Vida abaixo de zero O cotidiano no acampamento brasileiro Aquecimento global Pesquisas apontam as mudanças do clima
Parte integrante da Folha de S.Paulo Não pode ser vendida separadamente Foto Toni Pires/Folha Imagem
Pôster Mapa e história do continente
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No coração da
FOLHA ACOMPANHA PRIMEIRA MISSÃO CIENTÍFICA BRASILEIRA AO INTERIOR DO CONTINENTE GELADO
Editorial
s desbravadores da Antártida usavam essa frase (“não mais além”, em latim) sempre que avançavam o máximo, aonde ninguém havia estado antes. O colunista da Folha Marcelo Leite e o repórter fotográfico Toni Pires, podem repeti-la com orgulho: em dezembro último, tornaram-se os primeiros jornalistas brasileiros a pisar o interior do continente gelado, chegando a 1.083 quilômetros do polo Sul geográfico. Se bom jornalismo é ir aonde nenhum outro repórter foi e contar a seu leitor uma história, Marcelo, 51, e Toni, 43, atingiram sua essência. E que história eles têm para contar. A dupla passou 14 dias nos montes Patriot, sem banho, dormindo em barracas, para acompanhar com exclusividade o trabalho dos pesquisadores da Expedição Deserto de Cristal – a primeira missão científica brasileira no interior da Antártida e o maior salto já dado na ciência polar nacional em seus 27 anos. A expedição é um dos pontos altos da participação brasileira no Quarto Ano Polar Internacional, um esforço de pesquisas que se encerra neste mês e envolveu cerca de 5.000 cientistas de 60 países, destinado a entender as relações das regiões polares com o clima. Marcelo define a jornada: “Foi um
dos trabalhos mais importantes em meus 30 anos de jornalismo. Uma experiência sensorial e intelectual única: por mais que se leia sobre a Antártida, não há nada parecido no mundo”. Toni, em sua segunda viagem à região, concorda: “Foi uma experiência de vida, diferente de todas as outras pautas jornalísticas”. O frio e o desconforto físico, dizem ambos, acabaram eclipsados. Nas próximas páginas, você acompanha a aventura dos dois e dos cientistas brasileiros no desbravamento da última região desconhecida do planeta.
Antártida ou Antártica? Tanto faz. Os geógrafos consagraram “Antártida”, grafia adotada pelo Itamaraty e pela Folha
Claudio Angelo Editor de Ciência
Toni Pires (esq.) e Marcelo Leite em frente à barraca, no acampamento
Ă?ndice 8
Diretora do NĂşcleo de Revistas Cleusa Turra Edição Claudio Angelo e MarĂlia Scalzo Projeto grĂĄfico e edição de arte Adriana C. de Mattos e Thea Severino Infografia Renata Steffen (coordenação), FlĂĄvio Dieguez e Marcelo Pliger Tratamento de imagem Luciano Bernardes e Wantuhir Lopes Junior E-mail revista@grupofolha.com.br Endereço Alameda BarĂŁo de Limeira, 425, 8° andar, CEP 01202-900, SĂŁo Paulo, SP PUBLICIDADE Diretor-executivo comercial Antonio Carlos de Moura Diretor de noticiĂĄrio Marcelo Benez Gerentes de noticiĂĄrio Luiz Prusas, JoĂŁo Gabriel Junqueira, Simone Souza, Manuel Luiz (RJ) e Beth Maciel (executiva) Telefones 0/xx/11/ 3224-3129 / 3224-3128 Diretor de classificados Rodolfo NegrĂŁo Gerentes de classificados Wilson Lelis, Jefferson Ferreira e Vicente Freitas Telefones 0/xx/11/ 3224-4787 / 3224-3233 Impressa nas oficinas da Plural Editora e GrĂĄfica
EscorregĂŁo fatal
O relato da expedição
Os riscos do degelo polar
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Caribe abaixo de zero Biodiversidade no oceano Austral Julian Gutt/AWI
No coração da Antårtida
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Pra que serve esta terra? A histĂłria do sexto continente
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O maior deserto do mundo O manto de gelo antĂĄrtico
Encarte da edição de domingo da Folha de S.Paulo, 22 de março de 2009. Não pode ser vendida separadamente. Tiragem total: 400.700 exemplares
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CAPA Francisco Eliseu Aquino, o Chico Geleira, geógrafo da UFRGS, um dos integrantes da Expedição Deserto de Cristal
FĂŠrias geladas Turismo e aventura
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Pioneiro brasileiro no polo Sul
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Entrevista: Rubens Junqueira Villela
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No coração da Antårtida Fotos Toni Pires/Folha Imagem
Presidente LuĂs Frias Diretor editorial Otavio Frias Filho Superintendentes Antonio Manuel Teixeira Mendes e Judith Brito Editora-executiva Eleonora de Lucena
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O clima que veio do frio O efeito da AntĂĄrtida no Brasil
Caio Guatelli/Folha Imagem
Um jornal a serviço do Brasil
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FOLHA DE S.PAULO | 22 DE MARÇO DE 2009
REPÓRTERES DA FOLHA TESTEMUNHAM O COTIDIANO E AS PESQUISAS DA EXPEDIÇÃO DESERTO DE CRISTAL. A PRIMEIRA MISSÃO CIENTÍFICA BRASILEIRA INDEPENDENTE AO INTERIOR DO CONTINENTE ANTÁRTICO TEM A MISSÃO DE DESVENDAR PASSADO E FUTURO DO LUGAR MAIS FRIO DO PLANETA por Marcelo Leite
fotos Toni Pires
enviados especiais à Antártida
No coração da
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Acampamento brasileiro nos montes Patriot, que abrigou oito pesquisadores durante 46 dias
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Passageiros levados pela ALE desembarcam do jato Ilyushin, à meia-noite de 26 de dezembro, na pista de “gelo azul” perto dos montes Patriot
À
s 23h52 de 26 de dezembro, pouco mais de quatro horas depois de decolar de Punta Arenas, extremo sul do Chile, o jato cargueiro Ilyushin-76TD da Air Almaty baixa o trem de pouso. Quatro minutos mais e o avião de matrícula cazaque fretado pela empresa americana Antarctic Logistics and Expeditions (ALE) toca suavemente o gelo da pista principal de Montes Patriot (Patriot Hills), na Antártida. Aberta a porta, uma onda de frio, luz e irrealidade invade a cabina, com o ar a -8oC. O repórter fotográfico Toni Pires e
eu somos os únicos brasileiros a bordo. Após 13 dias de espera em Punta Arenas, retidos por ventos e nevascas antárticas que impediam o voo até Patriot, desembarcamos no acampamento-base da Expedição Deserto de Cristal, montado pelo Núcleo de Pesquisas Antárticas e Climáticas (Nupac), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ao lado da base para turistas da ALE. Pela primeira vez cientistas do Brasil realizam missão autônoma no coração do continente austral, para investigar as profundezas do manto de gelo que o recobre há 33 milhões de anos. Uma
aventura 2.000 km mais perto do polo Sul do que a Estação Antártica Comandante Ferraz, a base tradicional da pesquisa brasileira na Antártida, e um feito inédito que a Folha veio testemunhar com exclusividade por duas semanas. Sensação térmica (“wind chill”) O corpo não sente a temperatura do ar, mas a da pele, protegida por uma camada de ar aquecida pelo corpo. O vento diminui esse colchão de ar, criando risco de congelamento. A -10oC com vento de 56 km/h a sensação é de -32,5oC; partes expostas do corpo congelam em menos de um minuto
NO CORAÇÃO DA ANTÁRTIDA
Finalmente cheguei ao território internacional da Antártida, ao “puro retângulo de quartzo” e à “solidão sem terra e sem pobreza” de que fala o chileno Pablo Neruda no poema “Antártica”. Faltam agora só quatro minutos para a meia-noite. O sol brilha, ofuscante, dois dedos acima dos montes ao sul, em seu percurso excêntrico sobre o horizonte nos verões em altas latitudes, como aqui nos 80°18’S. Do alto do avião, no limiar da porta, uma pequena decepção: o gelo glacial da Antártida, que em todos os textos que devorei é descrito como azul, parece mais branco, quase cinza. A pista de pouso de fato se assemelha a um retângulo de quartzo, com cerca de 100 m de largura e 2.500 m de comprimento. O ar queima por dentro das narinas e induz espasmos passageiros na respiração, como se mergulhasse numa cachoeira gélida e seca. Mesmo rodeado por dezenas de pessoas, a sensação é de desamparo completo, no embate solitário do corpo com o poder letal do frio. Apenas uma escada vermelha de metal me separa do manto de gelo que recobre os 14 milhões de km2 da Antártida, um décimo das terras do planeta. Bojudas botas polares Baffin e o peso dos equipamentos nas mochilas contribuem para a instabilidade. O perfil do solado de borracha garante tração noutros terrenos, mas sobre o gelo apresenta tanta utilidade quanto a lâmina de um patim. O vento de 16 km/h derruba a sensação térmica para -15°C. A superfície está coberta de ondulações, como um oceano em miniatura. Só é possível andar a passos miúdos de ancião, e a beira da pista parece mais distante que o próprio polo Sul, a 1.083 km. Estão à nossa espera Ulisses Franz
Bremer, 48, geógrafo mineiro da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e Marcio Cataldo da Silva, 30, carioca, biólogo da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Encostados em motos de neve Yamaha
Altas latitudes Como o eixo de rotação da Terra é inclinado 23O em relação ao plano da órbita em torno do Sol, durante metade do ano o polo Sul fica mais virado para a estrela do que o polo Norte. Na outra metade do ano, ocorre o inverso
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pretas, uma delas com bandeirinha do Brasil no bagageiro, os dois integrantes da expedição seguram placas de cartão com os nomes “Mr. M. Leite” e “Mr. T. Pires”. Os demais passageiros já vão adiantados na caminhada de 1.850 m até o acampamento da ALE. Enquanto tento alcançá-los e Toni fotografa o avião, Bremer e Cataldo transportam as malas em trenós até o acampamento brasileiro, 750 m para oeste. Sou um dos últimos a entrar na barraca principal da ALE, um casulo azul e branco de 20 m x 5 m e piso de madeira. No ambiente maior há uma dezena de mesas compridas com oito ou dez lugares. Umas cem pessoas –metade passageiros que chegam, outra metade que parte dentro de uma hora de volta à América do Sul– se debruçam sobre pratos fumegantes. As lentes de meus óculos se embaçam de imediato, assim como a
No verão antártico, o continente fica o tempo todo exposto ao sol, que não se põe sob o horizonte
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NO CORAÇÃO DA ANTÁRTIDA
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São Paulo Santiago
(BRASIL)
(CHILE)
O ACAMPAMENTO BRASILEIRO Luiz Fernando e Marcelo Arévalo Água Banheiro
NUVEM LENTICULAR
da câmera fotográfica. Toni entra na barraca e enfrenta a mesma dificuldade. A preleção da gerente britânica Fran Orio aos recém-chegados recomenda muita água, máscaras de neve e luvas –três requisitos para prevenir os males antárticos comuns: desidratação, pois se perde muita água pela respiração neste que é o maior deserto do mundo, cegueira da neve, dolorosa queimadura da córnea por raios ultravioleta e congelamento (“frostbite”) de extremidades do corpo, como dedos e nariz. Ela deve saber do que fala, já que lhe falta o polegar da mão esquerda.
Barbas grisalhas
Saímos de volta para o frio. Bremer e Cataldo já nos esperam com as motos e seguimos para o acampamento brasileiro. O percurso é suave, com poucos
Heitor e Marcio Combustível
Ulisses e Chico
Motos
Cozinha Pista IL-76
(CHILE)
Rosemary
Carga
Módulo Azul (Jefferson)
Estação Antártica Comandante Ferraz
Marcelo Leite/Folha Imagem
2.157 km
Pista Twin Otters
Acampamento base
Monte Johns
“Gordito”, o módulo de fibra de vidro emprestado por pesquisadores chilenos ao grupo brasileiro, serve como escritório e dormitório
solavancos nos “sástruguis”, línguas de neve dura esculpidas pelo vento que sopra quase sem cessar do sul (basta observar o alinhamento dos calombos para deduzir a direção predominante do vento). O ruído das motos atrai o líder da expedição, glaciólogo Jefferson Cardia Simões, 50, da UFRGS, e seu braço direito, o geógrafo Francisco Eliseu Aquino, 38, mais conhecido como Chico Geleira, por causa de pesquisas anteriores sobre movimentação de geleiras na península Antártica, 2.000 km ao norte de Patriot. A equipe da Expedição Deserto de Cristal se completa com mais quatro pessoas: os geógrafos da UFRGS Rosemary Vieira, 42, carioca, e Luiz Fernando Magalhães Reis, 51 (que também é químico), gaúcho, o físico carioca Heitor Evangelista da Silva, 45, da Uerj, e
Montes Patriot km 83 1.0
É comum o ar frio vindo do platô antártico causar a formação de nuvens em forma de lente, ou capuz, quando encontra a barreira de uma montanha e é forçado a subir suavemente, resultando na condensação do vapor logo acima do relevo
Marcelo Leite e Toni
Punta Arenas
Polo Sul geográfico
o chileno Marcelo Arévalo, 48, da Universidade de Magalhães, em Punta Arenas. Arévalo é o alpinista da expedição, capacitado para resgates no caso de acidentes nas montanhas ou em fendas de gelo. Os oito integrantes da missão chegaram a Patriot em 30 de novembro e ali permaneceriam até 13 de janeiro. Para dar-nos as boas-vindas, Simões e Aquino deixam o conforto relativo do módulo de fibra de vidro emprestado pelo Instituto Nacional Antártico do Chile (Inach) –uma espécie de iglu azul apelidado de “gordito”, com cerca de 7 m x 3 m, piso de fibra e quatro escotilhas de plástico. Ambos já parecem recuperados da parte mais exaustiva da expedição, o deslocamento de metade da equipe para 250 km a oeste daqui, entre os montes Johns e Woollard. Eles coordenaram lá uma
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A equipe de cientistas brasileiros: da esq. para a dir., Jefferson Simões (chefe da expedição), Francisco Aquino, Ulisses Bremer e Rosemary Vieira
campanha de perfuração de gelo em pleno platô antártico, na companhia de Arévalo e Reis, sob temperaturas de até -28 oC e sensação térmica de -40oC (leia reportagem na pág. 34). Após quase um mês na Antártida, os homens ostentam barbas crescidas e grisalhas –com exceção de Cataldo, o mais jovem, que tem barba e cabelos compridos negros. Todos explicam a disposição de enfrentar as agruras antárticas com base em sonhos juvenis de exploração, alimentados pelos relatos de pioneiros polares como Robert Falcon Scott, Ernest Shackleton e Roald Amundsen. Rosemary Vieira conta que começou a interessar-se pela origem das montanhas na adolescência, enquanto as escalava na região de Nova Friburgo (RJ), o que a levou à geografia física e às geleiras. O líder Simões, no entanto, combate visões românticas da ciência antártica: “Aventura nesta atividade não existe. Existem só os incautos”, afirma, adaptando uma máxima de Amundsen. Roald Amundsen (1872-1928) “Aventura é apenas mau planejamento”, frase do norueguês, que liderou a primeira expedição a alcançar o polo Sul, em 1911
27 ANOS NA PERIFERIA DA ANTÁRTIDA O acampamento-base da Expedição Deserto de Cristal foi montado pelo Núcleo de Pesquisas Antárticas e Climáticas da UFRGS em Patriot por causa da logística oferecida pela empresa ALE. É o único lugar que pesquisadores brasileiros podem alcançar no interior do continente sem depender da Marinha Brasileira ou de instituições científicas estrangeiras, como o Inach, parceiro chileno do Nupac em outras expedições –uma delas levou Simões ao polo Sul no verão de 2004/2005, numa travessia de 2.300 km em tratores. A Marinha e a Força Aérea nacionais, que dão apoio logístico ao Programa Antártico Brasileiro (Proantar), não estão capacitadas para operar longe das temperaturas amenas da região da península Antártica, na ponta da qual fica a ilha Rei George, sede da Estação Antártica Comandante Ferraz. Os aviões C-130 (Hércules) da FAB poderiam pousar sobre rodas no gelo de Patriot, como faz o Ilyushin, mas para tanto seria preciso que chilenos treinassem pilo-
tos brasileiros nessa arte –coisa que no momento está fora dos planos da FAB. Essa limitação logística confinou a pesquisa polar brasileira à periferia da Antártida nos 27 anos de vida do Proantar. Com acesso apenas por embarcações como o navio de pesquisa ocea-nográfica Ary Rongel e voos curtos de helicóptero, ela se restringiu às ilhas e ao litoral da península. Nas áreas costeiras está o 1% da Antártida que fica livre de neve e gelo durante os verões, portanto muito pouco representativo das condições nos restantes 99% do continente. Os projetos de pesquisa tendem a se concentrar nas áreas de oceanografia e fauna, compondo um portfólio científico modesto mesmo diante de outras nações sul-americanas, como Chile, Argentina e Peru, ou de economias de porte similar, como a Coreia do Sul, que
Estação Instalada em fevereiro de 1984 na baía do Almirantado, ilha Rei George (Shetlands do Sul), a Estação Antártica Comandante Ferraz (EACF), base do Proantar, começou com 8 módulos e hoje tem 63
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Heitor Evangelista, Marcio Cataldo, Luiz Fernando Magalhães Reis e Marcelo Arévalo (o único chileno da Expedição Deserto de Cristal)
construiu um navio quebra-gelo para aumentar seu raio de ação na Antártida. Os programas de pesquisa antártica de países mais desenvolvidos, como Reino Unido e EUA, foram desmilitarizados e operam com embarcações e aviões próprios ou contratam o equipamento mais adequado para cada projeto. A pesquisa do Proantar tem hoje direção civil, a cargo do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), mas a logística permanece sob o controle da Marinha, o que dá a ela o poder de interferir no andamento dos estudos e é objeto de críticas entre cientistas. A decisão de um comandante de não desembarcar em uma determinada enseada, ou uma tripulação de helicóptero que descarregue equipamento científico no local errado, pode pôr a perder a viagem do pesquisador e meses de planejamento de um projeto, como já aconteceu. O mais recente ponto de atrito entre cientistas e militares brasileiros surgiu com a compra e adaptação de um navio norueguês (o Ocean Empress), em que se investiram R$ 71 milhões, para dividir missões antárticas com o Ary Rongel. O Navio Polar Almirante Maximiano, de 93 m, terá uma tripulação
de 54 militares e acomodação para 106 pessoas –apenas um terço destinado à comunidade científica. Pesquisadores reclamam que não foram chamados a opinar sobre o novo “layout” do navio. Com as verbas disponíveis para pesquisa polar os cientistas parecem satisfeitos, graças ao impulso trazido pelo Quarto Ano Polar Internacional
65% MAIOR QUE O BRASIL
A Antártida cobre uma área de 14 milhões de km2. O mar congelado à sua volta varia de 3 milhões de A Antártida cobre uma área de km2 a 18 milhões de km2 milhões de km2. O mar congelado (no14 inverno)
à sua volta varia de 4 milhões de km2 a 22 milhões de km2 (no inverno)
2007-2009, esforço global de pesquisa que, apesar do nome, durou dois anos e termina neste mês. De um patamar de R$ 1 milhão anual, o orçamento da pesquisa antártica brasileira saltou para a casa dos R$ 10 milhões. Um total de 64 nações participa da empreitada internacional, com projetos de investigação e levantamento de dados que devem manter 10 mil cientistas ocupados pelo menos até 2011. A contribuição do Brasil –sétimo país mais próximo da Antártida– reúne 30 instituições de pesquisa e dez projetos, entre os quais se destaca a Expedição Deserto de Cristal, o único com trabalho de campo fora da região da península Antártica. Com R$ 700 mil de orçamento, a expedição é o segundo projeto mais dispendioso do Proantar no Ano Polar. Chegou a correr risco de não se realizar, com a alta do dólar no final de 2008, que reduziu a equipe de 14 para 8 pessoas. Mas cumpriu seu objetivo central: sob a neve de Patriot já estavam prontas para o embarque as 16 caixas de isopor com mais de uma centena de testemunhos de gelo, colunas escavadas do manto polar cuja análise físico-química permite obter informações sobre o clima do passado.
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Francisco Eliseu Aquino, o Chico Geleira, geógrafo da UFRGS, coleta dados de pressão atmosférica, velocidade do vento, temperatura do ar e sensação térmica com aparelho que todos levam pendurado no pescoço e chamam de “amuleto”
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Marcelo Leite/Folha Imagem
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Marcelo Leite/Folha Imagem
Marcelo Leite/Folha Imagem
Acima, “goulash” (ensopado húngaro) servido na chegada dos turistas à barraca principal da ALE; à esq. a boneca “doméstica” para alerta sobre a arrumação da cozinha no acampamento brasileiro
URINAR, COMER, DORMIR Se as condições meteorológicas ditam tudo o que se pode e deve fazer na Antártida, a vida do indivíduo é governada pela fisiologia. Isso fica evidente durante o passeio de apresentação do acampamento, ciceroneado por Simões e Aquino. A primeira coisa que mostram são o mictório masculino ao ar livre –um biombo improvisado com tambores de combustível e botijões de gás, atrás do qual um tonel com funil faz as vezes de urinol. Em seguida, a barraca da privada –uma caixa de carga de marfinite com tampa de vaso sanitário adaptada, sob a qual se posiciona um balde forrado com saco plástico preto. No caso da barraca-banheiro, há duas
Havia dois tipos de banheiro no acampamento: um de tonel com funil para os homens urinarem; e a barraca com vaso sanitário para o restante Bambus são usados para marcar a localização de objetos em caso de nevasca
instruções importantes a seguir. Em primeiro lugar, não esquecer de retirar o saco do balde, fechar bem a boca dele, depositar na pilha do lado direito e forrar o balde com um saco novo. Além disso, deitar o bambu do lado de fora durante a ocupação e pô-lo de novo em pé, fincado na neve, ao terminar. Dessa maneira, qualquer um pode enxergar de outras barracas se o território está livre. A parada seguinte é a cozinha, uma tenda Weather Heaven amarela, azul e vermelha apelidada de “jabuti”, centro físico e social do acampamento. Antes de entrar, mais um aviso de higiene: o quadrado demarcado por quatro estacas, a 5 m da porta, fica reservado para a coleta de neve para fazer água. Não deve ser pisado, para evitar contaminação. A primeira noite de sono não dura mais que três horas. O saco de dormir recheado de penas e dotado de capuz é
eficiente, mas não o bastante para apagar o fato de que estou separado da neve e de temperaturas negativas apenas pelo piso de plástico negro da barraca, por uma esteira de isolante térmico emborrachado e por um colchão inflável com 2 cm de espessura. A parede dupla da barraca contribui para aquecê-la, mas o ar quente se concentra na parte superior, onde secam as meias e os forros das botas. A luz amarela filtrada pela lona não convida à leitura, penosa também pela necessidade de manter fora do saco ao menos um antebraço, que gela em poucos minutos. Na tenda há espaço para duas pessoas deitadas, quatro malas empilhadas e menos de um metro quadrado livre para apoiar botas com neve grudada, uma por vez, na complicada manobra de entrar pela porta dupla em formato de manga de camisa, uma voltada para
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Rosemary Vieira enche panela com neve, na área demarcada com bambus, para derretimento no fogareiro e produção de água para beber e cozinhar; no acampamento, há um panelão sempre cheio de neve que, no entanto, produz só um quinto do volume de água depois de derretida
Jefferson Simões pede para encher o prato, ao lado de Heitor Evangelista; no caldeirão, um sachê de alumínio e plástico contendo comida pronta, em geral ensopados; a temperatura na “cozinha” varia de 4oC a 8oC
fora, outra para dentro. A neve trazida pelas botas se acumula no pequeno quadrado de piso livre, como areia num acampamento de praia, e nunca derrete. Faz muito frio, a qualquer hora do dia, o que se sente em especial nos pés, mas bem menos que do lado de fora. Todos mantêm na barraca uma garrafa só para urinar durante o período de sono, sem ter de acrescentar duas ou três camadas adicionais de roupa, para sair. A disposição metódica do acampamento não se reflete nos horários. Cada um dorme e acorda na hora que quer, ou consegue, já que o sol nunca se põe. Se o vento e a nevasca amainarem na madrugada –por convenção se adota o horário chileno, uma hora atrás de Brasília–, é quase certo que alguém aproveitará a brecha para sair de moto e realizar algum trabalho de campo. A única atividade conjunta, quando calha de dar certo,
Entrada da barraca de dormir, em formato de manga de camisa, após uma nevasca
é a também única refeição quente do dia, em algum horário entre 16h e 2h. No restante do tempo, come-se sem parar. Biscoitos, sucrilhos, torradas, chocolate, chá, café, leite quente. Não preciso de conselhos de saúde para buscar de forma contínua e premente as calorias e os líquidos capazes de manter meu metabolismo acelerado. Afinal, todo o calor disponível para o organismo, dentro das roupas ou do saco de dormir, é produzido por ele mesmo. Nas duas semanas em que estive no acampamento, a mínima registrada no bloquinho de Aquino não cairia abaixo de -10,4o C, embora ventos de mais de 30 km/h, com rajadas de até 100 km/h, pudessem levar a sensação térmica a -22o C. Minha primeira refeição acontece às 17h do dia 27, um sopão de macarrão reformado pelo biólogo Cataldo a partir de um cozido do dia anterior. A ba-
se de proteína é um escalope de carne que saiu das almofadas verde-escuro de plástico aluminizado produzido por uma empresa de Campinas (SP), comida pronta fornecida pela Marinha que ocupa o topo do ranking de queixas, empatada com as diárias pagas aos expedicionários (R$ 50). O frango cozido e as almôndegas são quase aceitáveis, depois de retirados do molho que preenche a embalagem fechada a vácuo e refogados com azeite de oliva e temperos. No mais, o cardápio é o previsível em um acampamento: sardinha e atum (em óleo e não água, para não forçar as latas e vazar se congelados), macarrão instantâneo de vários sabores, farofa pronta, batata palha, ketchup... Quase sempre tudo misturado, em pratos plásticos com profundidade de tigelas e porções de fazer inveja a operários da construção civil.
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A geógrafa Rosemary Vieira coleta pedras e solo na geleira de rocha do “vale da Avalanche”, a 2 km do acampamento brasileiro nos montes Patriot
GELO É MESMO AZUL E DOMINA A PAISAGEM A primeira saída do acampamento é uma caminhada de 1 km até a base chilena Parodi. Ela fica ao pé dos montes Patriot, que formam a ponta sul da série de cadeias de montanhas conhecida como vale da Ferradura, um semicírculo que se estende até o noroeste, a uns 40 km de distância. Nosso guia é o biólogo Cataldo, que parte em busca de açúcar para reforçar a despensa desfalcada. A temperatura está em -8o C, suportável. Com três camadas de camisetas e calças, uma jaqueta de feltro sintético (“fleece”) e o casaco de penas, começo a suar. Seriam necessários alguns dias até regular a quantidade de roupas e dominar o manuseio dos zíperes estratégicos, nas axilas e na lateral das calças de vento, para deixar parte do calor escapar. Uma dor de garganta começa a se
insinuar, mas sucumbe a anti-inflamatórios e ao conselho de respirar pelo nariz sempre, para aquecer o ar antes que atinja a mucosa da laringe. A base chilena é uma confortável reunião de módulos azuis iguais ao “gordito” conectados por uma galeria em formato de túnel e uma cozinharefeitório. Não se veem trancas, só velcro, e na Antártida a tradição é que comida abandonada pode ser usada por quem precisa. Há banheiros completos, com aquecedores e chuveiros para duchas semanais –conforto inexistente no acampamento brasileiro, onde todos sofrem com os cabelos empastados e quebram o galho com lenços umedecidos. A estação está desocupada há quase dois anos, parece cenário de um filme de ficção científica. A expedição brasileira ia alojar-se aqui, mas na última hora a negociação fracassou. Uma placa de alumínio escovado informa que a camada de gelo se desloca à velocidade de 8 m por ano em Patriot.
Há estabilidade suficiente para estabelecer uma pista de pouso no gelo, como fizeram militares chilenos. Um acordo permite que a ALE também a utilize. Um retorno ao contato direto com o gelo, após o pouso do Ilyushin, só acontece no domingo, nosso segundo dia. Rosemary Vieira nos convida para uma coleta de rochas na reentrância das montanhas defronte ao acampamento que apelidou de vale da Avalanche, por causa de uma falha na neve da encosta. Com o sol brilhando num ângulo mais favorável, fica evidente que o gelo é azul, mesmo, e não só por licença poética da glaciologia. A estrutura cristalina do gelo glacial absorve radiação na faixa da cor vermelha, deixando disponível para as retinas uma quantidade incomum de luz em frequências próximas do azul. Junto da montanha o gelo se projeta para baixo numa depressão, provável efeito da ação de ventos catabáticos, que têm origem no vórtice de ar sobre o polo Sul, um funil que o derrama pa-
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ra baixo com violência, escorrendo daí sobre o relevo, do platô para a periferia menos elevada do continente. Por isso os ventos predominantes na Antártida sopram do quadrante sul. Vista de cima, a onda de gelo reflete o sol e se parece com o mar. A não ser pelos raros afloramentos de rocha escura, a paisagem se impõe com grande variedade de formas em duas cores, o azul do gelo e do céu e o branco da neve e das nuvens. O olhar vagueia pela imensidão e não raro se equivoca quanto às distâncias, sempre maiores do que parecem. A onipresença do gelo se torna ainda mais evidente no anfiteatro que Bremer e Vieira escolheram para coletar sedimentos nesta tarde. Entre as duas vertentes de rochas verdadeiras há grandes áreas de cascalho interrompendo a brancura da neve. Ao abrigo do vento e sob efeito do sol forte, a temperatura do ar está em 3,8o C. As pedras absorvem radiação solar e ficam bem mais quentes, a 7,1o C. Cavando 3 cm, a temperatura baixa para 1,5o C. Mais um pouco e se alcança o permafrost, faixa de solo sempre congelada que em Patriot tem 25 cm de espessura. Abaixo disso, uma camada de gelo que pode ter centenas de metros acima do leito rochoso verdadeiro. Trata-se de uma geleira de rocha, explica Vieira: parte da montanha sob nossos pés não é de fato uma montanha, mas uma duna de gelo salpicada de cascalho. Essas geleiras revestidas de detritos se formam em condições específicas de baixa precipitação e baixa temperatura, não superior a 0oC, com vertentes laterais próximas de onde despencam pedaços de rocha erodidos por incontáveis ciclos de congelamento e descongelamento.
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Jaqueta sintética
KIT DE SOBREVIVÊNCIA As roupas especiais usadas pela equipe para enfrentar temperaturas de até -40°C
Parca impermeável
Imprescindível contra neve e vento. Recheada com penugem de gansos húngaros, para garantir o máximo de isolamento com o mínimo de peso
De tecido felpudo (“fleece”), usada por baixo da parca como camada mais espessa de aquecimento
Balaclava
Protege o rosto de congelamento pelo vento Gorro Pescoceira
Óculos/ máscara de esqui
Com filtro para radiação ultravioleta, previne a cegueira da neve
Malha de lã
Ou outras peças de “fleece” opcionais
De “fleece”
Minhocões
Dois pares de luva Um par mais fino para uso constante, ao qual se sobrepõe outro par, impermeável, para uso no ambiente externo Botim
De feltro impermeabilizado, encaixado dentro da bota, para manter o pé aquecido Botas polares
De borracha e materiais sintéticos impermeáveis
Duas ou mais calças de baixo de fibras inteligentes
Pares de meia
Dois ou mais pares de lã ou tecido sintético, que acumulam pouca umidade e secam rápido
Camisetas
Feitas de fibras “inteligentes”, que respiram e deixam sair o suor de junto do corpo (não se usa algodão, que acumula umidade)
Palmilha
Treliçada para isolar o pé do fundo da bota, que pode ficar úmido Calça de vento
Impermeável
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Campo de gelo azul perto do acampamento brasileiro em Patriot; a moto de neve da Expedição Deserto de Cristal leva dois pesquisadores
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MISTERIOSAS LINHAS INTRIGAM CIENTISTAS Após a coleta de material geológico, as duas motos de neve da Expedição Deserto de Cristal mal têm tempo de esfriar. Às 18h, quem sai nelas com Toni e comigo nas garupas são Evangelista e Cataldo. Seu destino é um ponto 12 km a leste do acampamento, longe das montanhas e perdido na planície branca. Seguimos na direção das Três Velas, um trio de “nunataks” –termo da língua esquimó inuit para cumes de montes submersos que conseguem aflorar no gelo. Os pesquisadores cariocas precisam reabastecer o gerador de seu experimento principal (leia box na pág. 38). De lá seguimos para o amplo vale da Universidade, formado pelos montes Patriot e Independence. É a chance de conhecer o outro lado das montanhas que margeiam o acampamento. Evangelista e Cataldo querem complementar suas amostras de testemunhos rasos (1 m de profundidade) com dois tipos de gelo: azul e marrom, por assim dizer. No primeiro caso, gelo não contaminado pelas emissões dos geradores, tratores, motos e aviões da ALE e seus vizinhos. No outro, gelo das enigmáticas linhas de sedimento que encontraram em paralelo ao pé das montanhas. Esses detritos rochosos suspensos no gelo haviam motivado uma acalorada discussão no dia anterior, na barraca da cozinha. Uns opinavam que teriam sido transportados do fundo da geleira para cima, verticalmente, quando ela encontrou a barreira das montanhas e subiu. Outros achavam que as linhas provinham de sedimentos saídos das próprias
Marcio Cataldo utiliza broca manual para retirar amostra de gelo, observado por seu orientador, Heitor Evangelista, ambos da Uerj
O gelo glacial na região de Patriot é azulclaro na superfície e fica cada vez mais escuro quanto maior for a espessura observada
montanhas. Vieira descobriria depois que as linhas misteriosas já começam a ser estudadas, sob o nome de “blue ice moraines” (morainas de gelo azul). O nome faz referência aos depósitos de sedimentos e rochas que resultam do avanço e do retrocesso de geleiras, conforme o clima se aquece ou resfria ao longo de séculos e milênios, transportando rochas de um lugar a outro. As linhas de pedras –morainas– que sobram demarcam a frente e a lateral da geleira que se retraiu. Nas imediações de Patriot há duas morainas enormes, Rivera e Casassa, batizadas com os nomes de glaciólogos chilenos que estudam a região há mais de dez anos e com quem Vieira estudou nos quatro anos que viveu no Chile. Escavando um cilindro de gelo com um testemunhador portátil (broca manual), Evangelista e Cataldo esperam poder analisar em detalhe as enigmáticas morainas de gelo azul, na volta ao laboratório do Rio, em busca de pistas sobre sua procedência. A expectativa é associar sedimentos antigos com as últimas glaciações, ciclos de avanço e recuo da massa de gelo, mas por ora permanece o mistério sobre a origem das linhas, que ainda alimentariam vários debates na cozinha. Perto da meia-noite, com quatro cilindros de gelo ensacados, etiquetados e acondicionados na caixa de isopor, retornamos ao acampamento. Não pelo mesmo caminho, nem pela outra boca do vale, a oeste, mas cruzando os montes Patriot por uma ponte de gelo entre duas cristas. A vista do alto é fenomenal e a rampa, suave, não chega a meter medo. Vinte minutos depois da meia-noite, após 42 km de percurso e seis horas de exposição ao frio, che-
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Linha escuras no gelo azul do vale formado pelos montes Independence (à esq.) e Patriot, também conhecidas como morainas de gelo azul
gamos famintos à barraca da cozinha. Atum com farofa e batata palha, torradas com queijo Polenghinho e chá preto resolvem o problema.
Tempestades e anomalias
O acontecimento do dia 29 de dezembro é a remontagem da sonda elétrica perfuradora de gelo que havia sido utilizada entre os montes Johns e Woollard (leia reportagem na pág. 34). O dia terminaria sem o pouso previsto do jato da ALE, um mau sinal –se o tempo continuar ruim e as chegadas e partidas, atrasadas, dificilmente sairá o voo de retorno dos brasileiros, previsto para 4 de janeiro. No dia seguinte, mais saídas de moto com Vieira e Simões, até a moraina Casassa e as montanhas Marble, outro
pedaço da Ferradura. Como todos já estão com suas quotas de peso estourando, diminui o ritmo da retirada de amostras e começam a seleção e o empacotamento para a viagem de volta. Aos poucos o acampamento inteiro se volta para a arrumação das 2,4 toneladas de carga que embarcarão no Ilyushin. Tempestade e nevasca chegam com o último dia do ano e dificultam até mesmo o leva-e-traz de caixas na neve fofa e sob vento intenso. O confinamento abate um pouco o moral da expedição. Uns passam mais tempo dormindo, outros com seus livros, relatórios ou DVDs. Simões libera o telefone por satélite para todos falarem com suas famílias, o que dá início a uma peregrinação ao “gordito”, onde ficam os equipamentos
eletrônicos. Alguns saem do módulo para falar de saudade sem constrangimento, mas de dentro se ouve tudo. A nevasca iniciada em 31 de dezembro dura quatro dias. O meteorologista da ALE diz que é a pior temporada dos últimos dez anos em Patriot. Como a região se encontra sob a influência dos mares de Bellingshausen e Amundsen, a suspeita é que a penetração de massas de ar mais úmido e quente tenha sido favorecida pelo aquecimento dessas seções do oceano Austral a oeste da península, sob efeito da mudança climática global. Essas massas de BellingshausenAmundsen aumentam a precipitação de neve e desencadeiam tempestades ao se chocarem com os ventos secos e frios que descem do platô. O colapso da
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Moraina (linha de pedras) e “nunatak” (palavra da etnia esquimó inuit para designar cume de montanha que aflora na geleira) nas montanhas Marble
plataforma de Wilkins é no momento o sinal mais forte da anomalia na região, o que faz temer que o tempo comece a mudar não só no verão de Patriot mas também nos invernos do Sul e do Sudeste brasileiros, pois é nessas áreas de mar congelado que se originam muitas frentes frias que alcançam o Brasil. A ceia de Ano Novo é frango reformado com arroz e amêndoas. Todos ainda alimentam a expectativa de que alguém da ALE chegue com um convite para festejar o Réveillon, como havia ocorrido no Natal. O chamado só vem às 23h20, mas transforma os pesquisadores, que saem em passo apertado, sob neve forte. Cataldo ainda arranja tempo para um mergulho em sua barraca, da qual emerge com calças jeans e
Plataforma de Wilkins Campo de gelo com vários metros de espessura e 14 mil km2 que cobre o mar da baía de mesmo nome na península Antártica. A plataforma conectava o continente a várias ilhas, como a Charcot, até há pouco mais de um ano
camiseta onde se lê “Climber” (escalador). A festa da ALE tem um quê de bar intergalático em “Guerra nas Estrelas”. Quase todos os homens de cabeça raspada, ou quase, muitas tatuagens e piercings. Um grupo de senhores japoneses desaparece do canto assim que terminam os brindes da meia-noite. Restam uns tantos alpinistas, a dezena de brasileiros e duas dúzias de funcio-
nários da empresa. Cerveja Austral e vinho também chileno, em caixinhas de papelão, são servidos à vontade. Na poncheira esculpida em gelo restam só vestígios de frutas, mas o “vulcão” a seu lado está ativo: uma funcionária animada convoca os recém-chegados para encostar a boca na abertura mais baixa, enquanto despeja rum, uísque ou o que estiver à mão pela abertura de cima. Entre uma convocatória e outra, dá tapas nas nádegas dos homens. Em seguida, atrasa o relógio da parede em uma hora, para ter um novo Réveillon. Na data marcada para a partida, 4 de janeiro, o tempo surpreende e se abre, reavivando a esperança de voltar para casa. Seriam porém cinco dias de frustração, com tempo limpo e muito vento,
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mas nenhum voo –segundo a ALE por causa das rajadas, da temperatura do gelo na pista, disso e daquilo, o que só contribui para espalhar a convicção de que a empresa está enrolando enquanto espera o retorno de alguma expedição ao maciço Vinson para lotar o Ilyushin.
Congelamento na mão
A pior notícia chega no dia 7, trazida por Steve Jones, outro gerente da empresa: o próximo voo ocorreria no dia seguinte, mas teria lugar só para dois brasileiros, Toni e eu. O mau humor se dissemina entre os cientistas da Expedição Deserto de Cristal, com poucas exceções. Chico Geleira é a mais notável. Propõe resgatar em espécie a dívida da ALE conosco: cebola, alho, azeite de oliva –que chega congelado numa garrafa PET–, queijo, vinho, cerveja e refrigerantes, luxos quase desconhecidos até então pelos expedicionários. O rancho incrementado dissolve um pouco da ansiedade, mas não muito. Depois de 39 dias dormindo e acordando no frio, sem banho, cama de verdade ou cadeiras com encosto, o estado de espírito parece compreensível. Vieira e Arévalo estão muito resfriados e passam boa parte do tempo na barraca. A geógrafa tem também algumas manchas pelo corpo, que são examinadas e fotografadas pelos médicos da ALE –um inglês e um sueco. Por insistência de Simões, Cataldo também os consulta sobre um inchaço que começara num ferimento no dedo médio da mão esquerda. Não chegam a um diagnóstico preciso, que só viria no Rio de Janeiro dez dias depois: princípio de congelamento nas articulações, provável resultado do vento nos muitos percursos de moto para abastecer
o experimento a 12 km de distância. “Tive necrose da derme e epiderme em todas aquelas regiões da mão. Depois que voltei, aos poucos o inchaço sumiu e deu lugar a placas escuras, quase pretas, de pele necrosada”, contaria Cataldo num e-mail. “Agora já descascou tudo e minha mão está nova em folha, com apenas uma ou duas pequeníssimas cicatrizes para contar a história para os meus netos.” O Ilyushin pousa de novo em Patriot só no dia 9, às 3h56, trazendo a pequena comitiva –uma dezena de pessoas– do príncipe Albert de Mônaco. Decola de novo às 6h15. Toni e eu ficamos com os últimos bancos laterais, de metal, entre duas paredes com três andares de tonéis vazios amarrados com cintas, que esta-
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lam para valer na decolagem e no pouso em Punta Arenas. Abertas a porta dianteira e a rampa traseira, a cabina é invadida pela umidade e um cheiro de terra e de plantas –uma outra onda de irrealidade, após duas semanas no gelo azul. Os oito integrantes da Expedição Deserto de Cristal ainda teriam de esperar mais quatro dias para voltar a Punta Arenas e outros cinco para aportar no Brasil, somando 60 dias longe de casa. Antes de deixar o Chile era preciso desembaraçar toda a carga e certificar-se de que o total de 21 caixas de gelo estavam seguras em câmaras frigoríficas, aguardando seus próprios voos para o Rio de Janeiro e para o Maine (EUA), onde ficarão pelo menos dois anos em estudo.
Passageiros caminham para embarcar no jato (ao fundo) que os levaria ao Chile, em 9 de janeiro
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Frank Hurley/Royal Geographical Society
Pra que serve esta
Aprisionado pelo gelo marinho no mar de Weddell, em 1915, o Endurance, de sir Ernest Shackleton, aderna 30 graus; o navio afundaria em novembro daquele ano...
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por Claudio Angelo, editor de Ciência
E
m fevereiro de 1775, após se tornar o primeiro homem a circunavegar o oceano Austral, James Cook encerrou assim o debate de séculos sobre a existência de um continente desconhecido no sul do planeta: “Terras condenadas à eterna frigidez, (...) cujo aspecto horrível e selvagem não tenho palavras para descrever: tais são as que descobrimos e as que podemos imaginar existirem mais ao sul”. A bordo do HMS Resolution, o britânico havia chegado a 150 km da costa da Antártida, mas sem avistar o continente. A quem se dispusesse a avançar além dele, Cook deixou um aviso: “Não me causará inveja pela honra da descoberta, mas atrevo-me a dizer que o mundo não se beneficiará dela”. Não foi preciso muito tempo para que a profecia se mostrasse furada. Já em 1784 o mundo –ou parte dele– começou a se beneficiar da Antártida, quando caçadores de focas chegaram
às ilhas Geórgia do Sul e Sandwich do Sul em busca da valiosa pele do lobomarinho (Arctocephalus gazella). O influxo, ironicamente, fora inspirado pelo próprio Cook, que nove anos antes registrara as vastas quantidades de focas e baleias nos mares austrais. A história de Cook e dos foqueiros é emblemática do cabo-de-guerra entre descoberta e exploração econômica, entre ciência e pecúnia, que marca a história da Antártida. Foi um cientista, Edmond Halley, quem viu seus icebergs tabulares típicos pela primeira vez, e um explorador, o russo Thaddeus Bellingshausen, o primeiro a avistar o continente. Mas foram caçadores de focas os primeiros a pôr os pés em terras antárticas e a enfrentar o inverno na região. Foram foqueiros e baleeiros que mapearam grande parte do litoral antártico no século 19. Mas foi um evento científico, o Terceiro Ano Polar Internacional, em 1957/58, que permitiu a efetiva ocupação do continente antártico e acabou por colocá-lo sob administração internacional. Desde o Terceiro Ano Polar (ampliado para Ano Geofísico Internacional), a ciência vem prevalecendo no continente. O Tratado da Antártida, adotado em 1959 sob inspiração do Ano Geofísico e ratificado em 1961, consagra o território antártico à paz, e uma emenda ao tratado, o Protocolo de Madri, de 1991, proíbe ali até 2041 qualquer atividade que não seja a pesquisa científica, o turismo e, principalmente, a preservação ambiental. Dificilmente alguém que chegasse às ilhas Shetlands do Sul (onde fica a estação brasileira Comandante Ferraz) em 1820 imaginaria que aquela região seria convertida em um santuário ecológico algum dia. As ilhas antárticas naquela época se pareciam mais com um gran-
de abatedouro, onde lobos-marinhos eram mortos aos milhares. As cifras exatas jamais serão conhecidas –os foqueiros não reportavam suas capturas, nem revelavam seus locais de caça, por medo de concorrência–, mas Robert Headland, especialista em ocupação da Antártida do Instituto Scott de Pesquisa Polar, no Reino Unido, estima em “milhões” o número de animais abatidos. Um dos caçadores, James Weddell –descobridor do mar que hoje leva seu nome–, estimou em pelo menos 420 mil os lobos-marinhos massacrados entre 1821 e 1822. Ficou tão chocado com o tamanho do abate que propôs um esquema, nunca adotado, de captura de “apenas” 100 mil animais por ano. O lado positivo dessas viagens de extermínio foi que os foqueiros acabaram descobrindo novas terras na Antártida. “Foram tantas as expedições, mais de 1.500, que alguma descoberta era inevitável”, diz Headland, autor de “A Chronology of Antarctic Exploration”, um compêndio de mais de 700 páginas
J. Ziegler
A HISTÓRIA DA ANTÁRTIDA TEM SIDO MARCADA PELA DISPUTA ENTRE A CIÊNCIA E A EXPLORAÇÃO ECONÔMICA. A PRIMEIRA ESTÁ LEVANDO A MELHOR –POR ENQUANTO
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...no mesmo mar, em fevereiro de 2007, o quebragelo alemão Polarstern desembarca cientistas
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e 2,4 quilos sobre a ocupação da região, recém-lançado na Inglaterra. Outro efeito colateral do extermínio das focas, afirma o pesquisador, foi uma explosão nos estoques de krill no oceano Austral –o que, por sua vez, levou a uma explosão na população de baleias, o recurso natural seguinte a ser explorado na Antártida.
A viagem magnética de Ross
Reprodução
A ciência retomaria as rédeas da conquista polar novamente na década de 1830. Naquele período, as focas já estavam praticamente extintas, e a existência de um grande continente austral, mais ou menos demonstrada. Só que ninguém ainda conseguira penetrar o mar congelado acima dos 71 graus de latitude, o ponto “ne plus ultra” (além do qual ninguém avançara) das navegações de Cook e Weddell. Isso dava margem a todo tipo de especulação, inclusive uma teoria maluca segundo a qual a Terra era oca nos polos. Também restava um mistério a resolver: a localização do polo magnético. Numa época em que a mentalidade
científica e exploratória dos europeus alcançou seu ponto máximo (foi em 1831, por exemplo, que Charles Darwin partiu a bordo do Beagle), esse era um buraco imperdoável no conhecimento. Três expedições foram organizadas e enviadas simultaneamente, a partir de 1838, com o mesmo objetivo de superar Cook e achar o polo magnético Sul: a do francês Dumont D’Urville (que batizaria uma parte do continente e uma espécie de pinguim em homenagem a sua mulher, Adélie), a do americano Charles Wilkes e a do britânico James Clark Ross. Os navios de Ross, o Erebus e o Terror, entraram na banquisa por três vezes entre 1840 e 1843. Ross não chegou a descobrir o polo magnético (que mostrou ficar em terra, não no mar), mas penetrou até os 78 graus de latitude sul, batendo Cook e Weddell. De quebra, descobriu terra no continente, à beira do mar que hoje leva o seu nome, além da grande plataforma de gelo antártica, a barreira de Ross, de onde partiriam as expedições de descoberta do polo geográfico Sul.
A viagem de Ross deu “momento” à ideia de conduzir investigações científicas na Antártida, diz Colin Summerhayes, presidente do Scar (Comitê Científico sobre Pesquisa Antártica), entidade que coordena a ciência na região. Esse esforço acabou resultando no Ano Polar Internacional, em 1882-1883, primeiro esforço multidisciplinar de pesquisa polar. Apesar de ter lançado a semente da cooperação internacional, o Ano Polar foi um fiasco na prática. Só em 2006, 123 anos depois, os dados coletados durante o evento seriam processados.
O massacre das baleias
Quem aproveitou muito melhor que os cientistas as observações de Ross foi uma atividade que seria o terror do oceano Austral até 1965: a indústria baleeira. Assim como Cook fizera com as focas, Ross reportara grandes quantidades de baleias em seus diários, o que serviu de guia para expedições de caça que começaram a chegar à Antártida esporadicamente em 1874. As condições de captura,
George F. Mobley/National Geographic/Getty Images
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O polo Sul em dezembro de 1911, conquistado pelo norueguês Amundsen e quatro companheiros, e hoje, na estação americana Amundsen-Scott
no entanto, desencorajaram os caçadores: a maioria das baleias eram azuis, fin e minkes, que nadam rápido demais para serem alcançadas por veleiros. Para não perder a viagem, esses caçadores exterminaram o restante das focas antárticas. A partir de 1904, o advento dos navios a motor, somado à invenção do arpão de ponta explosiva, permitiram à indústria baleeira moderna se instalar na Antártida e caçar as baleias velozes. A primeira estação industrial, Grytviken, na Geórgia do Sul, foi estabelecida pelo norueguês Carl Larsen, que deu nome à plataforma de gelo que se esfacelou em 2002 sob influência do aquecimento global. Entre 1904 e 1965, 1,4 milhão de baleias foram mortas na Antártida. “Se somarmos as capturas em áreas de reprodução, ao norte dos 40 graus Sul, o valor total chega a quase 1,8 milhão”, diz o brasileiro Alexandre Zerbini, oceanógrafo da Noaa (Agência Nacional de Oceanos e Atmosfera) dos EUA. A sanha dessa indústria, que fazia de óleo de motor a margarina à base de baleia, levou esses cetáceos à beira da extinção e alterou o ecossistema antártico (desta vez permitindo a recuperação das focas e a explosão da população de pinguins). Até hoje, praias das Shetlands do Sul são coalhadas de ossos de baleia. O advento dos baleeiros também pôs em movimento um problema que explodiria décadas depois e que até hoje não foi resolvido: as pretensões territoriais na Antártida, principalmente aquilo que Robert Headland chama entre risadas de “a questão do ABC”: argentinos, britânicos e chilenos. “Muito tempo atrás houve reivindicações territoriais britânicas, mas nunca ninguém fez nada a respeito até que houvesse dinheiro na jogada, no
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Reprodução
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Da esquerda para a direita: Wilson, Bowers (sentado), Scott, Evans (sentado) e Oates
A RESSURREIÇÃO DE SCOTT A história não foi gentil com Robert Falcon Scott. Além de ter perdido por um mês a corrida pelo polo Sul para seu rival, o determinado e metódico Roald Amundsen, o capitão da Marinha Real Britânica ainda morreu no caminho de volta com quatro de seus companheiros, Edward Wilson, Henry Bowers, Edgar Evans Wiliam e Oates no começo de 1912, na barreira de Ross. A lenda que se criou em torno de seu nome diz que Scott era um trapalhão incompetente que morreu e matou seus homens porque planejou mal a expedição. Em vez de cachorros, levou pôneis, inúteis na Antártida, para puxar trenós. Desprezou os esquis, levou pouca comida e pouco combustível, era mau navegador e não entendia do clima antártico. Sua morte a menos de
20 km de um depósito de comida e combustível, seria a maior prova disso. Nos últimos anos, no entanto, a figura de Scott tem saído da geladeira. Um dos principais esforços nesse sentido foi o livro “The Coldest March”, da climatologista americana Susan Solomon, publicado em 2001. Solomon analisou o registro meteorológico antártico e concluiu que, a cada dez anos, as temperaturas na barreira de Ross caem para abaixo de -40ºC em março. E março de 1912 era um desses anos. A essa temperatura a neve impede os trenós de deslizarem. Scott cometeu, sim, vários erros, como levar roupas inferiores às de Amundsen (que havia copiado dos esquimós) e subutilizar os cães. Mas, sobretudo, deu um tremendo azar.
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licenciamento da atividade baleeira”, afirma Headland. A península e as ilhas subantárticas eram consideradas território britânico, e os ingleses cobravam taxa de quem quisesse caçar por lá. Isso levou os noruegueses a declarar a posse de um enorme território a leste da península, e os argentinos e os chilenos –que consideram a península o seu quintal– a baterem o pé nas próprias reivindicações. “Os argentinos são ferozes, os chilenos são muito quentes também, e isso significa que os britânicos não podem esquecer! E de tempos em tempos eles recebem lembretes, o maior deles em 1982 com as... como vocês chamam em português? Ilhas Malvinas! A Antártida foi uma das questões envolvidas”, gargalha o pesquisador, lembrando a guerra declarada pela ditadura argentina contra o Reino Unido pelo arquipélago –que os britânicos chamam de Falklands.
A era heroica
Depois do Ano Polar, os cientistas voltariam a investir na Antártida a partir de 1895, quando o Congresso Geográfico Internacional elegeu o continente branco sua prioridade. Foi o início da breve, mas intensa, “era heroica” da exploração, na qual homens frequentemente mal equipados e mal preparados se aventuraram no interior do continente. Duas expedições perderam seus navios, esmagados pela banquisa: a do sueco Otto Nordenskjold, em 1901-1904 (a bordo do Antarctic) e a do britânico Ernest Shackleton, em 1914-1917 (a bordo do Endurance). E uma delas perdeu cinco vidas, incluindo a de seu líder, o britânico Robert Falcon Scott (leia quadro na pág. 31). O saldo dessa fase de exploração foi a conquista do polo Sul, em 14 de dezembro de 1911, pela expedição norue-
O POLO DE HITLER Em um dos capítulos mais misteriosos da exploração polar, o vice de Adolf Hitler, Hermann Göring, mandou uma missão secreta à Antártida em janeiro de 1939. Chegou-se a especular que os alemães tivessem feito uma base polar, um refúgio para o Führer caso perdesse a guerra. Mas não foi nada disso. Segundo o pesquisador Colin Summerhayes, a ideia era reivindicar terras na região para que a indústria baleeira alemã pudesse operar livremente –a glicerina usada nos explosivos vinha do óleo de baleia. Göring também queria testar o funcionamento de aviões em baixas temperaturas, para poder invadir a Rússia.
guesa comandada por Roald Amundsen. Apesar do triunfo de Amundsen, quem passaria para a história como o maior explorador polar de todos os tempos seria Shackleton, que fracassou em suas três viagens à Antártida. Na primeira delas, acompanhando Scott no Discovery em 1901-1902, Shackleton adoeceu com escorbuto e quase morreu. Na segunda, liderada por ele mesmo a bordo do Nimrod em 1907-1909, ele chegou a 156 km do polo geográfico, mas foi forçado pelo mau tempo a dar meia-volta. Na terceira viagem, a bordo do Endurance, já agraciado com o título de “sir”, Shackleton tentou fazer a primeira tra-
vessia da Antártida a pé, desembarcando no litoral do mar de Weddell, cruzando o polo e embarcando no mar de Ross. O Endurance deixou a Inglaterra em agosto de 1914 e foi aprisionado pelo gelo marinho de Weddell no dia 18 de janeiro de 1915. A partir daí, começou a derivar a noroeste, até ser esmagado pela banquisa em outubro e afundar em novembro. O que se seguiu foi talvez a maior aventura da história da exploração geográfica. Shackleton e seus 27 homens viveram durante seis meses sobre placas de gelo flutuantes, algumas com poucos centímetros de espessura, sob a ameaça constante de que o “chão” se abrisse à noite e tragasse os homens para o mar gelado, ou que uma orca confundisse os homens com focas e rompesse as placas em busca de uma refeição –como, de fato, aconteceu. Depois disso, em três botes, alcançaram a ilha Elefante, a 180 km do bloco de gelo à deriva sobre o qual acampavam. Shackleton deixou 22 homens em Elefante e partiu com cinco companheiros num bote de 6 metros, o James Caird, para buscar ajuda. Objetivo: ilha Geórgia do Sul, a 1.500 km dali, numa travessia de 16 dias pela passagem de Drake, o mar mais tempestuoso do mundo. Num esforço final, o grupo ainda teve de cruzar a Geórgia do Sul a pé, para buscar ajuda na estação baleeira de Grytviken. Os homens em Elefante foram resgatados quatro meses depois. Todos sobreviveram.
“Pax Antarctica”
A era heroica assentou as bases para a exploração do interior do continente, que foi praticamente congelada no entreguerras e retomada com força no Ano Geofísico Internacional de 1957-58, após um Segundo Ano Polar Internacional
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Toni Pires/Folha Imagem
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Este esqueleto de baleia-jubarte foi montado por Jacques Cousteau na ilha Rei George, como um memorial do massacre desses cetáceos no século 20
pífio em 1932. O pós-Segunda Guerra trouxe aos cientistas outra urgência: evitar que a Antártida se tornasse a próxima fronteira da Guerra Fria entre EUA e URSS (mal sabiam eles que os EUA detonaram secretamente três bombas nucleares sobre o oceano Austral em 1958). O esforço de cooperação entre americanos e soviéticos no Ano Geofísico foi real e levou à construção de dois legados antárticos: a estação americana Amundsen-Scott, no polo Sul, e a russa Vostok, no alto do platô polar. À cooperação científica seguiu-se também a cooperação política. Em 1º de dezembro de 1959, os 12 países que participaram do Ano Geofísico assinaram em Washington o Tratado da Antártida, que estabelece no seu artigo primeiro que “a Antártida deverá ser usada apenas para fins pacíficos”. As reivindicações territoriais, embora não fossem negadas, foram congeladas por seus signatários, que hoje são 27 (incluindo o Brasil, que se juntou ao clube em 1975). “Eu chamo isso de Pax Antarctica”, diz Bob Headland. Como todos os acordos voluntários,
no entanto, o Tratado da Antártida se assenta sobre bases frágeis. “Por exemplo, se minerais valiosos, sequências genômicas ou alguma outra coisa que atenda a uma demanda mundial forem encontrados na Antártida, o pior cenário é que se rompa o tratado”, afirma o britânico. Com isso seriam reativadas as pretensões territoriais de sete países (além de Argentina, Chile e Reino Unido, França, Austrália, Nova Zelândia e Noruega). As chances de isso acontecer no momento são pequenas. O continente não possui nenhuma jazida mineral identificada com potencial comercial. “Vamos falar sério: o único mineral explorável são rochas para a construção civil, porque 99,7% da Antártida estão cobertos de gelo permanente”, ri Headland. “Geologicamente, há formações semelhantes às de áreas com minerais da Austrália e da África do Sul. Deve haver minerais lá, mas é difícil chegar até eles.” Um protocolo sobre exploração mineral chegou a ser negociado, mas acabou substituído pelo Protocolo de Madri, que estabelece a proteção ambiental.
“Acho que as pessoas que eram a favor da ideia foram levadas à Antártida e então se deram conta do quão incrivelmente difícil seria fazer mineração ali, uma vez que quase nenhuma rocha está exposta, o gelo é grosso em toda parte, as temperaturas são extremas, o tempo é medonho, a maioria do continente fica no escuro seis meses por ano, ele é cercado por um cinturão maciço de gelo de 1.000 km de largura, há poucos portos seguros e no verão o mar fica coalhado de icebergs maciços que tornam a navegação e a instalação de plataformas de petróleo no mar arriscadas”, enumera Colin Summerhayes, do Scar. Pelo sim, pelo não, recentemente o Reino Unido e a Austrália incluíram seções do oceano Austral no levantamento de suas plataformas continentais, o que em tese transforma parte da Antártida em sua zona econômica exclusiva –uma reserva para eventual uso futuro. James Cook jamais imaginaria que suas “terras condenadas” fossem um dia despertar tanta cobiça. Grande navegador, péssimo profeta.
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Jefferson Simões/Nupac/UFRGS
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O maior O MANTO DE GELO QUE COBRE A ANTÁRTIDA GUARDA SEGREDOS SOBRE O CLIMA DA TERRA E AMEAÇAS PARA OS CIENTISTAS QUE SE DISPÕEM A ESTUDÁ-LO
do
NO CORAÇÃO DA ANTÁRTIDA
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Pesquisador da Expedição Deserto de Cristal finca bandeira na área entre os montes Johns e Woollard em que se montou o acampamento brasileiro que perfurou 95 m de gelo no platô antártico
mundo
por Marcelo Leite, enviado especial à Antártida
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FOLHA DE S.PAULO | 22 DE MARÇO DE 2009
Março
D
eus do céu! Este lugar é horrível”, escreveu Robert Falcon Scott em seu diário, em 17 de janeiro de 1912, ao alcançar o polo Sul e se dar conta de que Roald Amundsen já tinha estado ali. A frase hoje enfeita o bar da estação norte-americana Amundsen-Scott, no polo, com humor um tanto deslocado (Scott e seus companheiros derrotados morreriam no caminho de volta, algumas semanas depois), e contradiz a atração magnética que o polo exerce sobre pesquisadores e aventureiros de toda parte: se fosse tão ruim, não haveria tanta gente louca para ir até lá. “Estamos no meio do nada, finalmente no deserto polar”, anotou o glaciologista Jefferson Cardia Simões, bem mais animado, em seu relato sobre a jornada principal da Expedição Deserto de Cristal ao coração da Antártida. Durante 16 dias de dezembro, metade da equipe brasileira de cientistas –além dele, Francisco Eliseu Aquino, Luiz Fernando Magalhães Reis e Marcelo Arévalo– acampou num ponto perdido (latitude 79º55’28”S, longitude 94º23’18”W) entre os montes Johns e Woollard, 2.115 m
Setembro
Canadá
Rússia
ÁRTICO
A plataforma de gelo flutua sobre o oceano
ANTÁRTIDA Antártida
O gelo está acomodado sobre o continente
Março
PRIMAVERA E OUTONO NOS POLOS Só no polo sul existe um continente sob o gelo, a Antártida. No Ártico, a camada congelada é muito menos espessa e repousa sobre o oceano
Setembro
Fonte: NSIDC
acima do nível do mar, em pleno platô antártico. “Para todos os lados, somente uma superfície plana, batida constantemente por ventos que no inverno podem ultrapassar fácil os 150 km/h.” A temperatura anual média no local é de -33ºC. Durante o inverno, quando o sol não brilha, pode cair a -50ºC. No momento em que o quarteto desembarcou do avião bimotor com esquis alugado da empresa ALE, às 12h45 de 8 de dezembro, o tempo estava ensolarado, sem nuvens, e fazia -19ºC. Tinha durado uma hora o voo de 250 km desde o acampamento-base da pioneira expedição brasileira nos montes Patriot, que fica na altitude de 900 m e sob temperaturas pelo menos 10ºC mais quentes –ou menos frias. O turboélice Twin Otter decolou de volta a Patriot, deixando 900 kg de carga sobre a neve –comida para 20 dias, o dobro da estadia prevista, equipamentos para perfurar gelo e três barracas, que o grupo começou a montar de imediato. A área entre Johns e Woollard havia sido escolhida precisamente por seu isolamento. O objetivo do grupo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) é colher informações sobre o comportamento do clima global e local por meio dos chamados testemunhos, colunas de gelo escavadas em sentido vertical. As montanhas mais próximas ficam a dezenas de quilômetros de distância, e estações de pesquisa, a centenas. O solo rochoso, além disso, encontra-se cerca de 1.500 m abaixo da superfície, pois essa é a espessura do gelo na região. Essa condição dá aos pesquisadores segurança de que as partículas encontradas no gelo dos testemunhos, em análises posteriores no Brasil e nos EUA,
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NO CORAÇÃO DA ANTÁRTIDA
A
COBERTOR GELADO
B
Plataforma de gelo
A capa congelada que recobre a Antártida tem espessura média de 1.800 m, mas chega a passar de 4.700 m. Parte dela se apoia sobre rochas que estão abaixo do nível do mar –o que significa que boa parte do continente seria um arquipélago se não houvesse a gigantesca massa de gelo sobre ele
4 km 0 (nível do mar)
Parte do continente abaixo do nível do mar
- 4 km 70˚S
80˚S
Pólo Sul Sul
80˚S
70˚S
60˚S
B
Estação Antártica Comandante Ferraz
Terra da Rainha Maud
Antiga Plataforma Larsen B
Terra de Coats
Plataforma Ronne Port Locroy
Terra de Palmer
Terra de Ellsworth
corte
Polo Sul geográfico Maciço Vinson
Montes Patriot
Geleira Beardmore
4.892 m
Terra de Marie Byrd
Monte Hederson
Polo Sul magnético (localização em 2005)
2.660 m
Plataforma de Ross
Monte Erebus 3.794 m
Terra de Wilkes
Monte Melbourne 2.732 m
O fato de estar ancorado em grande parte abaixo do nível do mar torna o manto de gelo da Antártida Ocidental mais vulnerável ao aquecimento global
P
en
A
B
Maior espessura do manto de gelo: 4.776 m
Mar de Weddell
ínsula Antá rtica Mar de Davis
Polo Sul geográfico
s ica árt nt sa
2.250 m
Mo nta nh as Tr an
Mar de Amundsen
1.500 m 750 m 0 m (nível do mar)
Mar de Ross
Fonte: Nasa
A
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ABANDONADOS NO DESERTO
Francisco Eliseu Aquino/Nupac/UFRGS
Os quatro pesquisadores que se deslocaram de Patriot até o platô antártico para realizar a perfuração principal da Expedição Deserto de Cristal foram deixados, com todo o equipamento, numa planície onde só havia neve e gelo
O RASTRO CONGELADO DAS QUEIMADAS Heitor Evangelista da Silva considerase um “filho do Proantar”, o Programa Antártico Brasileiro. Graças a ele, está na sua 11ª missão polar em 16 anos. “É um programa que forma pessoas”, diz o físico, que continua a tradição com seu orientando de doutorado Marcio Cataldo. Eles não fizeram parte do grupo que foi a Johns-Woollard porque seu experimento principal foi montado em Patriot. Uma das tarefas rotineiras de Evangelista e Cataldo era reabastecer com gasolina o gerador Honda EU 10i, de 800 watts, a cada dois dias. A eletricidade
movimentava uma bomba de sucção que aspirava o ar antártico para dentro do impactador em cascata, um tubo coletor de aço inox coberto de PVC que separava material particulado –aerossóis– de seis tamanhos. O ar passava ainda por um frasco de vidro com líquido viscoso para capturar e preservar microrganismos. A dupla trabalha em áreas de ponta da pesquisa antártica: “black carbon” (carbono elementar) e aerobiologia. Eles querem desvendar o que chega de fora até a Antártida, em especial as partículas de poeira transportadas pelo ar desde a América do Sul. Parte desse pó é composto de grãos de microfuligem, o carbono elementar, que têm a propriedade de absorver radiação infravermelha (calor), ou seja, se aquecem sob o sol. O derreti-
mento acelerado da calota de gelo que se observa no Ártico, por exemplo, parece ser causado pelo carbono emitido com a queima de combustíveis fósseis nos EUA, na Europa e na China. Evangelista e Cataldo já conseguiram mostrar, em expedições anteriores à península Antártica, que parte do carbono elementar depositado no gelo coincide com picos de queimadas na Amazônia. Agora buscam uma “assinatura” dos incêndios florestais, para provar que não foi produzido por motores. Sua esperança é detectar o levoglucosan, um açúcar que só se forma com a pirólise (queima) da celulose da madeira. A poeira sul-americana que chega à Antártida não se compõe só de fuligem, mas também de partículas de solo e
NO CORAÇÃO DA ANTÁRTIDA
Toni Pires/Folha Imagem
foram depositadas ali diretamente da alta atmosfera, em algum momento do passado, e não são fruto de contaminação por fontes próximas de poeira e gases. Além disso, o platô Antártico, ali, está sob influência direta das massas de ar sobre os mares de Bellingshausen e Amundsen, cuja superfície congelada a oeste da península Antártica está na origem de frentes frias que penetram o Brasil todo inverno. Mas Francisco Aquino também já encontrou correlações entre episódios de frio intenso no Rio Grande do Sul e massas de ar provenientes do mar de Weddell, do outro lado (leste) da península. Ambas as regiões figuram entre as que mais se aqueceram por força da mudança climática global, e a melhor maneira de reconstituir essa perturbação –que parece estar na raiz de
uma aceleração das geleiras em direção ao mar– é consultar a memória do clima armazenada no gelo, como os dados de um computador no disco rígido. Essas frentes frias excepcionais de Weddell investigadas por Aquino são um fenômeno até agora pouco estudado, que ele tenta corroborar com as informações guardadas no gelo. “Esses testemunhos do monte Johns ajudarão a fechar o meu teste [do fenômeno] nos últimos 50 anos”, diz o geógrafo, referindo-se a uma tese de doutorado no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), de São José dos Campos, cuja defesa deve ocorrer ainda neste ano. Com o interesse internacional que essas novas teleconexões têm despertado, mais a capacidade de obter testemunhos de
Marcio Cataldo examina frasco para coleta de microorganismos no experimento montado perto de Patriot
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Aceleração das geleiras Com o colapso de plataformas, as correntes de gelo do continente encontram menos obstáculos em seu curso para o mar
gelo em ambientes inóspitos, os brasileiros chegam à primeira divisão da pesquisa polar mundial. “Já dá para contar uma bela história”, afirma Simões. Para o líder do grupo, a Expedição Deserto de Cristal teve o mérito maior de comprovar a capacidade logística dos pesquisadores brasileiros: “O Ministério da Ciência e Tecnologia mostrou interesse em investir no interior da Antártida. Nós demonstramos nossa capacidade de montar e preparar a expedição”.
bactérias. Os cariocas foram responsáveis por cultivar as primeiras bactérias extraídas do gelo na península Antártica, o que rendeu a Cataldo uma dissertação de mestrado. Agora querem ver se o gelo azul de Patriot também as contém. O manto funciona como uma geladeira de verdade para esses microrganismos. Fatiados e derretidos no laboratório da Uerj, os testemunhos de gelo dão origem a colônias de bactérias saudáveis. Algumas são cepas de bactérias típicas da Antártida. Evangelista e Cataldo já viram que outras são originárias de solo da América do Sul. Cultivando-as, acreditam poder provar que algumas vêm de tão longe quanto a Amazônia, depois de atiradas nas alturas da atmosfera pelas colunas de ar quente das queimadas.
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Fotos Toni Pires/Folha Imagem
A PERFURAÇÃO A torre da perfuratriz suíça é montada dentro de uma tenda, para proteger pesquisadores e aparelhos. O motor elétrico rotativo desce na ponta de um cabo de aço, tocado constantemente pelo operador para que a vibração lhe dê uma ideia do que acontece no fundo do poço. Quando termina o corte de um cilindro com cerca de 1 m, ele é “agarrado" por pequenos ganchos na ponta da broca e içado no interior do tubo de metal 1
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NO CORAÇÃO DA ANTÁRTIDA
DESERTO DE ÁGUA, FONTE DE DADOS a/Folha Imag
em
SHOW DE LUZES
Eduardo Lim
Desidratação Robert Falcon Scott e seus companheiros morreram não só de frio, em 1912, mas também por ingerir pouca água. Vazamentos nas latas de combustível impediram que produzissem água na quantidade necessária. Comer neve não resolveria, pois o corpo gasta energia demais para derretê-la e reaquecer-se
Cristais de gelo na atmosfera podem produzir um tipo de refração da luz do sol que dá origem ao “parélio", um halo com a imagem quadruplicada da estrela, como se pode ver na foto abaixo e na anotação do bloco de Francisco Aquino Jefferson Simões/Nupac/UFRGS
Não fácil, no entanto. Logo nas primeiras horas, ainda durante a montagem do acampamento, o quarteto brasileiro sentiu o peso de trabalhar no maior deserto do mundo, ainda que formado por água –a maior reserva de água doce da Terra, com 80% do total mundial, só que em estado sólido. O primeiro sinal de desidratação, dores de cabeça, começou a aparecer, forçando-os a acender o fogareiro para derreter neve e fazer água. O dia terminou com duas tendas montadas, imprescindíveis dormitório-cozinha e banheiro. O segundo dia em Johns-Woollard começou frio, a -25ºC, e trouxe mais trabalho pesado: a montagem da sonda elétrica Inventor, fabricada artesanalmente pelo suíço Felix Stampli, e da barraca-domo que abriga cientistas e aparelhos do vento durante a perfuração. Os trabalhos prosseguiram até meia-noite, para aproveitar o tempo bom, e quando a máquina de US$ 80 mil –equipamento único na América do Sul, capaz de alcançar 200 m de profundidade– foi desligada, o grupo tinha perfurado 25 m de poço. Até os 70-80 m, que só seriam atingidos três dias depois, a sonda perfura o que se chama de “firn”, palavra de origem germânica para o estágio intermediário entre neve e gelo (“neviza”, em espanhol). É uma espécie de gelo farinhento, sobre o qual ainda não caiu o peso suficiente de neve para compactá-lo na forma de gelo glacial, ou gelo azul. Este só se forma quando a pressão das camadas superiores elimina a
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Fenômeno atmosférico-óptico parélio, no acampamento entre os montes Johns e Woollard
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FOLHA DE S.PAULO | 22 DE MARÇO DE 2009 Gerador de energia
Laboratório de meteorologia
Dormitórios
Estação Vostok
O lago Vostok O lago fica escondido sob uma camada de gelo com espessura de mais de 3 km. Uma equipe russa perfura o manto para chegar até a água
foi estabelecida pelos soviéticos em 1957. A perfuração foi interrompida quando a broca se encontrava a cerca de 70 m do lago
Depressão no gelo
A presença de corpos de água sob o manto causa uma depressão na superfície
movim do ma entação nto d e gelo 3.670 m
Profundidade alcançada até agora Área onde o gelo derrete movim do ma entação nto d e gelo
450.000 anos
é a idade aproximada do gelo na camada mais profunda do manto
Nessa parte, o gelo é mais compacto por ser pressionado contra a parede lateral
Aquecimento
A pressão na parte inferior do gelo é tão grande que chega a gerar energia em forma de calor
Lago Vostok
O RELEVO Um levantamento do terreno sob o gelo revela a depressão onde se localiza o lago
Gelo duro
sedimentos pré-glaciais
500m de profundidade
Pequenos bolsões de água derretida e lagos subglaciais
DO ESPAÇO
250 km
m 40 k
Em imagens de satélite, o lago é identificável por uma ampla área plana na camada de gelo Fontes: Nasa, NOAA e NSF
14.000 km2 é a área do lago, quase dez vezes maior que a área da cidade de São Paulo 5.400 km3 é o volume estimado de água contida no lago
permeabilidade da massa, interrompendo a comunicação entre as microbolsas de ar que permanecem em meio aos cristais de água. Para isso, a densidade tem de chegar ao intervalo entre 0,83 g/cm3 e 0,91 g/cm3, quando as microbolsas se tornam microbolhas seladas, compartimentos herméticos com relíquias de ar de décadas, séculos e milênios passados. O gelo antártico também guarda as impurezas presentes na atmosfera –de poeira a substâncias radiativas produzidas em explosão nucleares– que tenham caído sobre o continente. A análise desse arquivo de dados atmosféricos permite recuperar muitos tipos de informação sobre o passado: temperatura, extensão do gelo marinho em volta da Antártida, ciclos de atividade solar, vulcanismo, poluição global, processos de desertificação, concentração de gases do efeito estufa como dióxido de carbono (CO2) e metano (CH4). Para isso, no entanto, é preciso datar as camadas de gelo, ou seja, descobrir em que época caiu a neve que lhes deu origem. Além de características físico-químicas que diferenciam a
neve de inverno da de verão, que permitem assim contar as camadas anuais, a datação –ou estratigrafia– é calibrada com auxílio de eventos com data ou periodicidade conhecidas, como erupções vulcânicas e testes atômicos. Com o material obtido nos 95 m de profundidade do poço entre os montes Johns e Woollard, onde a precipitação de neve atinge um máximo de 300 mm por ano, os cientistas do Nupac poderão recuar entre 250 e 300 anos no tempo (em certos pontos da Antártida Oriental, como o Domo Argus, caem menos de 20 mm/ano, e o gelo profundo pode chegar a 1,5 milhão de anos). Examinando depois as microbolhas presas no gelo, poderão determinar qual era a composição da atmosfera, ano a ano, nesses três séculos, e inferir como variaram as temperaturas no período. O objetivo é entender melhor as ligações –“teleconexões”, no jargão climatológico– entre o clima da Antártida e o da América do Sul, em particular do Brasil.
Meias molhadas
A equipe de Johns-Woollard passou maus bocados com a sonda suíça. Seu funcionamento depende de tecnologia, mas também de sensibilidade, pois o operador tem de usar o tato para perceber se é normal a vibração do cabo de aço na ponta do qual desce a broca elétrica. No sexto dia, ela travou a 94 m de profundidade, e foram necessárias quatro horas e muita força para soltá-la. O moral da tropa só não foi junto para o buraco porque a nebulosidade e o frio intenso formaram cristais de gelo no ar que deram origem a um parélio, fenômeno óptico em que o Sol aparece cercado de um halo de luz e quatro outros “sóis” opostos em cruz. “Que espetáculo!” –anotou Simões.
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Toni Pires/Folha Imagem
NO CORAÇÃO DA ANTÁRTIDA
Precipitação Nas ilhas Shetlands do Sul, onde fica a estação Comandante Ferraz (foto acima), a precipitação é de 1.200 mm/ano, 60 vezes maior que em pontos do platô Antártico
Por segurança, o grupo decidiu cavar outro poço, em 16 de dezembro, e rapidamente se alcançaram os 76 m. Dois dias depois começou uma grande nevasca, com vento de 65 km/h e visibilidade de 30 m –um “whiteout” (branco total), em que o visitante antártico pode facilmente se perder. Além disso, o mau tempo impediu o pouso do avião que viria resgatálos nesse dia, o que só ocorreria seis dias depois, na véspera do Natal. As mesmas más condições impossibilitavam o pouso em Patriot do jato Ilyushin que levaria a equipe da Folha e que só chegou no dia 26, dois dias após o fim da campanha de perfuração em Johns-Woollard. Com a tempestade, a temperatura do ar se elevou, mas subiu também a umidade. E, com ela, o desconforto dos expedicionários, pois ficou quase impossível secar meias e forros de botas. A umidade atrapalhava a sonda, ao se condensar no metal e ressolidificar em contato com o gelo do poço, travando seguidamente o aparelho. Ocorreu um curto-circuito, mas Reis e Arévalo conseguiram improvisar um substituto para o pino danificado com um prego de caixote limado.
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do em 2004 por franceses e italianos no domo Concórdia, a 560 km de Vostok. Neste caso, ainda que a uma profundidade menor (cerca de 3.200 m), foram 800 mil anos de dados. Ao lado de testemunhos retirados do manto de gelo sobre a Groenlândia, no hemisfério Norte, essas perfurações renderam algumas das evidências mais fortes de que há um vínculo direto entre aumento da concentração de gases do efeito estufa na atmosfera e seu aquecimento progressivo.
Vostok Quer dizer “leste”, em russo, e era o nome do navio com que o explorador Thaddeus Bellingshausen avistou a Antártida em janeiro de 1820, a serviço do Império Russo
Toni Pires/Folha Imagem
Depois disso, a escavação prosseguiu até 95 m sem maiores incidentes. A perfuração com a sonda do Núcleo de Pesquisas Antárticas e Climáticas, que chega a no máximo 200 m, é apesar de tudo relativamente simples. Daí para baixo, especialmente depois dos 300 m, a pressão a que o gelo está submetido tende a fechar o orifício e prender as sondas. O poço mais profundo da Antártida foi escavado na estação russa Vostok (recordista também em temperatura negativa, com -89,2ºC), onde se usou um tipo de querosene sob pressão para lubrificar o poço e impedir seu entupimento. O testemunho de gelo de Vostok, quando chegou a 3.623 m, forneceu informações sobre o clima dos últimos 420 mil anos. Esse gelo só foi superado em antiguidade pelo testemunho obti-
Cilindro de “firn”, estágio intermediário entre neve e gelo, retirado numa perfuração em Patriot
O QUE AS PESQUISAS VÃO MOSTRAR? O manto antártico não é só o principal arquivo de informações sobre o clima do passado, mas também um dos principais motores do clima do presente. Seus 25 milhões de km3 de gelo, se derretidos (o que demoraria séculos ou milênios), elevariam o nível dos oceanos cerca de 60 m no planeta inteiro. Todo esse gelo se encontra ali porque há um desequilíbrio térmico no planeta: a região em torno do equador recebe cinco vezes mais calor do Sol que os pólos, ao longo do ano. Este diferencial move o sistema do clima terrestre, uma máquina de transportar calor para as extremidades norte e sul, 60% dele pela atmosfera (massas de ar) e 40% pelos oceanos (correntes). Como tem muito mais gelo que o Ártico, onde o polo é coberto por mar e a camada de gelo sobre ele é bem mais fina, a Antártida participa ainda mais ativamente desse troca-troca de calor. As águas mais frias e densas da Terra, por exemplo, são formadas sob as plataformas de gelo que se projetam do continente sobre o mar e daí circulam pelo planeta. Enquanto no Ártico a superfície de mar congelado dobra de tamanho entre verão e inverno, em torno da Antártida ela se multiplica por seis, passando de 4 milhões para 22 milhões de km2 –uma área maior que a do próprio continente (14 milhões de km2). Qualquer alteração mais significativa nessa máquina ciclópica de produzir e destruir gelo pode afetar o clima de regiões inteiras, de geadas a regime de chuvas, como no caso das frentes frias que penetram pelo sul do Brasil. Na opi-
NO CORAÇÃO DA ANTÁRTIDA
nião de Simões, a Antártida é pelo menos tão importante para o clima brasileiro quanto a Amazônia, mas sua influência é muito menos conhecida. Daí a importância de estudar a criosfera –manto, plataformas, geleiras e mar congelado–, para entender a dinâmica da Antártida. A Expedição Deserto de Cristal e a perfuração brasileira em Johns-Woollard constituem uma das várias peças do mosaico de conhecimentos em construção pelo Ano Polar Internacional (API). Além da expedição, o ano polar coincidiu com mais um impulso à glaciologia brasileira: a criação do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia da Criosfera, uma rede de sete laboratórios em quatro Estados (RS, SP, RJ e MG), com sede na UFRGS e coordenação de Jefferson Simões. Um dos primeiros passos do instituto, que recebeu verba de R$ 4,8 milhões do MCT, será iniciar a construção, neste ano, de um laboratório de testemunhos de gelo. O centro terá salas frias e limpas para armazenar, processar e analisar os cilindros, trabalho hoje realizado em sua maior parte na Universidade do Maine (EUA), em colaboração com o grupo de Paul Andrew Mayewsky –uma celebridade da pesquisa polar, que tem até um pico da Antártida batizado com seu nome. Antes mesmo de se encerrar o API, neste mês de março, a visão tradicional sobre a estrutura e o comportamento do manto antártico já passava por um terremoto. A reanálise de dados de satélite, por exemplo, revelou que não é só a península Antártica que se encontra em fase de aquecimento acelerado, no último meio século, mas o continente inteiro (+0,6ºC desde 1957), e em especial a Antártida Ocidental (+0,85ºC). O manto está em movimento perma-
Lago Ellsworth
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Lago 90˚ E
Lago Vostok
Lago Concórdia
Principais lagos sob o gelo Canais sob o gelo
ESCONDIDOS Faz menos de quatro anos que a ciência revelou haver um sistema de canais profundos conectando mais de 140 lagos subglaciais sob o manto de gelo da Antártida
nente e flui em várias direções, com velocidades que variam de 1 m/ano a 3,5 km/ano, neste caso formando grandes correntes de gelo que terminam na costa. Descobriu-se há cerca de uma década que nem todo o manto repousa diretamente sobre rocha e que em vários pontos existem lagos subglaciais, conectados por todo um sistema de drenagem –este identificado só em 2005, para espanto da comunidade científica. São rios gigantescos encapsulados sob o manto, cujo efeito acelerador sobre a migração
de geleiras mal se começa a entender. A nova coqueluche da pesquisa antártica está, mais uma vez, sob a área de Vostok. Ali se detectou o maior lago subglacial do continente, com 14 mil km2 de espelho d’água e profundidade de 500 m. Cientistas russos já levaram seu poço de perfuração até a 70 m da água do lago e interromperam o trabalho no mês passado. Há uma enorme discussão sobre como obter amostras da água sem contaminar um ecossistema que está isolado há milhares ou milhões de anos do resto do planeta. O que ninguém duvida é que se encontrará vida ali, possivelmente microrganismos, e que a escavação prosseguirá, mais dia, menos dia. “A Antártida é o último continente intocado do planeta, o único que ficou na forma original”, justifica Simões. “É um exemplo de cooperação internacional, e a última chance de trabalhar em conjunto pela preservação ambiental.” Um lugar que de horrível não tem nada –a não ser para quem perdeu a vida abrindo o caminho que hoje até pesquisadores de países tropicais tanto se esforçam por trilhar.
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COMO A ANTÁRTIDA PARTICIPA DOS INVERNOS QUENTES E VERÕES FRIOS BRASILEIROS por Flávio Dieguez
Q
ual a relação entre o chocolate quente, o café colonial e o vinho de Gramado, no Rio Grande do Sul, e os ventos antárticos? Uma tal de “anomalia do vetor de vento a 925 hPa” parece ser a responsável por unir dois lugares tão distantes. A anomalia –que
provavelmente se origina no mar de Weddell, em plena Antártida– pode ser a culpada pelos anos de inverno relativamente quentes no sul do Brasil, e que tiram toda a graça de passear pela região. Ela instaura a desordem nos ventos usualmente confinados às vizinhanças do polo Sul e, às vezes, despacha um vendaval gelado que viaja 7.000 km pelo oceano e 50 horas mais tarde invade os Estados do Sul do Brasil. Provoca uma bagunça geral nas temperaturas e uma consequência disso podem ser os invernos desenxabidos de Gramado, em que nem dá vontade de tomar chocolate quente. Quando, ao contrário, os ventos ficam mais enclausurados na região polar, os verões brasileiros esfriam. Em fevereiro de 2004, a anomalia de vento
deixou rastros bem palpáveis, tanto na Antártida quanto no Sul e no Sudeste brasileiros, diz o climatologista Alberto Setzer, do Instituto de Pesquisas Espaciais. “Na Antártida, o mar de Weddell estava 40% mais congelado do que o normal, e os ventos também, propiciando a injeção de ar frio antártico na direção do Brasil.” O resultado, diz ele, foi que a cidade de São Paulo teve o fevereiro mais frio em 28 anos; o Espírito Santo, o mais frio em 22 anos; e o Rio de Janeiro, o mais frio em 39 anos. O resultado da busca bem-sucedida de uma explicação glacial para essas temperaturas, publicado num relatório de 2006, anima os climatologistas brasileiros, que veem nesse tipo de achado uma oportunidade para aprimorar os modelos de previsão do tempo. “Esse
NO CORAÇÃO DA ANTÁRTIDA
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Toni Pires/Folha Imagem
Iceberg no oceano Austral, junto à península Antártica, de onde partem massas de ar frio que chegam ao Brasil no inverno
tipo de conexão, caso fique bem estabelecida, poderia ampliar a confiabilidade das previsões”, diz o pesquisador Lincoln Alves, do Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). Ele não viu o trabalho sobre a anomalia do mar de Weddell, mas acredita que seria muito importante, já que o clima sofre as influências mais variadas: ventos, temperaturas do ar e da água, quantidade de sol e assim por diante. “Quanto mais componentes incorporamos aos modelos, melhor é o resultado da previsão.” Já se sabe há tempos que a Antártida influencia o regime das chuvas no Sul e no Sudeste do Brasil –por meio das frentes frias. Elas surgem porque o gelo esfria a atmosfera vizinha e faz com que
DESCARGA GELADA A corrente que circunda a Antártida despeja vasto volume de água fria no fundo dos mares e faz do Atlântico sul um foco de alta energia EQU AD OR
Atlântico
Índico Pacífico
o ar fique mais denso– ou seja, mais pesado. Com isso, o “ar despenca” para a superfície e se acumula, formando uma enorme “bolha”. Então, à medida que a bolha cresce, ela se espalha na direção do oceano e dos continentes. O que se chama de frente fria é simplesmente a fronteira da bolha em expansão e o ar quente que vai sendo empurrado por ela. “Imagine um guarda-chuva que você segura na horizontal enquanto anda”, sugere Alves. “O guarda-chuva é como a frente fria, empurrando o ar enquanto avança.” O resultado, muitas vezes, é uma pancada de chuva, quando o ar que é empurrado está repleto de umidade na forma de vapor (veja o infográfico na página 49). As frentes frias provocam chuva quando o ar quente está carregado de umidade, na forma
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COLHENDO TORMENTAS
Reuters
Se a água do fundo não fica bem fria, vem à tona antes do equador e interage com a Corrente do Brasil, mais quente. Aí, perturba a atmosfera e pode gerar ciclones como o Catarina
Primeira tempestade do gênero registrada no Atlântico Sul em toda a história, o Catarina varreu o litoral sul do Brasil em março de 2004; foi classificado como um furacão de categoria 1, com ventos de até 180 km/h
Corrente do Brasil
Água antártica de fundo
de vapor, que se transforma em água líquida em contato com o frio. Saber disso, no entanto, não é suficiente para melhorar as previsões meteorológicas brasileiras ou as previsões climáticas de mais longo prazo. Como diz o glaciologista Jefferson Cardia Simões, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, os cientistas brasileiros estão empenhados justamente em desvendar o processo de formação das frentes frias. “Queremos entender a gênese das frentes frias, assim como a frequência com que elas são criadas e com que intensidade chegam ao Brasil”, diz ele. Nessa tarefa ninguém fica mais animado que o climatologista Francisco Eliseu Aquino, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, um dos parceiros de Setzer e do próprio Simões no trabalho sobre a anomalia do mar de Weddell. Aos 38 anos, muito envolvido com o estudo da Antártida, Aquino diz que não sabe como consegue tempo para dar conta de tudo que pega para fazer. Ele ex-
FURACÃO CATARINA
plica com entusiasmo por que pensa que a anomalia tem um papel efetivo nos padrões climáticos brasileiros: “Nós agora temos dados para dizer em que aspecto específico a influência da Antártida se faz sentir. No caso das variações de temperatura, é uma mudança na circulação dos ventos que é dominada pela Antártida”. Depois do trabalho sobre a anomalia, Aquino passou da influência glacial a um tema mais geral. Ele quer elucidar o efeito que as mudanças climáticas podem provocar nos padrões meteorológicos do Sul do Brasil. “Acho que está havendo um aumento da variabilidade, que tende a produzir fenômenos extremos: as secas ficam mais drásticas e as chuvas mais intensas do que as médias históricas.” No caso das chuvas, diz que se observa um aumento nas precipitações no Sul, da ordem de 10%. Chegou a essa conclusão estudando temporais gigantes, chamados pelo nome de “complexos convectivos de mesoescala”, em que diversas formações de nuvens se reúnem
num pacote único de tempestades pesadas, tão grandes que podem cobrir uma área igual à de vários Estados somados. Essas borrascas ocorrem na metade quente do ano e produzem granizo, vendavais, enchentes, inundações, tempestades elétricas e tornados. Sua área de atuação, além do Sul e do Sudeste do Brasil, também cobre norte da Argentina, sul do Paraguai e Bolívia. Até novembro, Aquino pretende publicar um trabalho com a tese de que tanto esse aumento das chuvas quanto os efeitos da anomalia do mar de Weddell estão associados a um aumento da variabilidade climática. As correntes marítimas, que sofrem grande influência do frio da Antártida, também têm influência marcante sobre o clima brasileiro. Os oceanógrafos mencionam, especialmente, um volume gigantesco de água que desaba direto das superfícies geladas para o fundo dos oceanos. O frio aumenta a salinidade e a densidade dessa massa aquática, conhecida como “água antártica de fundo”.
NO CORAÇÃO DA ANTÁRTIDA
COMO FUNCIONAM AS FRENTES FRIAS 1
2
3
O ar frio é mais denso, por isso se acumula na região polar e se expande como uma bolha gélida próxima à superfície
A frente fria é a fronteira dessa bolha com massas de ar quente e úmido…
…que são forçadas a subir e a esfriar, transformando sua umidade em chuvas
Frente fria
Massa de ar frio
Massa de ar quente
Urugu ai
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VENDAVAL EXTRAVIADO Descobertas recentes mostram como os ventos antárticos podem perturbar as previsões do tempo no Brasil INVERNOS QUENTES Quando os ventos próximos da região polar avançam pouco sobre a América do Sul, podem causar invernos mais quentes que o normal no Rio Grande do Sul e outros Estados
Antártida
Frente fria usual
Brasil
Corrente de ar usual
VERÕES FRIOS Se os ventos frios extrapolam, podem invadir
essas regiões e provocar verões mais frios. Os cientistas acham que o aquecimento global está tornando essas anomalias mais comuns
Antártida
Alteração na circulação de ar Mar de Weddell
Brasil Frente friafria Frente anômala
anômala
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O volume desse incrível esguicho subaquático é tão grande que esvaziaria a baía da Guanabara em apenas 20 segundos. E quando ele escorre pelo fundo dos oceanos, interage com correntes marinhas mais quentes, como a chamada Corrente Brasileira, produzindo efeitos climáticos importantes, diz o oceanógrafo Ronald Buss, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Ela pode, por exemplo, ter influenciado o surgimento do furacão Catarina, que assolou a costa meridional brasileira em 2004. “Ainda sabemos pouco sobre a interação do oceano com a atmosfera”, diz Buss, “mas esse estudo pode melhorar as previsões de tempo e clima no Brasil”. Para esses estudos, as ilhas Malvinas (ou Falklands) parecem ser um pontochave, porque é onde a água de fundo encontra a chamada Corrente Brasileira, mais quente e mais salgada. “Muitos pesquisadores consideram essa região uma das mais energéticas do oceano global”, diz Buss. Segundo ele, a força do esguicho antártico depende da extensão do congelamento dos mares antárticos, e esse é um dado que, obtido a partir de imagens de satélite, pode vir a ser incorporado aos modelos climáticos. No Atlântico, a água de fundo percorre toda a costa brasileira até o equador, onde, já aquecida, retorna à superfície. E a coisa toda funciona como uma balança: quanto mais água afunda na Antártida, mais longe ela volta a subir. E, dependendo de onde ela sobe, mudam os efeitos climáticos. “Desde o princípio a oceanografia brasileira trabalha com a Antártida”, diz ele. “Atualmente, vários grupos de pesquisa estão tentando compreender como as correntes nascidas em torno do polo Sul afetam o clima brasileiro, especialmente no litoral.”
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O AQUECIMENTO GLOBAL ESTÁ “EMAGRECENDO” A ANTÁRTIDA, FAZENDO SEU GELO ESCOAR MAIS RÁPIDO PARA O OCEANO. ISSO PODE CAUSAR UMA ELEVAÇÃO NO NÍVEL DO MAR BEM MAIOR DO QUE A PREVISTA ATÉ AGORA por Flávio Dieguez
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David Vaughan/British Antarctic Survey
NO CORAÇÃO DA ANTÁRTIDA
A plataforma de gelo Wilkins, quase dez vezes maior que o município de São Paulo, que está se esfacelando, presa apenas por esta língua de gelo
fatal
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A
FOLHA DE S.PAULO | 22 DE MARÇO DE 2009
ideia de um continente inteiro escorregando para dentro do oceano é impressionante. Se o manto de gelo antártico derreter, o nível do mar pode subir pelo menos 60 metros. Muitas das grandes cidades do mundo, como Nova York e o Rio de Janeiro, ficariam submersas. Não que a Antártida seja eterna: todos os anos, a capa glacial que cobre o continente “engorda” 1,5 quatrilhão de toneladas na forma de neve e, ao mesmo tempo, “emagrece” outro tanto, na medida em que o gelo acumulado desliza para o mar sob a força do próprio peso. Esse regime mantém a Antártida viva há 33 milhões de anos, às vezes mais esbelta, às vezes mais rechonchuda, mas atualmente os termômetros globais estão em alta, e o continente corre o risco de ficar definitivamente anoréxico. Vastas massas estão se desprendendo do manto de gelo e despencando no oceano –um espetáculo tão grandioso quanto assustador. Ninguém acha que um degelo total possa acontecer num futuro previsível. No entanto, uma porção da Antártida –a ocidental– tem concentrado a perda de gelo. Ela é também a região que mais esquentou. Apesar de conter a menor parte do gelo do continente, seu derretimento tem o potencial de elevar o nível global do oceano em cinco metros, uma cifra muito maior do que os 59 centímetros previstos pelo IPCC (o painel do clima das Nações Unidas) até o fim deste século. A maior parte das perdas ocorre na superfície, na forma de enormes rios congelados que deslizam dos pontos mais altos para os mais baixos do continente. Chamadas de geleiras e correntes de gelo, essas torrentes glaciais
aos poucos escoam até o mar e algumas transformam-se em grandes plataformas flutuantes. Em 2002, uma dessas plataformas, a Larsen B, na península Antártica, desintegrou-se diante dos olhos dos cientistas no intervalo de um mês, criando icebergs duas vezes maiores que o município de São Paulo. Várias outras, na mesma região, estão diminuindo de tamanho ou já estão rachadas de maneira comprometedora, como a Wilkins –cuja foto ilustra a abertura desta reportagem. O colapso da Antártida Ocidental pode também ocorrer de baixo para cima. Como grande parte do manto nessa região repousa abaixo do nível do mar, o
aquecimento do oceano Austral pode acelerar o esfacelamento do manto da mesma forma como está induzindo a quebra das plataformas flutuantes. Mas o gelo não precisa nem derreter para inundar o mundo, como diz a geofísica americana Robin Bell, da Universidade Columbia. Existe a possibilidade de o manto se descolar das rochas que o sustentam e cair no mar. Esse tombo faria o nível dos oceanos subir, assim como a água de um copo sobe quando se joga um cubo de gelo nela. Na Antártida Oriental, a crosta de gelo ergue-se sobre rocha, e esse alicerce tem um relevo, com um intricado e recém-descoberto sistema de rios e lagos de água líquida, que podem servir como “lubrificante” e facilitar o escorregão do manto.
O SALDO DA BALANÇA DE GELO
Como foi parar ali?
Variação média anual, em bilhões de toneladas
ganho perda
19 0
-1
-7
-6 -15
-1 -4
-4 -49
-64
-11
Polo Sul
-9
-23 -2 -3
34 Cada “fatia” representa um conjunto de geleiras
13 Total no continente
-196
-112 -138
1996 2000 2006
Fonte: “Nature Geoscience” e “Washington Post”
A Antártida é um monstro complexo. Por isso, não é simples responder às duas perguntas mais importantes que essas descobertas colocam à frente dos cientistas e da humanidade inteira. A primeira é como essa água líquida foi parar lá embaixo, e a segunda, se o aquecimento global pode aumentar o volume de líquido e acelerar o desastre. Não existe uma resposta definitiva, até porque a Antártida vem sendo estudada há pouco tempo. Só no ano passado, por exemplo, ficou pronto o primeiro levantamento completo de todas as suas geleiras, realizado pelo francês Eric Rignot, da Nasa, no qual também se calculou com mais precisão a taxa de perda de gelo no continente. Neste momento, o balanço é negativo: em 2006, a quantidade de água que saía pelas geleiras excedia em 196 bilhões de toneladas o que se acumulava no manto na forma de neve (veja infográfico à esq.).
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Michel Setboun/Getty Images
NO CORAÇÃO DA ANTÁRTIDA
Icebergs tabulares como este são típicos da Antártida; eles se soltam de plataformas de gelo e podem ter centenas de quilômetros quadrados
Os pontos de desequilíbrio são relativamente poucos: combinando dados de vários tipos, coletados entre 1992 e 2006, o cientista avalia que as geleiras mais deficitárias estão na fronteira do mar de Amundsen com o mar de Bellingshausen. Só entre 1996 e 2006, as saídas de gelo nessa zona cresceram 59%. Esses mares estão na Antártida Ocidental, porção do continente que mais esquentou nos últimos 50 anos. Do lado oposto, na Antártida Oriental, o déficit é quase zero. Isso se deve, provavelmente, ao fato de a massa de gelo ali ser muito profunda, com uma espessura bem superior a 1,8 km (a média do continente), e, segundo o glaciologista Jefferson Simões, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ter uma temperatura infernalmente baixa, da ordem de -60º C. “Nessa escala, o aquecimento global pode não ter um grande efeito”, diz. O que parece certo, segundo ele, é que o
aumento da temperatura está afetando a Antártida de forma nunca suspeitada. As medidas e o mapeamento de Rignot constituem um avanço no desbravamento do mais desconhecido dos continentes da Terra. As margens de erro dessas medidas são ainda quase inacreditáveis: o déficit do lado oriental da Antártida, avaliado em 4 bilhões de toneladas, pode ter 61 bilhões de toneladas para mais ou para menos. Ainda assim, o esforço de Rignot acrescentou uma informação crucial para compreender o movimento das massas geladas e para determinar com mais precisão o risco de um derretimento catastrófico. A velocidade de deslizamento foi um dos dados básicos que o cientista utilizou para medir a perda de massa das geleiras, e essa velocidade pode muito bem aumentar dependendo do atrito entre as rochas e a base do manto de gelo. Em 2007, o IPCC apontou uma per-
da de gelo na Antártida a partir de 1993, mas não conseguiu estimar qual seria a contribuição dos mantos polares (tanto da Antártida quanto da Groenlândia) para o aumento do nível do mar no futuro, justamente devido à complexidade do seu funcionamento. Essa foi a grande questão a que os cientistas tentaram responder durante este Quarto Ano Polar Internacional. Uma pesquisa da francesa Anny Cazenave, do Centro de Estudos Espaciais de Toulouse, na França, apresentada no mês passado, mostra que o degelo respondeu por 80% da elevação observada no nível do mar, de acordo com medições feitas por satélites entre 2003 e 2008. No começo do século, ele respondia apenas por 40%. Os estudos de Cazenave engrossam o coro dos que acham que o IPCC foi modesto demais em sua previsão e de que a elevação do oceano no final deste século deve ser próxima de 1,5 metro.
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Perdas e ganhos
Como é a dinâmica do gelo antártico e como lagos subglaciais e efeito estufa podem acelerar seu deslizamento
Corrente de gelo
Ela se acelera quando passa sobre o lago. Chega a ter 800 km de comprimento e 86 km de largura 3 m/ano 30 m/ano
O peso se torna tão grande que deforma a geleira e força seu movimento em direção às partes mais baixas, até o litoral
Lentidão profunda
A parte superior do gelo move-se mais rapidamente que a parte inferior, congelada junto à terra
Água líquida sob o gelo
Uma hipótese para a existência de água líquida aqui é o calor que vaza de dentro da terra, inclusive como lava. A outra, é o calor gerado pela pressão do peso do gelo
Bell acredita que a água no fundo da massa de gelo pode muito bem aumentar a velocidade de escorregamento. Ela diz que já se conhecem mais de 160 lagos na Antártida, e que seu volume de água, somado, equivale a 30% do volume de todos os lagos superficiais do planeta. Não se sabe como essa água se liquefaz. A primeira sugestão, ainda sendo investigada, seria o calor do próprio interior da Terra, que escapa por toda a superfície do planeta. Sob o polo Sul, esse fluxo pode ficar preso
pelo gelo, que é um bom isolante térmico, e derreter a água. Outra hipótese é de que o peso da calota faria enorme pressão sob a sua base, e isso também pode provocar derretimento. Segundo Bell, por um tempo pensouse que os lagos fossem inertes, lacrados sob quilômetros de gelo, mas a pesquisa revelou que eles são tudo, menos habitantes passivos do continente: volta e meia, por algum motivo, um deles libera uma torrente de água subglacial, que despenca pelos vales e montanhas so-
Lubrificação
A água líquida reduz muito o atrito da rocha com o manto de gelo. Se a água transborda, acelera o movimento do gelo
terradas. E podem encher um outro lago que esteja no caminho ou desembocar no mar. É certo que esses vazamentos provocam erosões profundas nas rochas, já que, por toda a costa, conta Bell, se veem voçorocas abertas pelas enxurradas súbitas e violentas. Quanto à massa de gelo acima, nem é preciso violência: só o fato de haver um líquido na sua base pode ser suficiente para facilitar os escorregões. Quantificar o efeito desses lagos sobre o movimento das massas polares, para ela, é uma tarefa urgente.
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Com a ação do sol, a água do mar evapora Ventos
Sopram em direção à costa, auxiliando a erosão da neve
Quando chega ao mar, o gelo se fragmenta em icebergs. O aquecimento da água ajuda a romper a plataforma,
O manto escorrega devido à inclinação do terreno. A plataforma flutua e serve de “âncora” ao escorregamento do manto
acelerando ainda mais o deslizamento do manto
Nível do mar Iceberg
VENTOS CATABÁTICOS Devido à variação de pressão, o ar frio e denso se move rumo ao litoral Interior (mais alto)
Vento catabático
VELOCIDADE DO GELO
Com a ação da gravidade, ele cai da encosta em alta velocidade Litoral
Menos de um metro por ano junto ao topo Centenas de metros por ano junto à costa
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Julian Gutt/Alfred Wegener Institute
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abaixo de zero
NO CORAÇÃO DA ANTÁRTIDA
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Stefano Schiaparelli/Programma Nazionale di Ricerche in Antartide
LONGE DE SER UM DESERTO MARINHO, O OCEANO AUSTRAL PODE TER BIODIVERSIDADE COMPARÁVEL À DOS MARES TROPICAIS. É O QUE SUGERE O PRIMEIRO INVENTÁRIO DE SUAS ESPÉCIES
por Claudio Angelo, editor de Ciência O “icefish” transparente vive bem a -2oC, mas morre se colocado a 4oC positivos; na página ao lado, parece Belize, mas não é: o fundo de corais e esponjas foi fotografado no gélido mar de Weddell
A
superfície do oceano Austral divide duas Antártidas. Acima da linha d’água, tudo é branco e preto. Só aves, focas e os eventuais seres humanos quebram a monotonia da paisagem de gelo e rocha. É abaixo dela que o continente esconde as suas cores: todos os tons de vermelho, azul e amarelo, impressos em criaturas que vão da mais modesta alga unicelular até o maior animal que já habitou a Terra, a baleia-azul. Se o interior da Antártida é o maior dos desertos, seu mar pode ser uma das regiões mais ricas em vida do planeta –uma riqueza que só agora começa a ser avaliada pelos cientistas. “A diversidade lá é muito mais alta do que se imaginava. Pode ser maior do que
a do Caribe”, empolga-se a oceanógrafa Lúcia de Siqueira Campos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A brasileira é uma das coordenadoras do Censo da Vida Marinha Antártica, ou CAML, um esforço internacional de pesquisas iniciado em 2005 para inventariar as espécies do oceano Austral. Se a foto à esquerda não for argumento suficiente, uma cifra do CAML talvez ajude a dar uma dimensão da diversidade ainda oculta nos mares polares: em apenas três cruzeiros de pesquisa realizados ao norte do mar de Weddell pelo navio quebra-gelo alemão Polarstern, foram identificadas 800 novas espécies de invertebrados marinhos, 700 delas somente de isó-
podes (um tipo de crustáceo), mais do que dobrando o número de espécies do grupo conhecidas até então. “Podemos dizer que o censo fará o número de espécies explodir”, afirma o belga Bruno Danis, coordenador do Scarmarbin (www.scarmarbin.be), uma base de dados on-line que reúne todas as espécies descritas até hoje no oceano Austral. Na conclusão deste texto, havia 7.353 espécies registradas no site, um número que continua crescendo à medida que amostras vão chegando das expedições à Antártida para serem analisadas em laboratórios do mundo inteiro. “Estamos descobrindo espécies novas mais rápido do que conseguimos publicar em artigos científicos”, diz Victoria
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Wadley, da Divisão Antártica Australiana, gerente do CAML. “Os livros dizem que os oceanos tropicais têm mais espécies que os polares. Para muitos grupos que estudamos, isso não é verdade.” A imagem tradicional do oceano Austral como um local rico em biomassa, mas pobre em biodiversidade, se deve a vários fatores. Primeiro, a pura falta de conhecimento. Pesquisar ali é difícil e caro, e até hoje apenas uma fração do mar antártico foi varrida por navios de pesquisa. Depois, parte da fauna e da flora submarinas está em lugares permanentemente inacessíveis, como debaixo
UFRJ
LUMA ENTROU NUMA FRIA O mais novo reforço da ciência antártica brasileira se chama Luma. Mas, longe de ter as formas graciosas da modelo e atriz que lhe deu nome, Luma é um ajuntamento de fios, sensores e câmeras presos a uma armação de acrílico. Ela é um robô mergulhador. Desenvolvida pelos engenheiros da
de plataformas de gelo, línguas glaciais flutuantes com dezenas ou centenas de metros de espessura. Nesse sentido, a humanidade tem dado uma contribuição involuntária ao CAML ao queimar gases de efeito estufa e acelerar o aquecimento global: a primeira expedição do censo foi investigar justamente que animais havia sob a plataforma Larsen B, que se desintegrou em 2002 (e havia muitos, diz o alemão Julian Gutt, autor da foto que abre esta reportagem). Finalmente, a maior parte da diversidade antártica não vive livre na água, mas sim no assoalho marinho, a grandes pro-
UFRJ, a geringonça de R$ 400 mil é o primeiro ROV (sigla em inglês para veículo remotamente operado) construído no Brasil. Valeu cada centavo, diz Lúcia Campos. “Eu poderia importar um ROV, ia gastar R$ 180 mil, mas fazendo aqui você pode adaptá-lo de acordo com as suas necessidades. E é desenvolvimento tecnológico nacional.” Luma é equipada com duas câmeras, uma de alta resolução e uma de baixa resolução para inspeções, além de um laser que serve de escala para avaliar a densidade de organismos no fundo do mar. O robô fez sua estreia no mergulho profissional neste verão, descendo a 40 metros. Ironicamente, no produto nacional, foi a câmera de alta resolução –feita nos EUA– que deu pane. “Contatamos o fabricante pela internet e eles disseram que o problema era superaquecimento do sistema”, diverte-se o pesquisador Rafael de Moura.
fundidades. “A diversidade no fundo do mar é extraordinária”, diz Lúcia Campos. Os ciclos de gelo e degelo, explica, produzem muito material orgânico. Isso porque, associadas ao gelo marinho que se forma no inverno, existem algas microscópicas que se desprendem quando ele derrete no verão e se espalham pela coluna d’água. Além disso, o congelamento do mar acaba empurrando para o fundo água mais salgada (e densa) e cheia de oxigênio, uma festa para os seres vivos. Há uma variedade de habitats ainda pouco conhecidos no leito do oceano Austral, como as chamadas zonas de exudação fria, chaminés submarinas que expelem gases, em torno das quais se desenvolve uma fauna peculiar. O Brasil deve começar a contribuir mais fortemente com essa explosão de conhecimento sobre a biodiversidade antártica a partir do mês que vem, quando chegam ao Rio as amostras coletadas pelo grupo de Lúcia Campos. Pela primeira vez em 27 anos, cientistas brasileiros conseguiram realizar coletas de organismos do fundo do mar a 1.100 metros (o navio polar brasileiro, o Ary Rongel, não possuía até o ano passado equipamento para fazer esse tipo de sondagem, trivial em oceanografia). Também pela primeira vez foi usado um robô-mergulhador para fazer imagens do fundo do mar em locais aonde humanos não chegam (veja box à esq.). Campos quer usar o veículo no ano que vem para investigar se há ossadas de baleia no fundo da baía do Almirantado, onde fica a estação brasileira, e se há uma fauna distinta associada a essas ossadas. Além de serem analisadas por taxonomistas, que identificarão eventuais espécies novas, as amostras de organismos coletadas na Antártida serão compara-
NO CORAÇÃO DA ANTÁRTIDA
Rafael B. de Moura
Centro Alemão para a Biodiversidade Marinha
Russ Hopcroft/Universidade do Alasca
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CAML
Cédric D'Udekem D'Acoz/AWI
3
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Martin Riddle/Divisão Antártica Australiana
5
1. Ceratoserolis, nova espécie de isópode descoberta pelo CAML 2. Pelagonemertis, uma das 250 espécies que habitam o Ártico e a Antártida 3. M. setebos, evidência da origem antártica dos polvos de profundidade 4. Nova espécie de anfípode da ilha Elefante 5. Grupo de tunicados, que, apesar da cara, são parentes dos humanos
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LÁ E CÁ A Oneirophanta (“entidade dos sonhos”, em grego) mais parece ter saído de um pesadelo de cartunista. Mas esse pepino-do-mar, que existe no Brasil e na Antártida, é uma evidência de que o ecossistema polar não está isolado
das com a fauna da margem continental brasileira profunda, para tentar responder a outra questão: quão isoladas as espécies antárticas estão do restante do planeta, inclusive do Brasil. A comparação de faunas será feita já sob o guarda-chuva do recém-criado Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Antártico de Ciências Ambientais, para o qual os pesquisadores da UFRJ receberam do governo R$ 7 milhões.
Auto-estrada submarina
A Antártida virou um ecossistema à parte há 33 milhões de anos. Até 50 milhões de anos atrás, ela ainda estava ligada à América do Sul, o que bloqueava as correntes oceânicas frias e ajudava a manter amenas as temperaturas. À medida que a Antártida se afastava devido à deriva continental, essas correntes passaram a fluir entre os dois continentes, isolando as terras austrais. Há 33 milhões de anos, esses processos levaram ao estabelecimento de um extenso manto de gelo sobre o continente e da Corrente Circumpolar
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CIENTISTA ACIDENTAL Um grupo de elefantes-marinhos da ilha Elefante, na Antártida, está levando ao extremo a definição de subemprego. Eles trabalham o ano inteiro nos mares mais violentos do mundo, registrando fielmente dados sobre sua posição e as condições de temperatura e salinidade da água –sem ganhar um centavo. Os bichos levam na cabeça rastreadores via satélite, instalados por pesquisadores da Furg (Fundação Universidade do Rio Grande). Seu trabalho involuntário é usado para monitorar o ambiente do oceano Austral 11 meses por ano (em lugares inacessíveis, como zonas cobertas de gelo), além de obter dados sobre a espécie –como seus mergulhos a mil metros de profundidade e seus locais de alimentação. “Os dados que nossos animais coletam têm sido incorporados a bancos de dados de meteorologia para melhorar modelos climáticos”, diz a oceanógrafa Mônica Muelbert, “patroa” dos elefantes. Colados com epóxi, os transmissores caem depois de um ano, quando os bichos trocam o pêlo.
Antártica. Essa corrente, alimentada por águas dos três oceanos, marca a transição entre a Antártida e o resto do mundo. Ela forma uma fronteira física, a Convergência Antártica, ao sul da qual a temperatura da água cai bruscamente e o mar é permanentemente tempestuoso. Pelo menos na superfície, a Convergência forma uma barreira que impede a migração de espécies antárticas para o norte e a entrada de animais do norte, como tubarões, em águas polares. Baleias e cientistas são praticamente as únicas criaturas que ignoram essa fronteira. Esse isolamento permitiu a evolução de uma série de criaturas endêmicas, ou seja, que só ocorrem na Antártida. As mais notáveis são os “icefish”, os peixes-gelo, que não têm hemoglobina no sangue e em cujas veias correm proteínas anticongelantes, que lhes permi-
tem viver em temperaturas de até -2º C. Os cientistas sabem, no entanto, que muito abaixo da superfície existem massas de água densas e salinas que o oceano Austral lança em direção ao Atlântico, ao Índico e ao Pacífico. Uma das questões que eles estão tentando responder é se essas massas de água também funcionam como “estradas” para a biodiversidade. A resposta parece ser sim. Uma das evidências disso vem sendo levantada por um aluno de Campos, Rafael de Moura. O carioca é especialista em pepinos-domar, primos das estrelas-do-mar. Ele descobriu pelo menos três espécies que habitam simultaneamente o oceano Austral e a margem continental brasileira, a profundidades que variam de 1.100 a 1.600 metros. Ele agora quer analisar o DNA desses animais para saber se as populações do Atlântico e as do oceano
Marcos César de Oliveira Santos
Mônica Muelbert/PEMS/Furg
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Pesquisador se prepara para dar tiro de balestra numa baleia-jubarte (Megaptera noveangliae); a flechada não dói e tem o objetivo de coletar uma amostra de pele e gordura para análise genética
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Corbis
NO CORAÇÃO DA ANTÁRTIDA
O pinguim-de-barbicha (Pygoscelis antarctica) vive uma explosão demográfica na ponta da península Antártica; um estudo na revista “Science” acaba de sugerir que isso se deve a alterações causadas pelo degelo acelerado ali, que espanta o krill e as espécies de pinguim que preferem o gelo
“O oceano Austral é um potencial celeiro de especiação para vários grupos, e esses grupos acabam colonizando o restante dos oceanos”, diz Bruno Danis. Um dos colaboradores de Lúcia Campos no Chile, Elie Poulin, tem mostrado que, com alguns grupos de animais, o inverso também pode acontecer: há evidências de que espécies de ouriço-do-mar originadas em águas mais quentes ao norte tenham emigrado para a Antártida.
Toni Pires/Folha Imagem
Austral estão em processo de isolamento, em vias de originar novas espécies. Um outro grupo, do Reino Unido, foi além: descobriu que as massas de água submarinas da Antártida não só funcionam como corredor de trânsito de animais como também podem ser vias para a “exportação” de fauna que evoluiu nas condições extremas do oceano Austral. Em um estudo publicado em novembro no periódico científico “Cladistics”, o grupo comparou o DNA dos polvos antárticos com o de polvos de águas profundas dos três oceanos. Essas criaturas desenvolveram características peculiares ao longo da evolução, como a perda da bolsa de tinta –inútil em grandes profundidades, onde o mar é escuro. A análise genética revelou que os polvos de profundidade têm todos um ancestral comum na Antártida, uma criatura cujos descendentes se espalharam pelo planeta há 15 milhões de anos, quando o manto de gelo antártico se expandiu e a massa de água fria submarina exportada para o resto do mundo aumentou.
Pombas-do-cabo, aves comuns na Antártida
Penetras
Nem todos os imigrantes são bem-vindos, no entanto. O biólogo Marcos Tavares, da USP, descobriu em 2004 uma evidência de invasão recente do oceano Austral que pode prenunciar um desastre ambiental. Ele viu que caranguejos-gigantes da espécie Hyas aranaeus, vindos do Atlântico Norte, burlaram a Convergência e entraram em águas antárticas. Esses predadores vorazes nunca antes haviam sido vistos na zona polar. Sua entrada pode ser um sinal de que o aquecimento global, ao aumentar as temperaturas de parte do oceano Austral, já esteja diminuindo o isolamento da Antártida. “Pescar um caranguejo não prova muita coisa”, diz Campos. “Entre chegar lá e ficar existe uma distância.” De qualquer maneira, afirma, o achado acendeu uma luz amarela. Se os caranguejos colonizarem o oceano polar, nada impede que outras espécies também o façam –tubarões, por exemplo. E aí a Antártida pode ficar realmente muito parecida com o Caribe. No mau sentido.
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Toni Pires/Folha Imagem
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Férias geladas
Turista austríaco faz “kite-ski” nos montes Patriot
FAZER TURISMO NA ANTÁRTIDA REQUER CORAGEM, PACIÊNCIA E DINHEIRO por Marcelo Leite, enviado especial à Antártida
A
lém de tolerância ao frio, o adepto de turismo radical que quiser conhecer a Antártida precisa ter bolsos cheios, poucos compromissos e muita paciência mesclada com coragem. Somados aos percalços de qualquer viagem, imprevistos provocados pelo clima caprichoso da região podem atrasar partidas e chegadas em dez dias ou mais, obrigando o visitante a uma internação forçada em lugares como Punta Arenas, que não é bem a cidade mais atraente do mundo. Foi isso que aconteceu em meados de dezembro com um grupo de 49 clientes da empresa americana Antarctic Logistics and Expeditions (ALE), única a levar turistas para o interior do
continente, ao acampamento de montes Patriot, a pouco mais de 1.000 km do polo Sul. Todos haviam chegado a Punta Arenas contando embarcar no dia 16, mas só partiram dez dias depois. Pavel Bém, prefeito de Praga (República Tcheca), médico e aventureiro, desistiu e voltou para seus afazeres. Não se sabe se Bém conseguiu reaver o dinheiro pago para escalar o maciço Vinson, um pacote que custa US$ 33.450, mas não deve ter sido fácil. Todos que embarcam no voo do jatocargueiro Ilyushin-76DT para Patriot assinam contratos em que a ALE se reserva o direito de mudar tudo a qualquer momento, em nome da segurança dos passageiros e por motivo de força
maior (leia-se clima), sem direito a restituição integral. Seus clientes também precisam de uma apólice de seguro no valor de US$ 300 mil para remoção, em caso de acidente ou doença graves (o acampamento tem dois médicos de plantão). Tudo isso para passar vários dias ou semanas dormindo em barracas para duas pessoas, diretamente sobre o gelo, sem direito a água encanada (em português claro, sem banho). A ALE, no entanto, é o meio menos usado pelos mais de 46 mil viajantes que visitam a Antártida a cada verão. Só 270 recorreram à empresa e desembarcaram de avião no continente gelado na temporada 2008/9, 177 deles para escalar o maciço Vinson, montanha mais
NO CORAÇÃO DA ANTÁRTIDA
Reino Unido (16%) e Alemanha (11%). Nos últimos três verões, o fluxo cresceu mais de 50% e já começa a preocupar pelo impacto ambiental. Embora haja regras estritas sobre retirada de lixo e dejetos e trato com animais selvagens, não há fiscalização no continente. Turismo na Antártida, além de riscos para ecossistemas ainda pouco conhecidos, traz também perigo para o pró-
prio visitante. Em 17 de fevereiro, o navio dinamarquês Ocean Nova, fretado pela empresa americana Quark Expeditions, encalhou na baía Marguerite, no lado oeste da península Antártica, com 105 pessoas a bordo. Todas foram retiradas pelo navio Clipper Adventurer, a serviço da mesma empresa, mas muitas devem ter tido pesadelos, lembrando do filme “Titanic”.
France Presse/Marinha Argentina
alta do continente (4.892 m). A maioria vai de navio, e apenas dois terços desembarcam em terra firme (ou gelo firme). Recomenda-se aos navegantes buscar uma empresa filiada à Associação Internacional de Operadores de Turismo Antártico (Iaato), que subscreve as regras ambientais do Tratado da Antártida –são 44. Recentemente, operadoras com menos experiência na região têm levado grandes navios para a Antártida, alguns com mais de 2.000 passageiros, tendência que preocupa membros do tratado. Uma das companhias mais especializadas é a Polar Cruises, que trabalha com 18 embarcações de quatro tipos: quebra-gelos, navios de luxo, navios de expedição e navios de aventura, com capacidades variando entre 45 e 120 passageiros. Dependendo do itinerário e das acomodações, o preço pode variar entre US$ 4.000 e US$ 38.000, com partidas da América do Sul, Austrália e Nova Zelândia. De navio o visitante não vivencia as condições extremas do continente experimentadas pelos primeiros exploradores e pelos turistas da ALE, mas pelo menos o banho quente é garantido. Os pontos mais visitados são ilhas e baías na região da península Antártica, o braço que se projeta em direção à América do Sul. Nem 1% das visitas chega ao continente, menos ainda nos pontos históricos como a região da baía de McMurdo, de onde saíram duas expedições de Robert F. Scott e uma de Ernest Shackleton, no começo do século 20. Só 338 brasileiros –0,7% do total de turistas– visitaram a região entre 2007 e 2008, segundo estatísticas da Iaato. A maioria dos turistas vem de países mais ricos, como EUA (36%),
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Navio turístico Ocean Nova encalhado perto de uma base argentina na península Antártica
NOME DO PROGRAMA
TEMPO
ATIVIDADES E ATRAÇÕES
Maratona no gelo
5 dias
Odisséia antártica
1 semana
Maciço Vinson
8 a 12 dias
Voo ao polo Sul
1 semana
Pinguinsimperadores
12 dias
Esqui de último grau
2a3 semanas 65 dias
Para participantes de meia-maratona, maratona e ultramaratona (100 km) na região de Patriot Passeios guiados com esquis, sapatos de neve e motos de neve pelas imediações do acampamento nos montes Patriot; sobrevoo da região em bimotor Deslocamento de avião até acampamento na base da montanha mais alta da Antártida, para escalada (5 a 9 dias) Voo de 6h e permanência de poucas horas no polo, com visita à base americana Amundsen-Scott. Dias restantes incluem passeios na área do acampamento em Patriot Voo de 6h até colônia de Aptenodytes forsteri junto ao mar de Weddell, com acampamento na companhia de especialistas. Também há focas no local Pelo menos 9-10 dias esquiando no platô Antártico, total de 1.000 km até o polo Sul (volta a Patriot de avião) 40-45 dias de travessia em esquis por 1.200 km, puxando trenó de 50-60 kg por 7h-9h ao dia
Esqui até o polo Sul
PREÇO (US$)
16.500 (R$ 38.650)
19.950 (R$ 46.740)
33.450 (R$ 78.370)
37.850 (R$ 88.680)
43.850 (R$ 102.740)
46.450 (R$ 108.830)
65.950 (R$ 154.520)
FOLHA DE S.PAULO | 22 DE MARร O DE 2009
Caio Guatelli/Folha Imagem
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Entrevista: Rubens Junqueira Villela
Marcamos passo na Antรกrtida
NO CORAÇÃO DA ANTÁRTIDA
PIONEIRO BRASILEIRO NO POLO SUL RELATA AVENTURAS E FRUSTRAÇÕES DO PROGRAMA ANTÁRTICO E DIZ QUE PAÍS CONQUISTOU UMA “LIBERDADE ATROFIADA” NA REGIÃO por Claudio Angelo, editor de Ciência
O
meteorologista Rubens Junqueira Villela não poderia estar mais longe do gelo. Aposentado pela USP, ele hoje faz previsão do tempo para obras de infraestrutura, a última delas na Bahia. Uma mudança e tanto para quem foi o primeiro brasileiro a pôr os pés no polo Sul, em 1961, participou da primeira missão oficial brasileira, em 1982, e viajou à Antártida 12 vezes. Nesta entrevista, Villela, que completa 79 anos no mês que vem, faz um balanço do Programa Antártico Brasileiro, o Proantar, iniciado em 1982. E sentencia: “Ficamos 25 anos marcando passo na Antártida”.
Por que o Brasil se interessou por entrar no Tratado da Antártida? O interesse existia da parte do Itamaraty. Um diplomata publicou nos anos 1950 dois trabalhos advogando a entrada do Brasil. Na década de 1960, o assunto foi levantado no Congresso pelo deputado Cunha Bueno. Mais ou menos naquela época surgiu o deputado Eurípedes Cardoso de Menezes, propondo que o Brasil anexasse território antártico, porque tinha tanto direito quanto qualquer outro país. Isso seria feito adotando a teoria do setor polar, que outra brasileira, a geógrafa Terezinha de Castro, propôs. A ideia era que o Brasil usasse a projeção de seu próprio litoral sobre o continente, não era? Exatamente, pegando desde a ilha da Trindade até o Chuí! Ela publicou esse mapa num atlas escolar editado pelo IBGE. Imagine, projetar o litoral brasileiro por mais de 4.000 km até a Antártida. Desse jeito, o Brasil poderia projetar seu mapa na Lua e dizer que a Lua é dele. Mas então outros começaram a levantar esse assunto, até que em 1972 o Clube de Engenharia teve a ideia de organizar uma expedição à Antártida, para comemorar os 150 anos da Independência. Qual era o interesse do Brasil? Era predominantemente político. Território e recursos minerais. Eu acabei contribuindo um pouco para essa confusão territorial, porque disse que em princípio a gente pode dizer que o Brasil tem um setor antártico, que é o do mar de Weddell, porque de fato confronta a nossa
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costa e dali saem massas de ar que influenciam nosso clima. Aí eu escrevi para o British Antarctic Survey e pedi mapas e fotos aéreas de alguns locais onde havia nomes brasileiros. O monte Barão do Rio Branco e o pico Alexandrino de Alencar, na península Antártica, por exemplo. Quem deu esses nomes? Foi o [explorador francês JeanBaptiste] Charcot. Se o Brasil não cuidar, esses nomes caem. Qualquer um vai lá e dá outro nome. Tem de cadastrá-los oficialmente. E a expedição do Clube de Engenharia nunca vingou? O governo Médici vetou. Naquela época estavam sendo negociadas as cotas de Itaipu com a Argentina, e essa pretensão brasileira de enviar uma expedição à Antártida estava repercutindo nos jornais argentinos de forma negativa. Estavam acusando o Brasil de querer ocupar o “nosso” território. O sr. tinha sugerido o setor do mar de Weddell como o local onde o Brasil pudesse se estabelecer. E nós fomos parar na ilha Rei George. Por quê? Entrar no mar de Weddell não é fácil. Para alcançar a costa é preciso atravessar uma banquisa de até mil quilômetros de largura. Os argentinos e os ingleses já tinham desenvolvido uma estratégia para entrar naquele setor, pelo canal costeiro, bem a leste, quase na África. O vento ali afasta a banquisa e abre um canal a leste. Isso permite entrar para chegar a bases como a Von Neumayer, da Alemanha.
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FOLHA DE S.PAULO | 22 DE MARÇO DE 2009
Bill Vaughn
polo Sul. Eu mesmo propus uma expedição terrestre ao polo Sul em 1985. O Antônio Carlos Rocha-Campos, representante brasileiro no Scar (Comitê Científico sobre Pesquisa Antártica), vetou. Disse: “Isso é maior do que o Proantar todo!” A Antártida é o seguinte: você precisa ser cauteloso, mas, se não tiver um pouco de ousadia, não faz nada.
Rubens Junqueira Villela no oeste antártico em março de 1961, durante expedição americana; na página 64, o cientista em sua casa, com o mesmo casaco que usou em sua viagem ao polo Sul
E ninguém topou fazer isso... Topou! A primeira viagem brasileira, com o Barão de Teffé, foi no mar de Weddell, sob o comando do [mais tarde almirante] Fernando José Pastor. Eles inclusive desembarcaram de helicóptero na base alemã. Foi um negócio arriscado. Bem ali o navio ficou sem motor. Ainda bem que havia um alpinista alemão a bordo que era também engenheiro eletricista, que botaram para consertar o motor. O responsável pela escolha do local da base foi o Fernando Araújo, comandante da Marinha. Depois do mar de Weddell eles foram para a península Antártica. O Araújo dizia que o Brasil tinha de ir para um lugar de acesso fácil, que precisava dar um passo curto para não escorregar.
O sr. não estava nessa viagem? Eu estava no Professor Besnard [navio oceanográfico da USP], no outro setor. Os tripulantes eram da Marinha Mercante e alguns tinham alguma ideia do que era gelo, mas a maioria não. O pessoal tinha medo. O casco do Besnard tinha chapa fina, de 8 milímetros. O veleiro Rapa Nui, do Amyr Klink, tinha 16 milímetros. Houve uns sustos, como sermos cercados por gelo sem liberdade de manobra. Começaram a aparecer blocos de gelo na altura do convés. Foi um sufoco. Por que o Brasil demorou 27 anos para chegar ao interior da Antártida? Temos logística para isso, não? Sim. Os aviões Hércules, por exemplo, são os mesmos que pousam no
Essa região onde nós fazemos pesquisa ainda é adequada aos interesses do Brasil? Talvez não. Do ponto de vista da física da ionosfera, por exemplo, o setor do mar de Weddell seria muito mais interessante, porque é ali que ocorrem os fenômenos que realmente interessariam estudar, as tempestades ionosféricas. Mas, como aprendizado, mostrou ser uma região bastante rica de oportunidades, apesar de bastante explorada. A natureza antártica é de tal modo variada e mal conhecida que ainda não se esgotaram as oportunidades de pesquisa ali. Mas, do ponto de vista das questões maiores, como a mudança climática, essas coisas que o Jefferson [Simões] está fazendo estão mais de acordo com o interesse avançado da ciência. Se o sr. recebesse hoje o comando do Proantar, que estratégia desenharia? Hoje eu não queria essa chefia de jeito nenhum. Teria de começar tudo do zero. Eu antevia o programa por etapas. Primeiro, adquirir know-how, depois partir para a autonomia. Nós obtivemos autonomia, mas foi uma autonomia atrofiada. Ficamos 25 anos paralisados, marcando passo. É muito tempo.
SE O SOL É NOSSA ENERGIA, A ÁGUA É A INSPIRAÇÃO. Para nós, o aquecimento de água com energia solar é mais que um negócio. É acreditar que o planeta tem uma alternativa. Porém, se a energia do sol é inesgotável, temos cada vez menos água. E a sua preservação é nossa responsabilidade. Faça parte desse movimento com a gente e ajude a construir um futuro sustentável.
HOMENAGEM DA TRANSSEN AO DIA MUNDIAL DA ÁGUA.
Iniciativas ambientais da Transsen. • Consumo consciente: projeto de educação ambiental • Coleta seletiva de lixo • Diagnóstico dos impactos ambientais provocados pelas atividades da empresa