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DE MENINO A DELEGADA: A histรณria de Laura de Castro


Pontifícia Universidade Católica de Goiás Escola de Comunicação Social Curso de Jornalismo Trabalho de Conclusão de Curso - 2017/2

Autores João Neto Pabline Flaviane Thaís Muniz

DE MENINO A DELEGADA: A história de Laura de Castro

Orientador Rogério Borges Diagramação Thereza Sanvés Fotos Arquivo Pessoal Laura de Castro

João Neto Pabline Flaviane Thaís Muniz


Dedicamos este livro a você em especial que doou um pouco do seu tempo para conhecer a história de Laura, e que está aberto(a) a entender como é ser transexual. Como é ser “diferente”.


Por todas as pessoas que, de forma direta ou indiretamente, contribuíram para que o nosso trabalho fosse desenvolvido com êxito. Consideramos essencial agradecer também, em primeiro lugar, às nossas famílias, à Laura de Castro pelas longas horas de conversas e ao nosso mestre com carinho: Rogério Borges! João Neto, Pabline Flaviane e Thaís Muniz


‘’Em tempos de de pós-modernidade, somos todos simbolicamente transexuais, porque vivemos numa era em que o corpo não deve mais ser protegido como um santuário, mas sim tem o destino de modificar-se, de tornar-se prótese, ou seja, um simulacro de si mesmo’’ Jean Baudrillard


SUMÁRIO Apresentação

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“Me chamam de Laura e de pai”

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Prefácio

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“Comecei a enfrentar um leão por dia”

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“Tentei viver como menino, e fazer meu papel social”

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“Estar sempre com uma arma na cintura evitou que fizessem zombarias comigo”

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“Trabalhando na polícia, fuji um pouco do meu ‘problema’”

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“Não apoio as espetacularizações de condições semelhantes à minha vida”

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“Imaginava que meu casamento fosse algo inabalável”

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“Sou muito feliz de ter a liberdade que tenho hoje, e sou orgulhosa de mim”

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“Urinar sentada foi a melhor sensação que tive em anos”

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“Só entenderia realmente como ser uma mulher se tivesse nascido uma”

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Apresentação

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que ser quando crescer? A pergunta, que toda criança faz ao se perceber como um membro de uma sociedade maior, que transcende aquele núcleo essencial de convivência ao qual convencionou-se denominar “família’’, assume ares de assombrosidade quando a resposta mais recorrente que se apresenta é: “quero ser mulher”. Em nada espanta a colocação quando apresentada por quem nasceu sob os auspícios do sexo biológico feminino, eis que o “ser mulher” é consequência natural do perpassar do tempo. Passa a ser um problema complicado, contudo, quando a criança em questão, desnuda, olha-se no espelho e percebe que suas raízes biológicas em nada favorecem sua pretensão. Eu, como milhões de outras pessoas espalhadas DE MENINO À DELEGADA

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pelo mundo, faço parte de um grupo que há até pouco tempo transitava sob o manto de uma invisibilidade socialmente imposta. Esse manto, contudo, veio sendo levantado paulatinamente até que, no avançar do século passado, cunhou-se uma expressão para a designação dessa categoria de indivíduos, que hoje são conhecidos como transgêneros. Conhecidos mas não unanimemente reconhecidos, eis que, como contumaz na história da humanidade, não tardam em se levantar vozes de pretensos paladinos da ordem e da moralidade, entoando aquela velha ladainha que apregoa a igualdade àqueles que se adequam aos padrões estabelecidos por uma relativa maioria, unida em suas convicções, excluindo-se todos os demais que relutam em ser “iguais”, pois optaram estes por percorrer o estreito e espinhoso caminho do autoconhecimento e da autoaceitação, na esperança de alcançar aquele lugar, quase utópico, denominado felicidade. Com essas considerações, aceitei com felicidade o convite de João Neto, Pabline e Thaís, graduandos no curso de Jornalismo da Pontifícia Universidade Católica de Goiás, para contar um pouco de minha história e compartilhar algumas experiências e opiniões, no intuito de subsidiar a redação de um livro que servirá como trabalho de conclusão de curso e mereça no futuro, quiçá, uma divulgação maior. Espero que minhas colocações, recebidas e 16

transmitidas pela perspectiva dessas pessoas que me acolheram com tanta consideração e respeito, sejam úteis para iluminar um pouco a visão que se tem do universo trans, tão encoberto que é pelas trevas da intolerância e da negação. Boa Leitura! Laura de Castro Teixeira

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Prefácio I. A história que está prestes a começar pode ser, para determinados leitores, um pouco curiosa ou até mesmo polêmica, dependendo do ponto de vista de cada um. As próximas páginas farão com que o leitor entre no mundo particular de uma pessoa em especial. Uma mulher comum como qualquer outra: feminina, de uma beleza radiante, forte, delegada da Polícia Civil e, transexual. Laura de Castro Teixeira vive como uma mulher física e socialmente desde os 32 anos de idade, fato que a transformou na primeira delegada do País a se submeter à cirurgia de mudança de sexo, no ano de 2013. Uma das inspirações que tivemos para construir DE MENINO À DELEGADA

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esta narrativa veio após assistirmos ao filme A Garota Dinamarquesa (2015), do cineasta Tom Hopper. A trama, baseada em fatos reais, mostra com delicadeza a vida da artista visual Lili Elbe (1882 – 1931), conhecida como a primeira pessoa do mundo que mudou cirurgicamente do sexo masculino para o feminino. Oitenta e seis anos se passaram desde a realização dessa primeira cirurgia e até hoje o número de pessoas que fazem o mesmo procedimento cresce constantemente em todo o globo. O que leva homens e mulheres a buscarem centros médicos para a realização de uma cirurgia como essa? Laura nos ajudou a encontrar respostas para muitas perguntas semelhantes a fim de entendermos melhor questões como o significado das nomenclaturas existentes e o que se passa na vida e na mente de uma pessoa que, como ela, decidiu mudar de uma maneira completa e irreversível.

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II. O nosso primeiro encontro com Laura foi em seu ambiente de trabalho, na Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (DEAM), no Setor Central da cidade de Goiânia. Era uma ensolarada tarde de domingo, no início do ano de 2017, por volta das quinze horas. Ansiosos e um pouco receosos, quando adentramos no local nos deparamos diretamente com ela na recepção. O lugar era frio e causava estranheza. As paredes eram de tons acinzentados, um balcão bem grande ao centro, com três policiais, homens altos e fortes, seus colegas de trabalho que, assim como ela, estavam armados. Eles estavam com feições bruscas e sérias, ao contrário dela que sorriu ao nos receber. Serena ao falar, ao andar, Laura é uma mulher alta (cerca de 1 metro e 86 centímetros), magra, cabelos dourados e se vestia de forma simples e coerente para seu trabalho, sem muitos adereços como brincos, pulseiras ou anéis. Tem mãos finas e dedos longos sem esmaltes, olhos pretos e firmes que nos olhava fixa e diretamente, cheia de curiosidade. Uma pessoa realmente natural, discreta, reservada e, às vezes, tímida. Já em sua sala particular, ela nos contou um pouco da sua rotina que, na maioria dos casos, lida diretamente com questões que retratam uma realidade triste de mulheres que sofrem com violência doméstica, estupros e agressões em geral. DE MENINO À DELEGADA

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Apesar do lugar um pouco desconfortável e do grito de uma mulher que chegara ao local denunciando uma agressão, durante a nossa conversa ficamos mais à vontade após explicarmos o motivo do encontro e do porque queríamos contar sobre a sua história de vida. Sempre muito receptiva, ela já adiantou um pouco do ‘’trabalho’’ que teríamos pela frente.

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III. Após esse primeiro encontro, fomos até a casa de Laura, para evitar distrações e interrupções de trabalho. E para tentarmos conhecê-la um pouco melhor, com mais privacidade. Situada em uma rua de pouca movimentação, imaginamos que pela calmaria do local a conversa seria tranquila. Ao entrarmos em sua residência, ela nos recebeu com um sorriso largo e com muita simpatia. Ali também, percebemos que Laura é uma mulher simples e de pouca vaidade. A casa com paredes brancas combinava com alguns poucos móveis antigos, mas suficientes para nos sentirmos aconchegados. Com um casal de filhos e três gatos compartilhando a moradia, concluímos que Laura vive feliz e realizada, em um lar aparentemente harmonioso. Em um papo descontraído desde o início, Laura se sentia confortável em falar sobre sua vida e intimidade. E quando começa a contar de seu passado, ela aparentava estar um pouco nostálgica e, sorrindo, diz: ‘’às vezes ainda penso que o que eu fiz é uma loucura... ’’

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“Tentei viver como menino, e fazer meu papel social”

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hiago de Castro Teixeira nasceu no ano de 1981 e durante sua infância era como qualquer outra criança da sua idade: gostava de brincar. Mas diferente de muitos meninos, sua preferência desde pequeno era de sempre estar perto de meninas, e de brincadeiras femininas. Natural de Goiânia, sua família também era como qualquer outra, comum aos padrões da sociedade. Ele cresceu entendendo que deveria viver daquela maneira, no protótipo tradicional. Apesar disso, viveu poucos anos junto com seus pais e com sua irmã, quatro anos mais velha que ele. Quando completou cinco anos de vida, seu avô materno faleceu, causando uma enorme tristeza entre eles, já que todos de sua família e parentes eram muito unidos. Seus avós maternos tinham um vínculo tão DE MENINO À DELEGADA

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forte que depois de trinta dias a sua avó também morreu, tamanha a tristeza em perder o seu grande amor. Toda essa comoção desestruturou sua casa. Sua mãe, tentando escapar desse enorme sofrimento, resolveu ir embora do Brasil e buscar uma vida melhor no exterior. Seu pai não quis acompanhá-la e abandonar o restante de seus familiares, e resolveu permanecer no país, mesmo que isso levasse a uma inevitável separação. Sua mãe partiu e seu pai tentou reestruturar-se de outra maneira e, depois de alguns anos, construiu uma nova família. Thiago e sua irmã foram morar na casa da avó paterna e permaneceram por lá durante uma longa temporada, por escolha própria. O pai tentou inseri-los em sua nova família, mas os dois preferiram permanecer sob os cuidados da avó. Quando entrou na fase da puberdade, ainda bem jovem, Thiago começou a questionar-se que talvez não se encaixasse na sociedade como gostaria, mas também ainda não sabia como queria realmente ser. Ele, então, resolveu mudar e morar com a mãe que já estava estruturada na Itália havia muito tempo. Ela casou-se e construiu uma nova família e Thiago não teve problema em se inserir na nova parentada. De fato ele até gostava. Ela trabalhava muito, principalmente no período noturno e ele ficou responsável pelo auxílio na criação dos irmãos mais novos, frutos do novo casamento da mãe. 26

Ao longo de quatro anos morando na Itália, Thiago vivenciou experiências incríveis. Conheceu uma cultura diferente, um idioma novo, a história do país e da Europa. Ele sempre gostou muito de ler e era fascinado com grandes histórias. Mas também viveu outras que ele gostaria de esquecer. Sua mãe acabou entrando em um relacionamento abusivo e marcado com violência, e não tinha nada que ele pudesse fazer a não ser se afastar. Cheio de tristeza e com um aperto no coração por deixar os irmãos e a mãe, decidiu voltar ao Brasil para se dedicar aos estudos. Quando Thiago completou 14 anos, seus conflitos internos começaram a assombrá-lo diariamente. Pensava que algo dentro dele não estava como deveria, mas sempre tentou evitar esse tipo de pensamento. De volta à casa da avó em Goiânia, percebeu o quanto havia sentido falta dela. Ela foi muito amorosa na criação dele e da irmã e sempre a teve como uma grande inspiração e exemplo para tudo em sua vida. Mas mesmo rodeado com muito amor, ele percebeu que o problema não era morar na Itália ou no Brasil; o problema era morar dentro de um corpo no qual ele não se sentia bem. Em sua cabeça, ele deveria ‘’morar’’ em um lugar diferente daquele. Thiago sabia que não era um menino. Menino esse não no sentido de um garoto jovem que se tornaria um grande homem em breve, não. Thiago sempre foi uma menina que queria amadurecer como uma muDE MENINO À DELEGADA

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lher, mas estava presa dentro de um corpo masculino. Ele se olhava no espelho e não ficava feliz com o que via. ‘’Essas roupas, esse estilo de vida, não combinam comigo, algo está muito errado’’. Thiago, por muitas vezes, se martirizava com esse pensamento e tinha vergonha de ponderar dessa forma. Mas ainda assim, ele nunca se vitimizou por ter nascido menino, tentava ao máximo se adequar em tudo e ao todo. Nunca contou a ninguém como se sentia. A exclusão sempre foi o seu maior medo, guardou esse sentimento por anos e colocou na cabeça que tentaria viver como os demais: sendo ‘’normal’’. Na adolescência se rebelou um pouco e parou de estudar, dedicando-se apenas ao trabalho. Thiago tinha uma ânsia enorme pela sua independência, queria se aventurar e cuidar de si mesmo sozinho. Começou a trabalhar em um cartório de tabelionato de notas, onde grande parte de sua família também atuava profissionalmente. Por imposição da avó, sua maior tutora, ele enfim percebeu o valor dos estudos e terminou o Ensino Médio através de um supletivo – uma espécie de encurtador das séries do Ensino Básico. Dedicado, e novamente estudioso, foi morar sozinho quando completou 18 anos, e entrou para a faculdade de Direito aos 19, por influência da família. Conciliava o trabalho no cartório com o curso, e percebeu que realmente tinha certo talento na área, conquistando o cargo de escrevente. 28

Mesmo angustiado internamente, Thiago tentava ocupar a mente com as leis e o Vade-Mécum e conseguiu, pelo menos por um tempo. Acabou descobrindo que o curso de Direito se transformara em uma grande paixão, que ele leva consigo até hoje.

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“Trabalhando na polícia, fuji um pouco do meu ‘problema’”

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ouco tempo antes de ingressar na faculdade, Thiago conheceu a mulher que viria a ser sua esposa, com quem teve filhos e durante muito tempo se sentiu feliz. Vivia ao lado de uma pessoa com quem compartilhava o amor. Amor esse que teve uma união estável durante 13 anos até que as assombrações do passado, presentes inconscientemente, voltaram. Thiago, por certas vezes, sentia-se atraído por outros homens quando adolescente, mas nunca se envolveu com nenhum. Ele jamais deixou seus desejos se sobreporem à razão, que ele considerava a maneira correta de viver. Independente disso, o que acontecia era que ele simplesmente não queria reconhecer-se em sua identidade de nascença, mas ainda não sabia que era transexual. Nunca conheceu uma pessoa DE MENINO À DELEGADA

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que passou por algo parecido ou que vivia o mesmo ‘’problema’’ que ele. Sozinho dentro de si, não poderia explicar para alguém o que se passava em sua mente. Como se nem ele mesmo entendia ao certo? ‘’Uma coisa dessas não tem cabimento algum. Ou a minha insanidade está atingindo o nível máximo, ou isso talvez possa ser algum tipo de fantasia diferente.’’ Por vezes, chegou a cogitar que estaria mesmo louco. Thiago faz parte de um grupo que engloba milhares de pessoas em todo o mundo: os transexuais. A presidente da Organização do Orgulho LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e transgêneros) de Goiânia, Rita de Cássia Araújo, explica que a transexualidade é a condição em que uma pessoa se identifica como sendo do gênero oposto ao sexo refletido pelo corpo. Um homem transexual é uma pessoa que sente que o seu gênero é o feminino, embora tenha nascido com corpo masculino. E isso não está ligado à orientação sexual, que diz respeito à atração que se sente por outros indivíduos. Se a pessoa gosta de se relacionar com o sexo oposto é denominado heterossexual; se a atração é por aqueles do mesmo sexo, sua orientação é homossexual. E há também aqueles que se interessam por ambos: os bissexuais. Sendo assim, transexuais podem ser heterossexuais, homossexuais ou bissexuais.

Passados alguns anos, Thiago formou-se em Direito e advogou durante um tempo. Ele tenta32

va constantemente distrair seus pensamentos e então resolveu se aprofundar ainda mais nos estudos e leituras intensas para se tornar um delegado de polícia. Dias de muita dedicação e noites em claro faziam parte de sua rotina, e também era um bom lapso para seus tormentos. Fora o conhecimento e pesquisas ligadas às leis, outros livros e histórias diversas se tornaram seus amigos fiéis e um refúgio para que ele pudesse pensar, observar e tentar entender o mundo com outros olhos. Um livro que o ajudou bastante foi O Universo numa Casca de Noz, de Stephen Hawking. Apesar de se tratar de páginas voltadas para a Física, um tanto complicado de se assimilar, Thiago o compreendeu de uma maneira diferente. Ele entendeu que as pessoas vivem dentro de uma casca de noz e tudo o que os outros enxergam é só a parte externa. No interior dessa casca, ninguém nunca vai saber o que se passa ali. As pessoas podem ser o que elas quiserem na casca, desde que se conformem com o externo e trabalhem o seu interno. Foi isso que ele fez. Trabalhava diariamente seu consciente e inconsciente para lidar com o mundo de fora. E assim descobriu que poderia ser quem quisesse, e os outros o enxergariam externamente do modo como ele gostaria que fosse. Indivíduos que o rodeavam não percebiam nada de diferente, já que ele demonstrava ser um homem heterossexual sem qualquer tipo de DE MENINO À DELEGADA

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complicação. Mas ainda assim, Thiago sabia que a casca não duraria para sempre e que ele precisaria, em algum momento, conversar com alguém. Thiago sempre fez questão de parecer uma figura máscula. Uma pessoa forte, firme, implacável e que escondia seus sentimentos. Até que em meados de 2007, todo o trabalho interno e distrações possíveis não foram suficientes. Começou a sentirse demasiadamente sufocado e pouco antes de a corda torcer seu pescoço de uma vez por todas, foi buscar na internet qualquer tipo de ajuda possível.

Segundo dados do Ministério da Saúde, o número de operações de redesignação sexual cresceu de forma constante e, atualmente, são realizadas três cirurgias por dia no Brasil. Desde 2008, quando o método começou a ser oferecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS), foram realizados 2.174 atendimentos hospitalares e ambulatoriais para o processo de mudança de sexo. Em 2009, foram realizados 501 procedimentos, número que cresceu para 510, em 2010, para 706, em 2011, e 896, em 2012. A cada ano mais pessoas procuram pelo serviço e, ainda de acordo com o Ministério da Saúde, a demanda pela cirurgia teve um aumento de 32% entre os anos de 2015 e 2016.

Na rede, Thiago percebeu que não estava mais só e pôde respirar com um pouco mais de tranquilidade. Encontrou grupos de apoio a pessoas que passavam pela mesma situação e pôde descobrir 34

que existem indivíduos que se submetem à cirurgia de mudança de sexo no Brasil e em todo o mundo. Após essa descoberta, uma mescla de felicidade e ódio o rodeou naquele momento. Ora feliz em saber que poderia conversar e desabafar com alguém pela web; ora com raiva quando se lembrava de todo esse tempo em que ele se sentiu preso e sozinho. Por que demorou tantos anos para conhecer esse mundo novo do qual sempre quis fazer parte? Ele nunca vai saber responder. No ano de 2010, Thiago foi efetivado por meio de concurso público para trabalhar como um delegado da Polícia Civil em Goiás. Ficou responsável pela delegacia da cidade de Aparecida de Goiânia durante quinze dias, e depois mudou-se com a família para o interior do Estado. Tornou-se o titular da delegacia de Mara Rosa, assumindo várias responsabilidades, até mesmo das cidades do entorno, até chegar ao cargo de chefe no Departamento de Repressão ao Tráfico de Drogas. Foi um período muito intenso e fez com que Thiago se esquecesse um pouco dos seus problemas, que por várias vezes tirava o seu sono. Ia e voltava à capital todos os dias para fazer um curso de inteligência e táticas de combate policial, que durou três meses. Terminado o curso, assumiu a liderança especial à repressão de narcóticos em Porangatu, onde permaneceu no comando por dois anos.

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“Imaginava que meu casamento fosse algo inabalável”

TRÊS

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assado esse período intenso de atividades de combate ao tráfico de drogas, ele voltou para mais perto da capital, assumindo a delegacia de Senador Canedo, onde ficou por pouco tempo. Depois disso, ele pôde escolher qual delegacia iria assumir, e optou pela cidade de Trindade, a dezoito quilômetros de Goiânia. Aparentemente tudo estava nos conformes, pelo menos em um dos mundos em que ele vivia. Até que um certo dia, ambos os mundos de Thiago desabaram por completo. Sua esposa o flagrou enquanto fazia suas pesquisas relacionadas à transexualidade na internet. A casca de noz quebrara naquele momento. Agora, ele tinha a obrigação de ser honesto com ela e consigo mesmo. Falar em voz alta do sentimento que carregaDE MENINO À DELEGADA

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ra ao longo de sua vida até aquele dia trouxe mais veracidade aos fatos e tudo fez sentido. Thiago não poderia mais suportar a ideia de viver preso dentro daquele corpo masculino. Seu sofrimento de anos poderia finalmente acabar. Mas antes que isso acontecesse, ele enfrentaria pesadelos que pareciam intermináveis. A primeira consequência pesada veio junto com as palavras jogadas ao ar naquele momento: sua esposa estava incrédula e tinha certeza que Thiago estava sofrendo uma crise existencial. Como ela poderia aceitar que o seu marido, pai dos seus filhos, queria se tornar uma mulher? Os dois passaram por grandes turbulências na relação matrimonial, mas mesmo Thiago tendo certeza da sua condição, ele ainda tentava salvar o seu relacionamento. Ele criou uma expectativa tão grande sobre o seu casamento que imaginava que seria algo inabalável, intangível por qualquer distração ou tentações externas. Em nenhum momento ele teve dúvidas da sua afeição pela esposa. Sentia-se bem ao seu lado, tinha amor e era sexualmente satisfeito com ela. Assim como esclarecido anteriormente, a condição de Thiago ser transexual não interferia em sua orientação sexual. Alguns dias após a tempestade, ele e a esposa iniciaram um tratamento psicológico em conjunto. Por influência da mulher, Thiago começou a perceber que talvez a sua loucura teria sido, de fato, confirmada. 38

Foram alguns anos de terapia e acompanhamento médico na tentativa de salvar o casamento, mas em vão. Ela não conseguia, ou talvez se recusasse a compreender, a condição de Thiago, e acabou acontecendo o reverso. Na intenção de acabar com os desejos reprimidos, ele compreendeu melhor sua condição, já que nas sessões foi incentivado a agir da maneira que se sentisse mais à vontade. Aprendeu a entender sua situação e parou de pensar que seu desejo era impróprio. ‘’Lembro que o psicólogo me ajudou a enxergar que aquilo não era errado. Errado é deixar de ser feliz por ter medo da reação das pessoas em relação ao meu posicionamento.’’ O que acontece é que muitas pessoas acreditam que o caso de Thiago era uma coisa a ser tratada, para que a pessoa não tenha mais esses desejos e vontades. Mas é preciso entender que a transexualidade não é considerada uma doença, embora muitas vezes seja tratada como tal. Após inúmeras sessões com psicólogos e psicoterapeutas, Thiago, por fim, entendeu que aquelas sessões de divãs não o levariam a lugar algum. Ele percebeu que não estava errado e que nada daquilo estava acontecendo devido a um ‘’mal entendido’’. Na verdade, era o primeiro passo para a felicidade que lhe faltava. Ele não poderia mais continuar fugindo, ainda que isso pudesse afetar a relação com sua esposa e família. Era a hora de se aceitar de vez. Seu casamento chegou ao fim em 2013 e no DE MENINO À DELEGADA

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mesmo ano Thiago, então com 32 anos de idade, decidiu mudar por completo. Esse foi o ano decisivo em tudo e o marco para ele começar os seus procedimentos de transição. Ele tinha completado três anos como servidor público, na delegacia de Trindade, e finalizou o estágio de probatório - o período de avaliação ao qual o servidor de cargo efetivo se submete e que verificará se ele está apto ou inapto para se estabilizar definitivamente no serviço público. Nada mais poderia impedi-lo.

mininos, maior a eficácia, principalmente em relação à expressão facial. Então iniciou a medicação com os hormônios, que permaneceria até o fim de sua vida. A primeira grande cirurgia foi para alterar a forma do rosto, que era muito másculo. Para ficar com uma aparência mais feminina, era necessária a retirada de parte do maxilar. Ele já estava farto de sua masculinidade não desejada. Logo após essa plástica e de tomar essa decisão sem volta, comunicou o fato ao delegado-geral da Polícia Civil e pediu licença do trabalho.

A Psicóloga especializada em sexologia, Michelle Moura, de Goiânia, explica que a transexualidade se estabelece desde a gestação. No embrião humano, a genitália se forma por volta da décima semana, e enquanto isso o cérebro está em fase de desenvolvimento. Por volta da vigésima semana, a área que define a identidade de gênero já se forma por completo no cérebro. Isso ocorre quando a genitália e o cérebro já estão formados e o bebê pode nascer com o órgão sexual masculino, mas com identidade feminina e vice-versa. Quando a criança nasce, a transexualidade se manifesta entre os três e quatro anos de idade. Em outros casos, como o de Thiago, pode manifestar-se um pouco mais tarde.

A grande preocupação agora era obter um resultado aceitável beirando ao perfeito. Graças a todos as pesquisas que fez na internet, descobriu que quanto mais cedo se começa a usar os hormônios fe40

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“Urinar sentada foi a melhor sensação que tive em anos”

QUATRO

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fase mais turbulenta de toda sua vida se iniciara no momento em que ele disse a si mesmo: basta! Enfrentar aqueles que amava, encarar olhares curiosos à sua volta e digladiar com o mundo ao seu redor era só o início de uma mudança irreversível. Após a primeira cirurgia, ele já se definiu como uma mulher. Emagreceu, mudou o cabelo, as roupas, a postura e a maneira como vivia. Mas ainda só dentro de casa, sem se revelar por completo fora do seu mundo particular, para ir se acostumando a viver como sempre desejou. Mas agora Thiago já não faz mais parte desta história, pois ele acaba de sair de cena. E desta forma nasce Laura de Castro Teixeira, que após anos vivendo presa dentro de um cativeiro, se libertou de vez, podenDE MENINO À DELEGADA

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do assim, respirar um ar diferente, mais limpo e puro. Depois de várias pesquisas em busca do melhor procedimento e a venda de bens materiais para levantar uma boa quantia em dinheiro, Laura decidiu viajar à Tailândia para se submeter à cirurgia de troca de sexo. O país é mundialmente conhecido por realizar esse tipo de procedimento, de uma maneira mais fácil e ágil do que em outros lugares, inclusive o Brasil - a cirurgia de readequação sexual por aqui é oferecida gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS). No entanto, não é de maneira tão rápida como na Tailândia. A operação é realizada apenas em pacientes com mais de 21 anos e que passam por, no mínimo, dois anos de acompanhamento psicológico -. Laura porém, não poderia esperar mais, estava cada vez mais centrada em suas buscas pelo mundo virtual, até que descobriu o lugar de maior referência dessa cirurgia em todo o mundo. O Kamol Hospital Cosmetic & Plastic Surgery, em Bangkok, tem quatro salas de procedimentos cirúrgicos, onde são realizados vários tipos de cirurgias plásticas, mas o método de redesignação sexual é o mais famoso. Os médicos realizam de uma a três trocas de sexo por dia. Kamol Pansritum, dono do hospital, realiza mais de duas mil cirurgias de reatribuição de sexo masculino para sexo feminino a cada ano. Desde 1997, realizou mais de dez mil procedimentos relacionados a transexuais. O custo de uma cirurgia sai por aproximadamente quatorze mil reais. 44

Laura pensou que seria aquele lugar e aquele médico famoso os responsáveis por tornar o grande sonho de sua vida em realidade. Finalmente tornarse-ia uma mulher completa e realizada fisicamente. Planejou ficar na Tailândia cerca de trinta dias. Viajou sozinha e pela primeira vez oficialmente como uma verdadeira mulher, ainda envergonhada com olhares desconhecidos desse mundo novo que ainda não era familiarizado com a sua presença. Ao chegar ao hospital descobriu que era um lugar imenso, parecia um castelo acolhedor de sonhos e pessoas de todo o mundo. Além disso, oferecia hospedagem para os pacientes, tornando-se assim a sua melhor opção. Antes de se concentrar para o procedimento, conheceu um pouco o país e sua cultura. Sempre que Laura viajava para outro lugar, tentava se adaptar em tudo, conforme os costumes da região. Enquanto muitos estrangeiros que também estavam no hospital se alimentavam com fast foods, ela fez questão de conhecer a culinária do país. E todos os dias almoçava como os tailandeses. A única coisa com que Laura não se adaptou com facilidade foi o idioma, mas nada e nem ninguém foi capaz de deixá-la preocupada com qualquer coisa. Não saberia explicar tamanha felicidade em estar ali, à espera da realização de seu maior sonho. A ansiedade sondava Laura por todos os lados. Dias antes da cirurgia, ela se encontrou rapidamente com o médico responsável, Dr. Kamol, para DE MENINO À DELEGADA

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uma análise. Tudo estava como planejado e o procedimento foi marcado para 29 de setembro de 2013, no período da tarde. Chegado o tão aguardado dia, Laura precisou de toda uma preparação antes de ir para a sala de cirurgia, como ficar um tempo em jejum e esvaziar todo o intestino. Ela aguardava em seu quarto no último andar do prédio quando os funcionários do hospital foram buscá-la. Deitada na maca, ela adentrou a sala e se deparou com cerca de seis médicos que a aguardavam, aparentemente tão ansiosos quanto ela. Não entendia muito do que diziam, mas por meio dos gestos e algumas palavras ditas em inglês compreendeu que ‘’tudo ia ficar bem’’. Após a aplicação da anestesia, Laura não demorou muito para adormecer e poder sonhar com o que estava prestes a acontecer. Passadas longas seis horas, a cirurgia chega ao fim. Depois de alguns minutos, Laura acordou já no quarto de recuperação. E sentia muita dor. Uma dor profunda, aguda, que parecia querer sair de seu corpo a qualquer custo. ‘’Dor, dor, dor!’’, ela gritava desesperada para a enfermeira e somente à base de morfina Laura pôde descansar novamente, e aliviada. Agora em suas acomodações pessoais, o processo pós-operatório foram dias que pareciam eternos e ociosos. Ela não poderia se levantar ou andar durante cinco intermináveis dias. Um molde estava entre suas pernas para que o corpo se acostumasse com a 46

nova genitália, agora feminina. E também uma sonda para ajudar em suas necessidades fisiológicas. Detalhes do procedimento são esclarecidos através do blog pessoal do Dr. José Cesário da Silva Almada Lima, professor e coordenador de cirurgia plástica do Hospital Universitário de Ciências Médicas do estado de Minas Gerais (HUCM-MG). Ele explica que esse tipo de cirurgia é chamada também de construção da neovagina, que é o resultado de uma técnica cirúrgica chamada vaginoplastia, e consiste na construção de uma vagina perineal onde antes não existia. No procedimento, descarta-se apenas os testículos extirpados para que não haja risco de câncer no futuro. Todas as demais estruturas são aproveitadas para dar forma à neovagina. É feito um esvaziamento do cilindro peniano e dos dois corpos cavernosos e esponjoso, que viram a uretra. Acontece uma inversão, como se virasse o pênis ao avesso, criando um canal entre o reto e a próstata. Esse se torna o canal neovaginal. Em seguida, são posicionados os dois corpos cavernosos que ladeiam a neovagina, simulando o grande lábio. Com a exteriorização da uretra, o excesso é cortado para fazer o novo orifício, e com a pele da bolsa escrotal é feita a vulva.

Diversos livros e milhares de filmes foram devorados durante aqueles dias apáticos. Com a ajuda de uma intérprete brasileira que morava na Tailândia, Laura pôde se comunicar melhor com os médicos e enfermeiros que todos os dias a checavam e a limpavam. O molde intravaginal era trocado diariamente por outros de tamanhos gradativamenDE MENINO À DELEGADA

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te maiores - depois de dois meses, seria necessário colocar um molde rígido para dilatar a neovagina. Os três primeiros dias foram tranquilos, mas os dois últimos foram muito desconfortáveis para ela. O molde começava a incomodar e depois de um certo tempo só deitada na cama, o corpo respondia com dores. Por ordem dos enfermeiros, ela sempre precisava se mexer para não acumular sangue, mas sem muito esforço para não comprometer os pontos cirúrgicos internos e externos. Quando finalmente esses dias terríveis chegaram ao fim, Laura pôde levantar da cama e andar sem a sonda. Pela primeira vez, ela foi sozinha ao banheiro para urinar. Fazer isso sentada foi a melhor sensação que teve em anos. Um momento tão supérfluo e comum para outras mulheres, mas que para ela era um alívio e a realização de um sonho que aguardava há muito tempo. Foi a primeira vez que se sentiu uma mulher de verdade. Após esse processo, Laura continuou na Tailândia por vários dias. Os médicos a alertaram que não seria bom ela viajar de avião, já que isso comprometeria a cicatrização e que poderia acarretar riscos de trombose. Além disso, era necessária a realização de fisioterapia, que ajuda na dilatação dos acrílicos que colocam na vagina para manter o molde da cirurgia. Todos os dias durante um ano, Laura deveria fazer esse procedimento. 48

Nesse período de um mês, ela foi orientada em tudo em relação à sua nova vida. Como se limpar corretamente, como cuidar, colocar remédios para não infeccionar, o tempo necessário para o resguardo e saber lidar com a cirurgia que, por um longo período, teria que sujeitar à dilatação. E também não poderia jamais esquecer-se de tomar os hormônios, já que com a retirada dos testículos, o corpo não produz mais hormônios masculinos. Laura não mediu esforços para concretizar seu sonho. Ela se desfez de bens materiais e de seu casamento. Foi o início dos desafios de sua nova condição de vida. Muitas foram as dificuldades, mas nenhuma a fez parar. Apesar dos obstáculos sempre se manteve firme e confiante, e continua até hoje, depois de todo o processo. Mas teve de começar a sua vida praticamente do zero.

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“Me chamam de Laura e de pai”

CINCO

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ssim que Laura chegou ao Brasil, pediu para seu advogado dar entrada no processo para mudar o seu registro civil. O nome é mais que um acessório. Ele é de extrema relevância na vida social, por ser parte intrínseca da personalidade. Toda pessoa tem esse direito, inclusive os transexuais. Este processo evoluiu muito nos últimos anos. Antes só existia a mudança de nome social. E no caso de Laura, a mudança seria jurídica, já que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) autoriza a modificação do nome que consta do registro civil, bem como a alteração do sexo. Depois de todo o processo na Tailândia, Laura ainda passou por outras cirurgias. Foram quatro no total. A primeira feita no Brasil foi a plástica facial, para que o rosto ficasse com uma feição mais femiDE MENINO À DELEGADA

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nina. A segunda foi a de mudança de sexo. A terceira foi uma prótese de silicone, realizada em São Paulo. E a quarta, e mais complexa, foi a cirurgia de mudança de voz, na Coréia do Sul. Outro momento em que Laura teve que se desfazer de todas suas finanças e economias. Os gastos, no total de todas as cirurgias, foram estimados em cerca de 150 mil reais.

A ementa publicada em 16 de dezembro de 2015 diz que os transexuais, em sua maioria, têm esse direito, ainda que a razão pela qual a alteração do nome e do gênero da pessoa transexual não deve ser condicionada à realização da cirurgia de mudança de sexo. Ela deverá ser analisada a partir da observância do contexto global em que se encontra a parte interessada. A pessoa transexual pode adotar nome que reflita a identidade de gênero com o qual se identifica, haja vista a existência de justo motivo para a alteração (Lei 6.015/73, 55, parágrafo único, 57 e 58), bem como a incidência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da não discriminação (CR, 1º, III, e 3º, IV,), contidos na Lei de Registros Públicos. TJ-DF - Apelação Cível APC 20140710125954 (TJ-DF).

Ao retornar da Coréia do Sul, ela não voltou a trabalhar imediatamente. No pós-operatório dessa cirurgia era necessário ficar trinta dias sem poder falar. Solicitou a última licença de trabalho para se recuperar de todo o processo e se isolou de todos em seu mundo particular. Ela podia agora, analisar a fundo 52

o que tinha acabado de conquistar. Finalmente poderia ser ela mesma, estava liberta, e com os braços abertos recebendo essa nova vida, cheia de alegria.

Na Coréia do Sul, o Yesson Voice Center’s Vocal Folds é o local mais renomado no mundo para procedimentos dessa natureza. A cirurgia é conhecida como a maneira mais segura e efetiva de feminizar a voz. A técnica mais avançada é realizada pelo médico Dr. Kim Hyung-tae, que modifica perfeitamente as características das pregas vocais masculinas, como as dobras vocais femininas sem incisão cutânea, removendo 1/3 da porção de membrana e tecido interno e, então, costurando-os firmemente com material de sutura permanente usando microinstrumentos.

Passado o período de recuperação, Laura voltou a trabalhar em fevereiro de 2014. Coincidentemente, surgiu uma vaga para ocupar o cargo de delegada na Delegacia da Mulher, em Goiânia. Por estar em um ambiente mais concentrado em mulheres, ela poucas vezes sofreu qualquer tipo de preconceito. Todos a receberam muito bem. Inclusive, em sua família, Laura teve muita sorte e muita compaixão de todos, já que seu pai, sua mãe, e os filhos (um tempo depois) a aceitaram amigavelmente, com sua nova escolha de vida. Houve o período de adequação para que as pessoas se acostumassem a chamá-la pelo nome Laura, principalmente alguns familiares. Vivia situaDE MENINO À DELEGADA

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ções que chegavam a ser engraçadas. ‘’Tenho uma bisavó ainda viva, mas que não enxerga bem. Até hoje ninguém falou para ela sobre a minha mudança e ela me trata como se nada tivesse acontecido. Até imagino que já tenha percebido que há alguma coisa diferente, mas nunca comentou nada.’’ Em relação aos filhos, ela tinha consciência de que nunca iria ocupar o cargo de ‘’mãe’’, e nem queria isso. Sempre reconheceu que a ex-esposa possui esse papel importante e não iria interferir. Nunca obrigou ninguém a chamá-la pelo nome que tinha escolhido, sabia que para algumas pessoas seria difícil se adequar. Uma senhora, já de idade, que trabalha na casa de sua avó e conhece Laura desde que era criança, nunca conseguiu e nunca entendeu a sua nova vida. Até hoje, a chama pelo nome Thiago. ‘’Não posso brigar com ninguém, nem me ofender com quem ainda me chama pelo nome antigo. Se me tratarem com respeito, já acho muito válido e fico extremamente feliz. ’’ Os filhos, acostumaramse a chamá-la de Laura e de pai. Nunca deixaria de cumprir essa função, afinal, sempre seria o pai deles. Laura é pai de um casal de filhos adolescentes, e os três possuem um laço muito forte. Ela talvez estranharia ser chamada de mãe por eles, já que desde a infância a chamam de pai. Por isso, não interferiu na construção desse vínculo. Eles preferem manter discrição sobre essa relação, Lau54

ra não quer tanta exposição acerca dos filhos, e na escola, por exemplo, ela é conhecida como tia.

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“Comecei a enfrentar um leão por dia”

SEIS

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udo parecia ir bem, Laura realizou o sonho que sempre desejou, e fez o que queria. No seu primeiro dia de trabalho como delegada plantonista na Delegacia da Mulher, ela foi recebida por muitas garotas e até mesmo senhoras que estavam curiosas em conhecê-la. Ao mesmo tempo em que ficou feliz com a recepção e o carinho, ela passou a ficar ficou confusa pensando em como aquelas mulheres ficaram sabendo do seu processo de transição. Afinal, era uma pessoa comum como qualquer outra. Assim que Laura retornou ao Brasil, a notícia de que um delegado de polícia havia se transformado em mulher se espalhou entre as delegacias e os policiais e por toda a cidade. De repente, Laura se viu rodeada de muitos jornalistas curiosos e ansioDE MENINO À DELEGADA

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sos por esse furo de reportagem - um jargão usado no âmbito jornalístico para designar informação publicada em um veículo antes de todos os demais. Laura ficou muito exposta na mídia, em redes sociais, jornais impressos e programas de televisão do estado, e também em rede nacional. Ainda assim, sempre foi muito receptiva com todos, estava sempre disposta a ser entrevistada quantas vezes fosse preciso para todos os canais midiáticos. Com o passar do tempo, ela se viu arrependida em ter exposto a sua nova vida dessa forma tão precocemente e toda aquela atenção acabou causando um grande transtorno. Não compreendia como tinha se tornado tão famosa, sem saber como aquilo tudo estava acontecendo. Além de tornar-se nacionalmente conhecida, enfrentar as pessoas mais próximas começou a ser um pesadelo. Ter que se assumir publicamente no trabalho e para sua família virou uma batalha diária. O processo de divórcio com sua ex-esposa foi um dos maiores problemas e uma forte depressão a sondou durante um tempo, que parecia interminável. ‘’Quando acordava, pensava em lutar contra isso ao longo do dia e controlar minha dor. Mas na hora de dormir, meu travesseiro era meu lugar de martírio e ao mesmo tempo, um refúgio.’’ A ex-mulher de Laura, ainda ressentida com sua decisão, a proibiu de encontrar com seus filhos durante seis meses. Todo o processo de divórcio deses58

truturou seu lar de uma maneira que ela não imaginaria que pudesse acontecer. Sua ex exigiu todos os direitos possíveis, como pensão alimentícia e outros trâmites que ainda lhe dariam muita dor de cabeça. Fora essas questões, ficar longe dos filhos foi a pior coisa com que poderia lidar naquele momento. Mas seguiu firme e fez tudo como sua ex-mulher exigia. Passou por inúmeras sessões com advogados e audiências para que tudo ficasse correta. Até que depois de muita luta, conseguiu a guarda dos filhos. Mesmo com essa conquista, Laura tinha um medo constante em não ter o apoio deles e temia sentir-se excluída. Novamente, a solução veio com a ajuda de especialistas. Sessões com psicólogos e terapias em família marcaram um período divisor de águas, e eles puderam amadurecer e compreender melhor a condição do pai. Todo o período de depressão, na verdade, duraram quatro anos. Começou antes de todo o processo de mudança de sexo e continuou após tudo estar concluído. Uma mudança irreversível como essa afetaria não só a ela, como a todos que amava e que estivessem ao seu redor. Laura, por muitas vezes, se sentia culpada e se responsabilizava por tudo. Mas em busca de seu sonho, ela foi capaz de enfrentar um leão por dia, e venceu. Mesmo tendo feito a cirurgia em 2013, só se libertou completamente dois anos depois, lutando contra o desDE MENINO À DELEGADA

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gaste emocional sozinha. Hoje, ela se expõe como uma pessoa sinceramente feliz, mas sem nenhuma pretensão de um novo relacionamento amoroso. ‘’Posso afirmar que atualmente sou uma mulher realizada, bem resolvida e sem angústia existencial.’’

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“Estar sempre com uma arma na cintura evitou que fizessem zombarias comigo”

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epois de toda a tempestade, Laura ficou tranquila. Principalmente depois que se tornou mulher, já que a aflição e agonia que sentiu durante toda a sua vida acabaram. Ela é uma pessoa de fácil convivência, tem muita paciência e boa compreensão em quase tudo, procura sempre tratar todas as pessoas com o máximo de respeito possível e espera o mesmo em troca. Pelo cargo público de delegada que mantém, talvez as pessoas que tivessem certo preconceito com a condição dela temiam desrespeitá-la. Mas ainda assim ela sofreu algumas discriminações depois que se tornou mulher, suficientes para tirar a sua paz. Certa vez, uma situação que lhe causou muita raiva e indignação, aconteceu quando ela liderou uma investigação que tratava de compras de votos por parte de políticos na cidade de Estrela do NorDE MENINO À DELEGADA

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te, envolvendo oitenta e duas pessoas. Alguns eram reeleitos, outros eleitos pela primeira vez, e muitos deles indiciados por Laura. Esse tipo de investigação leva algum tempo e com muitos desdobramentos, e os processos são enviados ao Ministério Público. Laura era testemunha e foi intimada a depor em uma audiência em Goiânia. Quando a maioria das pessoas a tratavam normalmente como mulher, um promotor a questionou sobre o relatório policial que ainda constava o seu nome antigo. Mesmo após a explicação, o promotor continuou a chamá-la de ‘’Thiago’’ e ‘’Senhor’’ em tom de deboche para deixá-la desconfortável perante todos. A juíza presente no tribunal nada fez a respeito e não se manifestou em momento algum enquanto o promotor dava ênfase pelo nome masculino, e a ira tomou conta de Laura. O melhor que pôde fazer naquela hora foi ficar calada e envergonhada, caso que seria totalmente diverso se não estivesse em frente a pessoas importantes perante a lei, já que ela, hoje em dia, não aceita qualquer tipo de ofensa. Laura não é a única que passa por situações semelhantes. Transexuais são alvos constantes de preconceito diariamente no País e em todo o mundo. Pessoas com condições diferentes, que não se enquadram aos padrões impostos pela sociedade, são discriminadas e sofrem com retaliações e até mesmo com violência física. Mas Laura sempre soube con64

tornar situações constrangedoras com facilidade. Ela acredita que qualquer tipo de ofensa que recebe diz respeito à pessoa que a agride. ‘’Alguém que tenta me magoar com palavras de baixo calão, ou me chama pelo nome antigo de propósito, não me atinge. Se não aceitam a minha condição, já não é problema meu. Eu estou de bem com meu ser.’’ Infelizmente, essa não é a realidade de muitos. A expectativa de vida de uma pessoa transexual no Brasil é de 35 anos de idade. Laura é uma, dentre poucas, que tem muita sorte e que não sofre preconceitos extremos simplesmente por ter um cargo público que exige respeito, e sua família a apoiou em tudo. Grande parte da população trans enfrenta violência e humilhação começando justamente onde deveria encontrar acolhimento, dentro da própria casa. A incompreensão e a rejeição familiar os lançam em um trajeto de exclusão e incerteza. A verdade é que as dificuldades foram inúmeras para Laura, mas a mais significativa foi vencer ela mesma. ‘’A discriminação é fato, e existem tanto pessoas de índole boa, quanto pessoas de índole má. Eu, como a maioria das pessoas, sempre me preocupei em ser aceita em todos os círculos de minha convivência: na família, sendo pai, marido, filho, neto, irmão, primo, sobrinho e tio exemplar. No trabalho, sendo profissional dedicada, chefe humana e compreensiva e subordinada competente. DE MENINO À DELEGADA

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O Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo. Entre janeiro de 2008 e março de 2014, foram registradas 604 mortes, segundo pesquisa da organização não governamental Transgender Europe (TGEU), rede europeia de organizações que apoiam os direitos da população transgênero. No País, há poucos dados sobre a realidade específica das pessoas transgêneras. Geralmente, os levantamentos reúnem toda a população LGBT, que inclui também lésbicas, gays e bissexuais. Esses balanços, contudo, ajudam a enxergar a virulência com que a falta de compreensão familiar pode se manifestar. Pelo Disque 100, canal para denúncias de violações contra essa parcela da sociedade, mantido pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos (SDH), foram registradas 1.792 agressões contra LGBTs em 2014 - dados mais recentes até então. Um em cada seis desses crimes foram cometido por parentes das vítimas - 79 pelos pais; 74 por irmãos; 70 por companheiros, tios ou cunhados; e 57 por outros familiares.

Na sociedade, sendo uma pessoa educada, respeitadora dos direitos alheios e ciente dos meus deveres. No entanto, me assumindo como mulher transexual, sabia que a aceitação de minha pessoa deixaria de ser a mesma, e pessoas que antes me admiravam e respeitavam passariam a me desprezar e repudiar, julgando-me pela minha condição e não pela minha essência, pelas minhas atitudes. Então, minha principal barreira foi aceitar as consequências de meus atos, e me preparar para enfrentar, de cabeça erguida, todo o tipo de reação das pessoas.’’ 66

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“Não apoio a espetacularizações de condições semelhantes à minha vida”

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xistem muitas notícias, filmes, novelas e histórias diversas de ficção e realidade que abordam o tema da transexualidade. Ao ser questionada sobre o filme A Garota Dinamarquesa e possíveis semelhanças entre a personagem e ela, Laura conta que não assistiu e não apoia qualquer tipo de espetacularização a respeito, principalmente de uma maneira dramática, o que acontece na grande maioria dos casos, em sua opinião. Laura sempre se afasta e procura não se envolver em dramaturgias semelhantes, para não se lembrar de tudo o que passou e sofreu. ‘’O drama alheio é mais fácil de aceitar, mas o drama no qual nos identificamos é mais triste. Terei mais lembranças ruins do que boas.’’ Ela foge de ficções, mas está atenta a tudo o que DE MENINO À DELEGADA

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acontece no mundo. Por mais que tenha tido sorte para assumir a sua condição, ela fica triste ao saber que o país parece estar mais retrógrado em relação aos transexuais e o grande preconceito e violência que cerca esse assunto. Atualmente, ela não levanta nenhuma bandeira apoiando nenhuma causa, seja da comunidade LGBT, de criminalização da homofobia ou qualquer tipo de intolerância. Ela cansou da sua fama precoce e prefere ficar mais reservada em tudo. ‘’Geralmente, não gosto de aparecer, não quero fama e tenho uma imagem a zelar como delegada. Mas são causas de trabalhos sociais bacanas, a ideia é profunda. ’’ Entretanto, Laura participou de uma ação contra o preconceito em locais de trabalho, em 2015, intitulada ‘’Iguais como Você e Eu’’ , em parceria com o Ministério Público do Trabalho em Goiás. Ela ficou extremamente emocionada com a campanha e lisonjeada por ter sido convidada a participar, e isso fez com que Laura nunca se esquecesse de quem é e de tantas outras pessoas que, assim como ela, sempre lutaram e nunca desistiram de seus sonhos, e de se assumirem como realmente são. O objetivo da campanha foi divulgar a importância da não discriminação de minorias no mercado de trabalho que engloba pessoas com deficiência, toda a comunidade LGBT, negros e mulheres. Muitas dessas pessoas fizeram parte da campanha para explicarem sobre sua diferença 70

e afirmarem sua capacidade de trabalhar e produzir. A ação obteve um grande sucesso e foi exibida durante quatro meses, em TVs, rádios, jornais, outdoors, ônibus do transporte coletivo e em mídias sociais. Após essa campanha, Laura pôde refletir a respeito de tudo o que acontecia em sua vida, e queria poder ajudar todas as pessoas que passam por situações como a dela. Algumas têm a felicidade de nascer já devidamente adequadas pessoal, social e financeiramente. Não precisam de esforços para serem bem vistas e bem aceitas pela sociedade, nem para se sentirem felizes e amadas. Outras não têm essa sorte e precisam superar barreiras que parecem inquebráveis, precisam fazer o que parece impossível para serem felizes. ‘’Nós, transexuais, precisamos ser corajosas, fortes, ponderadas e persistentes. Precisamos encarar tudo de cabeça erguida às adversidades que se apresentarem em nossas vidas, porque elas inevitavelmente existirão. Lembrando sempre que viver para fazer os outros felizes pode, às vezes, significar sua infelicidade, e se não estiver bem e feliz, como poderá levar o bem e a felicidade a outras pessoas?’’

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“Estou muito feliz de ter a liberdade que tenho hoje , e sou orgulhosa de mim”

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inda que Laura viva em uma realidade diferente de muitos transexuais e transgêneros no País, ela também passou por inúmeras dificuldades e superou tudo praticamente sozinha. Viveu grande parte de sua vida tendo a certeza que era uma mulher, mas se preocupava em parecer ‘’machão’’, em não deixar transparecer a sua transexualidade e tentava ao máximo reprimir os sentimentos que a assombravam desde que nasceu. Não teve ninguém que pudesse conversar sobre a sua condição, viajou para outro país para fazer a mudança cirúrgica e venceu a depressão. Tudo isso sozinha! Laura é uma pessoa muito determinada, sempre acreditou em si mesma e nunca deixou de batalhar para obter tudo que conseguiu até aqui. Hoje DE MENINO À DELEGADA

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ela tem a possibilidade de existir conforme se sente, vestir-se como acha mais adequado a ela, expressar-se como realmente é. Ela é uma mulher livre. ‘’Hoje me sinto liberta de todas essas amarras que eu mesma me impunha para ser aceita, o que me dá uma sensação de liberdade e leveza. Já me disseram diversas vezes que, desde a minha transição, me percebem mais leve, mais feliz. ’’ Tudo isso Laura agradece a si mesma pela coragem e ambição. Sempre foi muito individualista e nunca fez nada sem o planejamento correto. ‘’Dez anos atrás eu planejei todo o meu futuro. Aos 25 anos de idade já queria ser uma mulher, e aos 35 já tinha me tornado uma. E hoje, eu sei o que vou ser daqui a dez anos. Tenho certeza disso.’’ Ela se sente vitoriosa ao saber o que a vida e a sua convicção a ajudaram a construir. Laura nunca apelou para a fé nem a religiões para nada em sua vida e se considera ateia. ‘’Acho muita vaidade humana acreditar que fomos feitos à imagem de um Deus. Se o fosse, estaríamos com asas voando e praticando paz e amor no mundo.’’ E justamente por esse pensamento é que Laura acredita somente em si mesma. Tudo o que aconteceu não foi porque Deus quis, e sim graças ao que ela quis e lutou para ter. Atualmente Laura não é uma pessoa de muitos amigos e curte a vida em família e com os filhos. Prefere programas tranquilos e sem muito tumulto. Aos 74

finais de semana sempre sai para um almoço especial, um passeio no shopping e aproveita um bom filme nos cinemas. Bastante reservada, Laura diz que, após a cirurgia, teve uma experiência sexual com homem apenas uma vez. ‘’Foi ótimo e senti muito prazer como mulher. Tenho algumas paqueras, mas não pretendo entrar em um relacionamento tão cedo. ’’ Além dos poucos programas em família, Laura agora se dedica para se tornar uma juíza em Goiás. Administra seus horários impecavelmente, e na maior parte do tempo está estudando e se empenhando em todo tipo de assuntos relacionados ao magistério. Determinada, ela dorme quatro horas diárias para que o restante do dia seja proveitoso para os estudos. Como ela mesma disse anteriormente: ‘’Eu sei que vou conseguir. Daqui dez anos já estarei atuando como uma juíza.’’

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“Só entenderia realmente como ser uma mulher, se tivesse nascido uma”

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m 1949, a filósofa francesa Simone de Beauvoir defendia no livro O Segundo Sexo que “ninguém nasce mulher: torna-se mulher”. Laura se entende bem com essa frase perante sua vida atual. Em 2017, faz somente quatro anos que ela está em uma construção constante em como ser uma mulher de fato. Esse processo ela vai levar para o resto de sua vida, pois todos os dias são de aprendizado. Ainda assim, ela não mudou por completo. ‘’O Thiago sempre vai estar em mim. O que eu fiz foi apenas uma mudança, me transformo a cada dia para me tornar uma mulher. ’’ Ela ainda se sente mais feliz em ter passado por todo esse processo. ‘’Me sinto mais satisfeita sendo Laura após a transformação do que se tivesse nascido Laura.’’ O único momento em que ela se arrepende DE MENINO À DELEGADA

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em tudo isso é em relação à demora em passar pela mudança. Mas acredita que tudo aconteceu no tempo certo. ‘’Pessoas trans não se arrependem de nada. O que provavelmente pode acontecer é a repercussão negativa vinda de grande parte das pessoas.’’ Laura realmente é uma mulher guerreira e sabe o que quer. Para demonstrar essa força, ela tatuou no pulso o símbolo do Feminino e de Vênus, um círculo com uma pequena cruz equilateral embaixo. É conhecido como a marca da mulher e na mitologia se refere à Deusa Vênus que representa o amor e a beleza. Através dessa tatuagem, Laura pode se olhar todos os dias e se orgulhar da mulher que se tornou. Ela ainda trabalha como plantonista na Delegacia Especializada à Mulher, e mesmo lidando diretamente com outras mulheres todos os dias, ela ainda não compreende a mente de uma. Mas isso não é nenhum empecílio, ela sabe o que ela é e não precisa provar isso a ninguém, nem mesmo se portar como a sociedade exija que seja. Para Laura, ser mulher é ser uma pessoa livre. É ser o que ela quiser...

FIM

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