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Tonico Ceguinho
Toni o Ceguinho
“O coração de um homem e o fundo do mar são insondáveis.” Provérbio africano
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Ele vivia como andarilho. Pouso certo não tinha, nem queria. Na cidade todos o estimavam, não fazia mal a ninguém. Só andava a esmolar. Carregava dois bornais, um contendo um pandeiro e uma gaita, e no outro guardava objetos pessoais. Tonico Ceguinho era o apelido de Antônio Soares, natural da Capitania de Pernambuco, era deficiente visual de nascença. Veio muito pequeno com os pais para São Paulo, e com apenas seis anos ficou órfão. Passou a morar na rua e viver na companhia de figuras populares. Várias famílias ofereceram ao menino proteção e guarida, ele nunca aceitou. Decidido, agradecia a oferta e partia. Para ganhar uns trocados improvisava versos e tocava pandeiro. Os conteúdos das quadras variavam de acordo com o mote pedido. Dizia Tonico que presenciou a chegada d. Pedro à cidade como príncipe regente e o viu sair como imperador do Brasil em setembro de 1822! “Depois ele levou para a corte uma senhora bela, que não era santa, nem donzela...”, o menino cantava ao fazer referência à marquesa de Santos.
— Dúvido, vosmecê é cego, não pode enxergar! – lhe diziam. — “Sou devoto de Santa Luzia / Deu ela luz aos olhos meus / naquele momento de prefulgia / As amarras o Brasil deu adeus.” – respondida pondo um ponto final no questionamento. Galhofas à parte, o garoto alcançava sucesso. O povo lhe dava moedas, que ele pedia para colocar em uma bolsinha de couro. Não tinha medo de ser roubado, embora cego os seus outros sentidos eram bem apurados e tinha por companheiro um cachorro vira-lata que estava sempre alerta, o Toucinho. Os monges franciscanos o quiseram adotar, quer dizer, o acolher para que o menino prestasse serviço aos religiosos, em troca teria casa e comida. Acostumado à liberdade das ruas, Tonico negou-se a aceitar. “Dou-me com os loucos e com os sãos / Só não quero ordens e nem patrão”, respondia. Também servia de garoto de recados. Sempre discretíssimo, levava mensagens de criminosos da cadeia a quem precisar, de escravizados para outros escravizados, das prostitutas para os seus mancebos, de namoradas e namorados, etc. etc. De todos recebia algum pagamento: em dinheiro, em comida ou pouso por uma ou duas noites. Tonico Ceguinho teve seus pais enterrados no cemitério da Glória, quando sentia muitas saudades ia até lá para rezar por suas almas na capelinha. João Coveiro e d. Lina o quiseram adotar, mas ele preteriu o pedido. “Ando só neste mundo / com saudades dos meus pais / tenho por companheiro o Toucinho / e assim está bom demais”.
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Nos dias de procissão gostava de se juntar ao cortejo, tirava o pandeiro do bornal e tocava com gracejo. Aos santos cantava loas e era muito aplaudido. Tinha fé em Nossa Senhora e em Nosso Senhor Jesus Cristo. Com os negros aprendeu cantigas, danças e certas rezas para fechar o corpo contra qualquer perigo. Apreciava os doces das quituteiras, e com a preta Justina trocou beijinhos e chamegos. Um dia encontraram Tonico arrastando-se pelas paredes do Recolhimento de Santa Teresa, suas pernas e pés estavam enormemente inchados e ele foi conduzido ao Hospital de Caridade. Seu cachorro, velhinho, caminhava e mancava. O jovem estava com hidropisia. O médico o tentou salvar, porém, era tarde demais. Toucinho esperou pelo seu dono na porta do hospital, João Coveiro com pena do animal o levou para o seu quartinho e deixou-o escondido. Tonico Ceguinho, dos recados, dos versos e das brincadeiras, faleceu aos 18 anos. Antes de “partir dessa para uma melhor” pediu a João que queria ser enterrado com o seu cachorro. O coveiro disse que nunca tinha visto um negócio daquele, entretanto, prometeu ver o que conseguia. Foi ao seu quartinho e o cachorro havia falecido também. Com muitos cuidados, procedeu às inumações dos dois amiguinhos. Poucos ficaram sabendo deste fato, ocorrido em 13 de agosto de 1834.