R i44 o d e SALVADOR Janeiro
DOMINGO 10/4/2011
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São Paulo N e w Yo r k Miami Milano Roma To k y o
#158 / DOMINGO, 10 DE ABRIL DE 2011 REVISTA SEMANAL DO GRUPO A TARDE
A COPA EM SALVADOR MAXIXE PALOMA ROCHA
A Idade da
DANÇA Aos 30 anos, o Balé Teatro Castro Alves se reinventa e assume o perfil de um corpo de baile maduro
F | W 11| 1 2 F E N I X C O L L E C T I O N
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O BALÉ E O TEMPO Com 30 anos, o Balé Teatro Castro Alves valoriza seu elenco, composto por bailarinos de longo percurso, e prepara para este ano duas novas montagens. Em junho, estreia Pedro e o Lobo, a primeira encenação infantojuvenil, com a participação da Osba. Em outubro, tem Tempestade, uma coprodução do Brasil com a Bélgica, inspirada na obra de William Shakespeare Texto TATIANA MENDONÇA tmendonca@grupoatarde.com.br
É
tarde de quarta-feira. Um burburinho adolescente precede a apresentação de A quem possa interessar, um dos mais recentes espetáculos do Balé Teatro Castro Alves, que dali a 10 dias completaria 30 anos. A preocupação primordial dos estudantes da rede pública é saberquemsesentaaoladodequem,para apreciar com mais gosto o evento e garantir que evoluam amizades e romances. A apresentação na Sala do Coro do Tea-
tro é gratuita. Logo, as cadeiras da plateia reproduzem as salas de aula, com a indefectível vitalidade da turma do fundão. Gilmar Sampaio, responsável pelo Núcleo de Formação da Plateia, terá a tarefa de domá-los. Agradece a presença e avisa que agora é preocupação do BTCA apresentar-se primeiro aqui, e não fora do País. E que eles podem voltar sempre, quando e como quiserem, pois para ver não é preciso “nenhuma roupa especial”. Consegue um silêncio parcial. O espetáculo começa.
Os 26 bailarinos em cena têm entre 36 e 60 anos. Em depoimentos gravados, contam o que são, o que amam, o que querem ser, como provas da glória de mostrar-se possível. ”Deixei a natureza transformar meu corpo”, diz uma delas, ao passo que outra revela que quer ser enterrada de batom. Sem acrobacias estrambólicas, estão todos com os pés firmes no chão. Os estudantes riem, fazem coraçõezinhos com as mãos, assoviam. Ao fim, aplaudem com gosto, mas não amaram o
suficiente para permanecer para a sessão de perguntas. Perderam de ouvir as minúcias de como o espetáculo foi criado e muitas outras histórias de quedas (“é a pior coisa do mundo, porque ela te desarma”), esquecimentos (“fiquei cinco minutos perdida até que o bailarino falou: ‘Sobe no meu ombro’”) e imprevistos, como quando uma bailarina perdeu o dente em cena e teve de colá-lo com SuperBonder, para continuar a apresentação. As perguntas dos poucos alunos que ficaram versavam sobre seus corpos, “ótimos para a idade”. Os bailarinos, que já viveram o vigor de outros tempos, sorriram educadamente. É justamente essa madurez que faz do BTCA caso único entre as companhias oficiais de dança do País, nas quais juventude costuma ser pré-requisito.
Foi essa particularidade que instigou o ator e diretor Jorge Vermelho a assumir a companhia. “Não sei fazer um plié, mas topei por ser um desafio. Se fosse para exercitarumvirtuosismo,nãomeinteressaria”. Oitavo diretor do Balé, Jorge chegou em 2009 com disposição para arrumar a casa – “tiramos um caminhão de coisa velha” – e resgatar a autoestima dos bailarinos. Antes louvado por sua força e vivacidade, o BTCA teve que redescobrir quem é. Por isso, os três últimos espetáculos da
Cena do espetáculo A Quem Possa Interessar
MILA CORDEIRO / AG. A TARDE
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O BALÉ E O TEMPO Com 30 anos, o Balé Teatro Castro Alves valoriza seu elenco, composto por bailarinos de longo percurso, e prepara para este ano duas novas montagens. Em junho, estreia Pedro e o Lobo, a primeira encenação infantojuvenil, com a participação da Osba. Em outubro, tem Tempestade, uma coprodução do Brasil com a Bélgica, inspirada na obra de William Shakespeare Texto TATIANA MENDONÇA tmendonca@grupoatarde.com.br
É
tarde de quarta-feira. Um burburinho adolescente precede a apresentação de A quem possa interessar, um dos mais recentes espetáculos do Balé Teatro Castro Alves, que dali a 10 dias completaria 30 anos. A preocupação primordial dos estudantes da rede pública é saberquemsesentaaoladodequem,para apreciar com mais gosto o evento e garantir que evoluam amizades e romances. A apresentação na Sala do Coro do Tea-
tro é gratuita. Logo, as cadeiras da plateia reproduzem as salas de aula, com a indefectível vitalidade da turma do fundão. Gilmar Sampaio, responsável pelo Núcleo de Formação da Plateia, terá a tarefa de domá-los. Agradece a presença e avisa que agora é preocupação do BTCA apresentar-se primeiro aqui, e não fora do País. E que eles podem voltar sempre, quando e como quiserem, pois para ver não é preciso “nenhuma roupa especial”. Consegue um silêncio parcial. O espetáculo começa.
Os 26 bailarinos em cena têm entre 36 e 60 anos. Em depoimentos gravados, contam o que são, o que amam, o que querem ser, como provas da glória de mostrar-se possível. ”Deixei a natureza transformar meu corpo”, diz uma delas, ao passo que outra revela que quer ser enterrada de batom. Sem acrobacias estrambólicas, estão todos com os pés firmes no chão. Os estudantes riem, fazem coraçõezinhos com as mãos, assoviam. Ao fim, aplaudem com gosto, mas não amaram o
suficiente para permanecer para a sessão de perguntas. Perderam de ouvir as minúcias de como o espetáculo foi criado e muitas outras histórias de quedas (“é a pior coisa do mundo, porque ela te desarma”), esquecimentos (“fiquei cinco minutos perdida até que o bailarino falou: ‘Sobe no meu ombro’”) e imprevistos, como quando uma bailarina perdeu o dente em cena e teve de colá-lo com SuperBonder, para continuar a apresentação. As perguntas dos poucos alunos que ficaram versavam sobre seus corpos, “ótimos para a idade”. Os bailarinos, que já viveram o vigor de outros tempos, sorriram educadamente. É justamente essa madurez que faz do BTCA caso único entre as companhias oficiais de dança do País, nas quais juventude costuma ser pré-requisito.
Foi essa particularidade que instigou o ator e diretor Jorge Vermelho a assumir a companhia. “Não sei fazer um plié, mas topei por ser um desafio. Se fosse para exercitarumvirtuosismo,nãomeinteressaria”. Oitavo diretor do Balé, Jorge chegou em 2009 com disposição para arrumar a casa – “tiramos um caminhão de coisa velha” – e resgatar a autoestima dos bailarinos. Antes louvado por sua força e vivacidade, o BTCA teve que redescobrir quem é. Por isso, os três últimos espetáculos da
Cena do espetáculo A Quem Possa Interessar
MILA CORDEIRO / AG. A TARDE
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FOTOS FERNANDO VIVAS / AG. A TARDE
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Lilian Pereira, 52
Maria Ângela Tochilovsky, 47
Evandro Macedo, 50
« Como estou mais madura, há menos medo, menos cobrança» Lilian Pereira, bailarina
companhia – 1POR1PRAUM , A quem possa interessar e À Flor da Pele – foram batizados como Trilogia da Identidade. “O que a gente quer é romper com o preestabelecido, mantendo um critério de qualidade. Não estamos em cena pedindo desculpas de nada. Hoje, o BTCA está num lugar de destaque pela coragem de assumir esse novo perfil. É uma nova proposição para a dança brasileira”. Para a crítica de dança Helena Katz, o BT-
CA acompanha o percurso tortuoso das demais companhias oficiais, nas quais o exercício artístico está atrelado às trocas de governo. Curiosamente, outra mudança políticaéresponsávelpordar,hoje,um“perfil próprio” ao Balé. “Nesse momento, há um traço bastante singular no BTCA, composto por bailarinos de longo percurso junto à companhia. E isso está sendo valorizado de uma maneira muito coerente pelo diretor. Ele está fazendo dessa condição uma pro-
posta artística de investigação. Considero que essa opção é da maior relevância. É uma busca, não é um modelo pronto”.
COCRIADORES No piso B do suntuoso Teatro Castro Alves funciona a administração do BTCA. As paredes estão cheias de fotos ampliadas, revelando momentos emblemáticos da companhia – ao todo, foram 71 coreografias, orquestradas por grandes nomes da
dança do Brasil e do exterior. Os cartazes das turnês internacionais também estão lá, trazendo os elogios colhidos na imprensa estrangeira, como o Vivid and dramatic, publicado numa crítica do jornal The New York Times. No novo perfil assumido pelo BTCA, os bailarinos, antes exímios repetidores dos movimentos propostos pelos coreógrafos, passaram a ser cocriadores. A rotina de exercícios e ensaios é diária, das 13h às
19h. A cada dia da semana, eles têm atividades diferentes – podem ser aulas, ensaios, preparação para novos espetáculos ou apresentações em centros culturais. Na segunda-feira, a aula de balé clássico é ministrada por Lila Martins, também integrante da companhia. Funcionando quase como uma atividade de alongamento, a “professora” não tem muito o que corrigir nos movimentos dos experientes colegas, companheiros de longa data das barras de
apoio. “É uma aula com mil e uma utilidades. Limpa, perfuma e desinfeta”, brinca. Uma das bailarinas está grávida e avisa que vai dar uma paradinha. Aos poucos, outros dançarinos vão perdendo o ritmo e deitam-se no chão a ver se passa uma dorzinha ou outra de coluna ou de joelho. Entre os mais animados, há até quem investigue como dançar arrocha ao som de música clássica. Lilian Pereira, 52, acompanha com pre-
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Lilian Pereira, 52
Maria Ângela Tochilovsky, 47
Evandro Macedo, 50
« Como estou mais madura, há menos medo, menos cobrança» Lilian Pereira, bailarina
companhia – 1POR1PRAUM , A quem possa interessar e À Flor da Pele – foram batizados como Trilogia da Identidade. “O que a gente quer é romper com o preestabelecido, mantendo um critério de qualidade. Não estamos em cena pedindo desculpas de nada. Hoje, o BTCA está num lugar de destaque pela coragem de assumir esse novo perfil. É uma nova proposição para a dança brasileira”. Para a crítica de dança Helena Katz, o BT-
CA acompanha o percurso tortuoso das demais companhias oficiais, nas quais o exercício artístico está atrelado às trocas de governo. Curiosamente, outra mudança políticaéresponsávelpordar,hoje,um“perfil próprio” ao Balé. “Nesse momento, há um traço bastante singular no BTCA, composto por bailarinos de longo percurso junto à companhia. E isso está sendo valorizado de uma maneira muito coerente pelo diretor. Ele está fazendo dessa condição uma pro-
posta artística de investigação. Considero que essa opção é da maior relevância. É uma busca, não é um modelo pronto”.
COCRIADORES No piso B do suntuoso Teatro Castro Alves funciona a administração do BTCA. As paredes estão cheias de fotos ampliadas, revelando momentos emblemáticos da companhia – ao todo, foram 71 coreografias, orquestradas por grandes nomes da
dança do Brasil e do exterior. Os cartazes das turnês internacionais também estão lá, trazendo os elogios colhidos na imprensa estrangeira, como o Vivid and dramatic, publicado numa crítica do jornal The New York Times. No novo perfil assumido pelo BTCA, os bailarinos, antes exímios repetidores dos movimentos propostos pelos coreógrafos, passaram a ser cocriadores. A rotina de exercícios e ensaios é diária, das 13h às
19h. A cada dia da semana, eles têm atividades diferentes – podem ser aulas, ensaios, preparação para novos espetáculos ou apresentações em centros culturais. Na segunda-feira, a aula de balé clássico é ministrada por Lila Martins, também integrante da companhia. Funcionando quase como uma atividade de alongamento, a “professora” não tem muito o que corrigir nos movimentos dos experientes colegas, companheiros de longa data das barras de
apoio. “É uma aula com mil e uma utilidades. Limpa, perfuma e desinfeta”, brinca. Uma das bailarinas está grávida e avisa que vai dar uma paradinha. Aos poucos, outros dançarinos vão perdendo o ritmo e deitam-se no chão a ver se passa uma dorzinha ou outra de coluna ou de joelho. Entre os mais animados, há até quem investigue como dançar arrocha ao som de música clássica. Lilian Pereira, 52, acompanha com pre-
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cisão e leveza os movimentos da aula, que, para ela, são quase naturais. Começou a estudarbaléaos7anos.EstavaemLondres quando a mãe lhe escreveu contando que havia sido criada uma companhia na cidade. Uma audição estava marcada para o final do ano. Lilian não pensou duas vezes. Voltou. Em dezembro, fez os testes, em janeiro de 1982 já integrava o BTCA. No começo, ela admite que era um pouco como Nina, a protagonista do filme Cisne Negro, mas com a “sorte de ter uma família mais sadia”. Passava horas ensaiandoparaalcançaromovimentoperfeito,ansiosa em saber se o coreógrafo iria gostar dela, um medo terrível de não conseguir
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ser bela e precisa no palco. Só “desencantou” muitos anos depois, à custa de muitas sessões de psicanálise. Estava lá no divã contando suas aflições quando o psicólogo a interpelou: “Estão todas aquelas pessoas lásentadasparateverevocêficapensando se agradou ou não o coreógrafo?” Há 29 anos no BTCA, Lilian só se afastou para ter a filha. Já foi assistente de direção e diretora da companhia e agora voltou, feliz, a ser bailarina. “Gosto mais até do que antes. Como estou mais madura, há menos medo, menos cobrança. Aproveito mais”. Também é assim a relação com seu novo corpo. “Hoje faço um trabalho de prevenção, para não me machucar. Tenho au-
la de pilates, faço musculação. Acabo tendo mais confiança no meu corpo”.
TEMPESTADE Depois das aulas, os bailarinos partem para os ensaios. A quem possa interessar já estava escalada no programa, por conta de uma apresentação que a companhia faria no dia seguinte, em Plataforma. A chuva alagou os planos. Como alternativa, foram trabalhar os solos que apresentam em 1POR1PRAUM – neste espetáculo, cada bailarino fica numa cabine e é visto por um único espectador de cada vez. Os colegas fizeram as vezes de plateia, sem esquecer dos aplausos, claro.
Durante a semana, eles participariam dos processos de criação de outros dois espetáculos, que serão montados este ano. Em junho, estreia Pedro e o Lobo, primeira encenação infantojuvenil do BTCA, que contará com a luxuosa participação da Osba. Em outubro, é a vez de Tempestade, uma coprodução do Brasil com a Bélgica, inspirada na obra de Shakespeare. Na sala do lanche, durante os intervalos, os bailarinos trocavam impressões sobre o livro. Depois de mostrar Tempestade aqui, o Balé viaja, em dezembro, para uma pequena turnê na Bélgica. Mas o foco, agora, é se aproximar da comunidade baiana. Este ano, o BTCA irá se apresentar em mais de 20 cidades do interior. Para Jorge, este é um caminho “sem volta”. Ele lembra histórias impagáveis dessas viagens, como a vez em que um senhor entrou numa das cabines de 1POR1PRAUM, ajoelhou-se e ficou com os olhos fechados. A bailarina realizouosolo.Aofim,avisou-odequejátinha acabado e perguntou se ele estava se sentindo bem. O homem passou a mão pelo corpo e falou: “É, tô melhor, sim. Tava doente e aí me falaram que aqui tinha uma sessão de cura”. A artista explicou que se tratava de uma apresentação de dança. “Ah, então vou ver agora de novo com o olho aberto”, retrucou.
RIGOR E DISCIPLINA Fundado em 1º de abril de 1981, o Balé Teatro Castro Alves foi a primeira companhia oficial de dança do Norte-Nordeste e a quinta do Brasil. A maioria dos 16 bailarinos que compunham o primeiro elenco vinham do Balé Brasileiro da Bahia (BBB), companhia formada pelos alunos da Ebateca. Eram moças brancas, de classe média, e capoeiristas negros da classe popular, como escreve Lia Robatto, ex-diretora do Balé, no catálogo comemorativo dos 30
anos da companhia. Paraosbailarinos,foiachancedeprovar aos pais que poderiam viver de dança. E mais, num emprego estável. Em suas lembranças daquele primeiro ano, Eliana Pedroso encontra a descrição precisa. “A companhia veio preencher nossos sonhos”. O “choque profissional” foi também o da disciplina implantada por Antônio Carlos Cardoso, diretor-fundador do BTCA. “Ele trouxe o rigor que o mundo da dança exigia. Se a aula começava às 12h, não adiantava chegar às 12h02. E ninguém ousava faltar. Ficar doente, então, nem pensar... A gente aprendeu a conviver com o período menstrual, os problemas amorosos e físicos sem que ninguém notasse”. Apesar da linha dura com que mantinha o elenco, há certa unanimidade em reconhecer que Cardoso (diretor do Balé em três oportunidades: 1981-1983, 1987-1988 e 1991-2004) foi fundamental para dar estatura ao BTCA e fazê-lo reconhecido no Brasil e no mundo. Sua última gestão é marcada pela internacionalização da companhia, quando mais de dez turnês do Bahia Ballet (como o grupo era chamado no exterior) foram realizadas. Outra marca de sua última passagem pelo BTCA, menos conhecida, é o afastamento unilateral de bailarinos. Até hoje, quase 20 anos depois do ocorrido, o assunto ainda é tratado com discrição. Alertando que a questão é “muito delicada”, Eliana explica como tudo aconteceu. “Nós sabíamos que ele estava querendo fazer um remanejamento do elenco. Um dia, fomos divididos em grupos e tivemos uma reunião com ele. Para alguns, Cardoso disse: ‘Vocês, de amanhã em diante, não precisarão mais vir’. Era assim que era feito nas companhias tradicionais, fazia parte da crueldade do mundo da dança. E ele, como adotava esses moldes, empregou essa tá-
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Sanctus, 1985
Azul de Klein, 2008
À Flor da Pele, 2010
FOTOS ISABEL GOUVEA / DIVULGAÇÃO
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cisão e leveza os movimentos da aula, que, para ela, são quase naturais. Começou a estudarbaléaos7anos.EstavaemLondres quando a mãe lhe escreveu contando que havia sido criada uma companhia na cidade. Uma audição estava marcada para o final do ano. Lilian não pensou duas vezes. Voltou. Em dezembro, fez os testes, em janeiro de 1982 já integrava o BTCA. No começo, ela admite que era um pouco como Nina, a protagonista do filme Cisne Negro, mas com a “sorte de ter uma família mais sadia”. Passava horas ensaiandoparaalcançaromovimentoperfeito,ansiosa em saber se o coreógrafo iria gostar dela, um medo terrível de não conseguir
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ser bela e precisa no palco. Só “desencantou” muitos anos depois, à custa de muitas sessões de psicanálise. Estava lá no divã contando suas aflições quando o psicólogo a interpelou: “Estão todas aquelas pessoas lásentadasparateverevocêficapensando se agradou ou não o coreógrafo?” Há 29 anos no BTCA, Lilian só se afastou para ter a filha. Já foi assistente de direção e diretora da companhia e agora voltou, feliz, a ser bailarina. “Gosto mais até do que antes. Como estou mais madura, há menos medo, menos cobrança. Aproveito mais”. Também é assim a relação com seu novo corpo. “Hoje faço um trabalho de prevenção, para não me machucar. Tenho au-
la de pilates, faço musculação. Acabo tendo mais confiança no meu corpo”.
TEMPESTADE Depois das aulas, os bailarinos partem para os ensaios. A quem possa interessar já estava escalada no programa, por conta de uma apresentação que a companhia faria no dia seguinte, em Plataforma. A chuva alagou os planos. Como alternativa, foram trabalhar os solos que apresentam em 1POR1PRAUM – neste espetáculo, cada bailarino fica numa cabine e é visto por um único espectador de cada vez. Os colegas fizeram as vezes de plateia, sem esquecer dos aplausos, claro.
Durante a semana, eles participariam dos processos de criação de outros dois espetáculos, que serão montados este ano. Em junho, estreia Pedro e o Lobo, primeira encenação infantojuvenil do BTCA, que contará com a luxuosa participação da Osba. Em outubro, é a vez de Tempestade, uma coprodução do Brasil com a Bélgica, inspirada na obra de Shakespeare. Na sala do lanche, durante os intervalos, os bailarinos trocavam impressões sobre o livro. Depois de mostrar Tempestade aqui, o Balé viaja, em dezembro, para uma pequena turnê na Bélgica. Mas o foco, agora, é se aproximar da comunidade baiana. Este ano, o BTCA irá se apresentar em mais de 20 cidades do interior. Para Jorge, este é um caminho “sem volta”. Ele lembra histórias impagáveis dessas viagens, como a vez em que um senhor entrou numa das cabines de 1POR1PRAUM, ajoelhou-se e ficou com os olhos fechados. A bailarina realizouosolo.Aofim,avisou-odequejátinha acabado e perguntou se ele estava se sentindo bem. O homem passou a mão pelo corpo e falou: “É, tô melhor, sim. Tava doente e aí me falaram que aqui tinha uma sessão de cura”. A artista explicou que se tratava de uma apresentação de dança. “Ah, então vou ver agora de novo com o olho aberto”, retrucou.
RIGOR E DISCIPLINA Fundado em 1º de abril de 1981, o Balé Teatro Castro Alves foi a primeira companhia oficial de dança do Norte-Nordeste e a quinta do Brasil. A maioria dos 16 bailarinos que compunham o primeiro elenco vinham do Balé Brasileiro da Bahia (BBB), companhia formada pelos alunos da Ebateca. Eram moças brancas, de classe média, e capoeiristas negros da classe popular, como escreve Lia Robatto, ex-diretora do Balé, no catálogo comemorativo dos 30
anos da companhia. Paraosbailarinos,foiachancedeprovar aos pais que poderiam viver de dança. E mais, num emprego estável. Em suas lembranças daquele primeiro ano, Eliana Pedroso encontra a descrição precisa. “A companhia veio preencher nossos sonhos”. O “choque profissional” foi também o da disciplina implantada por Antônio Carlos Cardoso, diretor-fundador do BTCA. “Ele trouxe o rigor que o mundo da dança exigia. Se a aula começava às 12h, não adiantava chegar às 12h02. E ninguém ousava faltar. Ficar doente, então, nem pensar... A gente aprendeu a conviver com o período menstrual, os problemas amorosos e físicos sem que ninguém notasse”. Apesar da linha dura com que mantinha o elenco, há certa unanimidade em reconhecer que Cardoso (diretor do Balé em três oportunidades: 1981-1983, 1987-1988 e 1991-2004) foi fundamental para dar estatura ao BTCA e fazê-lo reconhecido no Brasil e no mundo. Sua última gestão é marcada pela internacionalização da companhia, quando mais de dez turnês do Bahia Ballet (como o grupo era chamado no exterior) foram realizadas. Outra marca de sua última passagem pelo BTCA, menos conhecida, é o afastamento unilateral de bailarinos. Até hoje, quase 20 anos depois do ocorrido, o assunto ainda é tratado com discrição. Alertando que a questão é “muito delicada”, Eliana explica como tudo aconteceu. “Nós sabíamos que ele estava querendo fazer um remanejamento do elenco. Um dia, fomos divididos em grupos e tivemos uma reunião com ele. Para alguns, Cardoso disse: ‘Vocês, de amanhã em diante, não precisarão mais vir’. Era assim que era feito nas companhias tradicionais, fazia parte da crueldade do mundo da dança. E ele, como adotava esses moldes, empregou essa tá-
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tica. Na verdade, o diretor ainda hoje tem o direito de ter o elenco que ele acha compatível com seu padrão artístico”. Procurado pela reportagem, Cardoso disse que não tinha “o menor interesse” em falar sobre a companhia. Naquela época, Eliana fez parte do grupo dos que ficaram. Foi até promovida a assistente de direção. Acabou saindo tempos depois, por conta de uma confusão envolvendo a primeira turnê internacional do grupo. O problema maior, diz, é que o governo não encontrou alternativas para manter seus artistas-funcionários em atividades outras, ao passo que permaneciam na folha de pagamento do Balé, já que não foram demitidos. Eliana virou produtora cultural e organizou, durante cinco anos, o Ateliê de Coreógrafos Brasileiros. Foi lá que começou a tomar força a ideia de que bailarinos mais experientes podiam, sim, dançar, por meio de um subprojeto chamado Solos>40. A inspiração fez nascer, em 2004, a Cia. Ilimitada, que voltou a reunir parte dos bailarinos afastados e funcionava como um segundo grupo do BTCA – o elenco principal era formado por artistas mais jovens, contratados via Reda (Regime Especial de Direito Administrativo). Eliana não se animou a voltar. É, hoje, a primeira bailarina aposentada pelo Estado da Bahia.
MUDANÇAS
Bailarinos durante ensaio do BTCA
FERNANDO VIVAS / AG. A TARDE
Evandro Macedo (idade: “2 de 25”) fez parte do primeiro elenco do BTCA. Em 1993,foiumdosartistasafastadossemdelongas da companhia. O abatimento não durou muito, logo partiu para realizar o sonho de trabalhar em São Paulo e na Europa. Em 2004, quando soube da criação da Cia. Ilimitada, marcada por experimentalismos e inovações, resolveu regressar. Em 2007, ele estava em férias quando
35 100 MIL 4,5 artistas compõem o BTCA
bailarinos já passaram pela companhia
é o salário que eles recebem
FONTE: CATÁLOGO COMEMORATIVO DOS 30 ANOS DO BTCA
recebeu a ligação de um colega dizendo que não estavam permitindo que os bailarinos entrassem no Teatro Castro Alves. Correu para ver o que acontecia. Eram os rumores das mudanças que a gestão Márcio Meirelles, ex-secretário da Cultura, promoveu no BTCA. Meirelles reclamou publicamente de que os funcionários ganhavam salários e gratificações sem trabalhar e insistiu que era preciso redefinir os moldes do Balé. Uma das primeiras medidas tomadas pela Secult foi juntar os dois grupos da companhia, o que não agradou a Evandro, principalmente pelo modo como a coisa foi feita, sem consultas aos bailarinos. Passado o terremoto, o tempo é de calmaria. Evandro acredita que o BTCA está, agora, “quebrando paradigmas”. “Não é que o corpo jovem não sirva, ou que o corpo velho sirva. É preciso saber o que você
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quer dele. Se eu não puder mais dar salto mortal, tenho que procurar outra coisa que tenha tanto valor quanto. Não tem por que ter medo de estar nesses outros lugares”. Outros sintomas da “crise” no Balé foram as constantes mudanças no comando da companhia – nada menos que quatro diretores em quatro anos – e o “convite” para que os bailarinos que ainda estavam afastados voltassem – aos palcos ou aos núcleos técnicos criados, já que os contratos temporários com os artistas mais jovens não foram renovados. Quando recebeu o aviso de que deveria se reintegrar ao corpo de baile do BTCA, a psicóloga Maria Ângela Tochilovsky, 47, ficou apreensiva. Há dez anos não dançava, estava temerosa de que seu corpo não respondesse aos comandos como antes. Mas descobriu, com alegria, que ambos tinham memória. “Estava tudo ali escrito, eu só precisava redesenhar. Hoje me sinto uma bailarina mais completa, porque tenho experiência de vida para compartilhar. Nesse novo modo de existir do Balé, estamos mostrando o belo por um outro viés”. Apesar do bom momento que a companhia vive, certas questões persistem. “Daqui há 10 anos, quando os bailarinos que têm 60 estiverem com 70, como vai ser? Hoje, quando alguém se machuca, já é o caos. É preciso ter sangue novo”, diz Lilian Pereira, lembrando que o último concurso público aconteceu há 16 anos. Eliana Pedroso aumenta o coro de que renovação é fundamental, mesmo que, mantendo-se o atual perfil do Balé, profissionais mais maduros sejam chamados para integrar o corpo de baile. Pelo menos por este ano, contratações não estão previstas, avisa Moacyr Gramacho, diretor do Teatro Castro Alves. A ideia, diz, é “valorizar o atual elenco”. A experiência, quem diria, é o novo novo. Bem-vindo seja. «
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tica. Na verdade, o diretor ainda hoje tem o direito de ter o elenco que ele acha compatível com seu padrão artístico”. Procurado pela reportagem, Cardoso disse que não tinha “o menor interesse” em falar sobre a companhia. Naquela época, Eliana fez parte do grupo dos que ficaram. Foi até promovida a assistente de direção. Acabou saindo tempos depois, por conta de uma confusão envolvendo a primeira turnê internacional do grupo. O problema maior, diz, é que o governo não encontrou alternativas para manter seus artistas-funcionários em atividades outras, ao passo que permaneciam na folha de pagamento do Balé, já que não foram demitidos. Eliana virou produtora cultural e organizou, durante cinco anos, o Ateliê de Coreógrafos Brasileiros. Foi lá que começou a tomar força a ideia de que bailarinos mais experientes podiam, sim, dançar, por meio de um subprojeto chamado Solos>40. A inspiração fez nascer, em 2004, a Cia. Ilimitada, que voltou a reunir parte dos bailarinos afastados e funcionava como um segundo grupo do BTCA – o elenco principal era formado por artistas mais jovens, contratados via Reda (Regime Especial de Direito Administrativo). Eliana não se animou a voltar. É, hoje, a primeira bailarina aposentada pelo Estado da Bahia.
MUDANÇAS
Bailarinos durante ensaio do BTCA
FERNANDO VIVAS / AG. A TARDE
Evandro Macedo (idade: “2 de 25”) fez parte do primeiro elenco do BTCA. Em 1993,foiumdosartistasafastadossemdelongas da companhia. O abatimento não durou muito, logo partiu para realizar o sonho de trabalhar em São Paulo e na Europa. Em 2004, quando soube da criação da Cia. Ilimitada, marcada por experimentalismos e inovações, resolveu regressar. Em 2007, ele estava em férias quando
35 100 MIL 4,5 artistas compõem o BTCA
bailarinos já passaram pela companhia
é o salário que eles recebem
FONTE: CATÁLOGO COMEMORATIVO DOS 30 ANOS DO BTCA
recebeu a ligação de um colega dizendo que não estavam permitindo que os bailarinos entrassem no Teatro Castro Alves. Correu para ver o que acontecia. Eram os rumores das mudanças que a gestão Márcio Meirelles, ex-secretário da Cultura, promoveu no BTCA. Meirelles reclamou publicamente de que os funcionários ganhavam salários e gratificações sem trabalhar e insistiu que era preciso redefinir os moldes do Balé. Uma das primeiras medidas tomadas pela Secult foi juntar os dois grupos da companhia, o que não agradou a Evandro, principalmente pelo modo como a coisa foi feita, sem consultas aos bailarinos. Passado o terremoto, o tempo é de calmaria. Evandro acredita que o BTCA está, agora, “quebrando paradigmas”. “Não é que o corpo jovem não sirva, ou que o corpo velho sirva. É preciso saber o que você
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quer dele. Se eu não puder mais dar salto mortal, tenho que procurar outra coisa que tenha tanto valor quanto. Não tem por que ter medo de estar nesses outros lugares”. Outros sintomas da “crise” no Balé foram as constantes mudanças no comando da companhia – nada menos que quatro diretores em quatro anos – e o “convite” para que os bailarinos que ainda estavam afastados voltassem – aos palcos ou aos núcleos técnicos criados, já que os contratos temporários com os artistas mais jovens não foram renovados. Quando recebeu o aviso de que deveria se reintegrar ao corpo de baile do BTCA, a psicóloga Maria Ângela Tochilovsky, 47, ficou apreensiva. Há dez anos não dançava, estava temerosa de que seu corpo não respondesse aos comandos como antes. Mas descobriu, com alegria, que ambos tinham memória. “Estava tudo ali escrito, eu só precisava redesenhar. Hoje me sinto uma bailarina mais completa, porque tenho experiência de vida para compartilhar. Nesse novo modo de existir do Balé, estamos mostrando o belo por um outro viés”. Apesar do bom momento que a companhia vive, certas questões persistem. “Daqui há 10 anos, quando os bailarinos que têm 60 estiverem com 70, como vai ser? Hoje, quando alguém se machuca, já é o caos. É preciso ter sangue novo”, diz Lilian Pereira, lembrando que o último concurso público aconteceu há 16 anos. Eliana Pedroso aumenta o coro de que renovação é fundamental, mesmo que, mantendo-se o atual perfil do Balé, profissionais mais maduros sejam chamados para integrar o corpo de baile. Pelo menos por este ano, contratações não estão previstas, avisa Moacyr Gramacho, diretor do Teatro Castro Alves. A ideia, diz, é “valorizar o atual elenco”. A experiência, quem diria, é o novo novo. Bem-vindo seja. «