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Por uma paixão

Por um p ixão

Se Deus transforma em sua lei tão pura A dor das almas que o Ideal tortura Na demência feliz de pobres loucos... Súplica, Auta de Souza

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Fortunata foi ama de leite e criadeira de Felicíssimo Floriano, filho de um clã paulista abastado, filho varão de Belíssima do Espírito Santo e de Felipe Floriano. Habitavam a maior parte do ano uma ampla chácara na freguesia da Penha de França. Também possuíam um sobrado na freguesia da Sé. O garotinho cresceu entre brincadeiras e carinhos dos pais. Era mimado e caprichoso ao máximo. Tratava mal toda a gente, dizia-se superior e mais inteligente. Com Fortunata ele media as suas atitudes, ela impunha respeito. Era uma mulher dura, trazia no peito a eterna tristeza de ter o seu bebê retirado dos seus braços e ser vendido. Felicíssimo tinha o hábito de começar uma coisa e nunca terminar. A preguiça tomava conta do seu ser, sempre tinha alguém para mandar que trabalhasse para si. Fortunata chamava o amo para à realidade, ele precisava usar o “tutano”. Ele respondia que era rico e nasceu para mandar, os que tinham juízo o obedeciam, senão... chibata!

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Tinha o péssimo hábito de quando não fizessem o que desejava, prometia se matar. A mãe ficava desesperada diante do teatro do rebento. Ele deveria ter-se dedicado à carreira de ator. Na adolescência o pai o enviou para Europa a fim de estudar e tornar-se um mancebo intelectual. A “sua escola” tiveram por disciplinas obrigatórias a boemia e os bordéis de luxo. Um dia precisou voltar ao Brasil. Ganhou uma pomposa recepção dos seus pais. A mãe enviou convites para os estudantes da Academia de Direito, membros das melhores famílias paulistas, e componentes do clero. Queria exibir o filho refinado e estudado no velho continente! Para fazer bela figura, Felicíssimo concordou em se portar bem. Ele voltou pior do que fora. Os pais guardaram o resultado da decepção para si. Continuavam a falar muito bem do rebento. Às escondidas, o mancebo começou a passar temporadas sozinho no sobrado da Sé. Levava Fortunata em sua companhia, para o servir. Ele andava envolvido com Olga, uma atriz russa de pele alva, cabelos loiros e cumpridos, e grandes olhos azuis. Atuava numa companhia francesa que estava em cartaz na Casa de Ópera no Largo do Palácio (atual Pátio do Colégio). Aquele relacionamento ultrapassou todos os limites. Fortunata avisou à patroa. Felicíssimo queria casar com Olga e lhe dar uma vida de rainha. Estava planejando roubar os pais. Ela não queria deixar a sua amada carreira de lado, mas... para casar bem, que mal tem?

Felipe foi sozinho procurar o filho, sendo intransigente, não cedeu às suas ameaças. Advertiu que o internaria como louco num hospício na corte. Felicíssimo fez um grande alarde! — Vou matar-me! Tirar minha rica vida! O senhor não pode me impedir de viver com a mulher da minha vida! – gritava o jovem. Tanto Felicíssimo chamou pela morte que ela veio ao seu encontro: uma tarde estava a caminhar com Olga em frente ao teatro e foi abordado por um homem negro que o atingiu com golpes de capoeira. Trazia uma faca na cintura e “furou o bucho” do sujeito. Olga gritava desesperada, tinha o vestido estampado com o sangue do amásio. Felicíssimo não resistiu aos ferimentos e morreu ali mesmo. O causador da morte do moço branco foi encontrado e identificado uns dias depois, era Antônio Mestiço e estava acoitado num casebre perto da ponte do Lorena. Ele contou ao capitão, na Cadeia, que Felicíssimo contratou os seus serviços para que ele desse cabo do dono da companhia, era amante de Olga. Ele negou-se a realizar o serviço porque não era matador. Felicíssimo então mandou um capanga surrá-lo. Antônio pensou que fosse morrer. Recuperada a saúde, jurou matar Felicíssimo. Lavou a sua honra! Antônio Mestiço foi sentenciado à pena de morte. Pouco antes da sua execução, revelou a um soldado que ele era filho da escravizada Fortunata e do sr. Felipe Floriano. Havia sido vendido bebê e o seu dono contou a verdade sobre à sua ascendência. No dia em que foi procurado por Felicíssimo, ele se preparava para ir com o seu senhor para conversar com

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Fortunata. Queria abraçar a sua mãe. Não deu tempo! O soldado contou o caso ao seu superior. Fortunata foi mandada vir à Cadeia. Declarada a verdade, pôde passar algumas horas em companhia de Antônio. A pobre mulher lamentava à sua sorte e a do filho. Sentenciado a morte por enforcamento, a sentença cumpriu-se no Largo da Forca. Os Florianos foram assistir a barbárie. Ambicionavam ver a “justiça” pelo assassinato do filho querido. Naquele momento, Felipe soube que Antônio Mestiço era também seu filho. O homem manteve-se firme. Conforme de praxe, o corpo foi levado em uma padiola direto para o cemitério. João já abria aberto a cova e esperava para terminar o serviço sendo observado pelos soldados armados. Fortunata tão desesperada ficou que deu cabo da própria vida. Seu cadáver foi enviado às pressas para ser enterrado também no cemitério. Os registros das duas mortes não constam no livro de óbitos da matriz da Sé, era proibido registrar os falecimentos por suicídios e de pessoas condenadas pela justiça civil à pena de morte.

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