Operação [Cura] - Marina Salek

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O P E R A Ç Ã O [C U R A]





pontifícia universidade católica de campinas

ORIENTANDA: mARINA SALEK BASSAN

ORIENTADORA: MÔNICA MANSO MORENO

CENTRO DE RESISTÊNCIA AFRO

trabalho final de graduação faculade de arquitetura e urbanismo

campinas - 2017


“lembranca eu tenho da saracura.. ”


Para a minha força e por minha luta. Para meu espelho e por meu longo caminho a alcançá-lo. Para a minha clareza e grande parte do meu amor.



AGRADECIMENTOS “Quem caminha sozinho pode até chegar mais rápido, mas aquele que vai acompanhado, com certeza vai mais longe”.

Clarisse Lispector

Posso dizer que nessa jornada de seis anos enfrentei diversos momentos mais difíceis da minha vida. O empenho é diário, o trabalho é árduo, as inseguranças e incertezas estão sempre presentes e as barreiras se montam umas atrás das outras. Mas também posso dizer que ri as minhas melhores risadas, acumulei boas histórias pra contar, derramei as mais emocionadas lágrimas, vivi os momentos mais intensos, fiz amizades sinceras, aprendi as lições mais valiosas, me deparei com lugares incríveis, enxerguei o mundo com olhares novos, acessei partes do meu ser que ainda não conhecia, conheci a pessoa que eu gostaria de me tornar e cresci, Ah! Como cresci. Sozinha não seria capaz de construir nada do que construí até então, pois sozinho não se ri, não se conta histórias, não se emociona, não se aprende, não se evolui e, principalmente, não se tem de onde buscar a força necessária para continuar. Carregarei comigo eternamente as lembranças e aprendizados, sempre muito grata por todos aqueles que cruzaram meu caminho e contribuíram de alguma forma na formação de quem eu sou hoje e nos reflexos de quem eu serei amanhã. Agradeço ao meu grupo, por batalhar comigo, compartilhar cada gota de suor e toda a energia aqui disposta, por dividir todos esses momentos difíceis e felizes e criar uma ambiência e energia de trabalho maravilhosa, de respeito e ajuda mútua. Agradeço também por todos os presentes e ensinamentos que cada um me trouxe. Fernanda que ensinou o que é destreza, sempre muito correta e assertiva. Francielle que nos incentivou com sua coragem, conseguindo vencer seus medos e inseguranças. Giovanni que nos mostrou superação, em meio às dificuldades e contratempos. Giuliana que nos acolheu com a sua delicadeza, oferecendo sempre empatia e generosidade aos colegas de grupo. Letícia que sempre manteve nossa consistência com sua clareza, trazendo leveza para os momentos difíceis. Marina que nos mostrou o que é ser fiel a si mesmo com sua

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firmeza. Thaissa que nos inspirou com sua paixão incansável e inquestionável. Agradeço também à nossa orientadora Mônica, que me ensinou a acreditar em mim e no meu trabalho e a persistir, extraindo de mim o meu melhor, me compreendendo, respeitando minhas limitações e me dando as ferramentas necessárias para construir e defender o que eu acredito. Mas, sobretudo, agradeço pela complicidade e amizade que encontrei em cada um de vocês, que no início eram apenas um grupo de pessoas que eu mal conhecia e que agora são uma parte da minha história que eu gosto de contar. Agradeço também aos amigos que fiz na faculdade, que cresceram e dividiram comigo todas essas experiências. Obrigada por me mostrarem o que é a amizade, por tornarem meu caminho mais leve, por estarem sempre ao meu lado, por me incentivarem e por permitirem que eu estivesse ao seu lado também, confiando em mim e na minha amizade. Agradeço especialmente às minhas meninas que estiveram comigo, algumas desde o início e outras que conheci pelo caminho, e que me trouxeram tanto companheirismo e alegria. A todos os professores que passaram pelo meu caminho, por me acrescentarem tanto e me tornarem capaz, me ensinando o caminho para atingir meus objetivos. Finalmente, agradeço a minha família que é o meu pilar de sustentação, a eles dedico todo meu amor e esforço. Aos meus primos que se tornaram irmãos, a todo o apoio mútuo diante de tempos difíceis. Aos meus tios por acreditarem em mim e me incentivarem. À minha avó que me ensinou a sensibilidade, generosidade, delicadeza e força, que teve papel fundamental na formação do meu caráter. À Cláudia por me mostrar que posso ir além e seguir os caminhos que quero. Ao meu pai, meu herói, exemplo de superação, ética e paixão, por acreditar em mim e me ensinar a confiança e segurança, por tornar possível tudo que construí e à minha mãe, minha parceira, melhor amiga e inspiração, que me abriu os olhos para o mundo, me ensinou a ser forte, a lutar, acreditar e a dar valor às coisas que realmente importam.


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índice 1.BIXIGA: UMA HISTÓRIA AFRO-ÍTALO-BRASILEIRA

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2.TRAÇOS DA CULTURA AFRO-BRASILEIRA

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2.1.ELEMENTOS CULTURAIS IDENTIFICADOS NO BAIRRO

2.1.1.Vai-Vai 2.1.2.Instituto Afro-Religioso Ilê Asè Iyá Òsún

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2.2.REFERÊNCIAS CULTURAIS GERAIS

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2.2.1.Espaço do Coletivo 2.2.2.Formas de Expressão 2.2.3.Ofícios e Modos de Fazer

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3.CENTRO DE RESISTÊNCIA AFRO

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3.1.RESGATE DO ESPAÇO RESIDUAL

3.2.VIELAS

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3.2.1.Viela ativa

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3.3.RECONFIGURAÇÃO DA QUADRA

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3.4.O PROJETO

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4.CONCLUSÃO

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5.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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1.BIXIGA: UMA HISTÓRIA AFRO-ÍTALO-BRASILEIRA 14


Quilombo: substantivo masculino 1. hist B local escondido, ger. no mato, onde se abrigavam escravos fugidos. 2. hist B povoação fortificada de negros fugidos do cativeiro, dotada de divisões e organização interna (onde tb. se açoitavam índios e eventualmente brancos socialmente desprivilegiados). vale do saracura em 1926. fonte: rua rocha wordpress

ABERTURA DA AVENIDA 9 DE JULHO E CANALIZAÇÃO DO CÓRREGO SAACURA. FONTE: SAMPA HISTÓRICA

Origem ⊙ ETIM quimb. kilombo ‘união; cabana, acampamento, arraial’ Considerando a definição histórica e o senso comum, os Quilombos eram comunidades formadas por escravos fugidos ou libertos que se aglomeravam em locais afastados da cidade como forma de proteção. Pode-se então entender essa comunidade como sendo um território marcado pela resistência, luta e resiliência, uma vez que se originaram da luta e da persistência, quando escravos que conseguiam fugir de seus senhores e acabavam se escondendo no mato e, juntamente com outros escravos na mesma situação, começaram a reconstruir sua identidade e cultura, preservando sua arte, música, danças, culinária, modos de fazer e até mesmo criando tradições novas condizentes com suas condições na época. Com o processo de abolição, muitos dos escravos libertos acabavam se juntando a esses povos por encontrarem barreiras para a sua permanência na cidade. Não tinham dinheiro para morar, não tinham conhecimento de como trabalhar, naquela época era inadmissível que um antigo senhor de engenho remunerasse um negro por algo que ele antes faria sem custos, tinham que lidar com a europeização e o branqueamento das cidades com a vinda dos imigrantes e com os diversos tipos de preconceitos e violência contra sua etnia. 2


Foi desse mesmo processo que se iniciou a história do Bixiga, com o Quilombo Saracura. Sua formação se deu no final do século XIX, às margens do, hoje canalizado sob a avenida 9 de julho, Córrego Saracura. Na localidade da atual Praça da Bandeira, se encontrava o antigo Largo do Piques que no século XIX era um grande e movimentado centro comercial, cruzamento de diversas vias de tropeiros. Nesse mesmo local, ocorria semanalmente o leilão de escravos, o que gera uma contradição em sua memória por ser lembrado como peça chave para o progresso da cidade e ao mesmo tempo carregar uma história tão triste por trás disso. Em meio a essa confusão e movimento, muitos escravos viam a oportunidade perfeita para fugir durante esses leilões. Os arredores dessa área próxima ao córrego Saracura eram matagais, o que facilitava a fuga dos negros e seu esconderijo. Às margens do Saracura, próximo ao Largo do Piques, existia o Tanque Reúno, que se tratava de um alargamento do córrego, formando uma espécie de lagoa, o que favorecia a permanência dos escravos fugidos nessa localidade pela proximidade com a água que facilitava a realização das tarefas do dia a dia e, mais tarde, onde as lavadeiras se concentrariam - dando início a uma das atividades mais características dos negros do Bixiga. Assim, por volta de 1870, começaram a habitar as matas do Saracura os africanos e seus descendentes antes mesmo do loteamento dos Campos do Bixiga e da chegada dos imigrantes italianos, o que comprova que os primeiros habitantes e fundadores do bairro foram os escravos foragidos . Depois da abolição da escravidão, diante das dificuldades enfrentadas pelos ex escravos e seus descendentes que não conseguiam emprego assalariado na região das lavouras de café do interior paulista, os negros se viram obrigados a procurar emprego nos centros urbanos na cidade de São Paulo, esses grupos aproveitaram a proximidade do centro e a pré-existência de um núcleo negro para fixar moradia no Bixiga. Juntamente dessa massa que migrava do interior, negros de outras regiões da cidade também vinham para a área do Bixiga devido às medidas higienistas que a administração pública passou a adotar a partir da década de 70 do século XIX com intuito de redefinir o espaço urbano aos moldes das grandes cidades europeias. Paralelamente, passaram a ser implantados novos bairros de elite, como o precursor exemplo do bairro Campos Elíseos, destinado aos barões do café. A partir disso o bairro passou a se consolidar como um importante núcleo negro, oriundo da exclusão geográfica, racial do trabalho e gentrificação. Para dar lugar a essas medidas higienistas e à tentativa de reproduzir os modelos das cidades européias em São Paulo, diversos símbolos da cultura negra foram apagados da cidade. Demolida em 1904 para dar lugar à ampliação da Praça Antônio Prado, antigo Largo do Rosário, a Igreja do Rosário dos Homens Pretos, que nasceu de uma mobilização para comprar cartas de alforria de escravos e era palco de manifestações da cultura afro-brasileira como congadas, moçambiques, batuques e concentração de figuras como quituteiras e ambulantes. Toda essa riqueza cultural é apagada juntamente com a igreja. Outro exemplo de varrição cultural foram as obras na Várzea do Carmo, local onde lavadeiras, muitas delas mulheres negras, se concentravam para lavar roupas nas cheias no rio como forma de sustento. Também na Várzea do Carmo ocorria o Mercado Caipira, uma espécie de feira livre onde ocorria a comercialização de diversos produtos. Nesses mercados encontrava-se figuras como os curandeiros, benzedeiros e “pretos véios”, sujeitos descendentes de negros que dominavam os saberes culturais e ancestrais da cura 316


HISTÓRICO mAPA HISTÓRICO. fONTE: ELABORAÇÃO PRÓPRIA

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na tradição afro. A transformação da Várzea do Carmo num parque municipal também apagou esses traços culturais. Diante desse desalojamento forçado dos negros de São Paulo, uma grande parcela dessa população se deslocou para o Bixiga, aproveitando a proximidade com as áreas mais ricas da cidade onde teriam empregos em casas de senhores, barões e imigrantes enriquecidos e onde os negros tentavam estabelecer conexões com a vida em sociedade e o já formado núcleo negro do Quilombo Saracura. Com a abolição da escravatura, a elite brasileira queria mudançaseconômicas, mas, ao mesmo tempo, preocupavase em manter a velha estrutura de poder. Desse modo, não foram tomadas medidas para garantir a inserção, proteção e sobrevivência dos negros. Houve, portanto, a exclusão racial do trabalho, restando a essa população os trabalhos mais penosos e mal remunerados. As oportunidades foram monopolizadas pelas antigas camadas dominantes e pelos imigrantes europeus. A Complacência com teorias racistas impulsionaram o governo a patrocinar a vinda em larga escala de imigrantes para substituir a mão de obra dos escravizados e recém “libertos” nas lavouras e, posteriormente, nas indústrias e para iniciar o “branqueamento” da população, visando a europeização da cidade. Assim, com essa massa de europeus chegando e o impulso da modernização e urbanização, as chácaras do Bixiga começaram a ser loteadas e passaram a atrair os imigrantes devido aos seus baixos preços, em razâo de ser uma área de alagamentos, topografia acidentada e não favorável. A grande maioria dos imigrantes que se instalaram no Bixiga era de Italianos vindos da Calábria, região mais pobre da Itália. Muitos deles vieram de lavouras de café tentar uma oportunidade melhor nas cidades como artesãos ou trabalhando como operários na primeira fase da industrialização paulista. 5

aNTIGA IGREJA DO ROSÁRIO DOS HOMENS PRETOS. FONTE: http://www. saopauloantiga.com.br

VÁRZEA DO CARMO SÉC. XIX. FONTE: http://lemad.fflch.usp.br


Com o constante crescimento da população e a chegada de imigrantes Calabreses que se alojaram no Bixiga, foram nascendo novos núcleos dentro dessa comunidade, onde as mesmas minorias se uniam e se apoiavam. No contexto do Bixiga, os negros que habitavam as margens do córrego Saracura se encarregavam das tarefas mais árduas trabalhando em lixões e construções, outros acabaram por ser obrigados a trabalhar para os imigrantes italianos em condições precárias já que não conseguiam empregos na cidade por conta da exclusão racial trabalhista, aproveitando que esses dois grupos habitavam o mesmo local. A parte do vale do Bixiga era território exclusivamente negro, o que foi chamado posteriormente de Quadrilátero do Saracura. Isso se dava devido ao menor valor dessas terras em decorrência dos alagamentos constantes. Já os italianos ficavam com as partes mais elevadas. Com o passar dos anos e o crescimento populacional do Bixiga, essas delimitações entre áreas de negros e de imigrantes deixaram de existir e esses dois grupos passaram a coexistir no bairro. Essa convivência diária significou mudanças nos aspectos culturais dos dois grupos, que acabaram criando uma cultura afro-ítalo-brasileira. Relatos contam que os negros do Bixiga tinham um sotaque diferente, um falar “italianado” e até uma maneira de gesticular diferente. Isso acabou se tornando marca registrada dos negros do Bixiga. A gastronomia também foi adaptada para os dois grupos. A alimentação do dia-a-dia passou a conter feijão e macarrão como pratos obrigatórios para os dois. Os italianos também tiveram um papel importante na transição do regime escravocrata para o trabalho assalariado, ensinando os negros alguns ofícios como os de marceneiros, carpinteiros, artesãos, cozinheiros, padeiros e pedreiros como fonte de renda alternativa.

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QUADRILÁTERO DO SARACURA. FONTE: ELABORAÇÃO PRÓRPIA

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JORNAL O CLARIM D’ALVORADA. fonte: https://www.ceert.org.br/

Além dos ofícios, os imigrantes traziam em sua bagagem também a forte noção de organização política e sindical, o que foi um fator importantíssimo, responsável pela rápida ascensão deles no mercado de trabalho e também social. Os negros, que eram recém libertos e ainda não tinham consciência de seus direitos e das possibilidades de mudança de suas condições, puderam então aprender a se organizar com os italianos. O Fanfula era um jornal da comunidade Italiana que discutia assuntos de interesse dos imigrantes do Bixiga. Seguindo esse exemplo, os negros criaram uma publicação diária, o que viria a se tornar o importante jornal coletivo O Clarim d’Alvorada. Este passou a ser uma ferramenta importante de conscientização política, social e cultural no meio negro, unificado um povo e o ensinando a lutar e se expressar. No início, o jornal trazia forte carga literária com muitas poesias e sem conotação política, foi durante sua segunda fase, de 1928 a 1932, que O Clarim d’Alvorada conquistou prestígio entre os negros letrados, os textos passaram a ser politizados, denunciando o racismo fundante da sociedade brasileira, reivindicando direitos e defendendo incansavelmente a união necessária da gente preta. Pela definição tanto histórica quanto informal, o Quilombo é aqui retratado e entendido como espaço de resistência, luta e força, onde uma minoria se aglomera e aumenta assim seu poder. Pensando dessa maneira, podese identificar a presença de diversos pontos espalhados pelas cidades contemporâneas onde existe a ocorrência de “Quilombos Contemporâneos”. No bairro do Bixiga, a grande concentração de cortiços, vilas, ocupações e acampamentos de nômades contemporâneos podem ser relacionadas à esse estilo de comunidade.

JORNAL O CLARIM D’ALVORADA. fonte: https://www.ceert.org.br/

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Se o quilombo de antigamente era o espaço onde os negros fugidos se reuniam por defesa e segurança, os viadutos do Bixiga são os quilombos de hoje. Essa partícula invisível formada por aqueles que a sociedade ignora e trata como resíduo indesejado, ganha densidade ao se concentrar nesses espaços urbanos como forma de defesa, busca pela sobrevivência e identidade com a cidade. Aprendem assim a viver em comunidade nos acampamentos, onde constroem um lar e apoiam uns aos outros durante o enfrentamento do morar na rua. Da mesma forma que nas ocupações o mesmo grupo de excluídos passa a ser uma comunidade acolhedora, que tem senso de coletividade e luta para manter seu teto funcional para todos que o habitam, se organizando para trazer a infraestrutura, aconchego e funcionalidades de um lar para um espaço insalubre e abandonado. É nesse sentido que se fundamenta a essência da linguagem defendida e apoiada pela Operação Cura e pelo Centro de Resistência Afro. O fato de um grupo ser capaz de se organizar em um espaço residual e viabilizar sua própria existência nele gera a validação do seu ato. Toda forma de morar e de ocupação é válida e reconhecida como de direito, assim definindo o morar transitório como uma etapa importante, necessária e válida do processo de reinserção a sociedade. Se os negros fazem parte da construção do Bixiga, sendo os primeiros habitantes do bairro, por que então hoje em dia só se associa o Bixiga aos italianos? A questão racial, que desde o início do regime escravocrata vêm excluindo, inferiorizando e apagando os negros da memória da cidade, teve como uma de suas consequências uma arma que é fundamental para a construção dos modelos de cidades atuais, a gentrificação. Com o crescimento horizontal constante, as periferias deixam de ser periferias e encontram a cidade e a infraestrutura privilegiada, o que faz com que virem uma área de interesse do mercado imobiliário. Mas se a área de interesse já está ocupada pela camada mais baixa da sociedade, que só a ocupava pois não tinha condições de se situar em áreas mais próximas aos centros urbanos, o que resta fazer é “varrer a sujeira para debaixo do tapete” e remover a parcela indesejada, empobrecida, desfavorecida e desprivilegiada. Foi isso que aconteceu com os negros do Bixiga. Os italianos politizados e organizados foram aos poucos ascendendo socialmente e o Bixiga foi mudando sua configuração até o momento em que os negros não eram mais bem-vindos. A área enriqueceu e encareceu e foi tomada completamente pelos comércios dos italianos, que a partir daí passaram a criar uma nova identidade e uma nova memória do bairro, enquanto seus habitantes primitivos foram jogados para outros cantos da cidade, para dar início a outras histórias de luta, de resistência e de resiliência.

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MAPEAMENTO QUILOMBOS URBANOS. FONTE: ELABORAÇÃO PRÓPRIA

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2. TRAÇOS DA CULTURA AFRO-BRASILEIRA 24


2.1. ELEMENTOS CULTURAIS IDENTIFICADOS NO BAIRRO

2.1.1. VAI-VAI

A História da Vai-Vai começa em 1928, com o time de futebol e grupo carnavalesco do Bixiga, o Cai-Cai, após alguns membros serem expulsos por mau comportamento e acabarem criando o Vae-Vae como forma de provocação. A relação da escola com o bairro ocorre durante o ano inteiro, não apenas nos preparativos do carnaval. Durante toda a semana existem cafés comunitários, distribuição de alimentos, oferecimento de serviços como fisioterapia, exames médicos, serviços comunitários a presidiários, aulas de percussão e dança, entre outros, tudo aberto para a população carente do bairro, o que de certa forma resgata alguns traços da cultura afro nas camadas sociais mais baixas, oriundas daqueles negros que fundaram o Bixiga e acabaram nas ruas.

ensaio ABERTO vai vai . fonte: veja

Há também festas organizadas por diferentes alas, como a Festa da Velha-Guarda, da Bateria, das Baianas e a Festa do Chopp. As reuniões na sede também são uma constante durante os dias de semana. Paralelamente aos desfiles oficiais, aos sábados, há a tradicional feijoada acompanhada de shows ao vivo. A partir do segundo semestre começam as eliminatórias do samba-enredo que ocupam espaço na rua. Após uma ordem de despejo em um salão na Rua 14 de Julho, os sambistas ocuparam o terreno da Rua São Vicente onde construíram a atual sede da escola com as próprias mãos, na região brejeira do Saracura.

variação de perímetro 12


O Ilê Asè Iyá Òsún é um centro de manifestações folclóricas e religiosas da cultura afro brasileira localizado na rua Marquês Leão, na região do córrego Saracura. Ele foi fundado em fevereiro de 1980 pelo presidente Babalorisá Francisco de Òsún, recémchegado da Bahia, de onde trouxe toda a sua bagagem, experiência e inserção no candomblé. Depois de transitar entre alguns bairros de São Paulo, Viu-se conquistado pela região do Bela Vista e abriu sua casa para Òsún, seu òrìsà de regência, que influencia traços de sua personalidade segundo o candomblé. O portão de acesso ao Ilê também dá acesso à outras cinco casas independentes, característica muito comum no Bixiga do passado e que se entende até os dias de hoje, por conta disso, a convivência harmoniosa e a privacidade acabam por ser um desafio. No portão comunitário, a indicação da existência de um espaço afro religioso se dá pela presença do màrìwò, em português mariô, pendurado, que são as folhas do dendezeiro. O mariô está em todas as aberturas e tem a função de proteger o ambiente. 13

2.1.2. Instituto Afro-Religioso Ilê Asè Iyá ÒsÚn

cENTRO AFRO RELIGIOSO ILÊ ASÈ IYÁ ÒSÚN. FONTE: facebook do centro


Aqueles que visitam a casa de Òsún pela primeira vez são orientados a tirar os sapatos antes de entrar, pois, com exceção dos dias de festa, os sapatos devem ficar do lado de fora, em respeito aos òrìsàs que habitam a casa. Além disso, há grande preocupação com a limpeza do terreiro, pois a sujeira da rua pode trazer “contraaxé” para dentro do terreiro. O contraaxé, significa o conjunto de proibições acerca de alimentos, lugares, cores, etc., relacionado ao òrìsà e ao mundo do candomblé.

cENTRO AFRO RELIGIOSO ILÊ ASÈ IYÁ ÒSÚN. FONTE: lARISSA DOS SANTOS

O calendário de festas no Ilê Asè Iyá Osun começa geralmente no mês de maio, com a Festa do Cacique Pena Branca. Em junho, há a Feijoada de Ògún; em julho, há o Amalá de Sángó; em agosto, ocorre o Olubajé; setembro, o Ipeté de Òsún e em dezembro, ocorre o Acarajé de Oyá (Iansan). As celebrações ocorrem aos domingos, começando por volta das 17h e podem seguir até 02h da madrugada. Como os nomes sugerem, em cada festa há uma comida ritual específica para o òrìsà homenageado. Os preparativos começam dias antes, e envolvem desde a decoração da cumeeira, a troca dos màrìwò, a limpeza física do ilê, até a limpeza espiritual em ritual.

cENTRO AFRO RELIGIOSO ILÊ ASÈ IYÁ ÒSÚN. FONTE: lARISSA DOS SANTOS

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2.2. REFERÊNCIAS CULTURAIS GERAIS O espaço da coletividade se mostra como um item organizacional fundamental dentro do território quilombola. Muitas vezes em forma de Centro Comunitário, é onde os aquilombados se reúnem em prol da comunidade. Muitas vezes construído pelos próprios moradores, criando assim identidade e sensação de pertencimento, esses espaços servem como palco das celebrações, elementos também fundamentais nesse contexto; sediam reuniões com pautas de interesse à comunidade, onde os moradores aprendem e entendem a importância da unificação e organização para lutas e reivindicações. São também espaços educativos, onde ocorrem oficinas profissionalizantes que ensinam fontes de renda alternativas para os moradores, debates, onde se aprende sobre a riqueza de sua cultura e importância da comunidade, brincadeiras e aulas para que crianças e jovens desde cedo vivenciem e mantenham vivos os elementos julgados de maior importância na cultura dentro do contexto da comunidade em questão; mas, sobretudo são espaços de convívio, onde se pode trocar experiências e conhecer as pessoas que estão ao seu redor.

2.2.1. Espaço do Coletivo

centro comunitario quilombo engenho novo mundo, Brejo paraibano. fonte: brejo.com

construcao centro comunitário quilombo rio dos macacos. fonte:blog bahia na rede

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2.2.2. Formas de Expressão

Dança Afro no Quilombo Caonge - Iguape - Recôncavo Baiano. Foto: Rita Barreto

As celebrações eram palco para a ocorrência de atividades muito comuns à cultura afrobrasileira, e acabavam reunindo diversas dessas atividades em um único local e momento. Os Bailes, também conhecidos como faxineira, forró ou fandango, estavam presentes em todos os quilombos. Eram festas com muita música, dança e comida. As ocasiões e motivos para os bailes podiam ser celebrações de colheitas proveitosas, abertura de caminhos para novas edificações, casamentos, aniversários ou até mesmo os chamados Bailes à Toa, somente em razão do divertimento. Outro traço cultural importante é a dança por si só. As danças ocorrem em situações especiais da vida social, são descontraídas e alegres. A principal ocasião para a realização destas danças são os mutirões para cumprimento de tarefas agrícolas. Com a redução desses mutirões, foram caindo no esquecimento a maior parte destas danças. Com exceção do fandango, cujos passos apresentam um grau de dificuldade maior, as danças são também formas de brincar, às quais os quilombolas se entregavam com espontaneidade, livres de maiores preocupações técnicas. Os bailes de hoje têm perdido a variedade de passos dos bailes de antigamente. Dançase principalmente forró, geralmente com música mais mecânica ou música ao vivo, feita geralmente por um só músico com seu teclado: enquanto toca e canta, a percussão eletrônica é previamente programada no teclado.

corda de roda no Novo Quilombo. fonte: historiadealagoas.com.br

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A capoeira, carregada de história e simbolismo relacionados à resistência cultural dos escravos negros no Brasil que a utilizavam como forma de defesa, principalmente quando escondidos dentro dos primeiros quilombos, trata-se de uma expressão cultural afro-brasileira que envolve movimentações corporais dois-a-dois dentro de uma roda, com acompanhamento musical de percussão e canto. Ela se insere nas comunidades como elemento formador da identidade quilombola, inicialmente sendo ensinada por professores de fora para as crianças e jovens da comunidade. A sustentabilidade da prática é complicada pois requer muitas horas de treino e prática para passar o saber adiante e formar outros multiplicadores da arte, e os recursos são geralmente escassos para tal.

RODA DE CAPOEIRA NO QUILOMBO GROTÃO. FONTE: TRIPADVISOR

A literatura oral também se mostrou sempre presente nas comunidades quilombolas e se apresenta como importante traço de resgate cultural afro-brasileiro. O costume de contar histórias permite a interação entre diferentes grupos etários e a transmissão de saberes e valores ancestrais acumulados, além de incentivar a educação e alfabetização dentro dos quilombos. As histórias são responsáveis por estabelecer as regras de conduta e convivência social dentro da comunidade, assumindo um tom lúdico e educativo, atuante na formação moral do quilombola. 17

CONTADOR DE HISTÓRIAS NO QUILOMBO SERRINHA DOS COCOS. FONTE: AGENCIA ALAGOAS


2.2.3. Ofícios e Modo de Fazer

peão de babaçu no quilombo entre rios. fonte: instituto tear

Além das questões pontuais culturais como celebrações e atividades educacionais, também existiam os traços enraizados e presentes no diaa-dia da organização quilombola. As atividades lúdicas praticadas por jovens e crianças desde cedo refletem e mimetizam o comportamento dos adultos, brincando de construir casas ou caçar animais ou mesmo vivenciando as atividades dos adultos como as colheitas. Também era comum que fizessem seus brinquedos com objetos encontrados pelo território como gravetos, pedras, penas, cordas, etc. As brincadeiras então funcionam como um molde cultural nos padrões de sua comunidade. Nas brincadeiras de boneca, as crianças reproduzem os laços de parentesco. Os estilingues e espingardas de bambu remetem à atividade de caça. As construções com gravetos exercitam o conhecimento que depois servirá para construção das casas de pau-a-pique quando adultos. Outra sabedoria ancestral importante da cultura afro-brasileira é o modo de curar, que envolve processos de cura e benzimento. Dentro de cada comunidade haviam especialistas que dominavam essas artes de cura ou de desfazer simpatias. Essas figuras podem ser curandeiros ou benzedeiros, feiticeiros ou raizeiros, todos tendo funções diferentes, porém sempre associadas com o conhecimento de plantas medicinais e técnicas de cura. Os benzedeiros ou curandeiros são os que manipulam as plantas medicinais e podem também utilizar de técnicas mágico-religiosas no processo da cura.

benzedeira no quilombo mumbaça. Fonte: agencia alagoas

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3. CENTRO DE RESISTÊNCIA AFRO 32


A história do Bixiga é uma ramificação da história dos negros do Brasil, seu início e sua formação estão diretamente relacionados com o período final da escravidão em São Paulo. Pensando no papel indispensável que os escravos tiveram na formação do bairro, é fato que a memória negra perdida deve ser recuperada. Pensando nisso, viuse a necessidade de trazer um projeto que entendesse a importância dessa memória e que a resgatasse, tornando-a parte do cenário atual do Bixiga, compreendendo-o como bairro Afro-Italo-Nordestino.

ESQUEMA DE CIRCULAÇÃO DO PEDESTRE. FONTE: ELABORAÇÃO PRÓPRIA

O Centro de Resistência Afro é um equipamento que tem como responsabilidade social resgatar a memória africana apagada do bairro e disseminar sua cultura no contexto atual. Através de um programa de oficinas e áreas de exposição como galerias e lojas, a proposta seria atrair usuários da cidade, desde o que está apenas de passagem até o que vem de outras regiões, para que aprenda, consuma e entenda a cultura dos negros no Brasil que atribui ao bairro maior pluralidade cultural. Criar uma nova identidade do bairro e atribuir a ele novos nexos é um processo lento e que deve ser feito de maneira gradual, por isso, o desenho do projeto é feito de modo a convidar o pedestre usuário da cidade a adentrá-lo, sem se dar conta de que não está mais na rua e sim em um percurso que o remete a um espaço de interação com a cultura negra. Para isso é derivada da Operação Cura a estratégia de fruição, onde existe a possibilidade de romper quadras mais extensas com vias destinadas ao pedestre, como pode-se observar na imagem, Não existe uma demarcação de onde termina a calçada e onde começa o edifício, ou mesmo não existe uma clareza do que seria o lote original, favorecendo o aproveitamento de um miolo de quadra e uma extensão do passeio público para dentro dele. 20


Outra responsabilidade que o projeto tem é da educação de seus usuários. Atribuir ao Bixiga a memória negra é fazer com que a cultura negra esteja viva dentro dele, afirmando, reconhecendo e legitimando sua existência e dando o devido valor à sua importância. O programa do edifício é quem dá conta dessa educação dos usuários que transitam por lá e para isso ele é dividido em dois grupos: o Produtivo e o Expositivo. O programa Produtivo é o que gera o conhecimento e o Expositivo é o responsável pela disseminação desse conhecimento gerado. Dentro da parte produtiva existem as oficinas de luta, tecelagem e estamparia, cerâmica, dança e música, todos elementos simbólicos e de grande importância na cultura africana. Já a parte expositiva dá conta de disseminar essa cultura ensinada nas oficinas através de um auditório, um cinema livre, uma área de exposição coberta, palco aberto, feira livre, eixos de galerias interativas e loja. Dessa forma, todos os usuários da cidade que passarem pelo Centro de Resistência Afro terão contato com essa cultura e levarão algum aprendizado e consciência em relação à ela. programa do centro de resistência afro. fonte: elaboração própria

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3.1. RESGATE DO ESPAÇO RESIDUAL

implantação da quadra antes. fonte: elaboração própria

Cidade, bairro, quadra e lote, essas são elementos estruturadores presentes num projeto urbano. Aqui o lote tem uma delimitação mais abstrata, sendo uma costura de resíduos. Voltando à dimensão da Operação Cura, o resíduo era um dos conceitos base do projeto, sendo apresentado em diferentes contextos. O Resíduo de interesse nesse caso é o do espaço urbano subutilizado, que foi a alternativa encontrada para trabalhar com uma área tão consolidada no centro de São Paulo. Esses resíduos são entendidos como espaços inativos dentro da cidade, com potenciais de transformação do território urbano, que são atualmente ocupados de uma maneira que não favorece o coletivo e não contribui para a formação de um espaço urbano múltiplo que é o Bixiga. No caso do Centro de Resistência Afro, o terreno do projeto se originou de um estacionamento no meio da quadra, um espaço estagnado, que só era utilizado durante o dia e não cumpria sua função social, servindo de apoio somente ao transporte privado, que contribui ainda mais para o problema do trânsito congestionado na capital.

implantação da quadra PROPOSTA. fonte: elaboração própria

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3.2. VIELAS Aproveitando o eixo que o estacionamento privado já havia criado na quadra, atravessando-a transversalmente, outra estratégia derivada da Operação Cura foi a criação de eixos de fruição nas longas quadras características do bairro. Já era muito presente na paisagem do Bixiga a ocorrência de vielas, mas atualmente a maioria delas acabou por ser privatizada tanto por estacionamentos quanto por vilas residenciais. Foi então criada uma via peatonal, que funciona como uma ramificação da calçada já existente, cortando ao meio a longa quadra. A estratégia funciona bem porque concilia duas lógicas de aproveitamento e uso de espaço público, a do parcelamento do solo e a do deslocamento do pedestre. Do ponto de vista de aproveitamento do espaço público e distribuição de quadras, o desenho de uma quadra mais extensa acaba sendo mais favorável do que o desenho de quadra contida. Uma quadra reduzida implica em maior área destinada ao sistema viário, o que têm como consequência maiores gastos com infraestrutura e menor área destinada a lotes. Agora pensando nos sistemas de deslocamento numa área urbana, o pedestre se apresenta como o objeto mais frágil e de circulação mais dificultada se levar em consideração a velocidade, a distância e os obstáculos que precisam ser enfrentados durante os percursos. Avaliando esses dois elementos presentes no cenário urbano, entende-se que há um conflito de interesses nesse parcelamento do solo, mesmo que ao final de tudo, o objeto de interesse seja o indivíduo sempre, já que é para ele, individualmente ou coletivamente, que a cidade é feita. 23

fluxos de circulação. fonte: elaboração própria


A abertura de vias peatonais é uma solução que enfrenta esse conflito de interesses oferecendo uma solução viável para os dois elementos em questão. Os automóveis que têm a vantagem de circularem mais facilmente pela cidade e podem fazer caminhos mais longos, tortuosos e difíceis, continuam seguindo a lógica do sistema viário já existente na cidade, e os pedestres, além do passeio público já existente, têm a opção de cortar as quadras alongadas por meio das vias peatonais abertas. Isso também favorece o aproveitamento do solo urbano e mesmo o mercado imobiliário pois a porcentagem de área da quadra utilizada para a abertura dessas vias é muito reduzida, principalmente em comparação com a que seria utilizada para abertura de vias de automóveis. Essa é uma característica do projeto que tem um caráter mais genérico, isto é, pode ser aplicada em qualquer tecido urbano, funcionando como uma nova lógica de parcelamento de solos em áreas urbanas ou até em cidades, trazendo maior comodidade aos seus usuários e mudando as relações de cidadão x cidade.

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3.2.1. Viela ativa

viela1 substantivo feminino 1. via ou rua estreita; travessa, beco. “viver numa v. pobre” 2. fig. condição de quem se prostitui, decai. “mulher de v.” Origem ⊙ ETIM via + -ela O termo viela ganhou um cunho pejorativo por muitas vezes tratar-se de um espaço destinado à passagem, estreito e longilíneo, trancado entre duas construções, formando um corredor extenso e que causa desconforto e sensação de insegurança para quem passa por ele. Associado com a escória da cidade, as vielas acabaram deixando de desempenhar o seu papel importante nos tecidos urbanos, que é o de auxiliar e facilitar a fruição peatonal. Pensando nisso, fica o questionamento de como seria possível trazer de volta esse dispositivo espacial tão importante ao cenário urbano sem trazer essa associação pejorativa, para que ele possa ser realmente usufruído e desempenhar sua função com eficiência? A ideia de uma viela como passagem apenas, servindo como um corredor e criando mais um espaço truncado, realmente não contribui para um desenho urbano de qualidade. O espaço de passagem não necessariamente precisa atender exclusivamente à função de transitar, podendo servir a outros propósitos e desempenhar funções sociais. Seguindo a lógica do parcelamento do solo, onde a ideia é que a viela seja uma extensão do passeio público, deve-se atentar ao movimento que existe nas calçadas. As calçadas são um território de passagem, de comércio, de lazer, de vivência da cidade e de experimentação do espaço público. Os recursos presentes no passeio público como as fachadas ativas, vendedores ambulantes, bancas de jornal, comércios, pedestres e feiras livres fazem parte dessa experimentação da cidade e tornam as calçadas algo que vai muito além de um eixo apenas de passagem. Elas são um território plural, palco de todos os tipos de manifestações livres, logo, a viela deve internalizar e se apropriar de todos esses elementos que trazem vida às calçadas. 25


Pensando nisso, o eixo de fruição proposto, que corta transversalmente a quadra onde se localiza o Centro de Resistência Afro, foi desenhado de modo a permitir que diversas atividades aconteçam dentro dele, interferindo no “transitar” dos pedestres, porém sem atrapalhar o trajeto. Essas atividades que acompanham o eixo, além de marcar o trajeto e conferir um caráter ativo à viela, também servem como um convite para que o pedestre entre dentro da quadra e vivencie o projeto, contribuindo com o propósito da disseminação da cultura afro-brasileira. Estratégias como feiras-livres, espelhos d’água, jardins, murais interativos e painéis expositivos trazem esse uso variado, rico e plural da rua para a viela do Centro de Resistência Afro.

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3.3. RECONFIGURAÇÃO DA QUADRA Ao mesmo tempo que se cria um novo desenho e uma nova lógica de tecido viário na cidade, acaba-se por consequência criando também um novo desenho de quadra. O formato em si permanece o mesmo, já que quem desenha e delimita o quarteirão é, na verdade o viário ao seu redor, e como já explanado anteriormente, este se mantém praticamente inalterado. A reconfiguração se dá ao abrir a quadra para o pedestre, mudando sua relação com a rua, com o entorno e com a cidade, e a maneira como é explorada, trabalhada e ocupada.

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A criação da via peatonal cortando a quadra permite que a transição da rua para o miolo de quadra ocorra natural e gradualmente, o que é reforçado no desenho do projeto intencionalmente quando observa-se as escalas de desenho que vão gradualmente se dissolvendo da rua para o interior do projeto. Na fachada da rua Rui Barbosa, temos uma entrada com desenho de escala urbana, com uma grande escadaria, duas grandes rampas e uma praça seca larga. A medida que se adentra à quadra, a escala de abordagem do projeto vai diminuindo a começar por um pátio central mais reduzido que é a centralidade do projeto, até chegar no edifício, já em escala de equipamento público. O fato de trazer a rua para dentro da quadra permite uma nova lógica de exploração do espaço: a experimentação do miolo de quadra. O miolo de quadra também serve como uma alternativa para ocupação de quadras mais extensas e melhor parcelamento e aproveitamento das mesmas, além de trazer mais movimento e vida para dentro delas. No caso do Centro de Resistência Afro, o espaço cujo terreno é reconfigurado a partir do remembramento de lotes subutilizados, caracterizados como espaço residual, que é um participante ativo no cenário das cidades hoje, acabou por definir o espaço e a implantação do edifício, que se apropriou dos diversos cantos e encostas para se assentar na quadra da melhor forma possível.

face atual da rua rui barbosa. fonte: elaboração própria

face proposta da rua rui barbosa. fonte: elaboração própria

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3.4. O PROJETO Considerando os traços culturais de maior importância já levantados, foi possível chegar ao programa do edifício que se divide em duas partes, uma produtiva e outra executiva, como mencionado anteriormente. Viu-se que grande parte das atividades organizacionais e festivas dentro dos quilombos necessita de um espaço de reunião da comunidade, que pode ou não ser aberto, por isso, o edifício foi implantado de modo a criar diversas praças internas que permitam a ocorrência de manifestações e atividades culturais. Por se tratar de um miolo de quadra, o é lote abstrato e recortado, então o edifício foi jogado para seus cantos, liberando o meio para utilização dos visitantes do projeto. Isso também definiu a malha estrutural, que se aproveitou de um dos vãos disponíveis já determinado pelo terreno. O terreno, devido à sua topografia, se divide em dois térreos que são conectados pela via peatonal, ligando duas ruas paralelas que definem a quadra, a 13 de maio e a Rui Barbosa. Por ser circundado por 3 vias, o projeto não tem uma frente definida, apenas uma hierarquia de entradas. O primeiro térreo é o de nível 777,5, que se volta para a Rua Rui Barbosa. Por ter a maior frente voltada para essa rua e por ela ser de fluxo intenso e já apresentar diversos equipamentos culturais, como os muitos teatros presentes nela, e gastronômicos, como as cantinas e restaurantes, esta torna-se a entrada principal do projeto. Na transição da rua para o interior da quadra, a escala do desenho vai se dissolvendo gradualmente de uma escala urbana na beira da calçada até uma escala de projeto dentro do miolo da quadra. O pedestre acessa o projeto pela Rui Barbosa em nível e tem a opção de entrar diretamente pela viela, ou pela praça seca que se projeta da calçada, criando um dos espaços para manifestações culturais livres do projeto. Nessa praça existe o acesso ao meio nível do auditório, que é um dos equipamentos responsáveis por difundir a cultura falada, através de uma rampa; ou de um café, ambos equipamentos que atendem ao programa expositivo do Centro de Resistência Afro. Nele também existe uma entrada de veículos onde é possível acessar um depósito e onde ocorre a carga e descarga de produtos que abastecem o Centro no geral.

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implantação do projeto no TERRENO. fonte: elaboração própria

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planta térreo rui barbosa . FONTE: ELABORAÇÃO PRÓPRIA

PLANTA SUBSOLO. FONTE: ELABORAÇÃO PRÓPRIA

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FACHADA rui barbosa. FONTE: ELABORAÇÃO PRÓPRIA


ACESSO RUI BARBOSA. FONTE: ELABORAÇÃO PRÓPRIA

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O segundo térreo, que pode ser acessado através da via peatonal ou de uma escadaria que sai de praça do primeiro térreo e que tem ligação direta com a via 13 de Maio, está no nível 780,4. Como previsto na Operação Cura, a 13 de Maio foi transformada numa via mista, com uso prioritário de pedestres ao seu dimensionamento já ser reduzido, não tendo um fluxo muito intenso de automóveis e seu uso ser comercial e residencial, contribuindo para o fluxo de pedestres. A configuração do lote não permitiu que o projeto tivesse uma frente voltada para essa via, entretanto, a viela que sai dela e adentra a quadra, até chegar à Rui Barbosa, traz equipamentos e atividades convidativos para que seja gerado um fluxo em sua direção. Ao longo dessa viela, existe um espelho d’água de formato orgânico, mimetizando traçados do grafismo africano, que traz parte da memória e da história do Saracura, afirmando a importância da água para a vida em comunidade e recondicionando a relação da cidade com a água. Também nesse trajeto existem os espaços para comércio informal e as feiras livres, que trazem a vivência das calçadas nos grandes centros urbanos. Existe um momento em que a essa viela cruza o edifício principal do museu, onde não existe muito bem a definição de espaço público ou privado, estar dentro ou fora do prédio. O museu acontece no térreo da 13 de maio e atende ao programa expositivo trazendo a temática da arte africana. Ele se abre para a viela e para o pátio central do projeto, onde acontecem apresentações livres de dança, coral, música, lutas e rodas de histórias, entre outras atividades. Mais à frente, o museu se abre para o cinema livre, uma praça com um desenho de arquibancada que remete aos traços da arte africana, onde são exibidos filmes e documentários que tratam questões da cultura e história africana no brasil, abrindo ganchos para possíveis palestras e discussões no auditório ou nas praças livres. Ao final, existe a loja que também cobre o programa expositivo, onde são comercializados os produtos das oficinas que ocorrem no primeiro andar do prédio, entre outros artigos relacionados à arte africana.

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planta térreo 13 de maio. FONTE: ELABORAÇÃO PRÓPRIA


aCESSO pEATONAL 13 de maio. FONTE: ELABORAÇÃO PRÓPRIA

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Logo no cruzamento da viela com o prédio do museu existe uma recepção que controla a entrada e a circulação dos visitantes que podem subir ao primeiro pavimento e visitar o andar das oficinas. Nele a parte produtiva do programa é atendida, oferecendo oficinas que ensinam e preservam a cultura afro-brasileira. Como já mencionado, a luta além de ser uma maneira de lazer e entretenimento é também uma ferramenta de resgate histórico e cultural na cultura afro. A sala de capoeira se situa na primeira sala de oficinas, localizada em cima da viela. As grandes aberturas permitem que quem está passando pela via peatonal assista aos treinos, como uma espécie de palco elevado. A seguir encontra-se a oficina de estamparia que resgata o grafismo tão marcante e tradicional na arte africana e as técnicas de tingimento tradicionais. Esta sala se abre para o centro da quadra onde é possível ter uma experimentação da vista do pátio central e assistir às manifestações que ocorrem nele. A sala de música fica localizada no corpo transversal do prédio, resgatando a percussão e as cantorias, dois elementos sempre presentes nas celebrações da cultura afrobrasileira. Ao lado dela tem a sala de dança, porque esses dois traços estão sempre acompanhados nas festividades e manifestações. A sala também se abre para o pátio central do projeto, permitindo observar e ser observado ao mesmo tempo. Por último, na quina do corpo transversal do prédio, encontra-se a sala de cerâmica, resgatando outro elemento muito presente na arte africana e reafirmando o barro como elemento de grande importância nessa cultura, alicerce das artes, construções e utensílios do dia-a-dia. A iluminação natural dessa sala é zenital, pois ela fica na delimitação de 3 edifícios vizinhos que a envolvem totalmente. No entroncamento dos dois eixos que formam o prédio, há o mesmo recorte na cobertura e no piso do primeiro pavimento, trazendo a luz de fora para dentro do prédio nesse ponto onde não existe a possibilidade de aberturas laterais, numa experiência transcendental.

planta PRIMEIRO PAVIMENTO. FONTE: ELABORAÇÃO PRÓPRIA

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VISTA DO PRIMEIRO PAVIMENTO PARA O PÁTIO CENTRAL. FONTE: ELABORAÇÃO PRÓPRIA

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4. CONCLUSÃO 50


A história do Bixiga se mistura com a história da escravidão em São Paulo. Como já abordado, os primeiros habitantes do bairro, antes mesmo de seu loteamento, foram os escravos fugidos que, numa estratégia de resistência, iniciaram o Quilombo Saracura, às margens do córrego de mesmo nome. Juntamente com os imigrantes que vieram com as estratégias de branqueamento e europeização da cidade, os negros desempenharam um papel de grande importância na construção do bairro e na formação da imagem do que é o Bixiga de hoje. Devido à questões raciais e a ascensão dos imigrantes no cenário do Bixiga, os negros sofreram diversos tipos de exclusão, inclusive a gentrifcação, grande responsável por apagar os registros dos ex escravos no bairro. Apesar de escassa, a cultura afro ainda se reflete em alguns equipamentos do bairro, como na escola de samba Vai-Vai e no Centro Afro Religioso Ilê Asè Iyá Òsún, que participam do cotidiano do bairro e interagem com ele, mas a imagem italiana ainda se sobressai em relação à dos escravos. Entendendo a riqueza e diversidade da cultura afro-brasileira, e o peso que os negros tiveram na construção do bairro, fica evidente a necessidade de recuperar de alguma forma essa memória perdida, foi então que nasceu a ideia do Centro de Resistência Afro. O projeto reúne algumas das questões chave, apontadas na Operação Cura, e as aplica no contexto da quadra em questão, criando laços entre cidade e cidadão e mudando suas relações. O programa tem a finalidade de resgatar elementos culturais e disseminá-los, para que aos poucos a cultura afro-brasileira volte a ser discutida e inserida no contexto atual do Bixiga. O processo educativo é gradual e deve ser feito dessa maneira para que possa ser incorporado por inteiro, respeitando a adaptação dos indivíduos à nova informação.

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5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 52


BIBLIOGRAFIA

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WEBGRAFIA

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