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As Congas

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Por uma paixão

Por uma paixão

A

Cong

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“Quem inventou a fome são os que comem.” Carolina Maria de Jesus

Helena Conga morava com sua filha Maria Conga num quarto da Rua do Comércio (atual Álvares Penteado), local aonde habitavam os africanos livres. Ambas vieram para o Brasil mais ou menos em 1797, pertenciam a um grupo da etnia Congo, viviam próximos à margem do rio Congo. Helena junto com outras mulheres seguiam às tradições africanas, executavam as tarefas da alimentação e circulação dos gêneros de primeira necessidade, vocação que continuará a exercer no Brasil. A aldeia em que moravam sofreu uma razia: cerca de mil pessoas foram sequestradas, alguns morreram e a maioria foi colocada nos ferros. Helena só permaneceu viva com a filha porque seu bebê estava junto ao seu corpo, preso por um pano. Após a violenta e sofrida travessia marítima, desembarcaram no porto de Santos, na Capitania de São Paulo. Alguns feitores já esperavam pela carga humana. Demorou alguns dias para o desembarque, para inspeção da saúde dos africanos, pagamentos de impostos à alfândega, entre outras burocracias. Pouco tempo foi o de descanso após extenuante viagem para outra viagem: agora seguiriam a pé pelo sinuoso

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e perigoso Caminho do Mar ou Calçada do Lorena. Um certo barão havia adquirido um lote de africanos para trabalhar na sua fazenda no interior da capitania. O grupo de cativos, cerca de 100 pessoas, seguiram viagem em comboio atrás de um grupo de tropeiros e sua tropa de mulas. Como o percurso era longo, à noite arranchavam nos pousos ou vilas. Ao chegarem a São Paulo, os escravizados e o grupo que os conduzia iriam mudar de rumo, deixaram os tropeiros. O tal barão estava na cidade e examinou algumas das suas “mercadorias”: apertou a barriga para detectar doenças ou dores -, os braços, os dentes, as pernas; e ainda nas mulheres verificou os traseiros e os seios. O senhor concluiu que dez das africanas, que portavam bebês, estavam magras, eram altas demais e “lisas”, sem nádegas abundantes, e, portanto, não seriam “boas parideiras”. Resolveu vendê-las ali perto, no mercado do Largo dos Piques, por onde passava o riacho Anhangabaú. Comercializou as dez “peças”, como eram denominados os escravizados, por um preço menor. Helena e Maria foram arrematadas por uma família de gente remediada, junto com mais duas africanas. Consideradas boçais, recém-chegadas e nada compreendendo da língua portuguesa, o seu novo dono, homem rude e maldoso, logo fez estalar o chicote para que “fosse compreendido” de maneira mais rápida. Seu nome era Cesário Pinheirinho. Coube a sua esposa Maria Clara “engodar” as “peças” e, a seguir, ensinar os serviços às escravas. Pinheirinho foi avisado que as mulheres já haviam sido batizadas antes de

embarcar para o Brasil, no porto de Cabinda, em Angola. Eram designadas como da “nação Conga”, passaram a ser chamadas de Helena e Maria Conga. Helena contava 21 anos, aprendeu a cozinhar as receitas da terra, lavar, engomar, e ainda amamentava o filho da senhora, esta achou que pelos seios pequenos da africana, ela não produziria leite suficiente para amamentar duas crianças. — Olha lá negra, primeiro tu amamentas o meu filho e depois dá o leite à sua pretinha! – advertiu Maria Clara. Assustada com os berros e as possíveis chicotadas que poderia receber caso não obedecesse, Helena tornou-se servil a fim de proteger a filha pequena. Não demorou para que Cesário arrumasse um tabuleiro para colocá-la, assim como as outras duas africanas que adquiriu, para trabalharem como negras de ganho. Saiam com seus tabuleiros a apregoar guloseimas caseiras pelas ruas estreitas e empoeiradas de São Paulo. Uma tarde Helena foi parada por um guarda, ele quis saber da sua licença para ser vendedora. A mulher não entendeu patavinas e ele tomou o seu tabuleiro. Ela revidou e começou a brigar com a autoridade. Foi parar na cadeia. Na cela encontrou com Iara, uma lavadeira e sua conterrânea, ela falava quicongo, o idioma de Helena. Após rápida conversa, chamou o carcereiro e falou do que se tratava. Imediatamente Pinheirinho foi mandado comparecer à chefia. Ele se fez de matuto e explicou que não era sabedor de precisar de licença do Senado da Câmara para que suas escravas mercassem pelas ruas. Teve ainda que pagar uma multa, só depois teve devolvidos o tabuleiro e Helena. Os

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doces, os guardas trataram de “traçar”. A africana conga mostrou ser boa vendedora, criou um pregão misturando palavras em português e em quicongo para chamar a atenção da freguesia. Cesário ficou muito feliz com esse empenho. A pequena Maria acompanhava a mãe, ela amarrava a menina ao seu corpo e o tabuleiro levava na cabeça. Em uma tarde ensolarada, Maria parou no chafariz da Misericórdia para beber água. Ali era o ponto de encontro de escravizados e forros. Conheceu o Domingos, africano do Congo, acabaram se gostando. Conversa vai, chamego vem, decidiram que falariam com os seus donos, queriam se unir em matrimônio, quem sabe assim ficariam juntos sob o mesmo teto. O proprietário de Domingos, morador da freguesia de Santa Ifigênia, aceitou o pedido, e Cesário também. Ele pensou que essa união poderia lhe gerar rendimentos, ou seja, mais escravos. Eles se casaram na igreja de N. Sra. do Rosário dos Homens Pretos, mas cada um ficou morando com o seu senhor. Helena nunca abandonou os seus costumes e tradições. Possuía o dom da vidência. Costumava colocar água em uma bacia branca e jogava lá dentro pedras e zimbos, conchas africanas. Realizava algumas rezas em seu idioma nativo e procedia à leitura. Dificilmente falhava. No pescoço usava um colar de contas azuis, lindíssimo, acreditava que ele lhe trazia proteção. Já a filha Maria usava um colar de contas brancas.

Já assimilada à cultura do Brasil Colônia, Cesário começou a explorar Helena como “adivinha”. Ela não aceitava, mas a qualquer negativa o chicote estalava. Do seu relacionamento com Domingos teve três filhos, dois meninos e uma garotinha. Tempos depois, o dono de Domingos resolveu mudar-se para outra paragem. Ele nem teve tempo de avisar Helena, foi pego de surpresa. Dos produtos caseiros, Helena passou a comercializar – a mando do senhor – produtos que não podiam ser vendidos por negros de ganho para não prejudicar os donos de armazéns. Era o mercado informal, clandestino, em ação. Ela deveria chegar próximo dos grupos de tropeiros que pousavam na cidade e oferecer sal, toucinho, café pilado, queijo, óleo e carne. Se aceitassem, ela traria as mercadorias. O negócio foi próspero por uns tempos. Uma noite, Cesário e Helena foram pegos, com a ajuda de um burro iriam realizar uma boa venda. Foram presos. Na cadeia, Cesário colocou a culpa na escravizada: foi ela que o intuiu a fazer aquele acordo ilícito. Por incrível que pareça, ele foi liberado e ela sentenciada. Iria levar 25 chicotadas no Largo do Pelourinho (atual Largo 7 de Setembro), e ficaria detida por duas semanas. Cesário lamentou o tempo de prisão, seria prejudicado nos ganhos do mês. Helena ficou revoltada, mesmo não sendo considerada um ser humano e não possuir alma pela sociedade escravocrata, ela tinha sim, era um ser humano e tinha sentimentos. Arquitetou uma fuga, seria no dia das chibatadas. Outros dois negros também seriam punidos por seus delitos. Seriam conduzidos com as mãos e pés amarrados por cordas

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até o Pelourinho. Combinaram de tentarem se soltar, caso conseguissem, atingiriam os soldados com golpes de capoeira. No dia marcado, os homens e Helena saíram nus da cadeia para o horrendo espetáculo público. Uma multidão os aguardava, muitos senhores obrigavam os seus escravizados a comparecerem para que a cena de violência servisse de “lição”. Os africanos conseguiram se libertar, conforme combinado. Em meio àquela confusão Helena olhou para frente e viu os seus filhos junto a Cesário. Ela parou, seu coração de mãe a fez voltar atrás na decisão. Os guardas, já irados, a arrastaram pelos cabelos e a prenderam no pelourinho, enquanto os outros dois conseguiram fugir e se embrenharam pelas bandas do Bexiga. O som da chibata logo foi ouvido. O sangue das costas de Helena jorrava para todos os lados. Ela gritava. Os filhos também. Pedia clemência, socorro! Ao fim das 25 chibatadas, o capitão decidiu que ela precisava receber mais 50, as que seriam aplicadas nos dois “negros fujões”. Cesário correu e pediu a autoridade que poupasse a vida de sua escrava, ela era o seu patrimônio e ele não poderia sair lesado. O pedido foi deferido. Ao soltarem as mãos de Helena, ela caiu no chão de costas e desmaiada. As marcas daquela truculência ficariam em forma de cicatrizes para sempre marcadas no seu corpo. Na cadeia, uma negra cuidou de fazer curativos com sal e mentruz para a cicatrização. Passadas duas semanas, Cesário foi resgatá-la. Aconselhada pela amiga que cuidou das suas chagas, não bateu de frente com o seu senhor. Ela conseguiria

vingar-se de outra forma. Ciente que poderia ser vitimado por um despique, pediu para que os guardas colocassem algemas nos pés e nas mãos da africana. Horrorizada com o que assistiu e passou, a pequena Maria com dez anos era quem substituiu a mãe na venda do tabuleiro. Ao vê-la chegar em casa, correu para abraçá-la. Foi o carinho e a ternura dos filhos que salvaram a alma de Helena naquele instante. No seu pensamento só desejava encontrar Domingos para juntos poderem fugir daquele martírio. Mandou que Maria pegasse sua bacia, pedras e zimbos, resolveu saber do seu destino. A resposta foi que uma mulher apareceria para ajudar. Dias depois, enquanto estava na rua vendendo quitutes, d. Rosalina, sua freguesa, lhe fez uma proposta: poderia tentar comprá-la e aos seus quatro filhos, e mais, conceder as sonhadas cartas de alforria. Helena foi aos céus. Mas como seria aquilo possível? Rosalina explicou que ela trabalharia para pagar pela sua liberdade, a senhora lhe concederia uma hora de folga por dia e todos os domingos para que ela pudesse labutar para si, e ainda poderia contar com o apoio e o trabalho dos filhos pequenos. Rosalina foi falar com Maria Clara, ela queria mesmo se livrar da negra Helena. Já não dava lucro como antes. Não foi difícil convencer o marido. Transação realizada. Helena e os rebentos foram morar com Rosalina numa casinha perto da Ponte do Lorena. Ela não havia dito que estava grávida de Cesário, ele a violentou

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algumas vezes depois que saiu da cadeia. Alegava que o corpo da africana lhe pertencia e ele fazia o que “lhe desse na telha”. Ela não queria aquele bebê. Neste ínterim, seus dois filhos menores foram brincar com outros meninos no córrego do Bexiga, acabaram se afogando. A mãe ficou chocada. Amava os seus filhos e dois morrerem de uma vez era demais para o seu sofrido coração. As crianças foram enviadas para serem inumadas no cemitério da Glória. Para se vingar da dor, conversou com uma amiga curandeira e pediu um preparado para provocar o aborto do filho do ex-amo. Depois de beber o chá, Helena teve um aborto violento. Chegou mesmo a pensar que o seu ventre tinha saído junto com o feto. O sangramento foi demasiado. Rosalina com medo de perder a “peça” do seu investimento, mandou chamar um médico. Foi por pouco que Helena escapou de morrer. Toda aquela dor só fez fortalecer a sua coragem e certeza de conseguir comprar a sua carta de alforria e das filhas. Uma força interior a fez trabalhar como nunca. Maria a auxiliava. Vendiam doces, lavavam e engomavam, carregavam lenha, buscavam água, iam jogar dejetos nos rios. Foi um sufoco! Para ter um respaldo espiritual, foi buscar consolação na reza dos terços de N. Sra. da Aflição comandado por d. Lina, que conheceu quando do enterramento dos seus dois meninos. Só conseguiu juntar a quantia necessária para comprar as três cartas de liberdade depois de sete anos! Helena chorou muito quando conseguiu o tão almejado sonho. Rosalina não queria se desfazer de Maria, pediu para a mãe deixá-la em sua companhia. Iria pagar um salário mensal.

Nunca que Helena se apartaria da garota, companheira da sua vida. Conhecidas em toda a cidade por serem “pau para toda obra”, elas prosseguiram trabalhando. Helena fazia consultas através de sua bacia para seus irmãos negros, não cobrava nada. Maria era bonita, chamava a atenção por sua beleza. Apaixonou-se por um homem. Às escondidas da mãe, envolveu-se num romance. Ele era branco e casado. Sua mãe pressentiu algo e consultou a bacia. Colocou a filha contra a parede e a fez ver o perigo que corria. Ela insistiu que o amava e ele prometeu que daria uma casa à família. Freitinhas, como era chamado na intimidade, cumpriu o prometido. Adquiriu dois cômodos na Rua do Comércio e presenteou Maria por “seus estimados favores”. Entregou o documento de posse à amásia. Como o que é bom dura pouco, Freitinhas logo deixou Maria, sua esposa o queria acusar de concubinato com uma negra ao Tribunal Eclesiástico do Bispado de São Paulo. Maria ficou muito triste! Juntas, mãe e filha seguiram em frente, superando problemas e pesarosas lembranças. Num domingo, Helena conheceu Constantino, um mestiço forro. Ele tinha passado a frequentar o terço dos Aflitos, e era irmão do Rosário. Ele passou a cortejá-la, mas ela não queria saber de homem nenhum. Consultou a bacia: valeria a pena, ela já velha, viver um novo amor? A resposta foi positiva.

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Constantino foi morar com a família, passou a colaborar no sustento da casa. Ele foi aquele amparo que a sofrida Helena mereceu no fim da sua existência. Após tantos anos de trabalho e luta, Maria estava tuberculosa. Foi enviada ao Hospital de Caridade. Não resistiu e morreu aos 60 anos, em 17 de janeiro de 1856, sendo sepultada no cemitério. Helena perdeu o chão, não era possível, ela com 80 anos, ter enterrado a sua terceira filha? Foi demais, Maria era sua filha preferida, ela perdeu a razão. Constantino continuou cuidando de sua amada companheira. A outra filha havia se casado e morava muito distante, estava com uma grande prole, nada podia fazer para ajudar. A pedido do cura da igreja do Rosário, alguns irmãos foram designados a buscarem uma doação na cidade de Sorocaba. Constantino foi um dos escolhidos e talvez gastaria dez dias entre a viagem de ida e volta. Pediu para um vizinho olhar por Helena, que não estava nada bem de saúde. O irmão ia à casinha de Helena todos os dias para levar água e comida. Na tarde do dia de São João de 1856 haveria festança no Largo do Rosário, com queima de foguetes e procissão, ele não podia perder! Resolveu ir ver Helena mais cedo, a encontrou deitada em uma esteira, seu corpo estava roxo e inchado. Ela havia sofrido um ataque do coração. Ele saiu gritando por ajuda. Outros dois irmãos pegaram uma rede e a transportaram até o Hospital de Caridade. Ela veio a óbito no caminho. Não chegou a adentrar o nosocômio. Um

médico constatou a sua morte e mandou que levassem para o cemitério. João Coveiro apressou-se a pegar enxada, pá e um pilão, pediu ajuda a Chico preto. Jair, o escrivão, quis saber mais detalhes sobre a velha africana. O irmão do Rosário não sobre informar. — Achu qui o marido dela devi di vortá amanhã pelas minha conta, seu Jair. — Está bem. Que Deus tenha pena da alma dessa pobre sofredora. Amém!!! — Amém!!! – respondeu o irmão. Enquanto os primeiros rojões eram soltos no céu da cidade em homenagem a São João, o coveiro jogava terra na cova de Helena Conga. — Pelo menus ela murreu di veiz. Qui Deus, Nzambi, leva a arma dela prum bão lugá! – falou d. Lina com o terço numa mão e uma vela na outra.

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