluralidade aplica-se a todo o governo da igreja e, portanto, deve haver paridade na pluralidade”15. Uma observação deve ser feita aqui: na forma presbiteriana de governo da igreja, o problema do um e dos muitos encontra sua solução.16 Dizendo de forma simples, a questão do um e dos muitos tem a ver com onde se fundamenta a autoridade. O um deve ser supremo em autoridade, ou seria o muito? O episcopalismo eleva o um (hierarquia) acima do muitos; as igrejas independentes elevam o muito (democracia) acima do um. O presbiterianismo encontra a sua solução na doutrina da Trindade. Deus é um, num sentido (essência) e muitos (três), noutro sentido (pessoas). Dentro da Divindade há tanto paridade quanto pluralidade. As Escrituras ensinam que isso também deveria ser verdade no governo da igreja. Deve haver uma paridade e uma pluralidade entre os presbíteros da igreja de Cristo. Há um equilíbrio de poder na estrutura da autoridade. Sintetizando, a igreja é governada por Cristo por meio dos presbíteros convocados por Ele, e eleitos pela congregação. Não deve ser governada por um único homem, como o papa ou bispo (como no governo da igreja episcopal). Nem deve ser governada pela maioria dos votos (como no governo das igrejas independentes ou congregacionais). A igreja de Cristo deve ser governada e servida pelos representantes homens eleitos por homens e mulheres adultos, membros da congregação, para representar e administrar o domínio de Jesus Cristo por meio da sua Palavra (Hb 13:7, 17). A igreja de Cristo não é uma democracia. É uma cristocracia,

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John Murray. Collected Writings of John Murray. Vols. I-IV. Carlisle, Pennsylvania: Banner of Truth Trust, 19761982), II:346. 16 Questão filosófica abordada na apostila de Introdução à Filosofia Cristã deste curso.

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governada por Cristo por meio dos seus representantes eleitos pela igreja. E há uma paridade e pluralidade entre esses líderes. Em sexto lugar, o jus divinum (“direito divino”) do presbiterianismo exige um sistema de instância superior. Como afirmado na CFW (31:1): “Para melhor governo e maior edificação da Igreja, deverá haver as assembleias comumente chamadas sínodos ou concílios. Em virtude do seu cargo e do poder [autoridade] que Cristo lhes deu para edificação e não para destruição, pertence aos pastores [presbíteros docentes] e aos outros presbíteros [presbíteros regentes] das igrejas particulares criar tais assembleias e reunir-se nelas quantas vezes julgarem útil para o bem da Igreja”. Temos visto que cada igreja deve ser governada por um comitê de presbíteros, frequentemente citado como o “conselho”. O conselho constitui a instância local (ou tribunal) da igreja local. Mas a Escritura ensina que há também uma conectividade entre as igrejas na forma de um sistema mais amplo de tribunal (instância) da igreja. As instâncias (ou tribunais) mais amplas são, como mencionadas acima na CFW, para esse fim “as assembleias”, onde os presbíteros docentes e regentes “reúnem-se… quantas vezes julgarem útil para o bem da Igreja”. Aqui, novamente, temos o um e o muitos harmonizados. Cada congregação local é uma igreja completa (um). Mas também há uma conexão entre as igrejas (muitos). Há uma unidade (“unicidade”) entre as “muitas” igrejas. O segundo nível do sistema de instâncias é chamado de “presbitério”. Consiste de um grupo de presbíteros docentes e regentes dentro de uma determinada região, que representam as várias igrejas locais. O presbitério deve agir na qualidade de uma secretaria, deliberando sobre controvérsias de fé, questões de doutrina e questões de consciência, com as quais a igreja local não tem capacidade de lidar. O presbitério tem a função de ser um meio auxiliar para promover um bom governo e edificação [das igrejas], mas não deve legislar. Como ensinado pela Confissão de Fé de Westminster (31:2): Aos sínodos e concílios compete decidir ministerialmente controvérsias quanto à fé e casos de consciência, determinar regras e disposições para a melhor direção do culto público de Deus e governo da sua Igreja, receber queixas em caso de má administração e autoritativamente decidi-las. Quando falamos da igreja atuando num caráter ministerial, nãolegislativo, o que queremos dizer é que todas as questões devem ser julgadas com base na lei bíblica. O poder eclesiástico é derivado, não original. Somente Cristo é o legislador em sua igreja (Tg 4:12). E os assuntos da igreja devem “determinar regras e disposições para a melhor direção” consoantes à Palavra de Deus.

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Além disso também, como ensinado em “A forma do governo presbiteriano da igreja da Assembleia de Westminster”, o presbitério deve agir na qualidade de treinamento e exame dos presbíteros para assegurar que eles estejam qualificados para servir no seu ofício. E então deve ordená-los: “A ordenação é a solene consagração de uma pessoa para algum ofício público na igreja… é um ato do presbitério”. Sendo esse o caso, devemos compreender que um homem não pode ordernar-se a si mesmo como oficial na igreja, nem pode um outro indivíduo ordenar um homem como oficial. Cristo, por meio da sua igreja atuando nos presbitérios, prepara, aprova, convoca, ordena e instala os homens no ofício. Esses presbitérios já existiam como parte da igreja apostólica como explicitamente ensinado em 1 Timóteo 4:14. Aqui lemos que Timóteo foi ordenado (sem dúvida após ter sido preparado e examinado) pela “imposição de mãos” (consagração simbólica de um homem para o ofício) dos presbíteros naquele presbitério em particular. Isso também é implicitamente ensinado em vários outros textos. Por exemplo, como visto antes, a igreja em Jerusalém é considerada uma só igreja (At 2:47; 8:1; 12:5), embora houvesse, obviamente, inúmeras congregações locais. Esse é um forte indicativo de um presbitério local. Além disso, a igreja em Éfeso consistia de um grande número de cristãos de diferentes contextos e línguas (At 19:10, 17-20; 1 Co 16:8-9) que se reuniam nas casas-igrejas (1 Co 16:19). Portanto, as igrejas de Éfeso eram consideradas uma única igreja (At 20:17-37; Ap 2:1), que (implicitamente) deveriam estar sob o governo de um presbitério local. De fato, em Atos 20:17 lemos que o apóstolo Paulo convocou uma reunião do presbitério. E também deve-se notar que em Atos 13:1-2 temos o registro do presbitério de Antioquia envolvido no trabalho missionário. Mais tarde os missionários fizeram um relatório a esse mesmo presbitério, em Atos 14:27. E em Atos 11:19-30 temos o registro do presbitério de Antioquia que resolveu “enviar socorro” por meio de ofertas aos “presbíteros” que constituíam um presbitério irmão em Jerusalém. A terceira e mais ampla instância dentro do presbiterianismo é o sínodo ou assembleia geral. Em Hebreus 12:22-24, por exemplo, lemos sobre a festiva reunião do povo de Deus como sendo a “universal assembleia e igreja dos primogênitos”. Então, em Apocalipse 4 há a descrição de uma assembleia festiva onde os vinte e quatro anciãos estão representando a igreja como um todo. O sínodo ou assembleia geral consiste de presbíteros docentes e regentes de todas as igrejas da cristandade. Portanto, essa é uma instância mais ampla que o presbitério. A justificativa bíblica para os sínodos também é encontrada em Atos 15. Nesse capítulo são claramente ensinados o privilégio de se recorrer à

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assembleia dos presbíteros e o poder mais amplo da igreja em tomar decisões que afetam toda a igreja. Barnabé e Paulo tiveram uma disputa sobre a relação entre a circuncisão e a justificação (uma questão doutrinária) com alguns falsos mestres da Judeia. O debate começou em Antioquia, mas não foi solucionado ali. A questão foi submetida à instância mais ampla da igreja (sínodo ou assembleia geral) que consistia dos apóstolos e presbíteros em Jerusalém. Agindo conjuntamente, esses representantes da igreja chegaram a uma decisão sobre o assunto, decisão a que a igreja de Antioquia e as igrejas da Síria e Cilícia deveriam se submeter (veja Atos 16:4). Parece ser óbvio que o texto de Atos 15 nos foi dado no Novo Testamento como um exemplo a ser seguido. Se todo o necessário era uma ordem divina, isso poderia ser dito por um dos apóstolos. Mas esse processo legal foi registrado para nós como um exemplo de como o governo da igreja deve funcionar. Daí porque não ser bíblico qualquer governo sem esse sistema de instâncias. Contudo, uma observação deve ser feita: as decisões de tais instâncias devem ser obedecidas apenas quando forem bíblicas, como em Atos 15. Na CFW (31:2, 3), lemos que todos os decretos e decisões das instâncias mais amplas “sendo consoantes com a Palavra de Deus, devem ser recebidas com reverência e submissão”. Além disso, lemos que essas decisões “não devem constituir regra de fé e prática, mas podem ser usadas como auxílio em uma e outra coisa”. Uma vez que todos os concílios, de tempos em tempos, podem e têm errado em suas decisões, nenhum homem ou grupo de homens pode sujeitar a consciência de uma igreja local ou de um membro da igreja. A Palavra de Deus sozinha é a única regra de fé e prática segura; sozinha deve ser seguida com uma “fé implícita”. Dessa forma, nenhuma decisão de um concílio deve ser acolhida irrefletidamente. Pelo contrário, o princípio bereano de Atos 17:11 sempre deve ser seguido. Para encerrar esta seção, há ainda duas outras formas de governo de igreja que devem ser mencionadas: nenhum (ou mínimo) e nacional. A primeira delas foi adotada por organizações tais como os Quakers e os Irmãos Plymouth. Esses grupos falam como se eles não tivessem nenhuma forma de governo, mas não é, de fato, o caso. Há líderes e a disciplina é aplicada quando necessária. A segunda é a forma de governo encontrada na Igreja Anglicana da Inglaterra e na Igreja Luterana da Alemanha. De acordo com esse modelo, a igreja está sob a autoridade do Estado. Como já visto acima, essa forma erastiana de governo não é bíblica. Os oficiais da Igreja Como já vimos, para que funcione biblicamente, uma igreja deve ter oficiais, isto é, líderes representantes. A CFW diz (30:1): “O Senhor Jesus,

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como Rei e Cabeça da sua Igreja, nela instituiu um governo nas mãos dos oficiais dela; governo distinto da magistratura civil”. Como ensinado pelos teólogos de Westminster, em sua “A forma de governo presbiteriano da igreja”, o Novo Testamento fala de três oficiais da igreja: presbíteros docentes (pastores e/ou mestres), presbíteros regentes (ou governantes) e diáconos. Pastores (Ef 4:11) e mestres (1 Co 12:28; Ef 4:11; 1 Tm 5:17) são geralmente denominados “presbíteros docentes”. Sua principal tarefa é o ministério da Palavra de Deus, junto com a ministração dos sacramentos e a oração em favor dos membros da igreja. Como afirmou Calvino: “Entre tantos dotes preclaros com os quais Deus adornou o gênero humano, esta prerrogativa é singular: que a si digna consagrar as bocas e línguas dos homens, para que neles faça ressoar sua própria voz”17. O presbítero regente ou governante (Rm 12:8; 1 Co 12:28), por outro lado, tem a responsabilidade principal de dirigir ou governar a igreja juntamente com os presbíteros docentes (1 Pe 5:1-4). Como Jesus afirmou em João 21:15-17, os líderes da igreja devem tanto “alimentar minhas ovelhas” quanto “cuidar das minhas ovelhas”. O terceiro ofício no Novo Testamento é o de diácono (1 Tm 3:8-10,1213). A palavra grega para diácono (diakonos) significa “servo”. O ministério do diaconato é citado em Atos 6:1-6. Novamente, como mencionado por “A forma de governo presbiteriano da igreja”, é um ministério de serviço: “Os quais, no ofício a que pertencem, não devem pregar a Palavra ou ministrar os sacramentos, mas ter um cuidado especial, suprindo as necessidades dos pobres”. O diácono, portanto, deve se envolver com os aspectos da saúde e do bem-estar no ministério da igreja. Na igreja primitiva havia outros ofícios extraordinários: apóstolos, profetas e evangelistas (Ef 2:20; 4:11), aos quais foram concedidos dons especiais revelatórios (profecias, línguas, cura, etc.). Os apóstolos, como embaixadores de Cristo, escreveram (1 Co 14:37) e falaram (2 Pe 3:1-2) a infalível Palavra de Deus. Os profetas do Novo Testamento também falavam sob a influência do Espírito Santo (At 21:10-11). Assim também, no primeiro século alguns evangelistas receberam dons extraordinários para confirmar a mensagem do evangelho (At 6:8-15; 8:5-6; 21:8). Porém, com o encerramento da era apostólica e do cânon da Escritura, esses dons revelatórios cessaram, e os ofícios extraordinários acabaram (1 Co 13:812; Hb 1:1). Contudo, os três ofícios ordinários acima mencionados permanecem. A qualificação para oficiais da igreja é dada em 1 Timóteo 3 e Tito 1. Aqui descobrimos que a ênfase está no caráter dos indivíduos, que devem estar “acima de qualquer suspeita”. Devem ser bons homens em suas famílias, com reputação excelente, tanto dentro quanto fora da igreja. Todos os oficiais da igreja são chamados a serem líderes espirituais, isto é, 17

João Calvino. Institutas. IV:1:5.

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exemplos para o rebanho. Os presbíteros e diáconos devem ser instruídos nas Escrituras. Mas o presbítero também deve ser “apto para ensinar” (1 Tm 3:2). Com essas exigências, e pelo fato de os presbíteros, e não os diáconos, serem os que zelam pela igreja (1 Pe 5:1-4), percebemos a principal diferença entre os ofícios. Como já dito, os presbíteros devem estar mais envolvidos no ministério espiritual e os diáconos, no ministério material. Todos os presbíteros, tanto regentes quanto docentes devem ser, no mínimo, capazes de expor a fé e a prática cristã aos que estejam sob seus cuidados. Portanto, embora não tenha sido chamado para proclamar a Palavra de Deus no púlpito, o presbítero regente deve, apesar disso, ser capaz de ensinar aqueles que são liderados por ele. Observa-se também que o exercício dos ofícios da igreja deve ser realizado somente por homens — homens piedosos para ser mais claro, porém, homens. Paulo dificilmente poderia ter deixado isso mais claro que em 1 Timóteo 3, Tito 1, 1 Coríntios 14:34 e 1 Timóteo 2:12. A ordenação de mulheres ao oficialato da igreja não encontra nenhum apoio na Bíblia. O comentário do Professor Reymond é apropriado aqui: “Uma igreja que ordena uma mulher ao presbiterato está indo contra o consistente testemunho da Escritura que se opõe a tal feito, bem como os três mil e quinhentos anos de história bíblica e da igreja”18. Em 1 Timóteo 3:11, no meio do seu ensino sobre os oficiais da igreja, o apóstolo Paulo escreve sobre algumas mulheres (gunaikas). Alguns defendem que esse versículo, juntamente com os de Romanos 16:1-2, onde Febe é chamada de diaconisa ou auxiliadora, permitiria que a igreja ordenasse mulheres diaconisas como oficiais na igreja. Contudo, tal compreensão desse texto não pode ser verdadeira. Se estivesse referindo-se a diaconisas em 1 Timóteo 3, Paulo teria encerrado sua lista de qualificações para os homens diáconos antes de introduzir um novo ofício no versículo 11? Ao contrário, nos versículos 12 e 13, o apóstolo continua ainda falando das qualificações dos homens. Como Calvino conclui, é muito mais provável que as mulheres de 1 Timóteo 3:11 sejam as esposas dos oficiais: “a referência [de Paulo] aqui é às esposas tanto dos bispos quanto dos diáconos, pois elas devem ser auxiliadoras de seus esposos no desempenho de seus ofícios, coisa que só podem fazer se o seu comportamento for superior ao das demais pessoas”. Além disso, a palavra usada para descrever Febe em Romanos 16:1-2 (diakonon), pode facilmente ser lida como “servo”. Que houvesse diaconisas na igreja primitiva é praticamente inquestionável. Porém, elas serviam como uma ordem de auxiliadoras, como em 1 Timóteo 5:3-16, e não exerciam o oficialato na igreja. Exerciam funções tais como visitação de enfermos e cuidados com os pobres e necessitados.

18

Reymond. A New Systematic Theology of the Christian Faith. p. 901.

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Unidade 8 – Música Eclesiástica O que mais temos em nossas igrejas são grupos de louvor e eventos chamados de “louvorzão”, a música é a arte mais enfatizada pelos cristãos contemporâneos, portanto, uma reflexão sobre os parâmetros que devem guiar a seleção dessas músicas é pertinente. “A palavra de Cristo habite em vós abundantemente, em toda a sabedoria, ensinando-vos e admoestando-vos uns aos outros, com salmos, hinos e cânticos espirituais, cantando ao Senhor com graça em vosso coração.” Colossenses 3:16 Esse texto de colossenses é um dos principais guias para se estabelecer os devidos parâmetros para a escolha das canções entoadas nos cultos públicos (e domésticos). É importante ressaltar que o evento chamado de “culto” é assim denominado, pois é o momento em que o Corpo de Cristo está reunido em adoração ao seu Salvador, portanto o primeiro parâmetro é que os louvores devem ser de caráter teocêntrico (Deus como o centro) e não antropocêntrico (o homem como centro). O texto de colossenses nos dá, pelo menos, mais dois princípios: (1) os cânticos também têm o propósito, além de adorar a Deus, de ensinar e admoestar os cristãos, a fim de que “a palavra de Cristo habite em [nós] abundantemente”. Portanto, pode-se afirmar que os louvores têm propósitos verticais (a igreja adorando a Deus) e horizontais (a mútua edificação entre os irmãos). (2) Diante da mediocridade de muitos cânticos modernos que são entoados nas igrejas, alguns teólogos adotam a posição extrema afirmando que apenas os salmos e trechos literais das Escrituras devem ser entoados nos cultos. Mas o versículo acima dá a liberdade de entoar “salmos, hinos e cânticos espirituais”, ou seja, há liberdade para novas composições, ainda que não sejam inspiradas pelo Espírito Santo como a Bíblia. É importante, porém, resgatar a importância dos salmos em nosso repertório pelos seguintes motivos: • Os salmos eram o hinário de Israel; • Jesus (Mt 26:30; Mc 14:26) e os apóstolos (At 4:24-26; Tg 5:13) entoavam os salmos; • A Igreja, durante toda a história cantou os salmos. O teólogo americano Daniel Hyde diz: Nas palavras do antigo historiador Eusébio (263-339): ‘A ordem de cantar os Salmos em nome do Senhor foi obedecida por todos em todo lugar: pois o mandamento de cantar está em vigor em todas as igrejas que existem entre as nações, não apenas as gregas, mas também por

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todo o mundo, e nas cidades, vilas e nos campos’. Uma das coisas novas e significativas que os cristãos primitivos faziam quando cantavam os Salmos, com o objetivo de mostrar que os cânticos do Antigo Testamento de Israel eram os cânticos da igreja da nova aliança, era cantar o Gloria Patri depois de cada Salmo: ‘Glória seja ao Pai, e ao Filho, e ao Espírito Santo. Como no princípio, é agora, e sempre; e por todos os séculos. Amém’. Essa é uma declaração de que o Deus do Saltério é o Deus Trino.19 Apesar dessa prática da igreja primitiva, na Idade Média essa herança foi mantida quase que exclusivamente pelos monges até o período da Reforma Protestante, como dito neste trabalho sobre o Saltério de Genebra. • Cantar os salmos expressa amor pela Palavra de Deus, seguindo o princípio do Sola Scriptura; • Os salmos também exercitam o corpo de Cristo a adorar a Deus de forma integral, combatendo o reducionismo moderno que foca apenas na felicidade pessoal. Algumas dicas importantes que auxiliarão nos parâmetros de escolha das canções: Evite que a licença poética supere as referências bíblicas diretas. É importante que as músicas tenham consistência bíblica. Ainda que a licença poética não contradiga os princípios bíblicos, ela pode dar margem a duplo sentido. Outro problema de a licença poética suprimir as referências bíblicas diretas é que a mensagem da canção pode não ser clara o suficiente para a igreja absorver, ficando apenas palavras jogadas ao vento. Um dos principais motores que impulsionaram a Reforma Protestante foram as músicas de Lutero, as quais propagavam as doutrinas bíblicas de forma didática. Dê prioridade às músicas que usem o pronome “nós” ao invés do “eu”. No presente momento, onde a individualização e racha entre as igrejas só cresce, promover o senso de corpo de Cristo é importante. Não significa que toda música com pronome “eu” seja ruim, mas que devemos usar o louvor também para enfatizar o senso de coletividade da igreja. Pode parecer apenas um detalhe, mas são os pequenos detalhes que fazem a diferença. Avalie se a melodia condiz com a letra. Como já dito considerado neste trabalho, não se pode analisar uma música apenas pela letra, mas o todo da obra. Sendo assim, a melodia é muito importante. Cantar sobre a vitória da Igreja, em Cristo, com uma marcha quase fúnebre é incoerente; assim como cantar sobre a morte agoniante de Cristo acompanhado por um ritmo

19

Em Por que Devemos Cantar os Salmos? Os Puritanos, 2016.

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dançante não tem nexo. Todos os ritmos louvam ao Senhor, mas para o culto público o bom-senso é importante, o que nos leva à próxima dica. Busque estilos e métricas musicais que sejam fáceis de a igreja acompanhar. Uma das mudanças na liturgia feita pelos reformadores foi a participação da igreja nos cânticos. Portanto, deve ser levado em consideração todos os tipos de faixas etárias para selecionar as músicas do repertório. Pessoas mais idosas não conseguem acompanhar ritmos mais acelerados; e a igreja, de forma geral, tem mais dificuldade em cantar versos com métricas irregulares, como contratempos. Lembre-se de que a equipe de louvor deve guiar a igreja em adoração. Todos esses cuidados devem ser pautados pela tarefa que foi legada à equipe de louvor: auxiliar a igreja em adoração. A equipe não é uma banda fazendo um showzinho, é apenas um recurso que conduz os irmãos em adoração. Portanto, evite melismas, tons excessivamente agudos ou graves (ou com muita variação), solos instrumentais em excesso e qualquer recurso que cause distração das pessoas. Outra dica importante é evitar muitas vozes, salvo quando for um coral, pois pode causar confusão na igreja e até poluição sonora. Fuja da mediocridade. O músico alemão Bach serve de referência, pois mesmo tendo que compor e tocar todas as semanas, não fez um trabalho desleixado. Isso serve desde a preparação técnica, o ensaio das músicas, até às próprias músicas. Preze pelas canções com riqueza poética e melódica, para que o espírito da igreja se eleve em adoração e maravilhar pelo Senhor da beleza. Lembre-se que o louvor se trata de arte, portanto beleza é fundamental. Evite músicas minimalistas, com excessivas repetições e clichês sem valor; também evite melodias que apelem excessivamente ao emocionalismo, levando o público a quase um transe. A letra não pode ser ofuscada pela melodia. Outra dica importante é que a equipe deve se adaptar aos recursos disponíveis, seja humano ou técnico. É melhor ter apenas um instrumento bem executado do que ter uma banda completa sem habilidade. Também é melhor um louvor acústico – sem amplificadores – do que um sistema de som mediano que atrapalhe no entendimento do que está sendo dito ou cantado. Consulte seus líderes e o pregador. Sempre que possível, mantenha contato com pessoas piedosas, que possuem conhecimento teológico, especialmente seu pastor. É possível que questões mais sutis passem desapercebido, as quais serão notadas por olhos mais treinados. Consultar seu pastor também é importante para que os louvores selecionados para o culto estejam em concordância com a mensagem que será ministrada. O culto deve ter unidade em sua liturgia, portanto, conversar com o pastor sobre o tema do sermão e escolher com ele as canções faz com que o foco e propósito do culto estejam em harmonia. É constrangedor tanto para a equipe de louvor quanto para o pregador quando o sermão pregado

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contradiz o que foi cantado. O culto todo deve ter como o único propósito glorificar a Deus. Para finalizar esta unidade, há a necessidade de se esclarecer ainda um ponto que está em nosso vocabulário corriqueiro, mas que não condiz com o ensino bíblico. Muitas vezes a equipe de louvor é chamada de “ministério”, título que pode ter o sentido mais abrangente da palavra, como função ou cargo, mas que é empregado majoritariamente para indicar um ofício sagrado, como os levitas – título que também é atribuído erroneamente aos grupos de louvor, pois era exclusivo à descendência de Levi. Os próprios cantores cristãos intitulam seus trabalhos como “ministério”, pois misturam a vocação artística com o serviço litúrgico, ignorando os diversos níveis que uma arte cristã pode ter. Nas famosas listas de ministérios – em Romanos 12, 1 Coríntios 12 e Efésios 4 – Paulo menciona alguns ofícios dados por Deus, mas em nenhum lugar ele cita o “ministério de louvor”. Isso não significa que não havia músicos ou que o apóstolo esqueceu, mas que aqueles que integravam a equipe de louvor estudavam avidamente a Palavra de Deus e exerciam algum ofício mencionado. Portanto, é importante enfatizar a necessidade de um preparo teológico para os músicos e cantores e a disposição destes em aprender a manusear habilidosamente a Bíblia. De fato, este é o chamado de todo o crente (aprender as Escrituras), mas especialmente à equipe de louvor e outros oficiais que atuam na manutenção da igreja, como os diáconos. É certo que ainda existirão problemas, não devemos sustentar uma ideia utópica de perfeição. Mas a busca por excelência deve ser o alvo constante de cada cristão, incluindo o grupo de louvor. A alegria deve inundar o coração dos santos ao compreenderem a honra e o privilégio de louvar a Deus, ainda que com louvor imperfeito. Sendo assim, atendamos ao convite do salmista: “Provai, e vede que o Senhor é bom” (Sl 34:8).

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Conclusão Nesta apostila estudamos alguns dos princípios básicos da doutrina da igreja. Vimos que a igreja está arraigada e fundada no Antigo Testamento. O povo de Deus é apenas “um”, desde o tempo de Adão. Há quatro principais atributos da igreja: é uma igreja una, santa, católica e apostólica. E também há três marcas que definem e constituem a verdadeira igreja de Cristo: a verdadeira proclamação da Palavra de Deus, a correta administração dos sacramentos e o fiel exercício da disciplina da igreja. Sem essas vibrantes marcas, uma igreja não funciona como uma igreja bíblica. Vimos sobre os princípios bíblicos que devem reger o culto público. Também vimos que o governo biblicamente adequado para a igreja é o governo representativo, isto é, presbiteriano. Os presbíteros docentes, os presbíteros regentes (ou governantes) e os diáconos devem servir como oficiais na igreja e devem ser homens. A igreja de Cristo é a sua noiva (Ef 5:31-32; Ap 19:7; 21:2,9-10), o seu corpo (Cl 1:18), a única por quem Ele morreu (Ef 5:25). Portanto, a nossa compreensão da igreja nos auxiliará em nosso entendimento daquele a quem a igreja serve como seu Salvador e Senhor: Jesus Cristo. Soli Deo Gloria Glória Somente a Deus Bibliografia Edificados sobre a Rocha - W. Gary Crampton e Richard E. Bacon O que é a Igreja? – R. C. Sproul Somos Todos Teólogos – R. C. Sproul Em Espírito e em Verdade – John Frame

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