João Pequeno, 91, discípulo de Pastinha e lenda viva da capoeira
GRANDES MESTRES
Cláudia Mascarenhas e a mãe contemporânea
DOMINGO, 10 DE MAIO DE 2009 #58 REVISTA SEMANAL DO GRUPO A TARDE
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Grandes mestres de capoeira da Bahia, herdeiros dos lendários Bimba e Pastinha, espalham-se por cerca de 150 países ensinando o jogo-arte
Texto TATIANA MENDONÇA tmendonca@grupoatarde.com.br Fotos REJANE CARNEIRO rcarneiro@grupoatarde.com.br
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Capoeiristas na Fundação Mestre Bimba, no Pelourinho, sob o comando do mestre Nenel
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s joões brincam de capoeira como quem dança em câmera lenta. Estiveram assim por muitas rodas, vez por outra vinha alguém registrar. Veja Capoeira Angola do Mundo, de 1986, a cena está lá. Nessa época, já eram grandes mestres, hoje são lendas do jogo que espalha a Bahia pelo mundo. Um é João Pequeno, o outro é João Grande. Um vive em Fazenda Coutos; o outro, em Nova York. Na laje de casa, no subúrbio de Salvador, João Pequeno corre a memória para lembrar a idade que tem – “78”, afirma categórico. “Que 78? É 91, seu João”, a neta apressa-se a consertar. “Tenho tudo isso não”, ele rebate, rindo. O problema, diz, é que sua cabeça está dividida em duas. “Tem a parte que eu me lembro e a parte que não lembro mais. Mas da capoeira lembro”. Pergunto se aindajogaeelelevantaparagingar.Ficacomo resposta.“Fuipedreiro,pintor,masfoiacapoeira quem me apelidou de doutor”, conta, em referência aos três títulos que ganhou – em 2003, tornou-se doutor honoris causa pela Universidade Federal de Uberlândia, mesmo título que ganhou no ano passado pela Ufba, ele que também é comendador de cultura da República. É sábado de manhã quando trinta e duas crianças (ou quase, a depender das que ficam dormindo) vão até sua casa participar do projeto Pequenos do João, mantido por obra e graça dos que vivem ali. Elas vão até mestre João tomar a ‘bença’. É Cristiane Santos Miranda, 26, sua neta, quem dá a aula. Mas João, sentado num banquinho para fazer as fotografias (como ele gosta de uma câmera! , não perde de opinar. “Ele não vê os outros fazer, por isso erra”, “o rabo-de-arraia é daqui pra lá”, “estira a perna”, “olha por debaixo do braço”,
Mestre Curió começou a treinar com mestre Pastinha: “A capoeira me deu tudo”
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«Hoje, se você juntar 100 mestres no liquidificador, não dá um copo. Tem de saber o que é ensinar capoeira» Mestre Curió, 72 anos
“troca aí”, “vem, vem” e, já meio irritado, “se não sabe, vai embora”. Nani, como é chamada, manda os alunos, de 3 a 13 anos, ouvirem o mestre João, ao mesmo tempo em que vai dizendo para o avô ter paciência, que elas são pequenas. Sua cabeça ainda guarda a técnica, o corpo é que não dá mais para tanto. Por falta de um carro que o leve ao Forte da Capoeira, em Santo Antônio, raramente vai à academia, que nem mais lembra que tem. Por causa da idade avançada, não viaja mais para dar aula de capoeira no estrangeiro. “Para a Europa, era frequente ele ir. E também ia muito para os Estados Unidos, com o mestre João Grande”, conta Nani. Foi de lá, mais especificamente de Nova York, onde está desde 1990 fazendo a América, que João Grande, 75, conversou com a Muito. “Foi Deus quem me mandou pra cá”. A primeira vez que viajou foi para o Senegal, em 1966, com mestre Pastinha. Depois foi para a Europa com o grupo Viva Bahia, que apresentava shows folclóricos. Em 1989, fez a primeira turnê aos EUA e, um ano depois, foi para ficar. Montou a academia Capoeira Angola Center of Mestre João Grande. “Me dei bem aqui. Vou à Bahia passear, fico um mês. Sou aventureiro, gosto de andar pelo mundo”. Em junho, ele vem dar aula em Belo Horizonte, depois segue para a Europa. João Grande desvia com destreza na hora de dizer se ganha bem ou ficou rico. Emenda que por lá é tudo muito caro. “Minha vida está arrumada aqui. Não posso dizer quanto é que ganho porque o número de alunos
varia muito. Ontem, vieram 21; hoje vêm 15; amanhã, 10”. Mas os mestres daqui garantem que ele é uma espécie de Ronaldinho da capoeira (em suas devidas proporções, claro está). Não à toa dele já disse: “Foi Deus quem mandou João Grande jogar capoeira”. Já dizer o que a capoeira lhe deu, João Grande sabe, e na amplidão é certeiro. “Tudo, tudo. Os amigos e tudo mais”. Sua bronca é só por achar que a capoeira anda mudada. Sente saudade de quando era jogada livre nas festas de largo. “Acabaram aquelas festas bonitas. E muita gente não leva a sério para aprender como se deve”.
MESTRE ACORDEON DAY Na outra costa americana é onde vive, hátrintaanos,omestreAcordeon,65.Para celebraradata,aPrefeituradeBekerley,na Califórnia,ondeelemontousuaacademia, criou no ano passado o Mestre Acordeon Day, comemorado em 18 de outubro. “Ele perguntou se não era muito mico, e eu disse que não, que era um reconhecimento. Quem é que tem isso aqui no Brasil? Ninguém”, conta mestre Itapuã, que estava nos Estados Unidos para o grande evento. Os dois foram alunos de mestre Bimba, que criou a capoeira regional, hoje hegemônica no mundo. Mas Itapuã, 61, não havia de perder a oportunidade de sacaneá-lo. “Quando ele subiuparareceberahomenagem,eugritei de cá: ‘Que mico!’”. E Acordeon retrucou com aquele xingamento talvez mais velho que os filhos da mais antiga profissão.
Itapuã também teve a oportunidade de morar no exterior e viver de capoeira, mas preferiu ficar aqui. Em 1970, mestre Camisa Roxa, outro que emigrou, o chamou para morar na Alemanha. “Mas optei por ficar e estudar”, conta. Itapuã acabou virando dentista, profissão que, como diz, ocupa “quando a capoeira deixa”. Eleestáseaposentandocomoprofessor universitário na Ufba, mas se mantém mestre. Faz parte do grupo de capoeira mais antigo em atividade na Bahia, o Ginga Associação de Capoeira, criado em 13 de novembro de 1972 – memória prodigiosa essa de Itapuã, que conta tudo pelo dia, mês, ano e hora. Foi em 22 de setembro de 1964, às 14h, que ele foi se matricular na academia de mestre Bimba. “Se ele estivesse vivo, eu ainda seria seu aluno. Fui ensinar porque não tinha mais com quem treinar”. Em julho, ele viaja para a Holanda e emenda com Suíça e Finlândia. Seu cachê é de 3 mil dólares (ou euros), em média – há quem chegue a ganhar 5 mil euros por um final de semana de aulas na Europa. Mas Itapuã ressalta que esses são poucos, volta acomparaçãocomofutebol.“Craquesque ganham bem, você conta nos dedos”. Itapuã, como João Grande, anda ressabiado com os rumos que a capoeira tomou no mundo. “A capoeira chegou ao exterior muito desorganizada. Gente sem competência foi dar aula. Tem um grupo na França que não aceita mais brasileiros. Dizem que já aprenderam tudo. É um grupo fraquíssimo! Difícil não é ensinar capoeira. É
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Mestre Janja criou o Instituto Nzinga de Capoeira Angola, que atua em seis países, com “mulheres em situação de liderança“
ser mais do que papagaio de venda, com o professor fazendo e os alunos repetindo os movimentos sem entender o sentido”.
NÃO VALE TUDO Mas o pior, diz Itapuã, é quando querem à força fazer da capoeira uma luta violenta. “Nãogostodessainvençãodelevarcapoeira para o vale-tudo. Não tem nada a ver. A história sempre foi de o capoeirista bater em otário, não em outro capoeira”. Fora do Brasil, a Ginga tem filiais em Nova York e Portugal. Mais escolas tem a Abadá Capoeira, dos mestres Camisa Roxa e mestre Camisa, 54, que vive no Rio há 17 anos. Que ele sabe, são “50 e poucas” filiais. “É que muitos alunos viajam, dão aulas em outros países, e a gente só vem saber depois”, diz Camisa. Quer saber seu roteiro para esses meses? Vai aos Estados Unidos, Áustria, Portugal e está pensando se confirma ou não a
ida ao México, com medo da gripe suína. “Nos países ricos, se ganha melhor do que no Brasil. Dá para viver com dignidade”. Camisa começou a estudar com Bimba aos 12 anos, numa época em que poucas crianças aprendiam o jogo. Para ele, Bimba, além de professor, foi pai. “Perdi meu pai muito cedo, então ele ficou sendo essa figura”. Itapuã, também órfão de pai, guarda a mesma memória. Há os legítimos (sem prejuízo para os ‘adotivos’), como mestre Nenel, 48. O senhor é filho de Bimba? “Desde pequeno”, ele responde. Nenel diz que com o pai aprendeu a ter dignidade e equilíbrio e acredita que um bom mestre não se faz sem isso. “Hoje, a figura do mestre está banal. O cara ganha um diploma e vira mestre. Antes, ele era consagrado pela comunidade, pelo seu caráter de educador e conselheiro”. O que Nenel também não gosta muito é do uso de cordões que viraram símbolo da
graduação dos alunos, como as faixas de judô. “Até tentei usar, mas acabou indo contra os princípios que eu tinha da capoeira, de quem sabe mais ajudar quem sabe menos. Muita gente se sentia superior”. Ele estudou até a oitava série, há 25 anos vive de capoeira. Aos 30, viajou para ensinar em Londres e, desde então, acumula milhas aéreas. São Paulo, Canadá, Alemanha, Itália, Colômbia e Bélgica são as viagens programadas para este ano. No comando de uma roda na Fundação Mestre Bimba, no Pelourinho, rebatizou um japonês de Coco (“para não confundir”) por Licuri, desejou boa viagem de voltaàumaalemã(“vocêmeentende?”“Sim, teentendo”),encorajouumaalunaqueiria dar aula no Líbano (“vá fazer o seu trabalho, mas aqui é sua família, não tenha vergonha de voltar”). Para terminar, reclamou do “porão” em que funciona a Fundação (é um dos quatro imóveis cedidos
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Mestre Sabiá joga o que chama de capoeira contemporânea. Seu cachê para ensinar no exterior é de 1.500 euros
pelo Ipac para academias no Centro Histórico): “Não é o local que nós merecemos. A capoeira virou patrimônio cultural, mas a gente não vê o retorno disso”. Frederico Mendonça, diretor do Ipac, rebate. “Os grupos estão mal acostumados com uma posição paternalista do Estado. As associações precisam estar melhor organizadas e montar seus projetos”, avisa.
MESTRE TAM E MESTRE VARIG Ali perto, em Santo Antônio, está a Escola de Capoeira Angola Irmãos Gêmeos de Mestre Curió. Não vá, avisado que já está, chamá-la de academia. “Isso é coisa de barão,decapitalista.Osistemasómeusa”. Curió, que herdou o apelido do avô – nascido que foi numa roda de capoeira, como gosta de dizer –, começou a treinar com mestre Pastinha ainda pequeno e só parou quando ele faleceu. “Mas, para mim, ele não morreu, não”. Já foi de tudo um pou-
co: motorista, cobrador, chefe de cozinha. Hoje vive só da ginga. Tem72anos,65decapoeira.Suaescola está também no México, já há 13 anos (“falo espanhol um pouquito”). Há outras na Martinica, França, Israel, Bélgica e Equador.JáfoiatéparaaONUdarpalestra, do que se gaba, mas como quem não está dizendo nada. “No exterior, se ganha razoável. Aqui, a gente faz o trabalho social, mas as pessoas não valorizam”. Ele faz questão de deixar claro que não quer criar uma fábrica de conhecimento. “Hoje, se você juntar 100 mestres no liquidificador, não dá um copo. Tem de saber o que é se ensinar capoeira”. Curió é tão elegante quanto desconfiado, vai jogar com a repórter. “Nesses anos todos de capoeira, digaquantosmestreseuformei?”,pergunta. Assumo que absurdamente chutei trinta (não dá para pensar direito com a expressão que ele faz te olhando). “Pois con-
sagreisótrês.Hoje,temummontedemestre TAM, mestre Varig. É o avião que está formando o mestre”. O historiador Carlos Eugênio Líbano, professor da Ufba, conta que a capoeira começou a sair da Bahia nos anos 60, participando de shows folclóricos. “Mas foi nos anos 80 que houve essa explosão de capoeiristas indo para o exterior”. Curió mora em Castelo Branco, em setembro vai para Paris. “Tinha tudo para ser um marginal, comia pão do lixo. Foi a capoeira que me deu tudo, que me fez chegar ao homem que sou hoje”. Também foi a capoeira quem botou os dentes de ouro em mestre Boca Rica, 73, também aluno de Pastinha (mas ele tirou o ouro, que não aguentava mais as piadas em profusão). Estudou pouco (“nem até a quarta série”), era feirante e pedreiro antes de virar mestre. Mas vamos deixar que ele mesmo conte: Andei o Brasil inteiro/
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«Nos países ricos, se ganha melhor do que no Brasil. Dá para viver com dignidade» Mestre Camisa, 54
«A capoeira virou patrimônio cultural, mas a gente não vê o retorno disso» Mestre Nenel, 48
«Hoje, o que se busca é um atleta de capoeira» Mestre Moraes, 59
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Passei na televisão/ Hoje sou um grande mestre/ Um grande cidadão. A música está em um dos quatro CDs que lançou. Mas não andou só o Brasil, não. Tem a conta certa de a quantos países viajou para dar aula, fazer “workshops”, palestrar. “Já fui para 26 países do primeiro mundo. Saio aí para dar uns rolés. Desde 1986 não ando de ônibus, só de avião. Não falo inglês, sei umas palavras de japonês... Mas nunca quis ficar morando lá fora. É muito frio”.
ALUNOS DOS ALUNOS Foram-se Bimba e Pastinha, ficaram os alunos que aprenderam com eles, muitos dos quais tornaram-se mestres. Vieram os alunos dos alunos (dos alunos), que também passaram a dar aulas. Veja mestre Moraes, 59, do Grupo de Capoeira Angola Pelourinho. Aprendeu com “o grande João Grande”. Quando teve de ir para o Rio, onde foi servir como fuzileiro naval, não encontrou lá a capoeira angola, ficou sem ter com quem treinar. “Fui tornado mestre e assumi isso de uma forma apaixonada”. Hoje, não vive só da capoeira, é professor de inglês em escolas públicas. Mas sem deixar de ser pop. Também lançou quatro CDs com composições próprias – um deles, Brincando na roda, de 2004, foi indicado ao Grammy. Além de mestre de capoeira, ele se tornou mestre pela Ufba em 2007, com a dissertação A Nação Angola na Bahia 1811 – 1850. Incorporou a fala acadêmica, mas sem perder as metáforas popularescas. “O mestre hoje é como mulher bonita. Quando cai, vai sendo deixado de lado. Vou passar por isso também... Hoje, o que se busca é um atleta de capoeira. A vertente filosófica não interessa mais”. Para ele, a capoeira vive “seu pior momentonaBahia”(repete,comênfase).“Os mestres que questionam ainda são perse-
guidos”. Moraes diz que o Forte da Capoeira, espaço que lutou para ser revitalizado e onde funciona sua academia (e mais quatro espaços, entre eles o de João Pequeno, Curió e Boca Rica) está “parado”. “Não tem programação, não tem visitação. E se queimar uma lâmpada aqui na academia, quem tem de trocar sou eu”, reclama. Frederico Mendonça, do Ipac, diz que a manutenção das academias é de responsabilidade do governo estadual e que ainda há um “grande desafio de encontrar uma maneira para gerir o forte”, reativado em 2006. “O secretário (Márcio Meirelles) já se comprometeu a implantar uma gestão compartilhada, como a que existe na Feira de São Joaquim”. A escassez de turistas, diz, é por conta da falta de transporte regular até o local. “É uma das razões de o forte não funcionar adequadamente. Estamos conversando com a prefeitura para tentar resolver isso”. Terminado esse parêntese (não menos importante),voltemosaoquesetratava.O queosnovostempostambémtrouxeramà capoeira foram as mulheres virarem mestras. Como Janja, 49, aluna de mestre Moraes. Primeiro, estudou educação física, depois foi para história. Resolveu fazer mestrado e doutorado em educação. A carreira acadêmica a levou a São Paulo e, por não ter onde treinar lá (de novo!), foi dar aula. Fundou o Instituto Nzinga de Capoeira Angola, que também tem uma linha de estudos e de pesquisa. “Nunca recebi e até resisti a esse título de mestre de capoeira. Mas tenho orgulho de ter sido reconhecida assim pela capoeiragem, principalmente pelos meus alunos”. Eles sofrem um pouquinho com o rigor da mestra, mas na roda de Janja não há de faltar alegria. “Tem de ter as duas coisas”. Graças à capoeira, que ela diz ser o começo de tudo que pensa, orgulha-se de ter ga-
nhado o corpo que tem. “Hoje, posso dizer: Este corpo me pertence!” Em 2006, voltou para Salvador e hoje dá aulas na Faculdade de Educação da Ufba. Em maio, Janja vai para a Bolívia; em junho, para os Estados Unidos; em novembro, para a Austrália. “Aí é capoeira full time, das 8 da manhã às 11 da noite”. O cachê, diz, é “absolutamente pró-labore”. Seu grupo está no México, Espanha, Alemanha, Moçambique e Inglaterra, com mulheres “em situação de liderança”. O pesquisador, educador (e também capoeirista) Pedro Abib conta que esse movimento da mulher à frente da roda é recente, de poucas décadas para cá. “A mulher veio trazer mais equilíbrio e tolerância nas rodas de capoeira. E elas têm se organizado cada vez mais, reivindicando seus espaços e o fim dos preconceitos, que ainda são comuns nesse universo”. Eis que para terminar chega mestre Sabiá, 37, formado por mestre Camisa. Sabiá é um legítimo representante da afirmação da capoeira como profissão. Era muito agitadonaescola,amãeopôsparalutar.Num pulo, foi para a capoeira, onde está até hoje. “A pulso” terminou o segundo grau, com 18 anos foi para a Alemanha, onde passou dois anos dando aula de capoeira. Voltou para o Brasil, a mãe advogada queriaqueeleestudassedireito.MasSabiá continuou professor em academias e escolas particulares. Queria ensinar a crianças pobres, mas como o clube onde dava aulas não permitia o acesso dos meninos, montou há 10 anos o Projeto Mandinga, onde é hoje o mestre de 100 crianças e adolescentes (já foram 300, mas foram-se os apoios). Lá eles também têm oficinas para aprenderafazerosinstrumentoseaulasde inglês. “A gente tem 11 filiais em outros países, os meninos são preparados para ensinar lá fora. A maioria quer ir para o ex-
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Ostracismo no fim da vida
Mestre Boca Rica, discípulo de Pastinha, foi feirante e pedreiro antes da capoeira
terior”. Lembrou do futebol? (a repetição não é minha culpa. Quem sabe um dia hão de ganhar tanto). Sabiá continua viajando, por ano vai “umas dez vezes” para o exterior. Só neste ano já foi para quatro países. Seu cachê é de 1.500 euros. Olha a ironia da vida, que foi com o dinheiro do filho tocando berimbau e jogando capoeira que a mãe foi conhecer o mundo. “Hoje ganho mais que os meus irmãos”, ele ri. Mestre Sabiá joga o que chama de capoeira contemporânea. “Acredito na tradição, mas não me preocupo em seguir de forma rígida nem a capoeira angola nem a regional. Mas quero que elas estejam sempre vivas, até mesmo para eu poder ser outra coisa (risos). Jogo sem medo de errar”. A capoeira se reinventa, Camará. Mas sempre há de pedir aos mestres a bênção.
«Já fui para 26 países. Desde 1986 não ando de ônibus, só de avião» Mestre Boca Rica, 73
ONDE JOGAR Academia de João Pequeno de Pastinha – 71 3323-0708. Ginga Associação de Capoeira (mestre Itapuã) – 71 3249-6020. Abadá Capoeira (mestre Camisa) – 21 9611-7013. Fundação Mestre Bimba (mestre Nenel) – 71 3322-5082. Escola de Capoeira Angola Irmãos Gêmeos de Mestre Curió – 71 3321-0396. Academia de Capoeira Angola da Bahia (mestre Boca Rica) – 71 3401-3019. Grupo de Capoeira Angola Pelourinho (mestre Moraes) – 71 3314-7778. Instituto Nzinga de Capoeira Angola (mestre Janja) – 71 9973-8970. Projeto Mandinga (mestre Sabiá) – 71 3328-5756
Bimba (1899-1974) e Pastinha (18891981)deixaramacategoriademestrespara se tornarem mitos no mundo da capoeira. Deram novo vigor e método ao jogo, transformando-o de “crime a cultura“, como descomplica o historiador Carlos Eugênio Líbano. Pastinha reafirmou a capoeira angola, e Bimba criou, nos anos 30, a capoeira regional, que incorporou elementos de outras lutas. A capoeira foi deixando as festas de largo para ser praticada em academias, atraindo a juventude classe-média. Bimba abriu a sua em 1932, e Pastinha, em 1941. Apesar do legado inegável, Pastinha e Bimba morreram desprestigiados. ”Pastinha vivia no Abrigo D. Pedro II. Um dia, recebi a ligação dizendo que ele tinha morrido e que seria enterrado como indigente. Fui fazer o enterro, não tinha um aluno dele lá. Hoje, não sei onde estão seus restos mortais“, conta mestre Itapuã. Bimba ficou desapontado com a falta de reconhecimento e apoio na Bahia e mudou-se para Goiás, com convite para trabalhar numa universidade. A promessa não vingou e Bimba morreu um ano depois. Nani, neta de João Pequeno, reclama uma aposentadoria para o avô: ”De que adianta ele ter tantos títulos se não pode ter uma boa condição de vida?“ No ano passado, a capoeira foi reconhecida como patrimônio cultural brasileiro. DeacordocomCarlosAmorim,superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional na Bahia, deve ser criado um plano de previdência especial para os mestres. ”Acredito que até o final do ano o projeto esteja concluído“. «