#507 / DOMINGO, 22 DE ABRIL DE 2018 REVISTA SEMANAL DO GRUPO A TARDE
O DOM Hรก mais de 50 anos Aurelino dos Santos produz obras de arte e cria a prรณpria realidade no Alto de Ondina
Geometria da alma Texto TATIANA MENDONÇA tatianam@gmail.com Fotos ADILTON VENEGEROLES asvvas@gmail.com
Com quadros chegando a custar R$ 15 mil em galerias pelo país, o artista visual baiano Aurelino leva atualmente uma vida simples no Alto de Ondina. Comparado quanto à criatividade ao lendário Arthur Bispo do Rosário, ele ainda não tem o reconhecimento que merece, mas conta com admiradores fiéis e, o mais importante, continua criando obras admiráveis
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urelino paira sobre os homens. “Eu sou um avião”, diz, com um certo cansaço de quem precisa anunciar obviedades. Também é um avião o que ele está pintando na tela que repousa entre a mesa e o chão. Metade do quadro está pronto, a outra parte já está traçada, uma sequência de linhas retas feitas por réguas, faltando apenas as tintas para darem-lhes vida. Conta que a obra ainda leva vinte dias para ser terminada. Mas do que já se pode espiar, e vendo as outras tantas que pintou, não resta dúvida nenhuma. Como é ordenado, colorido e maravilhoso o mundo quando visto lá de cima. Na sua cabeça não são precisos, mas tortuosos os caminhos. É tido por louco, dessesqueperambulampelaruafalandosozinhos.Nascidoem1942,Aurelinodos Santos afirma ter 700 dias de idade. Não se tem notícia de que a ciência já lhe tenha batizado a doidice, porque de médico mesmo ele não gosta. Nem de Deus. “Deus partiu meu coração”, decreta, para depois apontá-lo numa mancha escura na parede da sala. “Aqui é Deus. E ali, no alto daquela casa. Você está vendo?”. E o que é a arte, se não mostrar o que os outros não veem? Os quadros que Aurelino pinta em sua casa miúda, no Alto de Ondina, a poucos passos do mar, já foramexpostosemSãoPaulo,BeloHorizonte,RiodeJaneiroeintegrarammostras na Alemanha, Espanha e França.
Instrumentos de trabalho simples originam obras que seduzem colecionadores
Em galerias chiques de São Paulo, suas telas chegam a ser vendidas por R$ 15 mil, mas logo se vê que em tempo nenhum aquele dinheiro passou perto dele. Em maio de 2013, A TARDE publicou uma reportagemmostrandocomoviviaem“condiçõesprecárias num barracão sem reboco”, alimentando-se com a ajuda de familiares e vizinhos. Neste mesmo ano, em agosto, conheceu o major da reserva e advogado Ernesto Bitencourt, que depois que se aposentou como professor do Colégio Militar passou a colecionar arte popular e virou marchand. Ouviu falar de Aurelino e foi procurá-lo em Ondina, perguntando a um e outro. Demorou bons minutos até alguém associar o nome à pessoa, já que ali todos o conhecem por Lelinho. Ernesto conta que ficou chocado com a situação miserável em que Aurelino vivia. “Quando chovia, molhava tudo. Os ratos passavam por debaixo do colchão. Praticamente não tinha móvel nenhum e o banheiro ficava do lado de fora”. Sua intenção era que pintasse dois quadros para ele. Diz que não lembra direito quanto pagou, mas que deve ter sido algo como R$ 600, R$ 800. Como que assombrado por aquela cena, passou a visitá-lo e conta que resolveu tomar um empréstimo, que só vai terminar de pagar no ano que vem, para reformar e mobiliar a casa de Aurelino, que agora tem piso, geladeira e “TV de plasma”. Passou também a assumir despesas com alimentação e vestuário.
“TOME, VÁ RISCANDO AQUI” Aurelino faz as refeições num bar e restaurante perto de casa. Quando era menino, Isaías Santos, dono do lugar, gostava de vê-lo pintar. “Ele me dava um pincel e dizia: ‘Tome, vá riscando aqui’, que era para eu não atrapalhar”, ri. Todo mês, Isaías recebe um valor de Ernesto para pagar pelos almoços e também para que repasse uma parte a Aurelino nos fins de semana, para seu divertimento. “Não pode ser muito, tem que ter controle, porque, se deixar, ele bebe demais. Gosta de uma caninha”,contaIsaías,paraquemErnestofoieéum“anjo da guarda” na vida do artista. “Se não fosse por ele, já estaria morto”. Ernesto não quis fazer fotos para esta reportagem, disse que não gosta de aparecer, e a algum custo explicou a relação que mantém com Aurelino: “Pago tudo que ele precisa. E ele pinta para mim”. Por mês, Aurelino entrega um quadro a Ernesto, pelas contas do marchand. “Ele pinta quando quer. Tem um processo muito lento, é tudo detalhadozinho, muito elaborado... Mas eu também não boto pres-
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são”. Ainda engatinhando no mercado da arte, Ernesto conta que pretende, no futuro, fazer uma grande exposição com suas obras, e também abrir uma galeria, projetos sem prazos definidos. Vestindo uma bermuda preta e um chinelo de borracha, Aurelino estava um tanto irritado quando o visitamos. Tinha queimado uma panela no fogão e se lamentava repetidamente com a cabeça baixa, reclamando do fumaceiro. Ernesto pediu que colocasse uma camisa para aparecer bonito nas fotografias. Ele escolhe uma polo roxa, que não agrada muito ao marchand. “Te compro um monte de camisas e você só usa as mesmas”. Antes, Aurelino costumava pintar acocorado no chão sem piso, agora trabalha numa mesa alta, onde ordena suas réguas. Em outra mesinha lateral ficam as tintas, os pincéis e um ventilador. A televisão fazia barulho lá do quarto. “Traição. Esse programa é de traição”, disse, para explicar do que se tratava o Casos de Família, do SBT. Gosta também de assistir aos noticiários. “Lula foi preso”, anunciou. “Deus virou mulher e Lula foi preso por causa de mulher”. Um relógio branco é o único enfeite das paredes, também brancas. Não há quadros,nemmesmoosdele.Aurelinonãoguardanadaquepintou,masgosta de admirar as obras de outros artistas nas visitas que faz às galerias da cidade. Na Paulo Darzé Galeria, na Vitória, costuma aparecer nas manhãs de sexta. “Ele
Em casa, paredes sem quadros. Antes da mesinha, ele pintava acocorado
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tem um olhar refinado. Quando vê uma obra de grande qualidade, sempre comenta”, conta Paulo, que costuma acompanhá-lo num café. “A gente brinca, conversa, e aí vai muito da lua, do humor dele. Tem dias que relembra episódios da vida, em outros fica falando do rei Salomão”. Eles se conheceram há 35 anos, quando a galeria Darzé ainda funcionava no Salvador Praia Hotel, perto de uma outra galeria, a Cavalete, que Aurelino frequentava. Viraram amigos, e Paulo começou a comprar seus quadros. Diz ter hoje uns 200. “É um artista excepcional, de uma criatividade... Eu não tenho nem coragem de vender os quadros dele. Mas já dei alguns para amigos que gostam muito de arte”.
TRÂNSITO Paulo compara a qualidade da obra de Aurelino à de outro artista que transitava entre a loucura e a genialidade, o sergipano Arthur Bispo do Rosário (1911-1989). “Ele pinta o que vem na cabeça. Não sabe ler nem escrever, mas, se você reparar, faz colagens em algumas obras que parecem de alguém que tem uma cultura vasta”. Em 2012, uma exposição em São Paulo, intitulada Aurelino – A transfiguração do real, reuniu cerca de 100 obras do artista, numa parceria entre o Museu Afro Brasil, no Ibirapuera, e a Paulo Darzé Galeria. Os textosdedivulgaçãoressaltavamageometrizaçãocomo característica mais marcante do seu trabalho. Um ano depois, a Galeria Estação, também em São Paulo, promoveu uma mostra individual com seus quadros. E desde então não houve novos eventos, nem no Brasil nem no exterior. Paulo conta que ainda vai fazer “um trabalho forte com ele, uma bela exposição, mas sem preocupação com o mercado”. Para o galerista, sua obra não tem ainda o reconhecimento que merece, em parte por conta da “falta de comprometimento” de Aurelino. “Você pode fazer uma exposição e no dia da abertura ele não ir, por exemplo”. Porque Aurelino mesmo não parece ligar para nada disso. “Fica mais alheio [à repercussão]. Não sabe o que é dinheiro, quer só o pouco para viver. Não tem ganância, não tem vaidade”. O artista e crítico de arte Justino Marinho acredita que os “certos desajustes mentais” de Aurelino lhe possibilitam “enxergar além”. “É um artista especialíssimo. Tem um trabalho original, raro, pessoal, bonito, que não se parece com nenhum outro”. Amigos há meia década, Justino diz que Aurelino não pinta com os olhos, mas com a “fantasia que cria na sua cabeça”. Coisas que ainda vamos demorar a ver, com nossa sanidade empobrecida. “Apesar de to-
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dos se encantarem por sua obra, seus quadros não vendem fácil. É um artista que vai ser procurado depois que morrer. Infelizmente, o mundo é cruel”. Antes de virar artista, Aurelino trabalhava como cobrador de ônibus. Conta que não gostava, porque tinha que acordar às 4h da manhã e ir a pé até o Largo Dois de Julho, sede da empresa que abrigava “mais de 10 carros” na garagem. Começou a pintar há mais de 50 anos por influência de um vizinho seu, Agnaldo, que era escultor. Levou uma tela ao Farol da Barra e lá mesmo fez a pintura. “Ficou uma porcaria”. Depois, passou uns poucos meses trabalhando no ateliê de Mario Cravo Jr. e conheceu Lina Bo Bardi, que estava em Salvador para criar o Museu de Arte ModernadaBahia(MAM-BA).Linadeu-lhealgumastelasparapintaredepoisasexpôs na década de 1960 numa mostra coletiva no foyer do Teatro Castro Alves, primeira sede do museu. Rememora sua história com certa impaciência, olhando para o
Sem títulos, as obras ao lado foram feitas em 1998, em 2005 e, abaixo, em 2004
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chão, e vai deixando os detalhes todos para as suas obras, vira ele mesmo um quadro incompleto. Por dois anos, a psicanalista Urania Tourinho Peres encontrou-se quase que semanalmente com Aurelino nas suas visitas às sextas-feiras à galeria Paulo Darzé. Passou a anotar num caderno as frases que ele dizia, registros da sua “teoria própria para a vida”. Não é que o estivesse acompanhando com qualquer pretensão, pelo contrário. “Era ele quem me guiava”. Primeiro Urania conheceu a obra, depois o homem. Numa visita à casa de Emanoel Araújo, em São Paulo, viu uns quadro de Aurelino, perguntou de quem era e ouviu que ele era baiano, um pintor louco e tal. Quis conhecê-lo, e Emanoel sugeriu que procurasse Paulo Darzé. Um dia estava na galeria e encontrou Aurelino. Começaram a conversar e tomaram gosto da coisa. A aproximação fez com que Paulo pedisse que ela escrevesse um texto para o catálogo da exposição no Museu Afro Brasil, dirigido por Emanoel. Costurou trechos do caderno para contar o que ouviu dos seus tempos de menino, de como se tornou artista, seus gostos – como os passeios de domingo no aeroporto para ver os aviões – e seus pensamentos sobre a existência. Quando Urania perguntou por que desenhava tantas letras nos seus quadros, ele que nunca aprendeu a ler, respondeu que “a letra é que faz o mundo”. Quando o assunto mudou para a diferença entre homens e mulheres,dissequeissoécoisaquenãoexiste:“Étudo igual, mulher é homem de frente lisa”.
TALENTO No texto, Urania também reflete sobre a relação entre arte e loucura, que “caminham juntas, muitas vezes, mas não apresentam uma relação determinante”. “Sua pintura não deixa transparecer a desorganização da patologia que o acompanha, seu talento artístico a transcende e a obra de arte surge, exatamente, onde a loucura não domina”, escreve. E aponta que a loucura pode beneficiar o artista, libertá-lo para a criação. Voltou a defender o ponto quando conversamos no seu apartamento na Ladeira da Barra, onde volta e meia via Aurelino passar, conversando sozinho e angustiando-se com seu reflexo nas vitrines. “De um modo geral, a criação surge na intenção de preencher um vazio. Um vazio que é dolorosamentesentidoeacompanhatodoserfalante.Se o mundo fosse completo, não haveria espaço para a inquietação criativa”. Para Urania, Aurelino não precisa de diagnóstico ou tratamento. “Ele encontrou na sua maneira de viver a sua própria terapia. Seu remédio é a pintura, o reconhecimento de sua condição de artista pelo outro”. «
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