Christian Cravo

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REVISTA SEMANAL DO JORNAL A TARDE. NÃO PODE SER VENDIDA SEPARADAMENTE

Sacatar, a residência artística da Ilha de Itaparica A dualidade na moda de Soudam & Kavesky A onda do Temaki, o fast-food japonês

Christian herda o talento do avô escultor e do pai fotógrafo

TERCEIRO CRAVO

DOMINGO 20 DE ABRIL DE 2008 #3

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O herdeiro d

O talento, o sobrenome e a arrogância de Christian Cravo, 33, filho do também fotógrafo Mario Cravo Neto, que faz 61 anos hoje, e neto do escultor Mario Cravo, 85, fazem dele o terceiro nome desta geração de artistas baianos. Seguindo sua trajetória, este ano expõe na Argentina, Japão e Haiti


O

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Mario Cravo Neto com o filho Christian ainda criança: relação complicada

os Cravo

VICENTE SAMPAIO | DIVULGAÇÃO

Texto TATIANA MENDONÇA tmendonca@grupoatarde.com.br

prédio tem nome de museu, Louvre. No oitavo andar, moram o neto do escultor baiano Mario Cravo e o filho do fotógrafo Mario Cravo Neto. Os três artistas, os três famosos. Mas o também fotógrafo Christian Cravo, 33, seguiu seu próprio caminho até se tornar, como diz, um "self-made man". Ao lado da porta de entrada, que carrega a oração de proteção à família do Padre Marcelo Rossi, repousam um par de all star vermelho, um de sandália preta de salto e outro de sapatinho envernizado de boneca. As mesinhas da sala estão cheias de livros de fotografia. O salto é de sua mulher, Adriana, com quem é casado há cinco anos, e o sapatinho de boneca é da filha, Sophia, de 4. As janelas do apartamento estão sendo reformadas. "Estavam tão velhas que, quando ventava muito, tinha medo de que elas caíssem lá embaixo". Um homem chega para fazer o orçamento da rede de proteção, que está rasgada. "Tô tirando foto pra revista, mas não sou famoso não, viu, olha lá esse orçamento", diz, brincando sério. Dá para ver que ele estranha não estar do outro lado da câmera. Fica tímido, força sorriso feito criança emburrada, mas depois, abusado, sugere ângulos e pergunta se a fotógrafa não quer uma de suas lentes emprestadas. “Sou pedante mesmo... Cada dia mais". O que só deve aumentar com as exposições das quais participa este ano em Tóquio, Buenos Aires e Haiti. No Brasil, suas fotos poderão ser vistas no Conjunto Cultural da Caixa, de Brasília e São Paulo. Christian está interessado em descobrir a essência da fé para chegar à essência do homem. Pegou o caminho das águas quando foi fotografar a devoção seca do nordestino. Lá se vão oito anos entre Índia, Brasil e Haiti com o projeto Waters of Hope, Rivers of Tears (Águas da Esperança, Rios de Lágrimas). Para tocar o trabalho, com recursos próprios, viaja, em média, quatro vezes por ano. Em julho, vai para o Haiti,


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Auto-retrato do artista. Aos 33 anos, uma foto sua chega a custar R$ 5 mil


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onde deve passar dois meses. "É um projeto pessoal, não tenho pressa. Se ficar pronto em 2010, ótimo; se não, ótimo também. Livro de fotografia é caro de publicar, caro de comprar. Paga o condomínio, no máximo. É um portfólio de luxo". Ele já tem dois desses portfólios, Irredentos, de 2000, com as já citadas fotos da fé dos nordestinos, e Roma noire, Ville Métisse, lançado em 2005, em Paris, com fotos de Salvador. É Irredentos – obra favorita do avô Mario Cravo – que vai viajar para a Argentina, em agosto, e para o Japão, em novembro. No Brasil, exibe em junho Espírito Oculto, uma compilação de fotos sobrefé,religiãoeespírito."Ésobrequalquer coisa que não seja muito decifrável. Tem até foto da minha filha nascendo, saindo lá do útero da mãe, enfim." Apesar de investigar a fé e eternizar sua magia em preto e branco, ele não é religioso. "Acredito na força do homem de mover e sobreviver, não na fé doutrinária. Identifico-me com todas as religiões e com nenhuma ao mesmo tempo". Descendo o elevador, cumprimenta o novo morador, dá um alô ao porteiro. Em um relance, a revelação inesperada: "Sou o síndico daqui, estava tudo muito bagunçado". Para bancar seus projetos autorais, vira repórter fotográfico para revistas como Vogue e Trip, além de fazer fotos de publicidade e moda. "Sempre vi meu pai e meu avô como duas figuras indisciplinadas no contexto civil, em tudo, exceto no trabalho autoral deles. Quero exercitar o oposto. Vivo da venda das minhas fotografias autorais, mas não nego trabalho. Não quero virar uma pessoa reclusa como eles foram a vida inteira". Christian cresceu sem a companhia diáriadopaiedoavô.Aosquatroanos,deixou Salvador, onde nasceu, para viver em São

«Fui educado para achar que os Cravo estão acima do bem e do mal, que são os melhores» ARQUIVO PESSOAL

O único diploma de Christian vem do tempo do exército, na Dinamarca

Paulo, Estados Unidos e, por fim, Dinamarca, onde morou dos 10 aos 21, com a mãe, Eva Christensen, dinamarquesa. Todo ano vinha para Salvador passar férias, onde esquecia o frio e brincava no ateliê do avô. A lembrança mais remota e freqüente que Mario Cravo, 85, tem do neto é seu entusiasmo com um caixão de brinquedo, do qual pulava uma caveirinha. “Ele ficava na ponta dos pés, hipnotizado com essa figura”, disse. “Nunca imaginei que um dos meusnetosviesseasetornarartista.Ascoisas acontecem a despeito das nossas expectativas. Naturalmente, o convívio na atmosfera do ateliê estimula a confecção de objetos. Talvez por este caminho penetre a arte na alma do homem”. Mesmo nas férias, Christian via pouco o

pai. "No último dia, antes de a gente voltar para a Dinamarca, ele vinha correndo lá da casa dele, em Castelo Branco. 'Vim pegar vocês pra dar uma volta...'. Colocava minha irmã e eu no carro e ia pra loja de fotografia negociar. Era frustrante". Até hoje Christian e o pai não têm muito contato. Mario Cravo Neto diz que seus temperamentos são bastante diferentes, mas que as brigas entre pais e filhos são naturais. “Às vezes acontecem coisas intempestuosas, momentos de ternura, conflito e diálogo”. Para se aproximar do pai, Christian começou a mexer com fotografia. Era 1984, Mario Cravo Neto foi expor na Dinamarca, e Christian, com 10 anos, aproveitou para pedir um laboratório de presente. Em um papel, Mario Cravo anotou as instruções. "Toda hora, ligava pra ele 'Ah como é que faz isso, revelador, tal, e o papel...'. Foi um resgatedafigurapaterna".Opaicontaque deixou Christian livre e que não tem “mais nem menos prazer” pelo fato de ele ter escolhido a fotografia. “Mas me sinto feliz por ele ter dado continuidade a uma família de artistas”. Depois de se aproximar pela fotografia, o empenho foi para se distanciar do trabalho do pai. "Fui educado para achar que os Cravo estão acima do bem e do mal, que sãoosmelhores.Escolhimeucaminho,por acaso, a fotografia. Mas nossos trabalhos são completamente diferentes", diz. O crítico de fotografia Eder Chiodetto concorda. “A influência pode ter sido o apreço pelo rigor técnico, o foco em determinadas questões e a percepção de que a fotografia pode representar mais que o real cotidiano, pode ser a simbologia poética de um mundo paralelo, conectar o ser ao divino. Mas, na forma, são absolutamente distintos”. Christian optou pela fotografia docu-


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mental e diz lidar com o legado paterno sem problemas. "A maioria dos casos de família em que um segue a carreira do outro não dá certo. O pai faz uma coisa e o filho repete igualzinho, só faz piorar. Meu pai é um caso totalmente anormal. Ele não só foi tão bom quanto meu avô, mas talvez o tenha superado. Mas dentro do mesmo tema, que é a Bahia". E o que também o fez virar exceção? "Sorte e outros fatores. O fato de eu ter sido iluminado, de ser pedante, de só parar quandoconsigooquequero,deterumcerto equilíbrio em me auto-analisar".

ARTILHARIA PESADA O único diploma de Christian vem do tempo que passou no exército, na Dinamarca: observador de Artilharia Avançada. A experiência durou dois anos e não foi traumatizante. Ele até agradece pelo exercício da disciplina. "Hoje é fundamental. Não tem mais isso de vir um patrono da arte e descobrir o cara lá, semineardenthal, que vive na caverna dele, alheio a tudo". Com o dinheiro que ganhou no exército, Christian voltou para Salvador e comprou o primeiro apartamento, aos 22 anos. "Crescer na Dinamarca foi uma coisa muito chata. Quando voltei, ah, back to paradise, para o sol, para a praia". E, acima de tudo, para a luz. "Na Dinamarca, não conseguia me inspirar. E aqui essa luz tropical, as pessoas sem camisa... Foi um prato cheio". Fotografia, ele foi aprendendo na prática. "Sou autodidata. Meu pai nunca me ensinou nada diretamente". Pausa. "Não vou ser patético em dizer que não aprendi nada com ele, porque só a convivência já é um grande aprendizado". Mario Cravo Neto diz não “fiscalizar” o trabalho do filho, mas avalia que ele está fazendo “um bom caminho”. “Ele tem muito a ganhar e muito a perder, como qual-

quer um. Precisa seguir a própria intuição, o próprio caminho, sem ouvir conselho de ninguém. A opinião dos que estão de fora não importa. A arte é liberdade contínua de exercício criativo”. No começo, Christian pensou em arrumar outro emprego. "Foi muito difícil. Mas você vai plantando, e um dia colhe". Suas fotografiashojecustamentreR$500eR$5 mil. Das colheitas também fazem parte o prêmio da 2000 Mother Jones International Found for Documentary Photography, que ganhou em 1999, aos 25 anos. Esse é o segundo prêmio de fotografia mais importante do mundo, e ele levou como representante da América Latina. Em 2001, Christian virou bolsista do prestigiado museu Guggenheim de Nova

O fotógrafo morou com a mãe nos EUA, onde jogava futebol americano

ARQUIVO PESSOAL

«Baiano não gosta de trabalhar, é fato. E eles ainda se sentem ofendidos»

York, quando começou Waters of Hope. Para o crítico de fotografia Rubens Fernandes Filho, ele é um dos grandes novos talentos da fotografia brasileira. “Suas fotos têm alma, emoção e exigem um mergulho, um certo interesse para perceber as diferentes texturas e ações”, analisa. Chiodetto quer ver Christian explorando temas menos comportados. “Fotodocumentaristas devem ter a ambição de revelar aquilo que está oculto pelo preconceito, pelos jogos de poder. E claro, devem ser poetas. E poesia a golpes de luz e tons de cinza, o Christian já faz”. Espalhando a obsessão que tem pela fotografia, este ano ele vai dar aulas para 120 adolescentes do projeto Pracatum, no Candeal. "Ensinar é a coisa mais honrada do mundo, mas tem que querer aprender".

AH, BAHIA Mesmo morando em Salvador há 11 anos, Christian ainda não aprendeu a gostardacidade."Tenhoumarelaçãodeamor e ódio com a Bahia. Odeio o calor, odeio a falta de infra-estrutura". Ele conta que é brigado com muita gente. “Os fornecedores não me suportam. Meu trabalho vai para o mundo inteiro, e eu não tenho um fornecedor daqui. Aí você vai reclamar e vem o baiano... Baiano não gosta de trabalhar, é fato. E eles ainda se sentem ofendidos por você não aceitar a qualidade do trabalho que te oferecem". Por que continuar aqui, então? "No meu momento, casado, filho, é difícil. E tem o custo. Não sou tão famoso assim, nem tenho tanto dinheiro". Low-profile, não sai muito de casa para ver exposições ou ir a festas. "Tempo é uma coisa muito preciosa pra mim". Christian tinha 17 anos, estava vendo televisão quando ouviu a profecia do avô. "Quando


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Água e fé são temas do projeto Águas da Esperança.... Nas fotos, Índia e Haiti

Abaixo, a Bahia, tema caro aos Cravo, fotografada em Roma Noire...

você é jovem, tem tempo, mas não sabe como gastar. Quando você é velho, sabe como gastar, mas não tem tempo. Então você está num bico de sinuca". Christian nunca se esqueceu disso. E o tempo só foi diminuindo. Desde que Sophia nasceu, ele não põe os pés num cinema. "Não tenho mais vergonha de dizer isso porque um grande amigo, Sérgio Machado, disse a mesma coisa". No cinema, ficou mesmo nos bastidores. Fez as fotos de divulgação de Abril Despedaçado, de Walter Salles, e de Cidade Baixa, de Sérgio Machado. "Sou amigo de diretores, eles me pedem informações técnicas e sugestões de locações. Entendo tudo de máquina de cinema, poderia fazer um filme a qualquer momento, mas sou um solitário no meu trabalho”. Sérgio Machado, primeiro, conheceu as fotos; depois, Christian. “Tinha uma exposição dele na Alexandre Robatto, e eu e Waltinho (Walter Salles) ficamos encantados. Ele foi fazer ostill (making of) de Abril Despedaçado e fez fotos incríveis. Nunca tinha visto um still tão bem-feito”. A parceria seguiu com Cidade Baixa e deve continuar com o novo filme de Sérgio, Quincas Berro D'Água. Em abril eles vão viajar por Salvador e pelo Recôncavo, atrás de locações. Durante as quase duas horas de conversa, Christian respondeu tudo, sem hesitar. Menos quando chega a hora de saber que tipo de influência ele quer ser para a menina dos sapatos de boneca, a filha Sophia. "Quero que ela seja quem quiser ser. Mas vou mostrar que o mundo não é essa mesquinhez dapropaganda,do consumo,com gente que gasta dinheiro em um Audi e não dá R$ 1 para o menino do semáforo. Olha que paradoxo maluco". Enquanto não resolve o dilema do avô sobre o tempo – que ora falta, ora sobra – ele segue fotografando e aprisionando o agora «


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O mar em Roma Noire.... Abaixo, com a irmã, Lua, e o avô, Mário, num clique dele

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«Quero que meu trabalho fale por mim»

Em 1969, a escritora Clarice Lispector entrevistou o escultor baiano Mario Cravo Jr., então com 46 anos. A convite da Muito, Christian respondeu a algumas das perguntas feitas para o seu avô, recentemente publicadas no livro Clarice Lispector: Entrevistas. Confira:

Que parte do seu eu você transmite em ligação com o mundo? Não quero transmitir nenhuma parte do meu eu. Quero que meu trabalho fale por mim. Isso é possível? Na fotografia é. A fotografia é um diálogo. Eu vou pra um lugar, fotografo uma pessoa. É aquela pessoa que está falando alguma coisa, não eu. O fotógrafo só compõe. Não controlo quem vai passar na minha frente e qual vai ser a reação dela. A arte é uma expressão de duas vias. É a intenção do artista e a forma como o espectador recebe essa arte. E nunca bate igual. Você vive em contato com seus amigos, ou prefere uma vida mais isolada? Vou lhe confessar a pura verdade, sou uma pessoa mais reservada, sou mais familiar. Tenho pouquíssimos amigos. Meu amigo é meu assistente, pessoas próximas.

Com certeza. Agora que tipo de vida você quer levar? Você quer ter a vida de um starving artist, ou quer ter uma vida que, na verdade, é um jogo de interesses? Aí, são vários casos. Artistas de segundo escalão que se casam com o marchand banqueiro, e o marchand banqueiro inflaciona a obra da própria mulher, bota pra vender por US$ 300 mil. Aí não. Eu não nasci ontem. Então que tipo de vida você quer? Mas é economicamente viável. Eu já vivo do meu trabalho autoral. E metade dele é vendido no Brasil.

«Já vivo do meu trabalho autoral. E metade dele é vendido no Brasil» DIVULGAÇÃO

Você vende bem? Eu vendo bem. Faço-me convencer da minha idéia. Se meu avô disse que sim, está mentindo... Ou está fazendo tipo. Para sustento de vida, pode-se, no Brasil, viver apenas da arte?

A escritora Clarice Lispector, que entrevistou Mario Cravo Jr, em 1969

Se você não fotografasse, que outra arte serviria para você se manifestar? Seria jornalista. Qualquer forma de expressão é arte, e eu não acredito em jornalismo imparcial, é uma piada. Ou seria um escritor. Teria um posicionamento parecido com o que tenho como fotógrafo: ver pra escrever, sentir. Em que parte do mundo você moraria sem ser Salvador? São duas formas de responder a essa pergunta. Christian Cravo, o homem que está in loco fotografando, está onde tiver algo de interesse, pode ser onde for. Estou pensando em passar um ano na Índia; seria um crescimento muito importante. Como cidadão de uma metrópole, moraria somente em Nova York. Talvez Paris, mas a Europa sempre foi muito conservadora para a minha forma de pensar. Embora o americano seja aquele aborto de pensamento, aquela coisa retrógrada, preconceituosa, naquela massa eles têm jóias inigualáveis, que são cidades como Nova York, que é um berço de cultura, de intelectualidade, de vida. É o centro urbano mais completo. O americano de Nova York é progressista. Ele não quer saber de onde você veio, quer saber quem é você agora e para onde você quer ir. Não está preocupado com diploma. Na Europa, ou você é diplomado ou vai ter emprego de segundo escalão «

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Que é que faz de um homem um artista? É a vontade de viver. A curiosidade e a vontade de deixar alguma coisa, algum legado.


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