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SALVADOR DOMINGO 12/2/2012
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#202 / DOMINGO, 12 DE FEVEREIRO DE 2012 REVISTA SEMANAL DO GRUPO A TARDE
MILTON MOURA COMIDA ENERGÉTICA MÁSCARAS
Pipoca
MO DER
NA IBBI
Grandes estrelas baixam as cordas e tocam para o folião com o apoio de poderosos patrocínios
KEKA ALMEIDA MEXICANO «
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QUE BLOCO
É ESTE? Texto TATIANA MENDONÇA tmendonca@grupoatarde.com.br Ilustrações BRUNO AZIZ baziz@grupoatarde.com.br
Q
uem vem de longe com olhos estrangeiros há de se espantar com as faixas azuis que se estendem por certas ruas de Salvador, solenemente ignoradas por motoristas e pedestres. Só no Carnaval ganham sentido, mostrando como a lógica da segregação increveu-se na cidade. Por ali devem passar os cordeiros que separam os pagantes da pipoca, mas há esperanças de que não seja para sempre (só) assim. Este ano, por variadas razões, artistas famosos e endinheirados resolveram baixarascordasetocarindistintamenteparao “povão”. Na quinta, 16, abrindo o Carnaval, o Chiclete com Banana apresenta-se de graça. No domingo, é a vez da Timbalada e
de Carlinhos Brown, seguidos por Tuca Fernandes, na segunda, e pela Banda Eva, na terça. Todos vão desfilar no Circuito Osmar, no Campo Grande, com o discurso de revitalizar o percurso tradicional da festa. O movimento foi iniciado no ano passado por Saulo Fernandes, vocalista da Banda Eva, numa ação promocional em comemoração aos 30 anos do bloco. A iniciativa deu tão certo que este ano ele repete a dose, além de ter inspirado os colegas e aqueles que comandam a festa. Os convites para que Carlinhos Brown, Timbalada e Tuca Fernandessaíssemsemcordaspartiramdiretamente da Saltur (Salvador Turismo), presidida por Cláudio Tinoco. Para dar uma visão “histórica” do processo,Tinococontaquedepoisdeanostentando fortalecer a Avenida com trios inde-
Chiclete e Timbalada resolveram baixar as cordas, graças a poderosos patrocínios. Daniela foi a pioneira, seguida por Brown e Saulo. A iniciativa sinaliza um novo modelo empresarial no Carnaval
pendentes sem “atrativos suficientes para trazer o folião de volta”, percebeu, com a Pipoca do Eva, que o importante era “apostar tudo” em grandes bandas. “Como esse movimento foi bacana, ajudou muito num fator que não depende da gente, que é a disposição e a motivação dos artistas”. Pelo acordo inicial, a prefeitura entra com a reserva de um bom lugar na fila de desfiles e cabe aos grupos buscar recursos para botar os trios na rua. A princípio, só o Chiclete com Banana tinha patrocínio garantido. A Skol armou uma pomposa coletiva de imprensa para anunciar o feito. O Trio Skol Folia foi alardeado como um “presente sensacional” para a cidade. Na praça Castro Alves, Bell Marques irá encontrar a banda dos filhos, a Oito7Nove4, para “resgatar” os antigos encontros
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É ESTE? Texto TATIANA MENDONÇA tmendonca@grupoatarde.com.br Ilustrações BRUNO AZIZ baziz@grupoatarde.com.br
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uem vem de longe com olhos estrangeiros há de se espantar com as faixas azuis que se estendem por certas ruas de Salvador, solenemente ignoradas por motoristas e pedestres. Só no Carnaval ganham sentido, mostrando como a lógica da segregação increveu-se na cidade. Por ali devem passar os cordeiros que separam os pagantes da pipoca, mas há esperanças de que não seja para sempre (só) assim. Este ano, por variadas razões, artistas famosos e endinheirados resolveram baixarascordasetocarindistintamenteparao “povão”. Na quinta, 16, abrindo o Carnaval, o Chiclete com Banana apresenta-se de graça. No domingo, é a vez da Timbalada e
de Carlinhos Brown, seguidos por Tuca Fernandes, na segunda, e pela Banda Eva, na terça. Todos vão desfilar no Circuito Osmar, no Campo Grande, com o discurso de revitalizar o percurso tradicional da festa. O movimento foi iniciado no ano passado por Saulo Fernandes, vocalista da Banda Eva, numa ação promocional em comemoração aos 30 anos do bloco. A iniciativa deu tão certo que este ano ele repete a dose, além de ter inspirado os colegas e aqueles que comandam a festa. Os convites para que Carlinhos Brown, Timbalada e Tuca Fernandessaíssemsemcordaspartiramdiretamente da Saltur (Salvador Turismo), presidida por Cláudio Tinoco. Para dar uma visão “histórica” do processo,Tinococontaquedepoisdeanostentando fortalecer a Avenida com trios inde-
Chiclete e Timbalada resolveram baixar as cordas, graças a poderosos patrocínios. Daniela foi a pioneira, seguida por Brown e Saulo. A iniciativa sinaliza um novo modelo empresarial no Carnaval
pendentes sem “atrativos suficientes para trazer o folião de volta”, percebeu, com a Pipoca do Eva, que o importante era “apostar tudo” em grandes bandas. “Como esse movimento foi bacana, ajudou muito num fator que não depende da gente, que é a disposição e a motivação dos artistas”. Pelo acordo inicial, a prefeitura entra com a reserva de um bom lugar na fila de desfiles e cabe aos grupos buscar recursos para botar os trios na rua. A princípio, só o Chiclete com Banana tinha patrocínio garantido. A Skol armou uma pomposa coletiva de imprensa para anunciar o feito. O Trio Skol Folia foi alardeado como um “presente sensacional” para a cidade. Na praça Castro Alves, Bell Marques irá encontrar a banda dos filhos, a Oito7Nove4, para “resgatar” os antigos encontros
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de trio. No evento, Bell parecia mais emocionado com a possibilidade de tocar com os rebentos do que com o arriamento das cordas. “Esse encontro vai ser um momento único na história da música baiana”, disse, emendando que por via das dúvidas iria levar um médico para a Avenida. Desde 1991, o Chiclete com Banana está à frente do Bloco Camaleão, o mais caro do Carnaval baiano – neste ano, o abadá custaR$840porumúnicodia.Detodomodo, não será a primeira vez que o Chiclete sairá sem cordas no Carnaval. Bell garante que a história da banda é “baseada em tocar para o povo”. “Quando a gente chegava na Casa de Itália, sempre baixava as cordas e ficava tocando para o povão. O que acontece é que o Carnaval cresceu tanto que se a gente fosse fazer isso hoje, só ia acabar no outro dia de manhã”, ri. “Agora vai ser um delírio total”. Uma semana depois da coletiva, a Skol anunciou, por e-mail, que o cantor Tuca Fernandes, que pela primeira vez em sua carreira desfilará sem cordas, também será patrocinado pela marca de cerveja. O valor pago para dar os tais presentes não foi revelado, apesar da nossa insistência, mas pode fortalecer um incipiente modelo de negócio carnavalesco – o dos trios independentes, com artistas consagrados, que
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saem bancados por grandes marcas. Nesse sentido, o caso de Daniela Mercury é emblemático. A artista sai pelo menos um dia sem cordas desde o Carnaval de 1999. Este ano, prepara-se para seu 14º desfile independente. Em entrevista a Muito, contou que pagou caro pelo pioneirismo. “Os departamentos de marketing das empresas não estavam habituados a esse tipodepatrocínio.Muitasvezes,saíapenas pagando os custos, sem receber cachê. Nunca desisti porque acho fundamental dar essa opção para quem não pode ou não quer sair em bloco”.
ÓPERA E PIANO NO TRIO Nos últimos anos, Daniela conseguiu um patrocinador “fiel” para bancar o seu trio sem cordas, mas ainda é difícil fechar todas as contas, justamente porque “a maioria das marcas prefere se associar às classes médias dos blocos do que ao povão”. Apesar dos percalços, ela segue animandosuapipocaeénotrioindependente que mais ousa. Foi neste palco democrático que levou a música eletrônica e até um piano de cauda para o Carnaval. Este ano,
ela promete encenar uma Ópera Popular em cima do caminhão. A cantora está animada com a iminência de mais artistas juntando-se a causa. “Acho maravilhoso, porque é uma forma de oferecer às pessoas um espetáculo completamente livre. Ouvi muito que os empresários tinham medo de sair sem cordas e com isso reduzir a venda dos abadás. No meu caso, o público do Crocodilo nunca abandonou o bloco. Acho que era mais um mito do que um risco concreto. Talvez isso esteja mais claro para o mercado agora”. Outro artista que defende os trios independentes com um discurso político contundente é Carlinhos Brown. Em 2006, numa madrugada de Carnaval, ele passou em frente ao camarote do então ministro Gilberto Gil, e pediu providências para acabar com o “apartheid escroto” da festa. No ano seguinte, declarou à agência Reuters que as cordas eram “desnecessárias” e traziam “resquícios de navio negreiro”.
Desde 1994, Brown sai sem cordas no Arrastão da Quarta-feira de Cinzas e em 2003 deu vida ao Camarote Andante, mas, assim como Daniela, enfrenta percalços para botar os trios na rua. “Existem patrocinadores e apoiadores que chegam no Carnaval com a estratégia clara de associar a marca com iniciativas independentes, mais populares. Infelizmente, ainda são poucos com esse pensamento”.
CORDAS, SÓ AS VOCAIS Apesar da declaração de que as cordas eram “desnecessárias”, a Timbalada, criada por Brown em 1992, continua a desfilar como um bloco de trio, do mesmo modo que Daniela Mercury persiste como atração do Bloco Crocodilo, apesar de já ter espalhado outdoors pela cidade exaltando que “cordas, só as vocais”. O ‘radicalismo’ parece ser, nesse momento, uma opção
econômica ainda inexeqüível. “Se colocarmos no papel todo o custo de produção para sair nas ruas, o projeto fica quase inviável. Tudo triplica no Carnaval: aluguel de trio ou manutenção, cachês, engenharia de som...”, explica Brown. André Silveira, um dos sócios do bloco Eva, junta-se ao coro. “Infelizmente, é impossível fazer todos os dias sem cordas”. Ele admite que assim seria até menos trabalhosoemaisprazeroso,porqueo“maior problema” é justamente coordenar a operação que envolve os cordeiros. “Eles não são funcionários nossos, é um trabalho muito difícil... Mas é o modelo que ainda consegue viabilizar as atrações. Qual é a outra opção? É patrocínio ou poder público. Não acho que dinheiro público deva ser gasto dessa maneira, não tem sentido. Os
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patrocínios cresceram com a maior visibilidade do Carnaval, mas ainda não cobrem todos os custos”. No ano passado, a Pipoca do Eva desfilou com os mesmos patrocinadores do bloco, mas a renda gerada pela venda dos abadás não foi coberto pelas empresas. “Não conseguimos esse plus. Para este ano, fizemos um projeto específico para a terça-feira e acho que vamos conseguir captar, porque a repercussão foi muito boa”. Ele se apressa a dizer, no entanto, que a ideia não é ganhar dinheiro. “Se fosse para pensar na parte financeira, o mais fácil seria manter o bloco. A grande campanha do Eva é o fortalecimento da Avenida, que é o coração do Carnaval. Tomamos a decisão de diminuir uma pequena parte da receita e graças a Deus estamos sendo seguidos por outros grupos”. O empresário Joaquim Nery, um dos sócios fundadores do Camaleão e diretor da Central do Carnaval, que comercializa 26 blocos e 11 camarotes, estava presente na coletiva da Skol que anunciou a saída do Chiclete para o povão, mas tratou a iniciativa como algo pontual. ”O Carnaval é plural. Essa possibilidade é um reforço que en-
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de trio. No evento, Bell parecia mais emocionado com a possibilidade de tocar com os rebentos do que com o arriamento das cordas. “Esse encontro vai ser um momento único na história da música baiana”, disse, emendando que por via das dúvidas iria levar um médico para a Avenida. Desde 1991, o Chiclete com Banana está à frente do Bloco Camaleão, o mais caro do Carnaval baiano – neste ano, o abadá custaR$840porumúnicodia.Detodomodo, não será a primeira vez que o Chiclete sairá sem cordas no Carnaval. Bell garante que a história da banda é “baseada em tocar para o povo”. “Quando a gente chegava na Casa de Itália, sempre baixava as cordas e ficava tocando para o povão. O que acontece é que o Carnaval cresceu tanto que se a gente fosse fazer isso hoje, só ia acabar no outro dia de manhã”, ri. “Agora vai ser um delírio total”. Uma semana depois da coletiva, a Skol anunciou, por e-mail, que o cantor Tuca Fernandes, que pela primeira vez em sua carreira desfilará sem cordas, também será patrocinado pela marca de cerveja. O valor pago para dar os tais presentes não foi revelado, apesar da nossa insistência, mas pode fortalecer um incipiente modelo de negócio carnavalesco – o dos trios independentes, com artistas consagrados, que
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saem bancados por grandes marcas. Nesse sentido, o caso de Daniela Mercury é emblemático. A artista sai pelo menos um dia sem cordas desde o Carnaval de 1999. Este ano, prepara-se para seu 14º desfile independente. Em entrevista a Muito, contou que pagou caro pelo pioneirismo. “Os departamentos de marketing das empresas não estavam habituados a esse tipodepatrocínio.Muitasvezes,saíapenas pagando os custos, sem receber cachê. Nunca desisti porque acho fundamental dar essa opção para quem não pode ou não quer sair em bloco”.
ÓPERA E PIANO NO TRIO Nos últimos anos, Daniela conseguiu um patrocinador “fiel” para bancar o seu trio sem cordas, mas ainda é difícil fechar todas as contas, justamente porque “a maioria das marcas prefere se associar às classes médias dos blocos do que ao povão”. Apesar dos percalços, ela segue animandosuapipocaeénotrioindependente que mais ousa. Foi neste palco democrático que levou a música eletrônica e até um piano de cauda para o Carnaval. Este ano,
ela promete encenar uma Ópera Popular em cima do caminhão. A cantora está animada com a iminência de mais artistas juntando-se a causa. “Acho maravilhoso, porque é uma forma de oferecer às pessoas um espetáculo completamente livre. Ouvi muito que os empresários tinham medo de sair sem cordas e com isso reduzir a venda dos abadás. No meu caso, o público do Crocodilo nunca abandonou o bloco. Acho que era mais um mito do que um risco concreto. Talvez isso esteja mais claro para o mercado agora”. Outro artista que defende os trios independentes com um discurso político contundente é Carlinhos Brown. Em 2006, numa madrugada de Carnaval, ele passou em frente ao camarote do então ministro Gilberto Gil, e pediu providências para acabar com o “apartheid escroto” da festa. No ano seguinte, declarou à agência Reuters que as cordas eram “desnecessárias” e traziam “resquícios de navio negreiro”.
Desde 1994, Brown sai sem cordas no Arrastão da Quarta-feira de Cinzas e em 2003 deu vida ao Camarote Andante, mas, assim como Daniela, enfrenta percalços para botar os trios na rua. “Existem patrocinadores e apoiadores que chegam no Carnaval com a estratégia clara de associar a marca com iniciativas independentes, mais populares. Infelizmente, ainda são poucos com esse pensamento”.
CORDAS, SÓ AS VOCAIS Apesar da declaração de que as cordas eram “desnecessárias”, a Timbalada, criada por Brown em 1992, continua a desfilar como um bloco de trio, do mesmo modo que Daniela Mercury persiste como atração do Bloco Crocodilo, apesar de já ter espalhado outdoors pela cidade exaltando que “cordas, só as vocais”. O ‘radicalismo’ parece ser, nesse momento, uma opção
econômica ainda inexeqüível. “Se colocarmos no papel todo o custo de produção para sair nas ruas, o projeto fica quase inviável. Tudo triplica no Carnaval: aluguel de trio ou manutenção, cachês, engenharia de som...”, explica Brown. André Silveira, um dos sócios do bloco Eva, junta-se ao coro. “Infelizmente, é impossível fazer todos os dias sem cordas”. Ele admite que assim seria até menos trabalhosoemaisprazeroso,porqueo“maior problema” é justamente coordenar a operação que envolve os cordeiros. “Eles não são funcionários nossos, é um trabalho muito difícil... Mas é o modelo que ainda consegue viabilizar as atrações. Qual é a outra opção? É patrocínio ou poder público. Não acho que dinheiro público deva ser gasto dessa maneira, não tem sentido. Os
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patrocínios cresceram com a maior visibilidade do Carnaval, mas ainda não cobrem todos os custos”. No ano passado, a Pipoca do Eva desfilou com os mesmos patrocinadores do bloco, mas a renda gerada pela venda dos abadás não foi coberto pelas empresas. “Não conseguimos esse plus. Para este ano, fizemos um projeto específico para a terça-feira e acho que vamos conseguir captar, porque a repercussão foi muito boa”. Ele se apressa a dizer, no entanto, que a ideia não é ganhar dinheiro. “Se fosse para pensar na parte financeira, o mais fácil seria manter o bloco. A grande campanha do Eva é o fortalecimento da Avenida, que é o coração do Carnaval. Tomamos a decisão de diminuir uma pequena parte da receita e graças a Deus estamos sendo seguidos por outros grupos”. O empresário Joaquim Nery, um dos sócios fundadores do Camaleão e diretor da Central do Carnaval, que comercializa 26 blocos e 11 camarotes, estava presente na coletiva da Skol que anunciou a saída do Chiclete para o povão, mas tratou a iniciativa como algo pontual. ”O Carnaval é plural. Essa possibilidade é um reforço que en-
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grandece a festa, mas não significa que as cordas vão acabar, porque para isso seria preciso um investimento muito grande por parte dos patrocinadores. Nos grandes blocos, os abadás representam de 50 a 60% do faturamento”.
CORDÃO DE BATUCADA Aos puristas e adjacentes, eis uma informação um tanto desalentadora. O Carnaval da Bahia sempre teve cordas. Mas se elas eram antes um elemento agregador, transformaram-se, nas últimas décadas, em símbolo da segregação. O professor Paulo Miguez, que estuda a festa há quase 20 anos, atesta que as cordas não são uma invenção do mercado. “O cordão era exatamente um grande bloco, uma batucada que cresceu muito, se organizou, e para o desfile você punha a corda, justamente para garantir alguma uniformidade”. Até mesmo os blocos com espírito co-
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munitário, que juntavam vizinhos de um mesmo bairro, tinham corda. Com o surgimento dos grandes blocos, como Os Internacionais, de 1962, é que elas se transformaram no esteio que separa pagantes de não pagantes. “O problema não é exatamenteacorda,masoqueelaproduzcom o significado que tem hoje”. A notícia de que grandes estrelas vão desfilar sem cordas é bem recebida por Miguez, mas com algumas importantes ressalvas. Para ele, a questão central é reorganizar a lógica dos desfiles. “O Carnaval é a mais importante manifestação do patrimônio imaterial da cultura baiana e, desgraçadamente, vem sendo cuidado como se fora apenas um fato de mercado. A ordem da fila obedece exclusivamente a interesses empresariais, que empurram para determinados horários verdadeiros monumentos, como os afoxés e o Trio Elétrico de Armandinho, Dodô e Osmar”. E não vá lhe falar dessa história de que saem primeiro os blocos mais antigos,
mesmo porque alguém ainda acredita nisso? “É uma mentira, um desrespeito. Se fosse assim, quem desfilaria primeiro seria oMudançadoGarcia,queédosanos1930, e, depois, o Filhos de Gandhy, que é de 1949”. Para o professor, bonito seria o dia em que critérios culturais ditassem a ordem da fila, e aí poderíamos ver os blocos de trio, os blocos afro, os afoxés, os trios independentes e os blocos de travestidos revezando-se na Avenida. “Uma das perversidades que esse mercado desregulado provocou é o empobrecimento plástico da festa”. O que, em última instância, prejudica até mesmo o negócio. “Não se pode ter nada contra o Carnaval ter produzido um grande mercado, mas o mercado tem que estar subordinado ao Carnaval, e não o contrário. Do mesmo modo, as grandes estrelasprecisamentenderquefoioCarnaval que os fez grandes, não foram eles que fizeramdoCarnavalumagrandefesta.Essas inversões precisam ser enfrentadas com governança democrática e transparente”. Nessepontodaconversa,éinevitávelfa-
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«As grandes estrelas precisam entender que foi o Carnaval que os fez grandes, não foram eles que fizeram do Carnaval uma grande festa» Paulo Miguez, historiador
lar do Conselho Municipal do Carnaval, que, na visão de Miguez, é “uma farsa”. “O Conselho é formado por uma série de instituições que nem existem mais. Não tem legitimidade para organizar a festa”. Em outubro do ano passado, o Carnaval de Salvador foi lançado em São Paulo (!) para jornalistas e patrocinadores. Na ocasião, o prefeito João Henrique declarou que seria “inimaginável” intervir no modelo da festa por ela ser “espontânea”. “Ela aconteceria sozinha, sem o poder público”, disse ao Terra Magazine. Miguez rebate: “Não há nada que tenha um grau de espontaneidade que impeça a prefeitura de disciplinar. O prefeito há alguns anos fez um apelo aos artistas para que não abandonassem o circuito do Campo Grande. Quem determina onde os blocos vão sair? É o mercado ou ele, que tem mandato público para tomar conta do espaço?” Mas se estamos na mão do mercado, pode-se pensar num modelo de negócio mais democrático? “Tem uma coisa genial nisso tudo, o Carnaval é uma festa com uma capacidade de produzir soluções impressionante. Tá na medida inversa da incompetência dos gestores que cuidam dela. Sempre foi assim. O trio elétrico foi um meio que o povo da Bahia encontrou para produzir alegria. Esse projeto dos trios sem corda é interessante, mas não sei como vai experimentar desdobramentos. A lógica dos blocos é muito forte”. A pesquisa Carnaval 2010: Comporta-
mento dos Residentes de Salvador na Festa e suas Práticas Culturais, divulgada no ano passado pela Secretaria Estadual de Cultura, mostrou que a maioria dos soteropolitanos (77,9%) não tirou o pé de casa para ir brincar Carnaval. O dado é próximo ao registrado nas edições anteriores do estudo: 79,1% em 2008 e 77,0% em 2009. Dos que vão até os circuitos, a maioria (58,9%) é folião pipoca. Só 15,6% saem em blocos de trio e 11% vão para camarotes.
O MANUAL DO JACU Haviaumblocoquenãotinhacordaporque tinha coração. Esse era o singelo slogandoJacu,criadoem1964.Ocompositor e poeta Walter Queiroz era um dos responsáveis por dar-lhe alma. “Era uma equação muito simples. Não tinha nada de melhor nem pior, apenas não separava. O que a gente prezava era justamente o pé no chão. Todo mundo igual”. O Jacu desfilou por impagáveis 20 anos. Acabou porque os espaços diminuíram e o barulho que vinha dos trios venceu os sopros da bandinha que animava os foliões. Insistente, Walter ainda ajudou a criar o Chegando Bonito – Associação Etílica, Sentimental e Carnavalesca, que sobreviveu por 18 anos. Por ter memória e por ser um apaixonado pelo Carnaval de Salvador, ele reclama, e muito, do modelo que a festa assumiu. Mas vê saída se três condições forem cumpridas. Abre aspas: 1. Que o povo de Salvador proteste
quantoàagressãoqueessemodelodeCarnaval comete contra a cidade. 2. Que o Ministério Público do Trabalho atue para acabar com absurdos como a instituição dos cordeiros, que ferem o direito administrativo quando são guindados à condição de parapoliciais. 3.Queopoderpúblicotomeconsciência de que não pode continuar concordando com a usurpação do espaço público pelos blocos de trio, que transformaram o Carnaval de Salvador num balcão de negócios para a auferição de lucros, com o lamentável apoio de artistas outrora compromissados com a causa popular. “Vai ser caco para todo lado, mas essa é minha obrigação moral”, diz, indo de um lado a outro da sala do seu apartamento. ParaWalter,omodeloatualdoCarnaval fortalece o “rancor social” e “liquida os valores eternos da folia”, como a música, a cordialidade, a fantasia, a diversidade. “Tudo isso fez do Carnaval de Salvador o maior do mundo. Hoje está falido. É uma festa feita para turistas entediados. Agora, vejo quase como numa bola de cristal que mais cedo ou mais tarde os blocos vão encontrar pra eles um lugar num sambódromo, brincar com seus próprios umbigos e deixar o Carnaval em paz”. Para levar a frente seu intento, Walter escreveu um “utópico e poético” manifesto: Carnaval sem corda, você concorda? / Corda não é cordial / Acorda, acorda Bahia / A corda nos separa em pleno Carnaval «
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grandece a festa, mas não significa que as cordas vão acabar, porque para isso seria preciso um investimento muito grande por parte dos patrocinadores. Nos grandes blocos, os abadás representam de 50 a 60% do faturamento”.
CORDÃO DE BATUCADA Aos puristas e adjacentes, eis uma informação um tanto desalentadora. O Carnaval da Bahia sempre teve cordas. Mas se elas eram antes um elemento agregador, transformaram-se, nas últimas décadas, em símbolo da segregação. O professor Paulo Miguez, que estuda a festa há quase 20 anos, atesta que as cordas não são uma invenção do mercado. “O cordão era exatamente um grande bloco, uma batucada que cresceu muito, se organizou, e para o desfile você punha a corda, justamente para garantir alguma uniformidade”. Até mesmo os blocos com espírito co-
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munitário, que juntavam vizinhos de um mesmo bairro, tinham corda. Com o surgimento dos grandes blocos, como Os Internacionais, de 1962, é que elas se transformaram no esteio que separa pagantes de não pagantes. “O problema não é exatamenteacorda,masoqueelaproduzcom o significado que tem hoje”. A notícia de que grandes estrelas vão desfilar sem cordas é bem recebida por Miguez, mas com algumas importantes ressalvas. Para ele, a questão central é reorganizar a lógica dos desfiles. “O Carnaval é a mais importante manifestação do patrimônio imaterial da cultura baiana e, desgraçadamente, vem sendo cuidado como se fora apenas um fato de mercado. A ordem da fila obedece exclusivamente a interesses empresariais, que empurram para determinados horários verdadeiros monumentos, como os afoxés e o Trio Elétrico de Armandinho, Dodô e Osmar”. E não vá lhe falar dessa história de que saem primeiro os blocos mais antigos,
mesmo porque alguém ainda acredita nisso? “É uma mentira, um desrespeito. Se fosse assim, quem desfilaria primeiro seria oMudançadoGarcia,queédosanos1930, e, depois, o Filhos de Gandhy, que é de 1949”. Para o professor, bonito seria o dia em que critérios culturais ditassem a ordem da fila, e aí poderíamos ver os blocos de trio, os blocos afro, os afoxés, os trios independentes e os blocos de travestidos revezando-se na Avenida. “Uma das perversidades que esse mercado desregulado provocou é o empobrecimento plástico da festa”. O que, em última instância, prejudica até mesmo o negócio. “Não se pode ter nada contra o Carnaval ter produzido um grande mercado, mas o mercado tem que estar subordinado ao Carnaval, e não o contrário. Do mesmo modo, as grandes estrelasprecisamentenderquefoioCarnaval que os fez grandes, não foram eles que fizeramdoCarnavalumagrandefesta.Essas inversões precisam ser enfrentadas com governança democrática e transparente”. Nessepontodaconversa,éinevitávelfa-
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«As grandes estrelas precisam entender que foi o Carnaval que os fez grandes, não foram eles que fizeram do Carnaval uma grande festa» Paulo Miguez, historiador
lar do Conselho Municipal do Carnaval, que, na visão de Miguez, é “uma farsa”. “O Conselho é formado por uma série de instituições que nem existem mais. Não tem legitimidade para organizar a festa”. Em outubro do ano passado, o Carnaval de Salvador foi lançado em São Paulo (!) para jornalistas e patrocinadores. Na ocasião, o prefeito João Henrique declarou que seria “inimaginável” intervir no modelo da festa por ela ser “espontânea”. “Ela aconteceria sozinha, sem o poder público”, disse ao Terra Magazine. Miguez rebate: “Não há nada que tenha um grau de espontaneidade que impeça a prefeitura de disciplinar. O prefeito há alguns anos fez um apelo aos artistas para que não abandonassem o circuito do Campo Grande. Quem determina onde os blocos vão sair? É o mercado ou ele, que tem mandato público para tomar conta do espaço?” Mas se estamos na mão do mercado, pode-se pensar num modelo de negócio mais democrático? “Tem uma coisa genial nisso tudo, o Carnaval é uma festa com uma capacidade de produzir soluções impressionante. Tá na medida inversa da incompetência dos gestores que cuidam dela. Sempre foi assim. O trio elétrico foi um meio que o povo da Bahia encontrou para produzir alegria. Esse projeto dos trios sem corda é interessante, mas não sei como vai experimentar desdobramentos. A lógica dos blocos é muito forte”. A pesquisa Carnaval 2010: Comporta-
mento dos Residentes de Salvador na Festa e suas Práticas Culturais, divulgada no ano passado pela Secretaria Estadual de Cultura, mostrou que a maioria dos soteropolitanos (77,9%) não tirou o pé de casa para ir brincar Carnaval. O dado é próximo ao registrado nas edições anteriores do estudo: 79,1% em 2008 e 77,0% em 2009. Dos que vão até os circuitos, a maioria (58,9%) é folião pipoca. Só 15,6% saem em blocos de trio e 11% vão para camarotes.
O MANUAL DO JACU Haviaumblocoquenãotinhacordaporque tinha coração. Esse era o singelo slogandoJacu,criadoem1964.Ocompositor e poeta Walter Queiroz era um dos responsáveis por dar-lhe alma. “Era uma equação muito simples. Não tinha nada de melhor nem pior, apenas não separava. O que a gente prezava era justamente o pé no chão. Todo mundo igual”. O Jacu desfilou por impagáveis 20 anos. Acabou porque os espaços diminuíram e o barulho que vinha dos trios venceu os sopros da bandinha que animava os foliões. Insistente, Walter ainda ajudou a criar o Chegando Bonito – Associação Etílica, Sentimental e Carnavalesca, que sobreviveu por 18 anos. Por ter memória e por ser um apaixonado pelo Carnaval de Salvador, ele reclama, e muito, do modelo que a festa assumiu. Mas vê saída se três condições forem cumpridas. Abre aspas: 1. Que o povo de Salvador proteste
quantoàagressãoqueessemodelodeCarnaval comete contra a cidade. 2. Que o Ministério Público do Trabalho atue para acabar com absurdos como a instituição dos cordeiros, que ferem o direito administrativo quando são guindados à condição de parapoliciais. 3.Queopoderpúblicotomeconsciência de que não pode continuar concordando com a usurpação do espaço público pelos blocos de trio, que transformaram o Carnaval de Salvador num balcão de negócios para a auferição de lucros, com o lamentável apoio de artistas outrora compromissados com a causa popular. “Vai ser caco para todo lado, mas essa é minha obrigação moral”, diz, indo de um lado a outro da sala do seu apartamento. ParaWalter,omodeloatualdoCarnaval fortalece o “rancor social” e “liquida os valores eternos da folia”, como a música, a cordialidade, a fantasia, a diversidade. “Tudo isso fez do Carnaval de Salvador o maior do mundo. Hoje está falido. É uma festa feita para turistas entediados. Agora, vejo quase como numa bola de cristal que mais cedo ou mais tarde os blocos vão encontrar pra eles um lugar num sambódromo, brincar com seus próprios umbigos e deixar o Carnaval em paz”. Para levar a frente seu intento, Walter escreveu um “utópico e poético” manifesto: Carnaval sem corda, você concorda? / Corda não é cordial / Acorda, acorda Bahia / A corda nos separa em pleno Carnaval «