Carybé

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Família do artista realiza primeiro projeto para efetivar o instituto que irá preservar sua obra

CARYBÉ EM CASA

DOMINGO, 24 DE MAIO DE 2009 #60 REVISTA SEMANAL DO GRUPO A TARDE

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O lugar de

Carybé Exposição no MAM comemora os 70 anos da chegada do artista à Bahia e marca o início das atividades do Instituto Carybé Texto TATIANA MENDONÇA tmendonca@grupoatarde.com.br Fotos REJANE CARNEIRO rcarneiro@grupoatarde.com.br

P

or mais de dez anos, as tintas estão misturadas no prato de louça. Acabaram secas, iam virar aquarela. Mas para além dos nossos planos mundanos, mesmo que sejam artísticos, sublimes, quase divinos de tão mágicos, há o que acontece. “Está tudo como ele deixou. Não mexi em nada”, conta Nancy Bernabó, 84, viúva de Hector. Mas nem ela o chama assim. Também das lembranças dos filhos e netos, o nome que vem à tona é Carybé, como Hector Julio Paride Bernabó ficou reconhecido. O prato, as tintas, pincéis, o tudo – que são quadros, livros, esculturas de diversos países do mundo, gravuras, escritos guardados, flechas, retratos em preto-e-branco – estão no ateliê do artista. Na porta, pa-

lha-da-costa, como as que ficam na entrada de locais sagrados. Ali, onde Carybé passava o dia trabalhando, estão Nancy, Solange, 55, sua filha, e os netos Gabriel, 37, e Iara, 30, reunidos para falar à Muito sobre o Instituto Carybé, que criaram para levar adiante o nome e a obra do artista. O baiano Carybé, que por acidente nasceu na Argentina, é daqueles que têm uma lista quase infinita de coisas que fez. Foi desenhista, gravador, pintor, ceramista, escultor, historiador, jornalista, pesquisador, escritor. Uma vida carnuda como as mulatas que gostava de pintar. Uma pequena parte da sua produção, estimada em cerca de cinco mil obras, está exposta no Museu de Arte Moderna da Bahia, que até o dia 31 mostra mais de 200 trabalhos de Carybé.


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Gabriel, Nancy, Solange e Iara Bernabó, no ateliê de Carybé


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ARQUIVO PESSOAL

A exposição é o primeiro passo do instituto, que começou a ser gestado logo depois da morte do artista, em 1997. Os primeirosanospassaram-senaindefiniçãode que formato a organização iria ter. Muitas reuniões depois, decidiu-se criar um instituto. O estatuto já está pronto, e a expectativa é que ganhe o título de Oscip (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público). “Queremos fazer uma coisa bemfeita. Mas tudo exige dinheiro, e até agora só recebemos promessas”, diz Nancy.

VISITAS A TARDAR

Carybé e a mulher Nancy no quintal da casa do artista, em Brotas

A ideia é que a casa número 9 da Rua Medeiros Neto, no Jardim Boa Vista, em Brotas, onde o artista vivia com a família e onde está seu ateliê, fique aberta à visitação do público. Mas isso ainda leva tempo. Antesdevemserabertosoateliêeoquintal da casa (ele passava tanto tempo cuidando das plantas que, se alguém perguntasse a Gabriel o que o avô fazia, ele diria: “Meu avô é plantor”). Para isso, será preciso catalogar os objetos espalhados pelo estúdio. “Pensamos em visitas agendadas, com poucas pessoas e com um guia para acompanhá-las”, diz Solange. A catalogação e visitação devem ser viabilizadaspeloprojetoEstúdioCarybé,aprovado pela Lei Rouanet. O valor autorizado para captação é de pouco mais de R$ 360 mil. Por enquanto, nenhuma empresa apoia diretamente o instituto. Outra etapa posterior é a elaboração do catálogo raisonné do artista, reunindo todas as suas obras. O catálogo também servirá para inibir as falsificações que volta e meia aparecem, como a que em 2006 foi oferecida justamente a uma delegada. “Sempre pode surgir uma obra desconhecida, mas aí o instituto servirá de referência para compradores”, atesta Solange. Cerca de 50 pessoas estão envolvidas


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Ramiro Bernabó, filho mais velho de Carybé, e as esculturas que faz no galpão onde trabalha, em Patamares

hoje com o Instituto Carybé, entre familiares, amigos e interessados em ver a obra do baiano-argentino preservada. Quem está um pouco afastado é Ramiro Bernabó,62,filhodeCarybé,tambémeleartista. Ramiro atribui a distância ao fato de morar longe, em Patamares. “Minha irmã acabou tomando a frente. Meu pai tem uma obra muito boa, tem muitos desenhos inéditos, esboços de murais... Vai ser bom as pessoas conhecerem isso”. Ramiro faz grandes esculturas em madeiraeoutrasmenores,emcerâmica.Quase nunca expõe. Fez questão de construir uma carreira paralela à do pai. “Filho de artista não sabe bem o que representa. Meu pai é que representou muito. Mas não sei se essa é uma ideia burra. Os filhos buscam ser originais, mas isso também é difícil”.

AQUI E ACOLÁ Hector nasceu em 1911, na Argentina, mas passou boa parte da infância na Itália. Depois veio com a família (a mãe era brasileira) morar no Rio de Janeiro. O Carybé tomou emprestado do tempo em que era

escoteiro.Seugrupotinhaonomedopeixe da Amazônia. Passou a adotá-lo para se diferenciar do irmão, outro Bernabó artista. Aos19,quandojáestavanaEscoladeBelas Artes, voltou para a Argentina. Lá trabalhava em jornais e com publicidade. Tocou pandeiro para acompanhar Carmem Miranda, quando leu Jubiabá encasquetou que tinha de conhecer a Bahia, para ver quanto Jorge Amado tinha inventado. Foi mais ou menos nessa época que o jornal El Pregón o chamou para um emprego dos sonhos: viajar e do mundo mandar textos e desenhos. Salvador estava no roteiro. Carybé ficou encantado. Quando foi aos Correios buscar o salário, encontrou uma carta do irmão dizendo que a publicação havia falido, que ele se virasse. Passou seis meses vivendo da ajuda da gente do povo, a quem depois retribuiu com plena devoção. “Voltava, depois de seis meses de gostoso miserê, com os desenhos e aquarelas de minha primeira exposição individual e com a certeza de que meu lugar, como pintor, era na Bahia”, o artista deixou registrado.

Voltou de vez em 1950, por pura obstinação. Estava morando no Rio, convidado por Carlos Lacerda para integrar a equipe da Tribuna da Imprensa. Mas, como bem lembra Nancy, detestava o trabalho no jornal. Achava que a redação o roubava da pintura. Certo estava. Uma carta do amigo escritor Rubem Braga chegou a Anísio Teixeira, então secretário de Educação, falando da urgência de se “recuperar para a Bahia esse extraordinário argentino de alma baiana”, com “altas relações entre malandros e tocadores de viola”. Anísio leu a carta com Carybé à frente, como conta o livro Carybé, um capeta cheio de arte, de José Barreto e Otto Freitas. O educador logo o convidou para fazer um mural para a Escola Parque, em Caixa D’Água. Trouxe uma imagem para o artista reproduzir. Pois Carybé mesmo tinha feito o original, imagine só. O mural Panorâmica de Salvador ainda está na escola, carecendo de restauração. Pois disso tudo sabendo, fique atento às datas das telas expostas no MAM. Repare como Carybé mudou sua forma de pintar.


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O estúdio de Carybé terá objetos catalogados e será aberto à visitação

Aqui chegado, os quadros foram ganhando cores, luz, movimento, bom humor. Os traços das formas das gentes tornam-se mais delicados, para que aqui se pudesse andar como quem dança. “Era um tributo à Bahiaoqueelefazia.Diziaqueatéoazuldo céu daqui era outro”, conta Nancy. Além das telas mostrando a vida do povo, estão no museu um grande painel com orixás entalhados em madeira, murais, esculturas, cadernos de desenhos, ilustrações de livros (como as que fez para Cem Anos de Solidão, ligando a Bahia a Macondo) e até uma sala “proibida para menores” com os gracejos libertinos com que presenteava amigos. Em outra sala, que tem a curadoria de Iara, sua neta, estão os desenhos que fez para cenários e figurinos de filmes e peças de teatro. Ela ficou surpreendida com a quantidade de material que encontrou no ateliê do avô. Nos desenhos do figurino para o balé Gabriela Cravo e Canela, de 1983, rabiscou: “Alguma cena de Gabriela de soutien e calcinha brancos, contra muro branco, de modo que o corpo pareça cortado”. “Ele tinha essa percepção”, diz.

A ROTA Mas o que Carybé gostava mesmo era de fazer mural, para todo mundo ver. Quandoumajudanteparavaoserviçopara perguntar-lhe o que era aquilo, aí Carybé sabia que estava indo bem. Muitos desses murais estão espalhados por Salvador. Para que as pessoas os reconheçam, o instituto teve com o MAM a ideia de criar uma Rota Carybé, que desde o dia 19 percorre a cidade mostrando obras do artista. A rota foi definida por Antônio Benedito Bonfim, Bené, amigo de Carybé e museólogo, que passou 46 anos acompanhando o artista. Com a rota, Solange pretende que se reconheça a importância de preservar essas


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Antônio Bonfim, o Bené, tem centenas de histórias para contar de Carybé (e uma parede cheia de quadros do artista)

obras. “Outro dia, fui convidada pela síndica de um prédio a ir para o aniversário de um mural de meu pai que tem lá. Mas tambémjáteveocasodeoutrosíndicoquesimplesmente pintou toda a obra de cinza”. Como a rota do MAM inclui alguns locais de acesso privado (como prédios empresariais e residenciais), convidamos Bené para definir uma rota pública, com passe livre aos murais e painéis minuciosos de Carybé. Das obras mostradas no nosso roteiro (veja nas próximas páginas), muitas passaram por alterações (como a escultura

que fica na frente do Iguatemi e perdeu a pedra original que lhe dava sustentação) e precisam de restauração (como os já citados murais da Escola Parque). De Carybé, Bené guarda mais que boas lembranças. O artista deu gravuras e quadros para o amigo. Alguns, ele não titubeia, já teve de vender. “Tive de me desfazer de dois trabalhos dele”. Ainda assim, a parede da sua sala é recoberta por Carybés. “Era incrível como com dois traços ele fechava um desenho. Não tinha esse que não gostasse dele”.

Apesar de assumidamente boa-vida, Carybé era, principalmente, um trabalhador. Acordava às 6, às 7 já estava no ateliê, onde passava o dia. Quando cansava, levava os filhos, depois os netos, para tomar sorvete, comer beiju, passear na feira ou visitar a “roça”, o Ilê Axé Opô Afonjá, onde morreu. Teve um enfarte aos 86 anos, pouco depois de terminada a reunião dos Obás de Xangô, ele que também era ministro. Antes, ainda teve tempo de gracejar a morte: “Puta que pariu, me fodi”. Como Quincas Berro d’Água, foi-se ficando aqui.


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EXPOSIÇÃO CARYBÉ. Até 31 de maio, no Museu de Arte Moderna da Bahia (de terça a domingo, das 13 às 19h, e sábado, das 13h às 21h). A rota do MAM começa


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