Vínculo eterno

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SALVADOR DOMINGO 10/5/2015

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#361 / DOMINGO, 10 DE MAIO DE 2015 REVISTA SEMANAL DO GRUPO A TARDE

MARCELO SANT’ANA COZINHA AFETIVA

Vínculo

ETERNO Para mães viciadas em drogas, a maternidade se traduz em desafios e na esperança de reconstruir a vida

COTIDIANO JUREMA PAES «


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No abandono das ruas, viciadas em crack vivenciam a experiência da maternidade, muitas vezes, como uma segunda chance para reconstruir a vida e a dignidade. Lidam, porém, com a realidade de um país que ainda não desenvolveu nenhum programa capaz de atender sistematicamente essas mães e suas crianças Texto TATIANA MENDONÇA tatianam@gmail.com Fotos FERNANDO VIVAS vivasf@gmail.com

V

ítor* aninha-se no colo daquela mulher, brinca com seus dedos, puxa o seu rosto,fazbarulhos,querdescer, desce, quer subir, sobe de novo. Joseane Santana, 24, está ali sentada falando dele, mas Vítor, 2, não sabe e não se interessa. Puxa sua blusa, protesta para mamar, mama, enfim sossega. Ela já tem quatro filhos, mas está sendo mãe pela primeira vez. “Tive vontade de cuidar desse agora para saber como era. Antes, paria e dava”. Joseaneeraaindaumamenina,tinhasó 13 anos, quando foi morar na rua, fugida da casa da mãe, que era usuária de drogas. Não encomprida os motivos. Estando por sua conta, “jogada”, como diz, começou a usar crack. Passava três, quatro dias sem dormir, seguindo uma fissura atrás da outra, até que capotava exausta na casa da tia, onde tomava banho e via o que conseguia roubar. Com o tempo, foi rareando

QUANDO

FILHOS

TRAZEM

À LUZ

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No abandono das ruas, viciadas em crack vivenciam a experiência da maternidade, muitas vezes, como uma segunda chance para reconstruir a vida e a dignidade. Lidam, porém, com a realidade de um país que ainda não desenvolveu nenhum programa capaz de atender sistematicamente essas mães e suas crianças Texto TATIANA MENDONÇA tatianam@gmail.com Fotos FERNANDO VIVAS vivasf@gmail.com

V

ítor* aninha-se no colo daquela mulher, brinca com seus dedos, puxa o seu rosto,fazbarulhos,querdescer, desce, quer subir, sobe de novo. Joseane Santana, 24, está ali sentada falando dele, mas Vítor, 2, não sabe e não se interessa. Puxa sua blusa, protesta para mamar, mama, enfim sossega. Ela já tem quatro filhos, mas está sendo mãe pela primeira vez. “Tive vontade de cuidar desse agora para saber como era. Antes, paria e dava”. Joseaneeraaindaumamenina,tinhasó 13 anos, quando foi morar na rua, fugida da casa da mãe, que era usuária de drogas. Não encomprida os motivos. Estando por sua conta, “jogada”, como diz, começou a usar crack. Passava três, quatro dias sem dormir, seguindo uma fissura atrás da outra, até que capotava exausta na casa da tia, onde tomava banho e via o que conseguia roubar. Com o tempo, foi rareando

QUANDO

FILHOS

TRAZEM

À LUZ

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as visitas e passou a trocar o corpo franzino por dinheiro e o dinheiro pelas pedras. Quando ficou grávida pela primeira vez, ela continuou usando crack como se nada estivesse acontecendo. Não fez exame nenhum, nem sabia direito o que era pré-natal. Depois que o menino nasceu, lembra que quis amamentá-lo, mas a tia não deixou, achando que seu leite poderia prejudicar o bebê. Joseane esperou só o tempo de “fechar os pontos” para voltar para a rua, sozinha, como se essa história de instinto materno fosse coisa inventada. A abstenção da droga, urgente, dolorosa, agia feito guia cego. Foi assim por uma, duas, três vezes. Quando parava para pensar nos filhos, encontrava calma sabendo que seus dois meninos e uma menina estavam seguros com a tia. Foram seus conselhos, sobreviventes em meio à descrença generalizada, que fizeram com que Joseane resolvesse se tratar. E principalmente Vítor, que ela ainda não conhecia de vista, mas que estava já crescido na sua barriga, na beira de vir ao mundo. Numa sexta-feira, ela saiu dizendo que ia se internar, e foi. Bateu no portão da comunidade terapêutica Harmonia, em Feira de Santana, e na segunda-feira Vítor nasceu. Os dois estão lá até hoje. “Acho até estranha a pessoa que eu era. Tô nova, bonita. Decidi que não quero mais voltar para aquela vida”. Você já deve ter ouvido falar como são frágeis as políticas para atender usuários de drogas, mas quando a maternidade entra em cena, a situação é ainda mais dramática. A comunidade onde Joseane mora é uma das raras na Bahia a oferecer abrigo para mulheres dependentes químicas e seus filhos pequenos. A situação extrapola os limites do estado. O Brasil ainda não desenvolveu nenhum programa capaz de atender sistematicamente essas mães e

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«Durante o processo de adoção, realizamos um curso preparando as pessoas para as possíveis dificuldades de saúde que essas crianças poderão ter, não basta querer um filho» Walter Costa Junior, juiz

suas crianças, apesar de já ter feito um diagnóstico da gravidade do caso: uma pesquisa nacional sobre uso do crack, financiada pelo Ministério da Justiça e divulgadanoanopassado,revelouque46%das mulheres que usam a droga já ficaram grávidas por quatro ou mais vezes.

LEGIÃO Há quase duas décadas, quando o crack chegou com força às principais capitais do país, uma legião de meninos cresce longe das mães que os pariram, em famílias estendidas, formadas por avós e tios, ou em lares adotivos. Nos casos em que a distância não é física, o vínculo materno mantém-se ao preço de crianças vivendo em condições precárias, rondadas pela negligênciaepelaviolência.Eestamosnisso,como se a única saída fosse pesar qual o menor dos males. Outro dia, Suzane dos Santos, 23, saiu corrida de um viaduto na Graça, onde mo-

rava, porque não queria que a “prefeitura” tomasse dela seu bebê de três meses. Quando engravidou, ela tentou tirar o menino, achava que não tinha como viver com elenarua,mas,agoraqueoconheceu,não pensa que é certo que alguém além dela fique com ele. É o seu filho. Os dois vivem no Centro Histórico, longe do pai de Diego, que está preso. Uma espuma coberta com um lençol serve de berço para o menino. Suzane diz que, depois que ele nasceu, parou de usar crack, que consumia há mais de dois anos. Nascida em Valença, Suzane mora nas ruas de Salvador há sete anos. Fugiu de casa porque não queria servir de saco de pancada para o padrasto. Largou a escola na sétima série, conheceu um “pessoal”, veio para a capital a passeio. Ficou. Ganha um dinheiro ou outro vendendo material reciclado. Enquanto nina Diego, toda hora aparece um para dizer que é pai do menino. Suzane responde rindo. Mas para o fi-

lho diz mais. “Eu desejo que ele nunca vá viver o que eu vivo agora. Que estude e depois venha me ajudar”.

AMBULATÓRIO Quando uma mulher grávida usa crack, é como se estivesse dividindo a pedra com o bebê. “O percentual de droga encontrado no líquido amniótico é apenas 15% abaixo do nível encontrado no sangue materno”, explica a médica Mônica Neri, que dirige a Maternidade Climério de Oliveira. Por estar localizada em Nazaré, o hospital acaba recebendo muitas gestantes do Centro Histórico que são usuárias. Ainda não foi realizada nenhuma pesquisa para saber quanto elas são, de fato, mas Mônica acredita que possam chegar a até 30 mulheres por ano. Por isso, há um projeto para criar um ambulatório para dar atenção especializada a essas pacientes. O consumo de crack está associado a uma série de riscos já bem conhecidos pela

literatura médica. A mãe tem mais chances de abortar e de ter descolamento prematuro da placenta e os bebês podem nascer prematuros, ter baixo peso e alterações neurológicas. Após o parto, crises de abstinência não tardam a acometer às mulheres e seus recém-nascidos. Enquanto elas se tornam agressivas no ambulatório, os nenês choram irritados no berçário, com o coração miúdo batendo mais rápido do que deveria. Há quem saia da maternidade levando o filho para casa; há quem fuja só, antes da alta, para consumir a droga; há quem volte ao hospital uma penca de meses depois, novamente grávida. “A gente nota que essas pacientes se repetem. Já são conhecidas de outras gestações”, conta o médico José Luiz Brandão, chefe de gestão do cuidado da Climério de Oliveira. “Há que se investir no planejamento reprodutivo e na atenção à questão da dependência química”, defende. Para proteger os recém-nascidos abandonados nos hospitais – e também para atender ao desejo de mães que queiram entregá-los para adoção –, o juiz Walter Costa Junior, da 1ª Vara da Infância e Juventude de Salvador, encaminhou em julho do ano passado um ofício às maternidades determinando que esses casos sejam imediatamente comunicados ao juizado, e não mais aos conselhos tutelares ou aos abrigos. Quando o serviço social do hospital ou do juizado não consegue

Mulheres cuidam dos filhos enquanto fazem tratamento contra a dependência em Feira de Santana


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as visitas e passou a trocar o corpo franzino por dinheiro e o dinheiro pelas pedras. Quando ficou grávida pela primeira vez, ela continuou usando crack como se nada estivesse acontecendo. Não fez exame nenhum, nem sabia direito o que era pré-natal. Depois que o menino nasceu, lembra que quis amamentá-lo, mas a tia não deixou, achando que seu leite poderia prejudicar o bebê. Joseane esperou só o tempo de “fechar os pontos” para voltar para a rua, sozinha, como se essa história de instinto materno fosse coisa inventada. A abstenção da droga, urgente, dolorosa, agia feito guia cego. Foi assim por uma, duas, três vezes. Quando parava para pensar nos filhos, encontrava calma sabendo que seus dois meninos e uma menina estavam seguros com a tia. Foram seus conselhos, sobreviventes em meio à descrença generalizada, que fizeram com que Joseane resolvesse se tratar. E principalmente Vítor, que ela ainda não conhecia de vista, mas que estava já crescido na sua barriga, na beira de vir ao mundo. Numa sexta-feira, ela saiu dizendo que ia se internar, e foi. Bateu no portão da comunidade terapêutica Harmonia, em Feira de Santana, e na segunda-feira Vítor nasceu. Os dois estão lá até hoje. “Acho até estranha a pessoa que eu era. Tô nova, bonita. Decidi que não quero mais voltar para aquela vida”. Você já deve ter ouvido falar como são frágeis as políticas para atender usuários de drogas, mas quando a maternidade entra em cena, a situação é ainda mais dramática. A comunidade onde Joseane mora é uma das raras na Bahia a oferecer abrigo para mulheres dependentes químicas e seus filhos pequenos. A situação extrapola os limites do estado. O Brasil ainda não desenvolveu nenhum programa capaz de atender sistematicamente essas mães e

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«Durante o processo de adoção, realizamos um curso preparando as pessoas para as possíveis dificuldades de saúde que essas crianças poderão ter, não basta querer um filho» Walter Costa Junior, juiz

suas crianças, apesar de já ter feito um diagnóstico da gravidade do caso: uma pesquisa nacional sobre uso do crack, financiada pelo Ministério da Justiça e divulgadanoanopassado,revelouque46%das mulheres que usam a droga já ficaram grávidas por quatro ou mais vezes.

LEGIÃO Há quase duas décadas, quando o crack chegou com força às principais capitais do país, uma legião de meninos cresce longe das mães que os pariram, em famílias estendidas, formadas por avós e tios, ou em lares adotivos. Nos casos em que a distância não é física, o vínculo materno mantém-se ao preço de crianças vivendo em condições precárias, rondadas pela negligênciaepelaviolência.Eestamosnisso,como se a única saída fosse pesar qual o menor dos males. Outro dia, Suzane dos Santos, 23, saiu corrida de um viaduto na Graça, onde mo-

rava, porque não queria que a “prefeitura” tomasse dela seu bebê de três meses. Quando engravidou, ela tentou tirar o menino, achava que não tinha como viver com elenarua,mas,agoraqueoconheceu,não pensa que é certo que alguém além dela fique com ele. É o seu filho. Os dois vivem no Centro Histórico, longe do pai de Diego, que está preso. Uma espuma coberta com um lençol serve de berço para o menino. Suzane diz que, depois que ele nasceu, parou de usar crack, que consumia há mais de dois anos. Nascida em Valença, Suzane mora nas ruas de Salvador há sete anos. Fugiu de casa porque não queria servir de saco de pancada para o padrasto. Largou a escola na sétima série, conheceu um “pessoal”, veio para a capital a passeio. Ficou. Ganha um dinheiro ou outro vendendo material reciclado. Enquanto nina Diego, toda hora aparece um para dizer que é pai do menino. Suzane responde rindo. Mas para o fi-

lho diz mais. “Eu desejo que ele nunca vá viver o que eu vivo agora. Que estude e depois venha me ajudar”.

AMBULATÓRIO Quando uma mulher grávida usa crack, é como se estivesse dividindo a pedra com o bebê. “O percentual de droga encontrado no líquido amniótico é apenas 15% abaixo do nível encontrado no sangue materno”, explica a médica Mônica Neri, que dirige a Maternidade Climério de Oliveira. Por estar localizada em Nazaré, o hospital acaba recebendo muitas gestantes do Centro Histórico que são usuárias. Ainda não foi realizada nenhuma pesquisa para saber quanto elas são, de fato, mas Mônica acredita que possam chegar a até 30 mulheres por ano. Por isso, há um projeto para criar um ambulatório para dar atenção especializada a essas pacientes. O consumo de crack está associado a uma série de riscos já bem conhecidos pela

literatura médica. A mãe tem mais chances de abortar e de ter descolamento prematuro da placenta e os bebês podem nascer prematuros, ter baixo peso e alterações neurológicas. Após o parto, crises de abstinência não tardam a acometer às mulheres e seus recém-nascidos. Enquanto elas se tornam agressivas no ambulatório, os nenês choram irritados no berçário, com o coração miúdo batendo mais rápido do que deveria. Há quem saia da maternidade levando o filho para casa; há quem fuja só, antes da alta, para consumir a droga; há quem volte ao hospital uma penca de meses depois, novamente grávida. “A gente nota que essas pacientes se repetem. Já são conhecidas de outras gestações”, conta o médico José Luiz Brandão, chefe de gestão do cuidado da Climério de Oliveira. “Há que se investir no planejamento reprodutivo e na atenção à questão da dependência química”, defende. Para proteger os recém-nascidos abandonados nos hospitais – e também para atender ao desejo de mães que queiram entregá-los para adoção –, o juiz Walter Costa Junior, da 1ª Vara da Infância e Juventude de Salvador, encaminhou em julho do ano passado um ofício às maternidades determinando que esses casos sejam imediatamente comunicados ao juizado, e não mais aos conselhos tutelares ou aos abrigos. Quando o serviço social do hospital ou do juizado não consegue

Mulheres cuidam dos filhos enquanto fazem tratamento contra a dependência em Feira de Santana


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encontrar a mãe ou parentes que possam ficar com esses bebês, eles passam a figurar no Cadastro Nacional de Adoção. Walter estima que cerca de 70% das crianças adotadas em Salvador – cerca de 35 por ano – são filhas de usuários de drogas. Ele conta que antes havia muita resistência dos novos pais em aceitar meninos e meninas com esse perfil, por conta dos distúrbios que eles pudessem apresentar no futuro, como hiperatividade e deficiências cognitivas, mas garante que essa situação está mudando. “Durante o processo de adoção, nós realizamos um curso preparando as pessoas para as possíveis dificuldades de relacionamento ou de saúde que essas crianças poderão ter, mas mostramos também que não basta querer um filho. É preciso desenvolver o sentimento de pertencimento, de família. Se um filho natural apresentasse um problema, você não teria que ajudá-lo? É igual”.

PROGRAMA BAIANO Numa noite chuvosa no fim de abril, Kelly Silva, vinte e poucos anos, fumava crack em frente a uma igreja do Comércio. Grávida de seis meses, reparou quando um médico se aproximava dizendo que ela precisava ir ao hospital, porque estava perdendo líquido amniótico. Entrava em trabalhodeparto,masnãopareciasedarconta da situação. Outras pessoas insistiram para que Kelly interrompesse o uso e entrasse na ambulância, mas ela não cedeu. Quem conta essa história é a antropóloga Luana Malheiro, que engrossava o coro dos que tentavam, em vão, convencê-la. Ela participa da equipe de redução de danos do programa estadual Corra para o Abraço,queatendeusuáriosdedrogasque vivem nas ruas. O projeto, operacionalizado pela ONG Cria (Centro de Referência Integral de Adolescentes), foi criado há dois

anos como uma via alternativa à polêmica política de internação compulsória adotada por São Paulo e Rio de Janeiro em 2013. O programa baiano orienta-sepelo respeito ao desejo dosusuários. Portanto, ninguém ali levou Kelly à força até a maternidade, apesar dos riscos que ela e o bebê corriam. “A gente optou por respeitar o tempo dela, mas continuamos insistindo para que procure por um serviço de saúde. É um quadro muito complicado, porque, além do uso nocivo de crack, ela tem tuberculose, sífilis e HIV”, diz Luana. Kelly foi morar na rua ainda criança, aos 9 anos, depois de ser estuprada pelo padrasto. Consome crack desde então. Para comprar a droga, ela se prostitui, e já perdeu as contas de quantas vezes foi violentada. A história multiplica-se pelas vielas brasileiras. Mais da metade das usuárias de crack troca sexo por dinheiro (55%), e um percentual assustador (46%) afirma que já sofreu violência sexual. Num cenário tão degradante, a reação imediata e distante é achar que Kelly não tem muitos meios de ficar com seu bebê, e que o melhor seria afastá-lo dela. “De algum modo, é como se essas mulheres não tivessem direito nem à maternidade”, protesta Luana. Para ela, que também não dorme tranquila imaginando uma criança dividindo no futuro aquela escadaria fria, há de haver mais compaixão. “Hoje nós Luana Malheiro, antropóloga não temos nenhuma proposta que atenda

«Hoje não temos nenhuma proposta que atenda usuárias grávidas. A gente precisa pensar em como vamos tirar essas pessoas da rua»

usuárias grávidas. A gente precisa pensar em como nós vamos tirar essas pessoas da rua, mesmo. Essa é a política ideal. Que elas se afastem das cenas de uso e que possam ir para abrigos que não se assemelhem a prisões”.

ABRAÇO O Corre para o Abraço tem dois pontos fixos de atuação: o terminal do Aquidabã e a praça Tiradentes, mais conhecida como Praça das Mãos, no Comércio. Todos os dias, ao cair da tarde, a equipe do programa reúne-se com os usuários para oferecer serviços de saúde, orientação jurídica e oficinas de arte, como música e capoeira, que costumam ser acompanhadas por 40 pessoas. Eles são cumprimentados pelos agentes olho no olho, com apertos de mão e abraços, e por aquele tempo que for não são mais um incômodo, não são mais invisíveis. No caso dos usuários mais resistentes aos cuidados, o jeito é ir

21

MATERNIDADE E CRACK

Pesquisa realizada no ano passado pela Fiocruz mostra um retrato cruel da vida de jovens viciadas no Nordeste O Brasil tem cerca de

370 mil usuários de crack. 150 mil, no Nordeste A maioria deles,

Os homens são maioria absoluta – 79% – entre os consumidores da droga Ao contrário do que se imagina, o tempo médio de uso de crack é de

8 anos

com consumo de cerca de 16 pedras por dia. As mulheres usam mais: 21 pedras Entre as usuárias, a maioria é

negra 78% fundamental 80%18 eensino 24 anos estudaram só até o

e têm entre Cerca de 45% delas vivem

nas ruas e trocam sexo por dinheiro (55%)

Elas não costumam usar preservativo nas relações sexuais (70%) e

muitas já sofreram violência sexual MÃES E FILHOS

46%

Cerca de 46% das mulheres que usam crack contaram que já ficaram grávidas por quatro ou mais vezes. Por complicações associadas ao consumo da droga, metade delas apresentou ao menos

uma gestação que não evoluiu

até o fim ou que resultou em

feto natimorto

49%

FONTE: Pesquisa nacional sobre o uso de crack, 2014 (ICICT-Fiocruz)


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encontrar a mãe ou parentes que possam ficar com esses bebês, eles passam a figurar no Cadastro Nacional de Adoção. Walter estima que cerca de 70% das crianças adotadas em Salvador – cerca de 35 por ano – são filhas de usuários de drogas. Ele conta que antes havia muita resistência dos novos pais em aceitar meninos e meninas com esse perfil, por conta dos distúrbios que eles pudessem apresentar no futuro, como hiperatividade e deficiências cognitivas, mas garante que essa situação está mudando. “Durante o processo de adoção, nós realizamos um curso preparando as pessoas para as possíveis dificuldades de relacionamento ou de saúde que essas crianças poderão ter, mas mostramos também que não basta querer um filho. É preciso desenvolver o sentimento de pertencimento, de família. Se um filho natural apresentasse um problema, você não teria que ajudá-lo? É igual”.

PROGRAMA BAIANO Numa noite chuvosa no fim de abril, Kelly Silva, vinte e poucos anos, fumava crack em frente a uma igreja do Comércio. Grávida de seis meses, reparou quando um médico se aproximava dizendo que ela precisava ir ao hospital, porque estava perdendo líquido amniótico. Entrava em trabalhodeparto,masnãopareciasedarconta da situação. Outras pessoas insistiram para que Kelly interrompesse o uso e entrasse na ambulância, mas ela não cedeu. Quem conta essa história é a antropóloga Luana Malheiro, que engrossava o coro dos que tentavam, em vão, convencê-la. Ela participa da equipe de redução de danos do programa estadual Corra para o Abraço,queatendeusuáriosdedrogasque vivem nas ruas. O projeto, operacionalizado pela ONG Cria (Centro de Referência Integral de Adolescentes), foi criado há dois

anos como uma via alternativa à polêmica política de internação compulsória adotada por São Paulo e Rio de Janeiro em 2013. O programa baiano orienta-sepelo respeito ao desejo dosusuários. Portanto, ninguém ali levou Kelly à força até a maternidade, apesar dos riscos que ela e o bebê corriam. “A gente optou por respeitar o tempo dela, mas continuamos insistindo para que procure por um serviço de saúde. É um quadro muito complicado, porque, além do uso nocivo de crack, ela tem tuberculose, sífilis e HIV”, diz Luana. Kelly foi morar na rua ainda criança, aos 9 anos, depois de ser estuprada pelo padrasto. Consome crack desde então. Para comprar a droga, ela se prostitui, e já perdeu as contas de quantas vezes foi violentada. A história multiplica-se pelas vielas brasileiras. Mais da metade das usuárias de crack troca sexo por dinheiro (55%), e um percentual assustador (46%) afirma que já sofreu violência sexual. Num cenário tão degradante, a reação imediata e distante é achar que Kelly não tem muitos meios de ficar com seu bebê, e que o melhor seria afastá-lo dela. “De algum modo, é como se essas mulheres não tivessem direito nem à maternidade”, protesta Luana. Para ela, que também não dorme tranquila imaginando uma criança dividindo no futuro aquela escadaria fria, há de haver mais compaixão. “Hoje nós Luana Malheiro, antropóloga não temos nenhuma proposta que atenda

«Hoje não temos nenhuma proposta que atenda usuárias grávidas. A gente precisa pensar em como vamos tirar essas pessoas da rua»

usuárias grávidas. A gente precisa pensar em como nós vamos tirar essas pessoas da rua, mesmo. Essa é a política ideal. Que elas se afastem das cenas de uso e que possam ir para abrigos que não se assemelhem a prisões”.

ABRAÇO O Corre para o Abraço tem dois pontos fixos de atuação: o terminal do Aquidabã e a praça Tiradentes, mais conhecida como Praça das Mãos, no Comércio. Todos os dias, ao cair da tarde, a equipe do programa reúne-se com os usuários para oferecer serviços de saúde, orientação jurídica e oficinas de arte, como música e capoeira, que costumam ser acompanhadas por 40 pessoas. Eles são cumprimentados pelos agentes olho no olho, com apertos de mão e abraços, e por aquele tempo que for não são mais um incômodo, não são mais invisíveis. No caso dos usuários mais resistentes aos cuidados, o jeito é ir

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MATERNIDADE E CRACK

Pesquisa realizada no ano passado pela Fiocruz mostra um retrato cruel da vida de jovens viciadas no Nordeste O Brasil tem cerca de

370 mil usuários de crack. 150 mil, no Nordeste A maioria deles,

Os homens são maioria absoluta – 79% – entre os consumidores da droga Ao contrário do que se imagina, o tempo médio de uso de crack é de

8 anos

com consumo de cerca de 16 pedras por dia. As mulheres usam mais: 21 pedras Entre as usuárias, a maioria é

negra 78% fundamental 80%18 eensino 24 anos estudaram só até o

e têm entre Cerca de 45% delas vivem

nas ruas e trocam sexo por dinheiro (55%)

Elas não costumam usar preservativo nas relações sexuais (70%) e

muitas já sofreram violência sexual MÃES E FILHOS

46%

Cerca de 46% das mulheres que usam crack contaram que já ficaram grávidas por quatro ou mais vezes. Por complicações associadas ao consumo da droga, metade delas apresentou ao menos

uma gestação que não evoluiu

até o fim ou que resultou em

feto natimorto

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FONTE: Pesquisa nacional sobre o uso de crack, 2014 (ICICT-Fiocruz)


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até eles. Equipes de redução de danos também visitam dependentes no Gravatá e em outros locais do Centro Histórico. A socióloga Jamile Carvalho está no projeto desde o começo e supervisiona as atividades de campo. Para ela, a rede de atenção a usuários ainda está engatinhando. “Atuamos num processo de convencimento para que eles acessem os serviços de cuidado e abrigamento, mas, muitas vezes, dá até vergonha, porque há falta de equipamentos. É frustrante”. Ela reclama que os abrigos da capital estão superlotados e que os centros de atenção psicossocial (Caps) são insuficientes para atender à demanda. Consultor da Secretária Municipal de Saúde, Antônio Nery concorda, mas diz que há perspectiva de melhoras. “Há um plano de expansão que prevê a criação de três Caps, em Itapuã, Boca do Rio e Subúrbio Ferroviário”. Hoje, segundo ele, apenas três Caps atendem aos

usuários na cidade, nos bairros de Pirajá, Pernambués e Terreiro de Jesus. Enquanto a expansão não acontece, o caminho mais recorrente tem sido encaminhar os dependentes para instituições religiosas. O Lar Pérolas de Cristo, no subúrbio ferroviário, é o único em Salvador a abrigar grávidas e mulheres com filhos. Enquanto não arruma um lugar para ir, Daiane Oliveira, 29, segue morando na rua. A magreza e a blusa escondem a barriga onde carrega o quarto filho. Ela acha que está com dois meses, mas é possível que tenha mais. “Engravidei sem pretender. Com essa situação financeira, como é que eu vou criar essa criança? Acho que vou dar,nãosei...”.Seusoutrosmeninosde10, 8 e 3 anos estão espalhados pela casa do pai, da vizinha, da avó. De vez em quando, ela aparece para uma visita. “Crente afastada”, Daiane espera por um milagre. Ou uma mudança terrena, que seja. «

«A gente atua num processo de convencimento para que eles acessem os serviços de cuidado, mas, muitas vezes, é frustrante» Jamile Carvalho, socióloga

*Para preservar as fontes, os nomes das usuárias e de seus filhos são fictícios.

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