Introdução à Filosofia Cristã
Prof.º Lucas Roberto Revisão: Josué Melo
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Sumário Unidade 1 – Introdução ao assunto.......................................... 01 - Filosofia - Herman Dooyeweerd
Unidade 2 – Metafísica ............................................................ 07 -
Trindade Credo Niceno Credo Atanasiano Criação O Um e os Muitos Conclusão
Unidade 3 – Antropologia e Lógica ............................................13 Antropologia - Desdobramentos
Lógica Unidade 4 – Epistemologia e Axiologia ..................................... 20 Epistemologia - (1) Como podemos conhecer a Deus? - (2) Qual a base da confiança no conhecimento geral da criação? Axiologia Estética - Arte Ética - O problema do mal - Conclusão
Conclusão – Jesus redime a filosofia ........................................ 28
Unidade 1 – Introdução ao assunto O século 18 ficou conhecido como o século das luzes, devido ao movimento que revolucionou não só a política, mas também o pensamento ocidental; o movimento a que me refiro é o Iluminismo. Devido diversas influências e mudanças a partir do século 15, um novo modo de se pensar e viver foi surgindo no Ocidente, neste movimento o homem buscou liberdade de toda autoridade, sua meta era dominar a natureza com a ciência, pois a razão foi absolutizada, de forma que tudo deveria passar pelo crivo da razão. Na busca pelo domínio, a realidade passou a ser interpretada como uma máquina de causa e efeito, sem nenhuma intervenção sobrenatural. Sendo assim, Deus passou a ter, cada vez mais, um papel secundário na sociedade, de forma que a religião, em sua forma tradicional, não tinha nenhum valor, senão privado. Com as influências do Iluminismo, o cristianismo foi sendo rebaixado a um nível inferior de fé supersticiosa e subjetiva que não tem relevância para o século XXI e seus problemas. Além disso, os cristãos têm se conformado a tal ataque e têm criado uma separação entre a fé professa no domingo e uma filosofia humanista vigente durante a semana, no trabalho, escola, faculdade ou governo. Ao contrário do que se têm dito, o cristianismo não está limitado à área pística (fé) da vida. O cristianismo é, na verdade, uma biocosmovisão (ou simplesmente “cosmovisão”). A palavra biocosmovisão é composta por três termos: bio (vida) + cosmos (mundo) + visão, ou seja, é a interpretação essencial individual sobre o significado e propósito de todas as coisas. Agora precisamos de uma definição mais completa do termo. Tecnicamente, segundo a definição de James W. Sire, cosmovisão é: Um comprometimento, uma orientação fundamental do coração, que pode ser expressa como uma história ou um conjunto de pressuposições (hipóteses que podem ser total ou parcialmente verdadeiras ou totalmente falsas), que detemos (consciente ou subconscientemente, consistente ou inconsistentemente) sobre a constituição básica da realidade e que fornece o alicerce sobre o qual vivemos, movemos e possuímos nosso ser.1
Em outras palavras, cosmovisão consiste no significado que damos ao mundo a nossa volta. É como óculos, ou melhor, o nosso próprio olho, por onde conseguimos ver e compreender o que nos rodeia e o nosso papel nesse todo. A cosmovisão é constituída de conceitos que temos 1
James W. Sire, O Universo ao Lado. Brasília: Monergismo, 2018.
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como verdadeiros, por dedução, ou seja, aceitamos sem questionamentos. Por exemplo, todas as cosmovisões pressupõem a existência de algo além/fora de nós, isso é óbvio, mas muitos nunca pararam para pensar sobre; porém isso é uma verdade que temos como autoevidente, ou seja, que não é preciso ser provada. Outra questão óbvia é a lei da não-contradição, pela qual é regido o nosso raciocínio, essa lei simplesmente diz que X não pode ser X e não-X ao mesmo tempo e na mesma relação, pois isso é uma contradição. É como dizermos que um cachorro é também um dinossauro, simultaneamente, isso é, por definição, um absurdo, pois viola a lei básica da lógica (que veremos na Unidade 3). Nos alimentamos, comunicamos, pensamos, fazemos arte, política e tudo o mais dentro de uma visão de mundo. Sendo assim, a Bíblia deve ser nossa autoridade tanto no que cremos, quanto na forma que criamos cultura (cultura no sentido amplo, não apenas arte). A Bíblia não foi escrita como um compêndio teológico de doutrina (é lógico que nela há doutrinas e tais são de extrema importância), mas a Bíblia traz relatos históricos de como Deus agiu e age no espaço-tempo e como Ele quer que nos portemos na Sua criação. Ex.: Da mesma forma que a Bíblia nos declara o fato da ressurreição de Cristo como algo importante para se crer (1Co 15), ela nos mostra que Deus também está preocupado com nosso saneamento básico, mais especificamente como descartamos o esgoto (Dt 23:12-13). Deus não influencia apenas no que cremos, mas em tudo o que fazemos e pensamos. Paulo retrata isso muito bem quando diz: “Porque nele vivemos, e nos movemos, e existimos; porque dele e por ele, e para ele, são todas as coisas” (At 17:28; Rm 11:36). A cosmovisão cristã pode ser resumida nos seguintes pontos: Como realidade primordial, ou verdadeira, há um Ser pessoal, que está além do mundo (transcendente), mas também está próximo e interage com o universo (imanente). Tal Ser criou toda a realidade à nossa volta do nada e as mantém funcionando ordenadamente. Este ser é chamado de Deus. Ele criou os seres humanos bons conforme a Sua imagem e semelhança - que consiste em sermos pessoais, inteligentes, criativos e morais. Os seres humanos podem conhecer tanto o mundo que os cerca quanto o próprio Deus, porque Ele colocou neles essa capacidade e porque Ele desempenha um papel ativo na comunicação com eles. Nosso padrão ético é baseado no caráter de Deus, pois Ele é a máxima bondade e verdade; porém quebramos tais leis éticas, devido à desobediência de Adão, corrompendo, ainda que não de forma total, a imagem de Deus em nós, e a partir de então nos tornamos mortais. Porém, a morte não é o fim de tudo, mas um portal para a eternidade. Para nos resgatar da morte física e espiritual, o próprio Deus se fez homem em Jesus de Nazaré, possibilitando a muitos a reconciliação com Deus. Por fim, a história
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humana é linear; uma sequência de eventos significativos que levam ao cumprimento dos propósitos de Deus para a humanidade. Ou seja, ela tem como significado a redenção de todas as coisas.2
Nesta matéria veremos mais detalhadamente como Deus e Sua Palavra nos dão a base e essência de todas as áreas da filosofia (e da vida). Mas, primeiro, precisamos definir o que é filosofia. Filosofia A palavra “filosofia” tem origem grega. É composta pelos termos philo (de philía = “amor fraterno”, “amizade entre os iguais”) e sophia (“sabedoria”, da qual deriva sophós = “sábio”). Juntos formam a palavra philosophía, que significa “amor pela sabedoria”. Daí, diz-se que o filósofo é “o amigo da sabedoria” ou “o que ama a sabedoria”. Entretanto, como Agostinho notou, nem todos os filósofos são amantes da verdadeira sabedoria. Deus é a verdadeira sabedoria. Portanto, o verdadeiro filósofo ama a Deus. No fim, isso é o que significa filósofos cristãos afirmarem genuinamente que Jesus Cristo é Senhor da filosofia. Filosofia não se trata de divagações abstratas sobre coisas que estão longe de nossa realidade, embora muitos tenham essa visão negativa. A filosofia serve para sistematizarmos nossos pensamentos e modos de agir, de forma que sejamos mais conscientes e coerentes com a cosmovisão que adotamos. Através do agir do Espírito Santo, assumimos que Jesus Cristo é o Senhor da filosofia. De fato, ninguém pode dizer “Jesus é o Senhor”, a não ser pelo Espírito Santo (1Co 12.3). Certamente, ninguém pode dizer que Jesus é o Senhor da filosofia, com convicção, a não ser pelo mesmo Espírito Santo. Uma substancial transformação do homem interior e de suas perspectivas produzida pelo poder do Pentecostes é, sem dúvida, necessária para afirmar o senhorio de Cristo de modo geral e seu senhorio sobre a filosofia em particular. Afirmar o senhorio de Cristo sobre a vida e a filosofia, em outras palavras, é uma função da regeneração. Você deve nascer de novo (Jo 3). Herman Dooyeweerd3 O filósofo holandês Herman Dooyeweerd (1894 – 1977) elaborou uma teoria da realidade. Ele entendeu que a realidade não é composta apenas de razão e emoção, mas que podemos abstrair 15 esferas que compõe a realidade.
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Lucas Roberto, Hipnose Reversa. 2018. Lucas Roberto. Maravilhados pela Beleza. 2020.
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Esfera Modal
15. Fiduciária 14. Ética 13. Jurídica 12. Estética 11. Econômica 10. Sociológica 9. Linguística/semiótica 8. Histórica/Formativa 7. Lógica 6. Psíquica/Sensória 5. Biótica 4. Física 3. Cinemática 2. Espacial 1. Numérica
Núcleo de sentido
Exemplos de Ciências Relacionadas
Certeza transcendental Teologia Fundamental, quanto à Origem de todas Teologia Sistemática as coisas Amor Ética Social, Bioética Julgamento/harmonização Direito, Ciência jurídica Política Estética, Teoria Harmonia, Figurativo Harmônica, Arquitetura Conservação de Economia, Ciências valor/Mordomia Contábeis Sociologia, Intercurso social Urbanismo, Ciências Gerenciais Significado simbólico Semiótica, Filologia História, Antropologia Realização cultural Cultura Diferenciação racional Lógica Psicologia da Sensação Educação Biologia, Ecologia, Vida Bioquímica Matéria/Energia Física, Química Movimento Cinemática Extensão Geometria Espacial Quantidade discreta Matemática
Cada esfera, na ordem crescente, está embasada na anterior, porém não é possível definir uma esfera com outra, cada uma tem suas próprias leis; por isso, Dooyeweerd nomeou sua filosofia de “Cosmonômica” (cosmos = mundo + nomos = lei). Nas primeiras cinco esferas, a lei é dada diretamente por Deus, e não pode ser violada. Por outro lado, nas esferas mais altas, unicamente humanas, a lei tem o caráter de uma norma, isto é, uma regra para a conduta apropriada que pode ser violada por uma escolha livre. Cada esfera modal se distingue das outras por seu núcleo de sentido, ou momento nuclear, que garante a soberania interna daquela esfera em relação às outras. Nessa perspectiva a realidade é irredutivelmente complexa, e não podemos explicar as propriedades de uma esfera a partir das leis de outra esfera da realidade. O pensamento lógico, por exemplo, não pode ser explicado como um mero produto psíquico; ele não se fundamenta nos sentimentos, mas nas leis da esfera lógica. A partir dessa
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ontologia se estabelece o que denominamos princípio da irredutibilidade modal. Esse princípio é um instrumento teórico para detectar o reducionismo e proteger nossa percepção do real da invasão e distorção teórica que as ciências promovem quando se tornam imperialistas. O princípio da irredutibilidade é uma forma de garantir a soberania das esferas modais. O pastor J. M. Spier (1902 – 1971) comenta: A palavra ‘soberania’ implica a possessão de poder para falar, a capacidade de comandar, estando investido de autoridade. Deus é o supremo soberano, o comandante absoluto, o detentor exaltado de toda autoridade. Toda soberania e autoridade na terra procede dele, é instituída por ele, e é sempre responsável diante dele. E visto que a soberania absoluta repousa em Deus, suas leis que são a expressão de sua vontade também são soberanas. Essas leis exercem autoridade e estão revestidas de poder, mas somente dentro daquela esfera à qual se aplicam.4 Embora cada esfera seja soberana em seu núcleo de sentido, as esferas não são autônomas (independentes das demais), mas estão intimamente ligadas. Devido a essa ligação, há analogias entre as esferas que podem ser chamadas de antecipação, quando uma esfera refere-se analogicamente com esferas mais altas na escada modal, e retrocipação, quando a analogia é feita com esferas anteriores. Ética social é um exemplo de antecipação da esfera Ética na esfera Social. Sociologia da Ética é uma retrocipação da esfera Social na esfera Ética. A esfera Aritmética não tem nenhuma retrocipação. A esfera Fiduciária não tem nenhuma antecipação. Portanto, essas duas esferas são chamadas de esferas fronteiriças. De fato, apenas distinguimos tais esferas na análise teórica, pois na vivência diária estas se apresentam num todo; isso não significa que elas não existam realmente. Por isso, entende-se que a experiência ingênua (cotidiana) é tão importante quanto o pensamento teórico. Todas as criaturas físicas participam como sujeitos (ativos) nas esferas 1 a 4. Os seres vivos participam também da esfera 5, e os animais, da esfera 6 (alguns animais experimentam antecipações de esferas posteriores, como alguns símios). Mas apenas os seres humanos participam como sujeitos nas esferas 7 a 15. Nos homens encontramos o raciocínio lógico, a ação histórica, a linguagem verbal, a sociedade organizada, as relações econômicas, a arte, a moral, o direito e a fé religiosa. 4
SPIER, J. M. O que é filosofia calvinista? Editora Monergismo, 2019. N.p.
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É importante ressaltar que essas 15 esferas modais não estiveram sempre assim, em diferentes culturas há a diferenciação de determinadas esferas e outras não. O que ocorre é que, com o desenvolvimento cultural humano, certas esferas que eram reduzidas a outras passaram a ser independentes, devido ao desenvolvimento de suas leis específicas e núcleo. Portanto, entende-se que, com o passar dos séculos, a tendência é que surjam novas esferas dado a independência de novos núcleos da realidade. Coração Por ser impossível reduzirmo-nos a uma dentre as 15 esferas, e por presenciarmos elas como um todo, nosso eu (ego) transcende-as. Portanto, o eu, chamado por Dooyeweerd de “coração”, busca um absoluto para dar sentido à realidade. Esse absoluto, seja Deus ou um ídolo pertencente a alguma esfera, será a base da cosmovisão do indivíduo e guiará como o sujeito agirá na realidade (dentro das esferas). Kant estava errado ao pensar que alguém poderia ter uma razão neutra. Não existe neutralidade, pois todos possuem motivos religiosos, J. M. Spier comenta: Os numerosos sistemas filosóficos que têm sido desenvolvidos ao longo da história da nossa cultura, e que frequentemente contradizem uns aos outros, são uma clara demonstração do fato que a fé do pensador está sempre ativa por detrás do seu pensamento científico. O todo da vida do homem é religiosamente condicionado.5 Portanto, podemos afirmar que acima de homo sapiens, o ser humano é homo religiosus. Analisaremos de forma introdutória as principais áreas da filosofia e como Cristo é Senhor sobre elas, tais áreas são: Metafísica, Antropologia, Lógica, Epistemologia e Axiologia. “Não há um único centímetro quadrado em todos os domínios da existência humana sobre o qual Cristo, que é soberano sobre tudo, não clame: é meu!” - Abraham Kuyper
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SPIER, J. M. O que é filosofia calvinista? Editora Monergismo, 2019. N.p.
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Unidade 2 – Metafísica Composta de dois termos gregos (meta = além + physis = físico), a metafísica é a área da filosofia que estuda as causas primeiras e a essência da realidade. Em tudo o que há (material e espiritual), podemos distinguir em duas categorias: necessário e derivado. Na classe de necessário encontra-se apenas Deus, sendo a criação derivada dele, devido tudo ser dependente de Deus, iniciaremos nossa explicação por Ele. A Bíblia inicia com o pressuposto da existência de Deus (Gn 1:1), apontando que todas as coisas foram feitas por Ele. No decorrer das Escrituras vemos importantes atributos divinos sendo relevados: Sua autossuficiência mostra que Ele não necessita de nada, Sua eternidade, solidão e atemporalidade nos mostram que Deus não está limitado ao tempo, sendo o criador deste, de forma que antes de tudo ser criado, Deus existia pleno eternamente, desfrutando de si mesmo. Mas a característica central, que é a base para compreendermos a realidade criada por Deus, é entendermos que nele há uma pluralidade de pessoas, tal doutrina é conhecida como Trindade. Trindade Na Bíblia encontramos três pessoas distintas que arrogam para si atributos e autoridade divina. No Antigo Testamento temos: o Senhor (Yahweh), o Anjo do Senhor (Gn 16, 22, 31; Ex 3, 14; Nm 22; Jz 2, 6, 13; Zc 3, 12) e o Espírito do Senhor (Ex 31:3; Nm 24:2; Jz 3:10; 1 Sm 19:20). No Novo Testamento temos o Pai, o Filho e o Espírito Santo (Mt 28:19; 2Co 13:14; 1Jo 5:7). E em ambos os Testamentos há afirmações de que só existe um Deus (AT = Dt 6:4; NT = 1Tm 2:5). A Igreja produziu dois documentos importantíssimos que desenvolvem sobre a triunidade de Deus, que são: Credo Niceno-Constantinopolitano (século 4 d.C.) e Credo Atanasiano (século 5 [?] d.C.). Credo Niceno Creio em um só Deus, Pai todo-poderoso, Criador do céu e da terra, de todas as coisas, visíveis e invisíveis. E em um só Senhor Jesus Cristo, o unigênito Filho de Deus, nascido do Pai antes de todos os séculos, Deus de Deus, Luz de Luz, verdadeiro Deus de verdadeiro Deus, nascido, não criado, de uma só substância com o Pai, por quem todas as coisas foram feitas; o qual por nós homens e pela nossa salvação desceu do céu e se fez carne pelo Espírito Santo na virgem Maria e se fez homem, e foi crucificado por nós sob Pôncio Pilatos, padeceu e foi sepultado, e ao terceiro dia ressuscitou, segundo as Escrituras, e subiu ao céu e está
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sentado à direita do Pai, e virá novamente com glória para julgar os vivos e os mortos, e o seu reino não terá fim. E no Espírito Santo, que é Senhor e Vivificador, o qual procede do Pai e do Filho, que juntamente com o Pai e o Filho é adorado e glorificado, que falou pelos profetas. E em uma só santa igreja universal e apostólica. Confesso um só batismo para remissão dos pecados. Espero a ressurreição dos mortos e a vida do mundo vindouro. Amém. Credo Atanasiano 1. Aquele que quiser ser salvo, antes de tudo deve manter a verdadeira fé cristã. 2. Quem não a conservar na íntegra e inalterada, sem dúvida perecerá eternamente. 3. Ora, a verdadeira fé cristã é esta: que honremos um só Deus na Trindade e a Trindade na unidade. 4. Sem confundir as Pessoas ou dividir a substância. 5. Pois uma é a Pessoa do Pai, outra a do Filho e outra a do Espírito Santo. 6. Mas uma só é a Divindade do Pai e do Filho e do Espírito Santo, iguais em glória e da mesma majestade eterna. 7. Qual o Pai, tal o Filho e tal o Espírito Santo. 8. O Pai é incriado, o Filho é incriado, o Espírito Santo é incriado. 9. O Pai é incomensurável, o Filho é incomensurável, o Espírito Santo é incomensurável. 10. O Pai é eterno, o Filho é eterno, o Espírito Santo é eterno. 11. Contudo não são três eternos, mas um só Eterno. 12. Como também não são três incriados, nem três incomensuráveis, mas um só Incriado e um só Incomensurável. 13. Da mesma maneira, o Pai é todo-poderoso, o Filho é todopoderoso, o Espírito Santo é todo-poderoso. 14. Contudo não são três todo-poderosos, mas um só Todopoderoso. 15. Assim, o Pai é Deus, o Filho é Deus, o Espírito Santo é Deus. 16. Contudo não são três Deuses, mas um só Deus. 17. Assim, o Pai é Senhor, o Filho é Senhor, o Espírito Santo é Senhor.
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18. Contudo não são três Senhores, mas um só Senhor. 19. Pois, assim como pela verdade cristã somos obrigados a confessar cada Pessoa em particular como sendo Deus e Senhor, assim somos proibidos pela fé cristã de falar de três Deuses ou Senhores. 20. O Pai por ninguém foi feito, nem criado, nem gerado. 21. O Filho não foi feito, nem criado, mas gerado, somente pelo Pai. 22. O Espírito Santo não foi feito, nem criado, nem gerado pelo Pai e pelo Filho, mas procede d’Eles. 23. Logo, um só Pai, não três Pais, um só Filho, não três Filhos, um só Espírito Santo, não três Espíritos Santos. 24. E nesta Trindade nada é anterior ou posterior, nada maior ou menor, mas todas as três Pessoas são juntamente eternas e iguais entre si. 25. De modo que, como acima já foi dito, em tudo deve ser honrada a Trindade na unidade e a unidade na Trindade. 26. Portanto, quem quiser ser salvo, deve pensar assim da Trindade. 27. Entretanto, é necessário para a eterna salvação que creia também fielmente na encarnação de nosso Senhor Jesus Cristo. 28. Logo, a fé correta é que creiamos e confessemos, que nosso Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus, é Deus tanto quanto homem. 29. É Deus da substância do Pai, gerado antes dos tempos, e homem da substância de sua mãe, nascido no tempo. 30. Plenamente Deus, plenamente homem, subsistindo em alma racional e carne humana. 31. Igual ao Pai segundo a sua divindade, menor do que o Pai segundo a sua humanidade. 32. Embora sendo Deus e homem, nem por isso é dois, mas um só Cristo. 33. Um só, porém, não porque a divindade se converteu em carne, mas porque Deus assumiu a humanidade. 34. Um só, não por fusão de substâncias, mas por unidade de pessoa. 35. Pois, assim como alma racional e carne são um só homem, assim Deus e homem é um só Cristo. 36. O qual padeceu pela nossa salvação, desceu ao inferno, ao terceiro dia ressurgiu dos mortos, 37. Subiu ao céu, está sentado à direita do Pai, donde há de vir para julgar os vivos e os mortos. 38. E na sua vinda, todos os homens devem ressuscitar com os seus corpos e dar contas dos seus próprios atos. 39. E aqueles que fizeram o bem, irão para a vida eterna, os que fizeram o mal, para o fogo eterno.
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40. Esta é a verdadeira fé cristã, e quem não nela crer com fidelidade e firmeza, não poderá ser salvo. Tendo em mente o conceito trinitário, analisemos a criação de Deus. Criação Primeiramente, precisamos estabelecer que tudo o que existe foi criado por Deus ex nihilo (do latim, a partir do nada), Deus não usou algum tipo de matéria-prima para formar as coisas que existem, mas as trouxe por seu fiat (do latim, ordem, mando; faça-se), Hebreus 11:3 nos diz isso: “Pela fé entendemos que os mundos pela palavra de Deus foram criados; de maneira que aquilo que se vê não foi feito do que é aparente.”. O cristianismo crê que Deus não é apenas transcendente (está acima de nós e é diferente), mas também é imanente (age em Sua criação), onde o clímax de Sua imanência foi a encarnação de Deus na pessoa de Jesus de Nazaré. Esse Deus teísta e trinitário é conhecido em Suas obras, e Suas obras começam com a criação. Gênesis 1:1 estabelece a ideia geral: “No princípio, Deus criou os céus e a terra”. As implicações da doutrina bíblica são, evidentemente, absolutas. Elas contribuem de pelo menos três formas para a metafísica cristã: a primeira é que o mundo no qual vivemos é, de fato, criado, e não um contínuo eterno de causa e efeito mecânico. O mundo não apenas “existe e isso é tudo”, como Bertrand Russell (1872-1970) disse certa vez em um debate na BBC, em 1948, com Frederick Copleston (1907 - 1994). Pelo contrário, o mundo é criação de Deus, e nós precisamos fazer a maravilhosa redescoberta disso e da sabedoria divinamente concedida que vem com isso. A doutrina da criação é fundamental para tudo. A criação é onde o drama, a tragédia e a comédia divino-humana se desdobram. Ela é o objeto do desenvolvimento cultural humano, e tem sido tristemente deformada pelo pecado. Deus tem graciosamente redimido ou restaurado a criação em Cristo. Assim, a metafísica da criação é profundamente religiosa em conteúdo e qualidade. O cristianismo é uma religião e uma filosofia da criação. O segundo traço metafísico biblicamente derivado da criação é sua natureza doxológica (glorificadora) e sacramental (santa). Deus trouxe o universo inteiro à existência para Sua glória. Passagens conhecidas como Salmo 19:1 e Romanos 1:20 nos contam, respectivamente, que os céus proclamam a glória de Deus e que seu eterno poder e divindade são vistos nas coisas criadas. O mundo é a gloriosa obra de Deus — o autêntico teatro de Sua glória — como muitas tradições cristãs têm percebido. João Calvino escreveu “… para onde quer que lancemos os olhos, não há uma pequenina parte do mundo na qual não irrompam ao menos algumas centelhas de sua glória”6. 6
A instituição da religião cristã, I.V.1.
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Dizer que a criação é sacramental significa anunciar seu caráter sagrado por natureza, apesar do pecado. Toda terra é terra santa. É melhor tirar as sandálias, independentemente de localização. Visto que a criação é santa, uma de suas vocações primárias é nos contar sobre Deus e nos atrair para a comunhão mais íntima com ele, somos levados à ação de graças e louvor — da criação e suas dádivas ao Criador como doador. Isso é chamado de visão “eucarística”7 da vida e do mundo. Alexander Schmemann o afirma desta forma: Tudo que existe é dom de Deus ao homem, e tudo existe para revelar Deus ao homem, para promover comunhão da vida humana com Deus. É amor divino tornando-se alimento, tornando-se vida para o homem. Deus abençoa tudo que cria e, no vocabulário bíblico, isso significa que ele torna toda a criação sinal e meio de sua presença e sabedoria, amor e revelação: ‘Provai e vede que o SENHOR é bom’.8
Portanto, nosso relacionamento com o mundo nos coloca em comunhão com Deus. Como afirma Schmemann: “o mundo foi criado como a ‘matéria’, o material da singular eucaristia que tudo abrange, e o homem foi criado como sacerdote deste sacramento cósmico”9. Os próprios sacramentos mais conhecidos, como o batismo e a comunhão, são expressões eclesiásticas concentradas da interpretação cristã fundamental da vida. O terceiro traço metafísico cristão da criação é o caráter sensato. Toda realidade é permeada pela sabedoria divina. A criatividade, o planejamento e a maestria de Deus estão evidentes na variedade de Suas obras (Sl 104:24). Há, portanto, a realidade objetiva que Deus sabiamente ordenou, das folhas que se agitam nas árvores às galáxias. Se quisermos ser sábios deveremos compreender essa realidade e orientar a vida de acordo com ela. Devemos viver segundo os rumos do universo, não na contramão dele, ou, em sentido metafórico, nos acidentaremos. Provérbios 9, transmite poeticamente a questão. A Senhora Sabedoria nos convida à sua casa para um banquete da verdadeira sabedoria de Deus. Se recusarmos o convite, a tempestuosa Senhora Insensatez pode seduzir-nos e forçar-nos a participar do banquete da falsa sabedoria. A questão decisiva é se o Senhor é reverentemente temido (Pv 1:7; 9:10; 15:33). É claro, as consequências da decisão sobre o que evitar e a quem temer são pessoal e culturalmente profundas (Pv 8:32-36). Uma das questões da metafísica, que vale ainda ser pontuada, é sobre a diversidade e unidade que encontramos no universo. O dilema do uno e do múltiplo é sobre a natureza da realidade, temos particularidades 7
Eucaristia significa ação de graças. For the Life of the World: Sacraments and Orthodoxy. Crestwood, NY: St. Vladimir’s Seminary Press, 1973. p. 14. 9 Ibid., p. 15. 8
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(múltiplos) e categorias que agrupam esses particulares em unidades crescentes (universais). Existe um Uno do qual emana a identidade dos particulares ou o que existe são peças desconexas? Ex. Eu pertenço à categoria masculina, da raça humana. Eu moro numa cidade, que pertence a um estado, pertencente a um país, pertencente a um continente do planeta terra, que se localiza no sistema solar, na via láctea... A questão do “um” e dos “muitos” se encontra na própria palavra universo. O que torna o universo, de fato, um uni-verso, ou seja, o mundo em que existe a unidade que une toda a diversidade? Talvez com algumas exceções, ao tratar desse problema seminal, muitos têm enfatizado ou o um (monismo) ou os muitos (pluralismo). Apesar disto, William James acreditava que o um e os muitos era “o mais central de todos os problemas filosóficos”. O Um e os Muitos A natureza trinitária de Deus fornece a solução para questão metafísica do “um e dos muitos”. A explicação para o caráter singular e plural da realidade é achada no Deus trinitário. Nele há uma diversidade unificada ou uma unidade diversificada — uma tríade e uma unidade, uma unidade e uma tríade — e o mundo inteiro de muitas partes (multiplicidade), encontra coerência no Deus único, Criador e Redentor do céu e da terra. Deus, portanto, é o ponto de referência para toda a realidade. Ele é a chave interpretativa que fornece o sentido para todas as coisas, pois liga todas as coisas em si mesmo. Portanto, a encarnação de Jesus Cristo como o Deus-Homem também é uma chave para resolver o problema do um (Deus) e dos muitos (homem). Jesus une de novo o mundo fragmentado e sem união em si mesmo. Ele reconcilia todas as coisas pelo sangue de sua cruz e as reúne (Cl 1:19-23). Se a física, como ciência natural, busca uma Grande Teoria Unificada, ou uma Teoria de Tudo ou uma Teoria do Campo Unificado para unir tudo, ela deveria buscar a solução na metafísica trinitária. Deus é o autor de todas as coisas e as une em si mesmo. Conclusão Além de Deus ser o criador de todas as coisas, Ele também sustenta “todas as coisas pela palavra do seu poder” (Hb 1:3), assim, tudo o que realizamos têm, em última instância, caráter religioso, pois estamos no mundo de Deus e somos feitura dele, destinados a glorificá-lo.
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Unidade 3 – Antropologia e Lógica Antropologia Composta de dois termos gregos (antropos = homem + logos = estudo), a antropologia é a área da filosofia que estuda o ser humano em sua totalidade. Infelizmente, devido à proposta desta ser uma pequena apostila, não teremos tempo para abordar e nos aprofundar em todas as vertentes dessa ciência, mas te convido a entender o princípio fundamental que rege todas as áreas do homem. Um dos grandes problemas de nossa época é que, com a secularização das ciências, o ser humano foi rebaixado a um mero animal (ou robô) que age conforme determinam seus genes e o ambiente em que vive. Isso tem causado sérias consequências em nossa sociedade, como depressão, desrespeito à vida (ex.: apologia ao aborto), e nas últimas consequências, o suicídio. A Bíblia não afirma que somos animais evoluídos, que desenvolveram a razão, ela afirma que fomos criados à imagem e semelhança do próprio Deus (Gn 1:26-27), portanto, somos diferentes das outras criaturas em tipo e não apenas em grau. A essa característica, chamamos de Imago Dei (do latim, Imagem de Deus). Ser imagem divina significa que somos semelhantes a Deus, como seres totais e personificados, em substância, relacionamentos e função. Nós não somos Deus, de fato. Mas somos suficientemente parecidos com Ele para representá-lo no mundo em nossos variados papéis. Nossa identidade como imagem divina ganha expressão quando o refletimos no mundo. Com base na evidência reunida no Antigo Testamento e no antigo Oriente Médio, David J. A. Clines sumariza a Imago Dei de uma maneira parecida. O homem é criado não na imagem de Deus […] mas como imagem de Deus, ou melhor, para ser imagem de Deus, o que significa comissionar [a humanidade] no mundo criado [como agentes] do Deus transcendente que permanece fora da ordem do mundo. O homem ser imagem divina significa que ele é o representante corpóreo visível do Deus invisível e incorpóreo; ele é representante, em vez de representação, visto que a ideia de retrato é secundária no significado de imagem. Entretanto, o termo ‘semelhança’ é uma garantia de que o homem é um representante adequado e fiel de Deus na terra. O homem [pessoa] por completo é imagem de Deus, sem distinção de corpo e espírito. Toda a humanidade [pessoas], sem distinção, é a imagem de Deus.10
Tem havido muita discussão no que se refere a definição precisa da imagem de Deus de Gênesis no homem, mas a concordância geral é que ela se refere ao fato que o ser humano é comparável ao seu Criador em certos aspectos do seu ser e obra – o próprio Criador serve como o padrão 10
David J. A. Clines, “The Image of God in Man”
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para o agir da humanidade. Com respeito ao seu ser, o homem tem uma semelhança moral e espiritual com Deus (isto é, ele é um ser racional, uma pessoa autoconsciente, capaz de exercer uma vontade em escolhas morais, e um ser puro, não contaminado pelo pecado). Com respeito à sua obra, o homem, como Deus, possui autoridade e poder para governar a Terra e suas criaturas (isto é, ter domínio). Estes dois aspectos – o ser e a obra do homem – encapsulam a imagem de Deus no homem. Os dois estão intimamente relacionados: o homem é capaz de exercer domínio na terra porque ele é um homem racional, autoconsciente e justo; e a responsabilidade de domínio fornece o âmbito para o exercício dos poderes morais e espirituais do homem. Porém, precisamos lembrar que, com a queda, a imagem de Deus em nós foi corrompida pelo pecado, mas não destruída; esta é a razão de o homem (mesmo incrédulo) realizar coisas boas, pois Deus com sua graça comum11 limita a maldade dos corações. Desdobramentos Ser a imagem de Deus tem diversos desdobramentos. A primeira característica dos seres humanos é que somos primariamente amantes. Como Deus é amor (1Jo 4:8), esta também deve ser nossa natureza básica. Somos o tipo de criatura que ama pessoas, lugares e coisas. “Homo sapiens” (homem sábio), “homo faber” (homem fabricador)… sim, mas antes de tudo, “homo adorans” (homem adorador). Segundo, Deus nos criou para sermos Sua imagem e semelhança como macho e fêmea nos relacionamentos, em especial no contexto de casamento e família. Terceiro, Deus nos criou como Sua imagem e semelhança para dominarmos o mundo e sermos formadores de cultura. Essa tarefa de ter domínio sobre a terra é corretamente vista como um mandato “cultural”. Nossas atividades de formação de cultura são manifestadas desde cedo em Gênesis 2, quando o primeiro homem cultiva e guarda o jardim do Éden. Seja sobre terra, mar ou ar, peixes, aves ou feras, homens e mulheres individualmente e juntos como imago Dei (imagem de Deus) devem desenvolver as possibilidades ocultas no ventre da criação, naturais e humanas. Isso incluiria a tecnologia — comissionada, caída e redimida — à medida que se desenvolve desde o jardim primitivo até a Nova Jerusalém. Ludwig Köhler considera o mandato de domínio um mandato cultural, manifesto em especial nas origens da arquitetura e confecção de roupas com implicações para a educação e vocação hoje: O encargo dado ao ser humano como era entendido desde os tempos antigos até o presente: este é o encargo da cultura. Ele se dirige a todos 11
Enquanto a graça particular ou especial é aquela pela qual Deus salva os pecadores através de Jesus Cristo, a graça comum seria aquela por intermédio da qual Deus restringe a corrupção do mundo causada pelo pecado e permite o desenvolvimento da vida e cultura humanas.
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os seres humanos; abarca todos os tempos; não há ação humana que não lhe esteja subordinada. Aquele primeiro ser humano que, exposto com os seus ao vento gelado na estepe, pôs algumas pedras umas em cima das outras, inventando assim o muro, a base de toda a arquitetura, cumpriu essa tarefa. Aquela primeira mulher que abriu um furo em um espinho duro ou uma espinha de peixe, passando por ele um pedaço de um tendão de animal para poder unir alguns fragmentos de couro, inventando assim a agulha, a costura, o início de toda a confecção de roupas, executou essa incumbência. Até hoje, toda instrução de uma criança em qualquer espécie de escola, toda escrita, todo livro, toda técnica, pesquisa, ciência e ensino com seus respectivos métodos, instrumentos e instituições não são outra coisa senão o cumprimento desse encargo. Toda a história, toda aspiração humana está sob esse signo, sob essa palavra da Bíblia.12
Com base nisso, compreendemos algo do significado e da natureza profundos de nossas tarefas no mundo. A filosofia é uma das tarefas. Se feita para Deus, deve ser empreendida em um tom diferente, até teológico. Em todo caso, a partir da pesquisa vemos como o amor, os relacionamentos e a formação da cultura são componentes de nossa identidade como imagem e semelhança de Deus — o representante visível e corpóreo do Deus invisível e incorpóreo sobre a terra. Porque o domínio de Deus deve permanecer absoluto, o domínio do homem é um de mordomia, administramos temporariamente a criação de Deus. A autoridade que o homem exerce sobre a terra foi delegada a ele por Deus, e os recursos que o homem possui são, em última instância, propriedades de Deus. O homem, como mordomo e representante de Deus, deve usar sua autoridade e posses para a glória do seu Senhor e Mestre. O Cristo encarnado também nos mostra como é a humanidade. Nossa incapacidade pecaminosa de ver ou conhecer a nós mesmos tornou a encarnação necessária para que entendêssemos quem somos e como devemos ser. Jesus é o Deus-homem, a pessoa teoantrópica (teo = Deus + antropos = homem), que revela a verdadeira humanidade que os cristãos devem imitar. Cristo nos mostra o novo e verdadeiro caminho para sermos humanos — criados, julgados, perdoados e avivados nele. Como consequência, nossa identidade está clara em meio à inundação de confusas opções antropológicas: confucionista, hinduísta, budista, islâmica, platônica, kantiana, marxista, freudiana, existencialista, behaviorista, pragmática, terapêutica, moderna, pós-moderna e assim por diante. Segundo Hans Rookmaaker “Jesus não veio para nos tornar cristãos. Jesus veio para nos tornar humanos de verdade.”, ou seja, Cristo, por não ter pecado, nos mostra qual é o plano original de Deus para a humanidade, nós somos apenas uma cópia imperfeita, corrompida desde 12
Der hebräische Mensch, citado por Hans W. Wolff, Antropologia do Antigo Testamento. Hagnos, 2007. p. 252
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a matriz, por isso somos chamados e redimidos por Deus, para sermos semelhantes a Jesus. Todavia, como a ordem de domínio é cumprida no mundo pósQueda, onde ele não é simplesmente uma questão de sujeitar a Terra, mas também de sujeitar o pecado e a rebelião contra Deus? A resposta é encontrada na Grande Comissão. A Grande Comissão deveria ser entendida como uma nova declaração da ordem de domínio original para o mundo pós-Queda e pós-ressurreição de Cristo. A Grande Comissão, como registrada em Mateus 28:18-20, declara que os seguidores de Jesus têm a capacidade (“Eu estou convosco”, isto é, por meio do Espírito Santo que enviarei para vocês [cf. At 1:4-8]), e a autoridade (“É-me dado todo o poder no céu e na terra. Portanto ide…”) para sair como representantes de Deus para vencer o pecado e sujeitar a Terra para a glória de Deus. A Grande Comissão, como declarada nos evangelhos, recorda os mandamentos da obrigação de domínio original em Gênesis 1:28. Os seguidores de Jesus devem pregar o evangelho e ganhar convertidos (isto é, ser frutíferos e se multiplicar); eles devem ir a todas as nações (isto é, encher a terra); e devem discipular todas as nações em obediência aos mandamentos de Cristo (isto é, sujeitar a Terra). Centenas de páginas poderiam ser escritas para apontarmos como nossos relacionamentos, capacidades e demais características são embasadas em Deus (e em especial, seu relacionamento trinitariano), porém para encerrar esta parte gostaria de citar 3 características ressaltadas pelo Dr. Rev. Wadislau Gomes. Segundo Wadislau, o ser humano é: analogal, pactual e dialogal. Deus criou o ser humano de modo analogal, pactual e dialogal para que o homem refletisse sua glória e usufruísse o processo de glorificação. Analogia, aqui, tem o sentido de relação de semelhança entre naturezas diferentes. Explicando: Deus é Criador necessário (essencial, forçoso, sem quem ninguém ou nada existe), e nós, criaturas contingentes (isto é, que poderiam ser ou deixar de ser, decorrentes, dependentes). Pacto, por sua vez, tem o sentido de pertinência e de submissão nessa mesma relação (Deus é Pai Senhor, nós somos filhos servos). Diálogo tem o sentido de correspondência entre fonte e recepção (Deus fala e nós ouvimos as suas palavras). Cada um desses modos tem projeção nas relações humanas pessoais e ambientais. Deus criou o ser humano de modo analogal, pelo que somos ‘para louvor da glória de sua graça’. Somos seres que espelham a Deus; quando não o refletimos, refletimos qualquer outra coisa. Deus nos criou, também, de modo pactual, pelo que somos objetos da ‘riqueza da sua graça, que Deus derramou abundantemente sobre nós’. Somos seres que fazem alianças. Entretanto, quebrando o trato com Deus, tornamo-nos escravos de contratos.
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Finalmente, ele nos criou, ainda, de modo dialogal, pelo que somos ‘feitos herança’ e ‘herdeiros’ da fé; somos seres que ouvem e respondem a linguagens. Mas, se fechamos os ouvidos à voz de Deus, somos levados por vozes de ídolos, sejam homens ou coisas.13
Assim, para conhecermos a nós mesmos, precisamos conhecer a Deus, pois ambos os conhecimentos estão entrelaçados, João Calvino escreveu sobre eles: Quase toda a suma de nossa sabedoria, que deve ser considerada a sabedoria verdadeira e sólida, compõe-se de duas partes: o conhecimento de Deus e o conhecimento de nós mesmos. Como são unidas entre si por muitos laços, não é fácil discernir qual precede e gera a outra. Pois, em primeiro lugar, ninguém pode olhar para si sem que volte imediatamente seus sentidos para Deus, no qual vive e se move, porque não há muita dúvida acerca de que não provenham de nós as qualidades pelas quais nos sobressaímos. Pelo contrário, é certo que não sejamos senão a subsistência no Deus uno. Ademais, por esses bens, que gota a gota caem do céu sobre nós, somos conduzidos como que de um regato para a fonte.14
A vida torna-se um absurdo sem Deus, realizamos um suicídio existencial quando buscamos autonomia (auto = de si mesmo + nomos = lei, ou seja, estabelecer as próprias leis). O breve catecismo de Westminster retrata bem esta verdade em sua primeira pergunta: Pergunta 1. Qual é o fim principal do homem? Resposta: O fim principal do homem é glorificar a Deus, e gozá-lo para sempre.
Lógica Lógica é a arte de se organizar ideias de forma coerente para se chegar à verdade, através da análise direta (dedutivamente) ou indireta (indutivamente) dos fatos. A O que é a verdade? lógica toma pressuposições, analisa as relações, as compara Verdade é o que é, ou seja, é a fiel com outros fatores conhecidos e descrição da realidade; ela é chega a uma conclusão que autossuficiente, de forma que não identifique um fato depende da aprovação de ninguém. anteriormente desconhecido. A De fato, Deus é a máxima verdade, lógica é matemática com ideias da qual todas as demais são em vez de números. É uma derivadas, pois Ele é a realidade maneira de identificar as relações última das coisas (ou a verdade verdadeira, como Francis Schaeffer entre essas ideias. costumava dizer). 13 14
Wadislau Gomes. Todo mundo pensa, você também. Brasília: Monergismo, 2013. João Calvino. A instituição da religião cristã. Tomo 1. São Paulo: Unesp, 2007, I.I.I. p. 37
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A lógica utiliza algumas leis autoevidentes para alcançar seu objetivo: a verdade. A principal lei da lógica é chamada de lei da nãocontradição, a qual diz que duas afirmações contraditórias não podem ser verdadeiras ao mesmo tempo, nas mesmas relações, exemplo: As duas proposições "A é B" e "A não é B" são mutualmente excludentes. Basicamente, nosso pensamento é pautado sob a forma antitética, ou seja, se algo é verdade, seu oposto é, necessariamente, falso. Na filosofia usamos silogismos para construir argumentos. O silogismo é o ato de raciocínio pelo qual a mente percebe que, de uma relação entre duas proposições (chamadas premissas) que têm um termo em comum, necessariamente emergirá uma nova e terceira proposição (chamada conclusão), na qual não aparece o termo comum, este chamado de termo médio (M). Exemplo: Premissa 1: Um morcego é um mamífero. Premissa 2: Nenhum pássaro é um mamífero. Conclusão: Um morcego não é um pássaro. Veja que neste exemplo “mamífero” é o termo comum, pois aparece nas duas premissas, por isso não aparece na conclusão. Outro exemplo: Premissa 1: Os limpos de coração verão a Deus. Premissa 2: Aqueles que verão a Deus são bem-aventurados. Conclusão: Os limpos de coração são bem-aventurados. Neste caso, “verão a Deus” é o termo comum às duas premissas, portanto não consta na conclusão. Há diversas regras para que um silogismo seja verdadeiro, caso contrário, será considerado falacioso (falso); mas não teremos tempo de abordar todas as regras. É lógico que no nosso dia-a-dia não escrevemos silogismos sempre que raciocinamos, isso é quase automático, porém o silogismo é de grande ajuda quando fazemos apologética (defesa da fé) ou outra atividade que exija sistematização do nosso pensamento. A Bíblia usa a estrutura de argumentação silogística para defender e refutar diversos pontos doutrinários, um dos principais personagens bíblicos que faz uso do silogismo é o apóstolo Paulo. Um exemplo que temos é 1 Coríntios 15, onde o apóstolo está ressaltando aos Coríntios a importante doutrina da ressurreição de Cristo. No verso 12, ele aborda um problema que estava ocorrendo na igreja, alguns não criam na ressurreição dos mortos, então Paulo argumenta o seguinte: “Ora, se se prega que Cristo ressuscitou dentre os mortos, como dizem alguns dentre vós que não há ressurreição de mortos? E, se não há ressurreição de mortos, também Cristo não ressuscitou. E, se Cristo não ressuscitou, logo é vã a nossa
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pregação, e também é vã a vossa fé.” 1 Co 15:12-14. O argumento de Paulo pode ser expresso no seguinte silogismo: Premissa 1: Sem a ressurreição de Cristo a fé cristã é vã Premissa 2: Se não há ressurreição, logo Cristo não ressuscitou Conclusão: Portanto, nossa fé seria vã se os mortos não ressuscitassem A lógica não é aprendida, ela é inata a nós (a possuímos desde o nascimento). Como vimos, somos imagem e semelhança de Deus e o refletimos, sendo assim, nada mais coerente do que termos herdado a lógica do próprio Deus. E isso é assegurado pelas Escrituras Sagradas. O apóstolo João diz em seu evangelho: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” (Jo 1:1). Aqui ele está se referindo a Jesus como sendo o “Verbo”, o termo que ele usa em grego para esta palavra é Logos, que pode ser traduzido como “Verbo” (no sentido de “palavra”), mas também há uma tradução alternativa que é “Lógica”. Nesse caso o versículo ficaria assim: “No princípio era a Lógica, e a Lógica estava com Deus, e a Lógica era Deus.”. Nesse sentido, não estamos dizendo que Deus é totalmente compreensível, mas que nele não há contradição; nem afirmamos, como os racionalistas, que nossa razão é autônoma e o único meio pelo qual chegamos à verdade, mas que a fé cristã é racional e não supersticiosa. Como fomos feitos à imagem e semelhança da divindade, possuímos razão lógica, que foi corrompida pelo pecado, mas não destruída; esse é o motivo de muitas vezes pensarmos enganosamente, porém ainda é possível sermos coerentes. Essa é a causa de podermos fazer ciência e conhecer, pois, somos lógicos como nosso criador. Esse é o assunto da próxima unidade: como adquirimos conhecimento?
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Unidade 4 – Epistemologia e Axiologia Epistemologia A questão de “como sabemos” pertence ao campo de estudo que é chamado “epistemologia”. Epistemologia (do grego episteme = conhecimento certo, ciência + logos = discurso, estudo) se preocupa com a investigação da origem, natureza e métodos do conhecimento. É importante frisar que nenhum conhecimento é neutro, ele é sempre tendencioso para a cosmovisão adotada pelo conhecedor. A questão de “como sabemos?” é uma dúvida que não cruza nossas mentes com muita frequência (a menos que você seja um filósofo, ou muito curioso); todavia, é uma questão muito importante. Ao abordar a questão, é necessário entender que cada um de nós tem desenvolvido uma visão particular sobre a natureza da realidade que é baseada sobre um padrão último de interpretação. Isto é, cada pessoa interpreta (dá significado) os “fatos” do mundo por um apelo ao que ele ou ela crê ser o critério último para determinar a realidade. Esse processo de julgar fatos acontece, podese dizer, automaticamente, de modo que, não é algo do qual tenhamos consciência. Sobre a base de um padrão, todos interpretam a informação que chega até nós individualmente e a categoriza como certa ou errada; boa ou má; verdadeira ou falsa; útil ou inútil; desejável ou indesejável; etc. Isso é o que significa quando dizemos que interpretamos os “fatos” de nossa experiência. A interpretação resultante da vivência diária é o que chamamos conhecimento. Nós conhecemos que algo é o que cremos ser, porque nosso padrão último para determinar o conhecimento nos diz que é assim. Portanto, todo o nosso conhecimento assumido é, na verdade, baseado sobre o que pressupomos como o árbitro final da realidade. Essa pressuposição, ou primeiro princípio, é nossa fé e comprometimento supremo, isto é, nós cremos que nosso padrão escolhido é o melhor e o mais confiável. Essa pressuposição é o ponto de partida de todo nosso pensamento e a base para toda nossa predicação – de todas nossas afirmações quanto à qualidade, natureza ou atributos da coisa (fato). Assim, embora não pensemos muito na questão de um padrão último de interpretação, nós temos um. E todos nós, consciente ou inconscientemente, interpretamos todos os particulares que experimentamos a partir da base de uma pressuposição que controla tudo. Que nossa pressuposição básica, nosso ponto de partida, é importantíssima é evidente: se ela for correta, nossa interpretação será correta; se for falsa, nossa interpretação dos fatos será defeituosa. O objetivo, portanto, é ter a pressuposição correta. Mas, qual é a pressuposição correta; qual é o padrão apropriado de interpretação; qual é a fé comprometida que nos levará ao conhecimento verdadeiro? Os homens
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têm respostas diferentes para essa pergunta. Por exemplo, o racionalista diz que a razão humana é o padrão. O empirista diz que é a experiência sensorial. O hedonista diz que é o prazer. O pragmático diz que é o que funciona. O irracionalista diz que não há padrão último, visto que tudo é puro acaso, pura contingência. O religioso diz que é sua religião. O cristão diz que é o Deus da Bíblia. Nenhuma cosmovisão, exceto a cristã, fornece as devidas bases para a epistemologia, por exemplo, a cosmovisão naturalista não garante a confiabilidade nos nossos pensamentos, pois, segundo ela, nossa mente é mero produto do acaso. Charles Darwin, adepto da cosmovisão naturalista, preocupou-se com isso em uma carta a W. Graham, datada de 3 de julho de 1881: “Mas, então sempre surge comigo a terrível dúvida de se as convicções da mente humana, que se desenvolveu a partir da mente de animais inferiores, têm algum valor ou são de fato confiáveis. Alguém confiaria nas convicções da mente de um macaco, caso houvesse nela alguma convicção?”.15 Portanto temos duas questões: (1) Como podemos conhecer a Deus (a base de toda a realidade)? (2) E como podemos confiar no conhecimento que adquirimos da realidade em que estamos inseridos? (1) Como podemos conhecer a Deus? Simplesmente, não podemos conhecer a Deus por nós mesmos, Ele precisa se revelar a nós. Só de pensarmos no conceito “Deus”, já entendemos que se trata de algo totalmente distinto (transcendente) de nós, por isso, é necessário que Ele também seja análogo (imanente) a nós, para que, através de uma linguagem que O compreendamos, possamos conhecê-Lo. Deus se revelou a nós de duas formas, no que os teólogos chamam de Revelação Geral e Revelação Especial. A Revelação Geral consiste na assinatura que Deus colocou na natureza e na nossa consciência, tais como: ordem, leis, ética etc. A Revelação Especial consiste em Sua palavra (Bíblia) e a encarnação de Cristo. Ambas revelações são adaptadas ao nosso entendimento, o que chamamos de éctipa, o qual é o conhecimento que o próprio Deus tem de si e é comunicado a nós. Apenas aqueles que são regenerados pelo Espírito Santo conseguem se aprofundar nos mistérios de Deus, pois têm uma mente cativa a Cristo; os incrédulos apenas terão um conhecimento superficial da Divindade. Ao observarmos as obras e palavras de Deus como o caminho para conhecê-lo, entende-se a partir do panorama bíblico mais amplo que Deus tem agido como criador, juiz e redentor do mundo. Na obra da criação (Gn 1-2), aprendemos algo sobre seu poder e sabedoria. Na obra de juízo (Gn 3-11), compreendemos aspectos de Sua santidade e justiça. Na atividade redentora em Cristo (Gn 12-Ap 22), vemos Sua bondade e graça. 15
The Autobiography of Charles Darwin and Selected Letters, ed. Francis Darwin. New York: Dover, 1892. p. 67.
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Com base nessas obras, podemos afirmar com confiança que Deus é incomparavelmente poderoso e sábio, santo e justo, bom e gracioso. Embora Ele tenha se revelado de formas particulares a Israel e por meio de Jesus e Sua igreja, Suas palavras e feitos têm implicações universais à luz do caráter abrangente do relato bíblico. (2) Qual a base da confiança no conhecimento geral da criação? A primeira frase do Credo Apostólico nos dá a resposta: “Creio em Deus Pai, Todo-poderoso, Criador do Céu e da terra.”. Sendo Deus criador de tudo o que há (inclusive de nós e nossa consciência), há a correspondência segura de que o que raciocinamos e percebemos pelos sentidos têm algum grau de confiança. Cristo é a Lógica de Deus, que nos comunicou a racionabilidade e Deus, sendo um e plural, garante nossa identidade. Sem Deus, não podemos ter certeza de nada, apenas viveríamos numa infindável contradição e dúvida. Se conhecemos, é porque Deus nos deu instrumentos adequados para isso (razão lógica e sentidos) e estabeleceu em Sua criação ordem, a fim de que o homem possa explorar (no sentido de analisar) e obter conhecimento do objeto estudado.
Axiologia Axiologia (do grego axios = valor + logos = estudo) é a área da filosofia que se ocupa do estudo dos valores humanos, em especial dos valores associados à estética e ética, os quais estudaremos respectivamente. Estética “Como portadores da imagem de Deus, os seres humanos têm a capacidade de criar algo belo e deleitar-se nisso.” — Abraham Kuyper A palavra estética vem de uma palavra grega que significa “sentir, experimentar ou perceber”. Além disso, no centro da palavra estética está o radical grego the ou thea, que significa “ver, enxergar, observar”. Ele é encontrado nas palavras teoria e teatro — e estética. Teóricos, o público de teatro e estéticos são todos seres que percebem — observadores, espectadores e examinadores. Na filosofia, o termo é utilizado para designar a subdisciplina que trata de questões relacionadas à beleza, arte, gosto e experiências referentes a esses assuntos. Como um rótulo para esse domínio filosófico, sua origem é relativamente recente (1735)16. Ainda assim, os interesses e as questões da estética permanecem conosco o tempo todo. Somos corretamente chamados homo aestheticus (homem
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Alexander Baumgarten foi o primeiro a utilizar o termo “estética” para a disciplina moderna na dissertação “Philosophical Reflections on Some Matters Pertaining to Poetry”.
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estético). Assim, como as demais faculdades humanas são um reflexo do ser divino, a estética não é diferente. Quando apreciamos o pôr do sol, degustamos um delicioso prato feito por nossa mãe (ou esposa), sacudimos o esqueleto ouvindo nossa música favorita, fitamos os olhos de quem amamos, sentimos o cheiro de pão fresquinho na padaria, nos maravilhamos com a arquitetura gótica; em todos esses casos, estamos lidando com a estética. Quando nos alegramos nessas coisas, estamos na verdade desfrutando do reflexo de algo maior, pelo qual fomos criados com um anseio por este. Vamos nos concentrar no conceito do belo e como somos vocacionados, como cristãos, a produzir arte para a glória de Deus. Podemos definir beleza como sendo a junção de verdade e bondade. Além disso, podemos dizer que beleza é algo pelo qual estamos inerentemente à procura. Mesmo que o conceito de beleza seja contestado em certos círculos, uma coisa sobre a qual a visão cristã é clara é a beleza do próprio Deus e que Ele é a fonte de toda beleza. Um dos desejos mais profundos do rei Davi era “contemplar a beleza do Senhor e meditar no seu templo” (Sl 27:4, ARA). Em tom semelhante, Jonathan Edwards (1703-1758) expressou-se de forma eloquente sobre a beleza de Deus e atribuiu toda a beleza a Ele: Pois, como Deus é infinitamente o maior dos seres, a Ele é permitido ser infinitamente o mais belo e excelente: e toda a beleza encontrada na totalidade da criação nada é senão reflexo dos raios difusos do Ser que conta com a plenitude infinita de fulgor e glória… [Ele é] o fundamento e a fonte de todo ser e toda beleza… muito mais do que o sol é a fonte e sumária compreensão de toda a luz e claridade do dia.17
Os conceitos de unidade, proporção, harmonia, ordem, iluminação, clareza, cor e prazer podem ser usados para descrever a objetividade da beleza, embora fatores culturais e temporais indicam que há a parte subjetiva dela. Arte O cristão não deve estar alienado de produzir arte, não importa qual das 12 categorias seja: música, artes cênicas, pintura, escultura, arquitetura, literatura, cinema, fotografia, história em quadrinhos, vídeo games, arte digital e fanfic18. Deus foi o primeiro artista, Ele compôs todo um universo cheio de galáxias, leis, padrões matemáticos, diversidade na fauna e flora para o Seu deleite, e foi além, esculpindo o homem como seu autorretrato. Mesmo com a queda, a beleza da criação não foi completamente ofuscada, e em Cristo temos a possibilidade de redimir a 17 18
Jonathan Edwards. The Nature of True Virtue. Ann Arbor, MI: Ann Arbor Paperbacks, 1960, p. 14-5. Esta sequência segue a listagem mais comumente aceite das artes, conforme sua numeração.
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arte, apontando para Deus, lhe dando a devida glória. Isso não significa que devemos apenas fazer arte sacra, como pintar apenas a cruz de Cristo; mas devemos enaltecer a beleza daquilo que Deus fez, seguindo os passos daquele que refletimos, criando dentro da criação de Deus. A arte, então, é afirmada pela criação e redimida em Jesus Cristo. Na medida em que os artistas crentes tomarem posse dessa grande história bíblica, todo o conjunto de sua obra deveria transmitir a sequência fundamental do enredo bíblico. Isso incluiria as maravilhas da criação, o desgosto do pecado e a esperança da redenção. Ou seja, os artistas crentes deveriam comunicar como as coisas deveriam ser (criação), como elas realmente são (caídas) e como elas já podem ser e um dia serão de forma plena (redimidas). A arte é para a glória de Deus. A própria obra de Deus declara Sua glória e o mesmo se aplica à nossa. Cantar, tocar, pintar, escrever, e assim por diante, deveriam falar bem não apenas de nós, mas também de Deus, que, em primeiro lugar, nos concedeu a capacidade de fazer arte. Ela deve honrá-lo de maneiras expressivas, com nossa criatividade e perícia, manifestando as qualidades divinas. Aprendemos a admirar e respeitar o Criador por meio das obras imaginativas da criatura. Como Paulo diz na doxologia arrematadora de Romanos 11.36: “Porque todas as coisas são dele, por ele e para ele. A ele seja a glória eternamente! Amém”. Ética Antes de tudo precisamos esclarecer algo. No seu uso atual, o vocábulo “ética” é, com frequência, empregado de maneira intercambiável com a palavra moralidade. O fato de que as duas palavras se tornaram quase sinônimos é um sinal da confusão que permeia o cenário ético moderno. Historicamente, as duas palavras têm significados bem distintos. Ética vem do termo grego ethos, derivado de uma raiz que significa “estábulo”, lugar para cavalos. E transmitia o sentido de um lugar de habitação, um lugar de estabilidade e permanência. Por outro lado, moralidade vem da palavra mores, que descreve padrões comportamentais de uma sociedade. Ética é uma ciência normativa, que investiga os principais fundamentos que prescrevem obrigações ou “deveres”. Ela se preocupa primariamente com o imperativo e as premissas filosóficas nas quais os imperativos se alicerçam. Moralidade é uma ciência descritiva, que se preocupa com “o que alguém é”. A ética define o que as pessoas devem fazer. A moral descreve o que as pessoas realmente fazem. A diferença entre elas é a diferença entre o normativo e o descritivo. A ética cristã está baseada numa antítese entre o que é e o que deve ser. Vemos o mundo como caído; uma análise do comportamento humano caído descreve o que é normal à situação anormal da corrupção humana. Somos chamados por Deus à inconformidade – a uma ética transformadora que anula o status quo (estado atual) (Rm 12:2).
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No âmago da ética cristã, há a convicção de que a base inabalável para conhecermos o verdadeiro, o bom e o correto é a revelação divina. O cristianismo não é um sistema de vida que opera na base de razão especulativa ou de conveniência pragmática, onde apenas se visa resultados práticos. Afirmamos ousadamente que Deus nos revelou quem Ele é e como espera que nos relacionemos com ele. Deus nos revelou o que lhe agrada e o que Ele nos ordena. A revelação provê uma ajuda sobrenatural para entendermos o bem. Isto é tão elementar e tão óbvio que tem sido frequentemente ignorado e obscurecido, quando buscamos respostas para questões específicas. Deus não nos deu um livro de normas que é tão detalhado em seus preceitos, que todas as decisões éticas são fáceis. Isso seria uma simplificação excessiva da verdade. Deus não nos deu instruções específicas para cada e toda questão ética com que nos deparamos, mas também não somos deixados a tatear na escuridão e a tomar nossas decisões com base em mera opinião. Isto é um conforto importante para o cristão porque nos assegura que, ao lidar com questões éticas, nunca estamos operando num vácuo. As decisões éticas que fazemos afetam a vida das pessoas, moldam e influenciam a personalidade e o caráter humano. É precisamente neste ponto que precisamos da ajuda da extraordinária sabedoria de Deus. Deus não estabeleceu Suas leis de forma arbitrária ou é submisso a uma lei cósmica. Deus baseia Suas leis em seu próprio ser, pois Ele é o padrão de toda nobreza, verdade, bondade e santidade, portanto, se Deus fizesse algo mau, Ele precisaria deixar de ser Deus, pois isso iria contra a natureza de seu ser. Mas neste ponto, encontramos um dilema: a existência do mal. O problema do mal A “objeção” feita com mais frequência contra a existência de Deus é a existência do mal, baseada no paradoxo de Epícuro (314-270 a.C.); à primeira vista, este argumento pode parecer coerente e muito forte, porém ele não se sustenta diante de uma análise criteriosa. Epicuro cita três atributos de Deus: onipotência, onisciência e onibenevolência (bondade infinita) e argumenta o seguinte: • Se Deus é onisciente e onipotente, Ele tem conhecimento de todo o mal e poder para acabar com ele. Mas não o faz. Então não é onibenevolente. • Se é onipotente e onibenevolente, então Ele tem poder para extinguir o mal e quer fazê-lo, pois é bom. Mas não o faz, pois não sabe o quanto mal existe e onde o mal está. Então ele não é onisciente. • E se for onisciente e onibenevolente, então sabe de todo o mal que existe e quer mudá-lo. Mas não o faz, pois não é capaz. Então ele não é onipotente. • Logo, o Deus judaico-cristão não existe.
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A questão não é tão simples, primeiro temos que definir o que é mal e o que é pecado. Mal é a rejeição a Deus e Sua vontade, não é algo dotado de existência própria, mas sim a manifestação da ausência ou rejeição do bem. Pecado não é apenas a quebra dos mandamentos de Deus, como muitos acham, mas é não Lhe render glória e louvores que são devidos, por exclusividade (Rm 1:21). Sendo assim, devemos entender 3 pontos que nos esclarecem sobre o paradoxo levantado: 1. O mal é um parasita, a ausência do bem (Deus), assim como a escuridão é a falta de luz e o frio é a ausência de calor. Baseado em que: todas as coisas que Deus criou são boas; o mal não é bom; portanto, o mal não foi criado por Deus. Deus criou todas as coisas; Deus não criou o mal; portanto, o mal não é uma coisa. Obs.: no verso de Isaías 45:7 “Eu formo a luz, e crio as trevas; eu faço a paz, e crio o mal; eu, o Senhor, faço todas estas coisas” (grifo do autor), não está dizendo que Deus criou uma força oposta ao bem – como os dualistas pensam –, mas está dizendo que Ele cria circunstâncias desfavoráveis; isto é evidenciado na tradução Nova Versão Internacional: “Eu formo a luz e crio as trevas, promovo a paz e causo a desgraça; eu, o Senhor, faço todas essas coisas” (grifo do autor). 2. “Deus, desde toda a eternidade, pelo muito sábio e santo conselho da Sua própria vontade, ordenou livre e inalteravelmente tudo quanto acontece (Ef 1:11; Rm 11:33; Hb 6:17; Rm 9:15,18); porém de modo que nem Deus é o autor do pecado (Tg 1:13,17; 1Jo 1:5), nem violentada é a vontade da criatura, nem é tirada a liberdade ou contingência das causas secundárias, antes estabelecidas (At 2:23; Mt 17:12; At 4:27,28. Jo 19:11; Pv 16:33)”19. Mesmo que Deus (causa primária) tenha ordenado a existência do mal, Satanás, seus anjos, e o homem (causas secundárias) são os agentes que pecaram e corromperam a criação, portanto Deus não pode ser acusado. 3. Deus usa o mal para cumprir seus propósitos e ser glorificado - o mal glorifica a Deus assim como as trevas da noite evidenciam a luz das estrelas; quando vemos o mal no mundo compreendemos como necessitamos desesperadamente de Deus, que é o sumo-bem. Além disso, Deus já determinou o fim de todas as coisas desde o início, porém, nossa visão humana é limitada (espaço-temporal) e não compreende os propósitos de Deus em decretar circunstâncias que aparentemente são 19
Confissão de Fé de Westminster (1647), Cap. III.
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más, mas que tornar-se-ão em bênçãos. Exemplo claro disso é José que foi vendido, como escravo, por seus irmãos, mas que por fim era a mão de Deus o guiando para salvar sua família da fome, o próprio José reconhece isso: “Agora, pois, não vos entristeçais, nem vos pese aos vossos olhos por me haverdes vendido para cá; porque para conservação da vida, Deus me enviou adiante de vós. Porque já houve dois anos de fome no meio da terra, e ainda restam cinco anos em que não haverá lavoura nem sega. Pelo que Deus me enviou adiante de vós, para conservar vossa sucessão na terra, e para guardar-vos em vida e por um grande livramento. Assim não fostes vós que me enviastes para cá, senão Deus, que me tem posto por pai de Faraó, e por senhor de toda a sua casa, e como regente em toda a terra do Egito” (Gênesis 45:5-8, grifo do autor). Não é porque Deus ainda não acabou com o mal que Ele não o fará, aliás, é isso o que Ele nos garante em Apocalipse. Conclusão Se somos aptos a fazer julgamentos éticos e estéticos, é porque Deus nos capacitou para tal. Temos visto uma confusão nas artes e leis éticas devido ao distanciamento de nossa sociedade dos padrões divinos, revelados na Bíblia. Jamais conseguiremos ser plenos sem Deus, pois este é o mundo que Ele criou e que funciona segundo as leis estabelecidas por Ele. Portanto, “sempre seja Deus verdadeiro, e todo o homem mentiroso [...] para que toda a boca esteja fechada e todo o mundo seja condenável diante de Deus.” Romanos 3:4, 19.
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Conclusão – Jesus redime a filosofia A encarnação de Jesus Cristo tem implicações filosóficas tremendas ao inverter uma miríade de dualismos deficientes. Em Jesus, alma e corpo são unidos, estabelecendo a integralidade humana (antropologia). Nele, fé e razão são reconciliadas, fazendo do conhecimento uma veste sem costuras (epistemologia). Ele reuniu céu e terra, reencantando o mundo com a presença e a glória de Deus (metafísica). Ele conectou valores e fatos, gerando uma visão moral integral (ética). Nele, a graça restaura a natureza, fazendo novas todas as coisas (soteriologia e escatologia). Humanidade; conhecimento; metafísica; ética; soteriologia; escatologia. Essas são apenas algumas áreas em que a encarnação fomenta a perspectiva filosófica cristã. De fato, Dietrich Bonhoeffer diz em seu livro Discipulado: Com sua encarnação, Cristo se interpôs entre mim e as circunstâncias do mundo. Já não há volta; ele está no centro de tudo. Rompeu as relações diretas que aquele que foi chamado guardava com essas circunstâncias. Cristo quer ser o Mediador; tudo deve operar por seu intermédio. Ele não está apenas entre mim e Deus, mas também entre mim e o mundo, entre mim e os outros, entre mim e as coisas. Ele é o Mediador, não apenas entre Deus e o ser humano, mas também entre um e outro ser humano, e entre o ser humano e a realidade. Porque todo o mundo foi criado por meio dele e para ele (Jo 1.3; 1Co 8.6; Hb 1.2), ele que é o único Mediador no mundo. Desde Cristo, já não existe relação direta entre o ser humano e Deus, entre o ser humano e o mundo; Cristo quer ser o Mediador.20
“Porque dele e por ele, e para ele, são todas as coisas; glória, pois, a ele eternamente. Amém.” Rm 11:36 Bibliografia Maravilhados pela Beleza – Lucas Roberto Hipnose Reversa – Lucas Roberto O Deus Absoluto – Lucas Roberto Filosofia - um guia para estudantes – David Naugle Discipulado – Dietrich Bonhoeffer Como Devo Viver Neste Mundo? - Série Questões Cruciais Nº 5 – R. C. Sproul
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Dietrich Bonhoeffer. Discipulado, Cap. 5.
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