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Joana Benguela
Jo n Benguel
Passai, passai, desfeitas em tormentos, em lágrimas, em prantos, em lamentos em ais, em luto, em convulsões, em dores… Dilacerações, Cruz e Souza
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Quando Joana veio ao mundo num dia de 1767, sua mãe recebeu a notícia da morte de sua avó, por isso colocou na bebê o nome de Kusumwa, na língua ovimbundo significa “tristeza”. Joana era filha de Salustiana, mulher escravizada, trabalhava em Benguela, na colônia portuguesa de Angola, na casa de um traficante e latifundiário, seu nome era Narciso da Graça Caldeira. Aliás, Joana era uma das suas filhas. O rico senhor além dos filhos nascidos do casamento com a esposa portuguesa, teve outras dezenas com as criadas da casa e das suas propriedades espalhadas pelo sertão angolano. Alguns aristocratas da terra costumavam alforriar os filhos naturais na época do batismo. Caldeira não o fazia. Preferia esperar completarem 18 anos ou quando resolvessem se casar. Ele fazia alianças através dos matrimônios, com chefes tribais, comerciantes e militares estabelecidos em Benguela, assim constituía laços parentais e de negócios (legais e ilícitos). Na bela residência de Narciso, Joana cresceu com os seus irmãos. Ao completar sete anos de idade passou a ser babá de um meio-irmão.
A senhora da casa, d. Carmem, sabia dos casos do marido. Fazia vistas grossas. Ela era a “rainha” da cidade, possuía as melhores joias, vestidos, sapatos e tudo o que o dinheiro podia lhe ofertar. Também fazia questão que as suas mucamas se trajassem muito bem, até mesmo usavam sapatos para se diferenciarem das outras escravizadas. Pura ostentação! Quando Joana completou 15 anos, o pai pensou em casá-la, mas d. Carmem palpitou que ela deveria acompanhar as filhas Elisa e Vitória a Portugal. As meninas seriam enviadas para aperfeiçoarem os seus estudos e aprenderem regras de etiqueta na metrópole, potencializando as chances de realizarem excelentes bodas. A senhora Gilda Maria, irmã de Narciso, morava em Lagos, no Algarve, sul de Portugal. Ela aceitou educar as sobrinhas. Recomendou ao irmão que não esquecesse de enviar escravas para os tratos e necessidades das “queridas sobrinhas”. Além de Joana, também seguiram viagem as suas irmãs (de pai e mãe), Leonor e Manoela, com 17 e 18 anos, respectivamente. Narciso concedeu as três as cartas de alforrias com a condicional que elas nunca deveriam se apartar de Elisa e Vitória. Salustiana pertencia a uma tribo da etnia Ovimbundo, era natural de Caconda (atual província de Huíla), mas viveu a maior parte da vida em Benguela. Aprendeu com os mais velhos a eficiência de chás e determinadas ervas para curar doenças, realizava benzeduras. Embora na casa do senhoramante apenas a religião católica fosse professada, quando as crianças adoeciam (e lá elas eram “às dúzias”), era Salustiana
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que precisava benzer e fazer remédios naturais para curar as moléstias comuns em crianças. Nem sempre existia um médico na cidade à disposição. Ao chegar à data de partida das meninas, Salustiana comentou com outra escravizada que tinha o pressentimento que nunca mais veria Joana e que ela teria um destino triste, fazendo jus ao seu nome africano, Kusumwa. Nunca mais saiu da mente de Joana uma passagem deprimente: na hora que rumavam para o embarque no porto de Benguela, na Praia Morena, elas passaram de charrete em frente ao grande armazém depositário de negros sequestrados pelo interior de Angola para serem vendidos como escravos. Os gritos de desespero e de dor eram chocantes. Ela tapou os ouvidos. Viu uma multidão de conterrâneos serem batizados em coletivo em frente à igreja de Nossa Senhora de Pópulo. Ela fez o sinal da cruz e agradeceu a Deus por não ser um deles. A viagem de navio até Lagos foi demorada e cheia de aventuras. Pensaram que a embarcação nunca chegaria ao destino. A tia Gilda Maria recebeu as cinco garotas com muita alegria, era viúva e não tinha filhos. Joana entregou a ela as três cartas de alforrias e um bilhete, aonde Narciso aconselhava que a irmã tratasse de dar instrução primária às “filhas bastardas”, e as continuasse vestindo decentemente, pois “estavam acostumadas a terem vestes e tratamentos diferenciados dos outros negros”. Joana, Leonor e Manoela consideravam-se cristãs convictas. Sabiam falar o ovimbundu, aprendido com a mãe, entretanto orgulhavam-se de falar o português. Usavam
sapatos e vestidos à europeia. A ninguém revelavam os seus nomes africanos, apenas os cristãos de batismo. Afinal desde o nascimento foram expostas à cultura do colonialismo português. Durante três anos permaneceram em Lagos. Mensalmente visitavam a ermida de N. Sra. dos Aflitos e São Pedro. Joana achava lindo o brasão com as chaves de São Pedro que ficava no frontispício do pequeno templo. Como eram todas bem-comportadas, a tia sempre escrevia nas cartas para o irmão: “tuas filhas pretas têm as almas e os corações mais brancos que já vi”. Gilda Maria morava em Lagos devido ao seu casamento. Recebeu também como herança do marido uma bela quinta em Lisboa, na zona de Benfica. Resolveu que como as sobrinhas já estavam crescidas, todos se mudariam para a capital. Em Lisboa, Joana pôde ver muitas mulheres africanas e escravizadas nascidas no Brasil, que vendiam uma grande variedade de produtos, conhecidas como as “vendedeiras”, também existiam as aguadeiras e as calhandeiras – que depois veio a saber que eram as escravizadas responsáveis por levar os detritos das casas urbanas e jogar os dejetos no rio Tejo. Elas carregavam à cabeça as pesadas e malcheirosas calhandras. Os serviços desprezíveis sempre sobravam para os escravizados. Já os homens eram mais atuantes no descarregamento de mercadorias das embarcações que aportavam no Tejo, na zona da Ribeira. Mestiça e forra, Joana considerava-se uma lusodescendente e muito diferente “daquelas negras escravas”,
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como dizia. Nunca ela foi enviada para buscar água em bicas e chafarizes. Quando Elisa e Vitória completaram 14 e 15 anos, a tia conseguiu arranjar bons pretendentes. Com a aquiescência do irmão, os casamentos se realizaram em 1790. Portugal tinha por governante D. Maria I, rainha de Portugal e Algarves. O ciclo do ouro da colônia brasileira estava no fim, porém, o comércio do tráfico de escravos africanos continuava altamente lucrativo. E nesta perspectiva, Narciso fez sociedade com dois comerciantes portugueses estabelecidos em Salvador, na Capitania da Bahia. Eles haviam conhecido Leonor e Manoela em Lisboa, manifestaram interesse no casamento. Narciso não pestanejou e “fechou o negócio”. Lá foram as duas raparigas para o Brasil. Joana permaneceria na companhia de Elisa, que era muito jovem. Servi-la-ia como governanta. Era uma ordem paterna. Narciso e Carmem realizaram uma rápida viagem a Lisboa para o casamento das suas filhas. Joana pensou que sua mãe também viria. Depois foi informada que Salustiana fora enviada à Bahia para viver com Leonor e Manoela. Joana ficou muito triste. Prestes a completar 23 anos, Joana ganhou um marido: era Elasbão, mestiço forro e brasileiro. Tido por “intelectual”, foi trabalhar como bibliotecário na casa de Elisa e seu marido, dr. Apolo. É verdade que Joana preferia um homem branco, mas estava apaixonada por Elasbão e ele “dava para o gasto”. Tiveram cinco filhos, sobreviveram apenas Narciso, Narcisa e Salustiana.
Viver em Lisboa era o ideal para Joana. Por sua influência, Narciso foi estudar para ser padre, e Narcisa ingressou no convento de Santa Teresa de Jesus em Carnide, uma zona retirada de Lisboa. Só conseguiu ser aceita por intermédio da tia Gilda Maria que lhe comprou o enxoval e pagou o dote, necessário para a admissão. Restou Salustiana, ela só ficou em casa porque não andava, vivia presa a uma cadeira de rodas. Na infância estava um dia a brincar com os primos quando acabou caindo de uma escadaria. Sua mãe lamentou o incidente o resto da vida. Já não bastava ser mestiça e sofrer preconceitos, agora com uma filha deficiente considerava o “seu fado” mais infeliz. Sonhadora e esnobe, uma vez foi até a Igreja da Graça, onde havia um altar de N. Sra. do Rosário dos Homens Pretos acompanhada por quatro estatuetas representando São Elasbão, São Benedito, Santo Antônio de Noto (ou de Categeró) e Santa Efigênia. Na porta do templo havia alguns negros da Irmandade de N. Sra. do Rosário a pedirem esmolas para a festa da padroeira. Joana abriu a bolsa e ofertou uma boa soma. Um dos irmãos observou que ela adentrou a igreja e foi rezar para os santos brancos. Na saída, ele a abordou e perguntou porque não rezou para “os santos negros”. Ela ficou tão indignada, respondeu que rezava para o santo que quisesse, e empurrou o homem de baixa estatura, todos ficaram observando a cena. Em 1810 o seu cunhado, dr. Apolo, foi convidado a ir trabalhar no Brasil. Portugal e outros países da Europa atravessavam uma grave crise econômica, social e política, devido às invasões napoleônicas. A família Real Portuguesa já se encontrava na colônia brasileira desde 1808. Embora
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contrariada, Joana teve que acompanhar o marido, a família do cunhado e a tia Gilda Maria. Uma vez no Brasil, estabeleceram-se na corte. Joana considerou poder visitar as irmãs e a mãe na Bahia. A menina Salustiana, com 12 anos, amou o Brasil. Considerava o Rio a cidade mais linda do mundo, com sua topografia e a baía de Guanabara. A tia Gilda adaptou-se muito bem. Elasbão estava feliz em regressar à sua terra. Joana detestou tudo! Achou que a cidade lembrava Benguela, com tantos negros a andarem pelas ruas e fazendo alaridos! O calor era infernal e a quantidade de insetos era de morte. Dois anos depois, Elasbão veio a falecer devido à febre amarela, seguido da tia Gilda Maria. Salustiana passou muito mal após comer um doce vendido por uma negra do tabuleiro, provavelmente sofreu uma infecção intestinal e também veio a óbito. Joana ficou assustada pelas três mortes seguidas. Apegou-se ainda mais à religião. Fez uma promessa a São Pedro: esmolaria pelas ruas do centro junto com os outros irmãos para amealhar dinheiro para a festa do padroeiro. E o faria descalça. Foi a primeira vez que saiu na rua sem sapatos, estava acompanhada de duas escravizadas da casa. Andaram bastante, ao voltar para casa Joana tinha muitas bolhas nas solas dos pés. Em pensamento blasfemou. O dr. Apolo foi transferido para trabalhar no Hospital de Caridade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. A família partiu novamente. Foi então que Joana quase enfartou ao conhecer a pacata e pequena cidade. Foram morar em uma chácara no Guaré (futuro bairro da Luz), perto do Jardim
Botânico. Não muito distante estava instalado o Lazareto. Nem Elisa e nem Joana apreciaram as redondezas, as reclamações foram tamanhas que o dr. Apolo conseguiu alugar um sobrado espaçoso à Rua do Ouvidor (atual Rua Senador Feijó). Joana ouviu dizer que havia na cidade um cemitério destinado aos desvalidos e lá havia uma capela dedicada à N. Sra. dos Aflitos. Ela era devota daquela santa desde os tempos em que viveu em Lagos. Curiosa quis ir ao local. Foi acompanhada por um casal de escravizados. Todos estranharam, pois ela iria pisar em uma zona marginalizada da empoeirada São Paulo. Dentro de si, ela tinha um antigo desejo que nunca conseguiu realizar: queria muito ir à Bahia para ver a mãe e as irmãs. Foi pedir esse milagre para a Senhora dos Aflitos. Conheceu d. Lina e soube dos terços rezados aos domingos na capela. Joana passou a frequentá-lo. Os anos foram passando e seus outros parentes também morreram. A viagem a Salvador nunca foi realizada, pois ela cuidou do cunhado, da irmã e dos sobrinhos moribundos. O patrimônio da família foi gasto com as doenças prolongadas, enterros pomposos e os custos cotidianos que não eram poucos pelo alto estilo que vivenciavam. Até os bens móveis - os escravos - precisaram ser vendidos. Aos 83 anos, em 1850, Joana estava sozinha e falida. As irmãs haviam mudado para Ouro Preto, na província de Minas Gerais, e nunca mais responderam as missivas da mana. Quem a socorreu foi d. Lina e João Coveiro, com a licença da Irmandade de Misericórdia, ela passou a morar com o casal num quartinho nos fundos do hospital. Joana teve que engolir
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o seu orgulho, era aquilo ou nada. Como sabia ler e escrever, muitas vezes auxiliava o escrivão Jair a redigir os bilhetes para o cura da Sé quando algum paciente morria. Junto com Lina e a enfermeira Júlia Espada, visitava os acamados para levar uma palavra de alívio. Nunca pensou que viveria tanto: 90 anos! Das epístolas enviadas aos filhos em Portugal, nunca recebeu resposta. Narciso e Narcisa andavam pela África em viagens missionárias. Narcisa acabou morrendo de uma febre contraída em Moçambique. Narciso só iria receber as cartas quando regressou a Lisboa e ao convento. Pediu licença ao superior e explicou que precisava ir ao Brasil urgentemente para acudir a sua mãe, sozinha, velha e pobre. Quando Narciso finalmente conseguiu chegar a São Paulo, no Natal de 1857, soube que Joana Benguela, como era conhecida, havia falecido no dia primeiro daquele mês. Foi sepultada no cemitério, sendo confessada, ungida e recebeu todos os sacramentos... E foi enterrada de sapatos, conforme pediu à d. Lina.