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No Recolhimento (ou na prisão?

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As Congas

As Congas

No Re ( ou n olhimento pri ão?)

Fugir à mágoa terrena E ao sonho, que faz sofrer, Deixar o mundo sem pena Será morrer? Fio pardido, Auta de Souza

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Até outubro de 1834 o africano Paulo prestou serviços ao Recolhimento de Santa Teresa, em São Paulo. O local ocupava uma ampla área 5 : possuía diversas celas, corredores, claustros, uma capela e um quintal. Embora a rotina fosse rigorosa e com muitas atividades religiosas, pois havia freiras no comando da instituição, o recolhimento não era um convento. As utentes vestiam hábitos, mas não professavam votos. Paulo não dormia no recolhimento, seguia para lá quase todos os dias. Ele pertencia ao dr. Ignácio José de Araújo, irmão de uma das mulheres internadas no retiro. Vindo muito pequenino para o Brasil, Paulo quase não guardava lembranças da sua terra. Viveu sempre na companhia da família Araújo. Pouco depois da sua chegada, Violante, uma

5 O Recolhimento de Santa Teresa abrangia o perímetro delimitado pelas atuais ruas: Santa Teresa, Irmã Simpliciana, Roberto Simonsen e Wenceslau Brás, na região da Sé.

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das irmãs do sr. Araújo, fugiu com um homem, um parente distante que foi passar uma temporada em sua casa. Ele a seduziu e o houve a cópula carnal. Não conformado com o desaparecimento da garota de 16 anos, seu pai saiu à sua caça. A encontrou e a trouxe de volta. Entrou com um processo no Tribunal Eclesiástico contra o raptor, exigindo a reparação de danos. Aberta à devassa, o réu não aceitou casar com a vítima. Foi decidido, então, que ele pagaria uma indenização pecuniária e cumpriria degredo de cinco anos em Angola. A pobre Violante ficou sem escolha, tornou-se “a vergonha do clã”. Foi internada no Recolhimento de Santa Teresa. Para ajudar nos trabalhos do lugar, foi acompanhada de uma escravizada. Paulo foi designado para fazer as compras do asilo, levar e trazer recados, buscar água entre outros trabalhos externos que lhe ofereceriam mobilidade pela cidade. Violante nunca mais sairia da clausura, ordens paternas, repassada por herança ao filho mais velho. Preço caro Violante pagou por uma paixão juvenil! De menino, Paulo fez-se moço. Por influência do ambiente do Recolhimento tornou-se um verdadeiro “papa hóstia”. Aprendeu a ler e a escrever, era estimado pelas mulheres recolhidas. Ele também tinha amizade com João Coveiro. Uma triste missão Paulo praticava: quando apareciam mulheres grávidas, ele tinha que levar os bebês até à Roda dos Expostos. Ouviu de diversas moças que aquele lugar não era um recolhimento e

sim uma prisão! Não, as mulheres não podiam decidir sobre as suas vidas. Ele ajudou diversas a fugir. Havia meninas e senhoras casadas que às vezes eram internadas por motivo de viagem ou longa ausência dos consortes ou pais. Não possuíam parentes ou pessoas de confiança por perto. E nenhum ambiente era mais seguro do que o religioso! – eis o pensamento da época. Para viver no recolhimento, as internas precisavam saber ler, escrever, e pagar um dote, uma espécie de matrícula, além das mensalidades de hospedagem. Em 1818 apareceu por lá um tropeiro remediado, ele tinha uma filha menor, de mais ou menos 14 anos, chamada Bárbara da Conceição. Órfã de mãe, o genitor queria a deixar recolhida para que pudesse aprimorar os seus estudos com as freiras. Ele pagou o equivalente a dois meses de internato. Bárbara era espevitada e foi duro adaptar-se àquela vida rígida e sem graça. Levantava-se às 4h30, rezava tantos ofícios religiosos que dizia que se tantas orações valessem alguma coisa, o mundo estaria salvo de “todos os pecados!”. E dá-lhe penitência todos os dias. Ela desejava se divertir. Era bonita, tinha pele morena e cabelos fartamente cacheados. Seus olhos eram verdes, duas esmeraldas. Interessou-se por Paulo, confessou que não era donzela, já havia namorado com um primo. A carne é fraca e... aconteceu! Foi tudo tão rápido e coroado de êxitos que a gravidez logo se anunciou. Paulo seria papai. A madre superiora não a queria deixar viver lá, seria um péssimo exemplo para as outras. O pai da rapariga prometeu

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uma boa soma em dinheiro à instituição. Bárbara permaneceu em uma cela isolada das outras meninas durante toda gestação. A escravizada Yolanda foi quem a ajudou no parto após ouvir os seus gritos de socorro. Bárbara nunca revelou a paternidade do bebê. Paulo também nunca se manifestou. — Quero que a minha filha se chame Escolástica, como a minha finada mãe. Pelas Chagas de Cristo, Yolanda, mande esse recado a quem ficar com a minha menina! – pediu Bárbara. O próprio Paulo foi encarregado de levar a criança à Roda, mas não o fez. Deixou o bebê na porta do capitão João Franco da Rocha. Já tinha acertado com uma mestiça que aceitou criar a garotinha, ele pagaria mensalidades com os trabalhos extras que fazia nas horas de folga. A menina foi batizada na igreja dos Remédios, tendo Paulo como padrinho, constando ser filha de pais incógnitos. No recolhimento havia uma horta e um pomar. No jardim do adro uma linda coleção de roseiras de todas as cores traziam vida e alegria para o lugar. As amarelas eram as mais bonitas e as preferidas de Bárbara. Um dia ao cuidar das rosas, viu uma borboleta de asas amarelas, o inseto a seguiu por onde andava. De repente, um arrepio tomou conta da sua alma. A sineta tocou e ela foi almoçar, depois de regresso ao trabalho no jardim encontrou a borboleta morta na terra. Algumas horas depois soube, através de Paulo, que Escolástica tinha falecido. Ela pulou no africano e o abraçou. Ele a afastou. Bárbara o achou tão frio e cínico. Daquele dia em diante, não se conversaram mais.

Escolástica foi sepultada na ala dos anjos do cemitério da Santa Casa. Na sua cova, Paulo colocou uma linda coroa com as rosas amarelas do jardim do recolhimento. Benedita, uma garotinha muito graciosa, alta para a sua idade, magra e de um sorriso encantador foi enviada para trabalhar no asilo. Seria criada de Beatriz, uma mulher de mais ou menos 30 anos, taciturna e de poucas amizades. Benedita tinha sete anos. Não demorou para que Beatriz demonstrasse atitudes maternas com a criança. Parece que Benê trouxe luz a sua solitária vida. Dona de voz potente e cristalina, a menina era colocada para cantar nos coros das missas. Ela pernoitava com Beatriz em sua cela. Um dia a menina quis tomar banho de chuva, o fez escondido. Acabou ganhando uma gripe. Como não foi tratada, evoluiu para uma pneumonia. A garota veio a falecer em 20 de junho de 1834. Beatriz enlouqueceu. Queria ser enterrada junto com a filha. Foi quando revelou a verdade a todos. A menina foi sepultada na igreja de São Gonçalo, tinha apenas nove anos. Beatriz tirou o hábito e pegou no seu baú um antigo vestido, disse que acompanharia o cortejo fúnebre. Decidida e cheia de coragem o fez. Seus pais apareceram no Recolhimento e ela exigiu que o enterro de Benê tivesse toda a pompa. Teve o pedido atendido. Antes de chegar à igreja, dispersou do cortejo e fugiu. Paulo sensibilizado com o caso, ajudou Beatriz a deixar a “prisão de Santa Teresa”. Outro episódio acontecido lá deu-se com Ana Maria dos Anjos. Filha do soldado Serafim dos Anjos. Eles moravam em um sítio na freguesia de Pinheiros. Serafim descobriu a

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gravidez da filha. Encontrou em uma caixinha de madeira as cartas que ela trocou com o namorado. Ele não quis acreditar. O caso foi levado ao Tribunal Eclesiástico. A autoridade religiosa depois de ouvir o réu, a vítima e as testemunhas, declarou que o acusado deveria arcar com as suas responsabilidades, seduziu uma menor e as provas eram as epístolas. Foi o caos. Ao final da devassa surgiram outras denúncias sobre o indiciado. Possuidor de boa fortuna, acabou condenado a pagar perpetuamente os gastos de Ana Maria no Recolhimento de Santa Teresa. Ela foi internada prestes a dar à luz. As freiras não permitiram nem que ela olhasse o rostinho do bebê. Sentia-se humilhada e depressiva. Seu pai, a quem tanto amava, nunca a vinha visitar e ela sentia imensas saudades da vida no sítio... Bom, sentia também... falta do padre! Ana Maria ajudava nos serviços da cozinha e na horta; preferia fazer doces, as guloseimas eram vendidas pelas negras a fim de amealhar renda para o Recolhimento. Sua filha foi levada à Roda dos Expostos, acabou permanecendo com d. Lina e João Coveiro. Escolheram o nome de Emília, a chamavam de “nossa fia branca”. Por duas vezes, Paulo pegou o bebê e colocou em uma cesta e a levou até o Recolhimento e Ana Maria pode ver a filha, claro, às escondidas. Emília era muito frágil e faleceu aos três meses de idade em, abril de 1843. Sete meses mais tarde, em janeiro de 1844, o soldado Serafim dos Anjos, da 7ª. Companhia do 4º. Batalhão dos Fuzileiros, faleceu no Hospital de Caridade, aos 44 anos, vítima de varíola. A sua viúva, mãe de Ana Maria, solicitou as

autoridades competentes à devolução da filha. Foi assim que Ana pôde voltar à freguesia de Pinheiros e... foi viver com o padre, que deixou a batina. Para começar nova vida longe da “má língua do povo”, transferiram-se para a província de Santa Catarina. Sobre o africano Paulo, ele faleceu de “bexigas” em 10 de outubro de 1834, recebeu todos os sacramentos, penitência e extrema-unção. Seu corpo seguiu do Hospital de Caridade direto para o cemitério. Como era bastante conhecido por sempre circular pelas ruas, os seus irmãos de cor compareceram ao seu velório na capela dos Aflitos. Na hora do enterro, cantaram, batendo as mãos e dançavam. Era mais um africano que fazia a travessia para a Calunga. E dentre tantos causos sobre “as moças do Recolhimento de Santa Teresa” que Jair ouviu de João Coveiro e outros que presenciou, escolheu os acima citados para compor mais um capítulo do seu livro de memórias de São Paulo antiga e as histórias do povo.

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