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SALVADOR DOMINGO 21/8/2011
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#177 / DOMINGO, 21 DE AGOSTO DE 2011 REVISTA SEMANAL DO GRUPO A TARDE
OLIVIER ANQUIER ECODESIGN FILHOS DE JOÃO
Doutora do
SAMBA Aos 83 anos, Dalva Damiana de Freitas, que reinventou o samba de roda no Recôncavo, ganhará título da UFRB
AS DELÍCIAS DO MATURI «
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Texto TATIANA MENDONÇA tmendonça@grupoatarde.com.br Foto FERNANDO VIVAS fvivas@grupoatarde.com.br
U Dona Dalva reinventou o samba de roda nas ruas
Tudo é
SAMBA Criadora do Samba de Roda Suerdick, fundado há 52 anos, Dalva Damiana de Freitas, 83, é compositora, cantora e sambista. Este ano, ela ganha o título de Doutora Honoris Causa pela Universidade Federal do Recôncavo
ma mulher se escora na porta, desse jeito de quem parece que não quer nada, só apreciar o tempo a passar. Ouvindo barulhos de dentro da casa, vira-se. “Ô, oi Doutora, como vai?”. Dalva Damiana de Freitas, 83, retribui educadamente a saudação, mas depois segreda em voz baixa: “Tá vendo assim? É tudo do dente pra fora”. Ela tomou o cumprimento por provocação porque sabe que sua conterrânea fazia referência ao título de Doutora Honoris Causa que a Universidade Federal do Recôncavo da Bahia pode lhe conceder em breve. No dia 14 de julho, a proposta foi aprovada por unanimidade peloCentrodeArtes,HumanidadeseLetras e segue agora para apreciação no ConselhoUniversitário.Seamaioriadosconselheiros assim o quiser, esta será a primeira das honrarias concedidas pela UFRB, criada há cinco anos. O diretor da CAHL, Xavier Vatin, um antropólogo francês de cabelos compridos, foi quem teve a ideia de fazê-la doutora. “Nós queríamos marcar simbolicamente nosso enraizamento na comunidade agraciando um representante da cultura popular”. Ícone do Samba de Roda do Recôncavo, Dalva Damiana acabou sendo a escolhida. Está mais do que “gratificada” com a homenagem, mas nem na frente do professor perde a chance de fazer troça. “E eu vou medicar quem?”, pergunta, caindo na risada.
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Texto TATIANA MENDONÇA tmendonça@grupoatarde.com.br Foto FERNANDO VIVAS fvivas@grupoatarde.com.br
U Dona Dalva reinventou o samba de roda nas ruas
Tudo é
SAMBA Criadora do Samba de Roda Suerdick, fundado há 52 anos, Dalva Damiana de Freitas, 83, é compositora, cantora e sambista. Este ano, ela ganha o título de Doutora Honoris Causa pela Universidade Federal do Recôncavo
ma mulher se escora na porta, desse jeito de quem parece que não quer nada, só apreciar o tempo a passar. Ouvindo barulhos de dentro da casa, vira-se. “Ô, oi Doutora, como vai?”. Dalva Damiana de Freitas, 83, retribui educadamente a saudação, mas depois segreda em voz baixa: “Tá vendo assim? É tudo do dente pra fora”. Ela tomou o cumprimento por provocação porque sabe que sua conterrânea fazia referência ao título de Doutora Honoris Causa que a Universidade Federal do Recôncavo da Bahia pode lhe conceder em breve. No dia 14 de julho, a proposta foi aprovada por unanimidade peloCentrodeArtes,HumanidadeseLetras e segue agora para apreciação no ConselhoUniversitário.Seamaioriadosconselheiros assim o quiser, esta será a primeira das honrarias concedidas pela UFRB, criada há cinco anos. O diretor da CAHL, Xavier Vatin, um antropólogo francês de cabelos compridos, foi quem teve a ideia de fazê-la doutora. “Nós queríamos marcar simbolicamente nosso enraizamento na comunidade agraciando um representante da cultura popular”. Ícone do Samba de Roda do Recôncavo, Dalva Damiana acabou sendo a escolhida. Está mais do que “gratificada” com a homenagem, mas nem na frente do professor perde a chance de fazer troça. “E eu vou medicar quem?”, pergunta, caindo na risada.
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«Dona Dalva reinventa o samba de roda intimista feito nas casas durante as festas de santo e o leva para um grande público» Fernanda Marques, pesquisadora
ALEGRIA DA ALMA
A casa onde acontece o Samba de Roda Suerdieck, em Cachoeira. O aviso na porta. Tábua de charuto que faz samba
Sabida que é, guarda a certeza de que não há melhor remédio do que aqueles que alegram a alma. Há 52 anos, fundou o Samba de Roda Suerdieck, que toma emprestado o nome da fábrica de charutos onde trabalhou. Mas, antes de ser charuteira, já sambava. Tão antes que pode-se dizer desde sempre. Sem meios de ir a matinês e outros divertimentos, sua brincadeira de miúda era cantar e dançar com as amigas. “Minha vida era brincar com as bonecas, fazer uns quitutes quando tinha um pedacinho de carne, uma besteirinha, naquelas panelitas pequenininhas,comofoguinhodelenhaeagentealibrincandoecantando samba... Fazia o licorzinho, que era água com açúcar, aquela garapinha: ‘Ó, minha comadre, aqui pra senhora tomá’, e vai e vai... Tudo no finalmente era samba”. Por ser a primeira das netas, sua avó materna, Maria Tereza de Jesus, a tomou para criar. Quando voltava da escola, Dalva ia encontrá-la no Rio Caquende, onde trabalhava lavando roupas de ricos, “esfregando com aquele bagaço de licuri”. A avó cantava para espantar sofrimentos, a menina a acompanhava enquanto ensaboava “meiazinhas e toalhinhas de prato”. No rio mesmo ela tomava banho, quando chegava em casa no fim da tarde já estava limpa, pronta para tomar café e fazer o dever da escola. Acontece que a avó era analfabeta, mas queria por tudo ensiná-la a ler. “A leitura dela era diferente. Se estava escrito Cachoeira, ela falava que era Chocolateira. Na hora da sabatina, eu ficava toda atrapalhada. E as colegas todas dando a lição certo”. As amigas passavam de ano, ela só mudava de carteira. Ainda assim conseguiu completar “dois livros”, o que hoje equivale ao ensino primário. A mãe, operária, sonhava vê-la professora, mas o queDalvaqueriaeratrabalharparaajudarafamíliadeoitoirmãos. “A gente morava perto da feira e, no sábado, eu achava tão bonito quando via as pessoas com aquele paiol com batata, com tudo na vida, a carnezinha pendurada... Eu pensava: com fé em Deus, hei de trabalhar para comprar essas coisas pra dentro de casa”.
Aos 14 anos, fez-se o sonho. Foi chamada para trabalhar na Dannemann, onde sua mãe já estava empregada. A felicidade esvaiu-se rápida, porque a menina não tinha ainda idade de ser operária. Chorou tanto que se compadeceram dela. Algumas trambicagens depois, estava feita maior. Já era ela mesma mãe quando a fábrica fechou, por causa de uma greve, à qual a contragosto aderiu sem nunca antes ter ouvido falar de tal coisa na vida. Desempregada, estava em casa olhando para o céu e pedindo proteção a Deus quando foi chamada para a Suerdieck, na labuta árdua que ia das seis da manhã às seis da tarde. “Era pra fazer o charuto chamado dois por um. Era manhoso, um trabalho que precisava cabeça e boa vontade pra ganhar o trocado. Quando terminava, seu Estrela, o caixeiro-viajante da casa, dizia: ‘É, ela é vagarosa, mas o trabalho dela é aperfeiçoado’”, conta, ainda orgulhosa.
JILÓ Foi num intervalo não autorizado para a merenda na fábrica que Dalva se reencontrou com o samba que cantarolava menina. Uma colega sempre levava um lanche para comerem escondidas. Em um certo dia, calhou de ser jiló. Uma tirinha fina ia passando de charuteira a charuteira, Dalva disse que não queria: “De sofrimento, já é bastante o que passo”. Não era desprezo, não queria era comer sabendo que os filhos estavam sem nada em casa. “Tinha deixado umas raízes de aipim pros meninos, mas não tinha carvão nemlenha”.Masaímudoudeideia,“dêcá, dê cá”, e do jiló fez-se o samba: Venha cá como quiser ô jiló / Jiló, ô jiló /Como quiser venha cá, ô jiló / Jiló, ô jiló / Plantei jiló não pegou/ A chuva caiu, rebentou / Eu cortei miudinho botei na panela / E vi que o jiló não é jiló, é berinjela.
Três gerações: Dona Dalva ao lado da filha, Ana Olga, e da neta Any Manuela
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«Dona Dalva reinventa o samba de roda intimista feito nas casas durante as festas de santo e o leva para um grande público» Fernanda Marques, pesquisadora
ALEGRIA DA ALMA
A casa onde acontece o Samba de Roda Suerdieck, em Cachoeira. O aviso na porta. Tábua de charuto que faz samba
Sabida que é, guarda a certeza de que não há melhor remédio do que aqueles que alegram a alma. Há 52 anos, fundou o Samba de Roda Suerdieck, que toma emprestado o nome da fábrica de charutos onde trabalhou. Mas, antes de ser charuteira, já sambava. Tão antes que pode-se dizer desde sempre. Sem meios de ir a matinês e outros divertimentos, sua brincadeira de miúda era cantar e dançar com as amigas. “Minha vida era brincar com as bonecas, fazer uns quitutes quando tinha um pedacinho de carne, uma besteirinha, naquelas panelitas pequenininhas,comofoguinhodelenhaeagentealibrincandoecantando samba... Fazia o licorzinho, que era água com açúcar, aquela garapinha: ‘Ó, minha comadre, aqui pra senhora tomá’, e vai e vai... Tudo no finalmente era samba”. Por ser a primeira das netas, sua avó materna, Maria Tereza de Jesus, a tomou para criar. Quando voltava da escola, Dalva ia encontrá-la no Rio Caquende, onde trabalhava lavando roupas de ricos, “esfregando com aquele bagaço de licuri”. A avó cantava para espantar sofrimentos, a menina a acompanhava enquanto ensaboava “meiazinhas e toalhinhas de prato”. No rio mesmo ela tomava banho, quando chegava em casa no fim da tarde já estava limpa, pronta para tomar café e fazer o dever da escola. Acontece que a avó era analfabeta, mas queria por tudo ensiná-la a ler. “A leitura dela era diferente. Se estava escrito Cachoeira, ela falava que era Chocolateira. Na hora da sabatina, eu ficava toda atrapalhada. E as colegas todas dando a lição certo”. As amigas passavam de ano, ela só mudava de carteira. Ainda assim conseguiu completar “dois livros”, o que hoje equivale ao ensino primário. A mãe, operária, sonhava vê-la professora, mas o queDalvaqueriaeratrabalharparaajudarafamíliadeoitoirmãos. “A gente morava perto da feira e, no sábado, eu achava tão bonito quando via as pessoas com aquele paiol com batata, com tudo na vida, a carnezinha pendurada... Eu pensava: com fé em Deus, hei de trabalhar para comprar essas coisas pra dentro de casa”.
Aos 14 anos, fez-se o sonho. Foi chamada para trabalhar na Dannemann, onde sua mãe já estava empregada. A felicidade esvaiu-se rápida, porque a menina não tinha ainda idade de ser operária. Chorou tanto que se compadeceram dela. Algumas trambicagens depois, estava feita maior. Já era ela mesma mãe quando a fábrica fechou, por causa de uma greve, à qual a contragosto aderiu sem nunca antes ter ouvido falar de tal coisa na vida. Desempregada, estava em casa olhando para o céu e pedindo proteção a Deus quando foi chamada para a Suerdieck, na labuta árdua que ia das seis da manhã às seis da tarde. “Era pra fazer o charuto chamado dois por um. Era manhoso, um trabalho que precisava cabeça e boa vontade pra ganhar o trocado. Quando terminava, seu Estrela, o caixeiro-viajante da casa, dizia: ‘É, ela é vagarosa, mas o trabalho dela é aperfeiçoado’”, conta, ainda orgulhosa.
JILÓ Foi num intervalo não autorizado para a merenda na fábrica que Dalva se reencontrou com o samba que cantarolava menina. Uma colega sempre levava um lanche para comerem escondidas. Em um certo dia, calhou de ser jiló. Uma tirinha fina ia passando de charuteira a charuteira, Dalva disse que não queria: “De sofrimento, já é bastante o que passo”. Não era desprezo, não queria era comer sabendo que os filhos estavam sem nada em casa. “Tinha deixado umas raízes de aipim pros meninos, mas não tinha carvão nemlenha”.Masaímudoudeideia,“dêcá, dê cá”, e do jiló fez-se o samba: Venha cá como quiser ô jiló / Jiló, ô jiló /Como quiser venha cá, ô jiló / Jiló, ô jiló / Plantei jiló não pegou/ A chuva caiu, rebentou / Eu cortei miudinho botei na panela / E vi que o jiló não é jiló, é berinjela.
Três gerações: Dona Dalva ao lado da filha, Ana Olga, e da neta Any Manuela
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As colegas ficaram impressionadas com a rapidez da rima. Por coincidência, a fábrica foi convidada para festejar Santa Cecília. Como não iam às missas, por sempre ter que levar a produção para terminar em casa, Dalva teve a ideia de fazer uma festa para elas também aproveitarem. Foi o que aconteceu em 22 de novembro de 1958. O sucesso foi tanto que passaram a sair todos os anos, na festa de Santa Cecília e de Nossa Senhora da Ajuda. Dalva sempre à frente da formação. Incorporaram como instrumento percussivo as ‘tabuinhas’ que usavam para fazer charutos – o que até hoje persiste, mesmo tendo a Suerdieck virado fumaça. Os ensaios aconteciam no intervalo do almoço, até que o chefe mandou avisar que estava autorizada a “brin-
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Dona Dalva comanda a roda de samba na casa que passou a integrar a Rede do Samba de Roda da Bahia
cadeira” delas, que podiam usar a fábrica à noite. O que juntava de gente não era de se contar. “Convidava os músicos da vila todos. Mandaram até comprar um negócio quente pra nóis tomar. E foram buscar um garrafão, um barril. O pessoal tomou a beber, aí saiu a lavagem durante o dia e foi uma festa. Era tanta gente que parecia aquele tapete dos Filhos de Gandhy. Quando correu a rua toda, todo mundo contente, eu toda satisfeita, aí uma me chamou e disse: ‘Ô Dalva, se riscar um fósforo aí não fica ninguém, né não?’. E eu respondi: nunca bebi, pode riscar meu fósforo!”, ri.
NA RUA Quando as coisas acontecem assim, como naturais, é difícil vê-las marco. Algumas décadas depois, já é possível apontar como começava ali uma microrrevolução, tirando o samba das festas domésticas e o botando na rua, como atesta a pesquisadora Fernanda Marques, que defendeu na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) dissertação de mestrado sobre o samba de roda em Cachoeira. “Dona Dalva reinventa o samba de roda intimista feito
nascasasduranteasfestasdesantoeoleva para um grande público, para as ruas, para o palco nos festivais. Isso foi inédito até que ela iniciasse esse tipo de performance. Dalva é uma mulher genial, uma artista completa. Compõe, canta, samba. Ela tem carisma e brilho próprios”. O historiador cachoeirano Cacau Nascimento lembra que ao contrário da chula, tipicamente rural, o samba de roda, outra matriz musical do Recôncavo, nasce nas zonas mais urbanizadas, como Cachoeira. Ele apontaqueDalvaarrumouum“traje”para o samba, inspirada pelas negras de partido alto. “Como o samba era uma manifestação espontânea, as pessoas não se trajavam para aquilo. O que ela faz é como se fosse um bloco, no bom sentido da pala-
vra”. As saias rodadas das sambadeiras é Dalva quem costura, comprando aqui e ali tecido fiado. Ela conta que teve a ideia de vesti-las de “baiana”quandofoi convidadapelaBahiatursa, há 40 anos, para participar da primeira festa de São João “organizada” de Cachoeira. Acabou tirando primeiro lugar. Mas também foi tanta música que fez que não havia de ser diferente. “Não sei o que foi que evoluiu tanto a minha mente. Eu já andava com um lápis e papel, qualquer coisa que eu tinha assim – uma pessoa que passava na rua, uma palavra que se dizia – eu anotava e tornava a guardar. Tava até impaciente pro lado dos meus filhos, porque eu só tava cuidando do samba. E quanto mais eu fazia, mais contente eu ficava”.
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RECONHECIMENTO Já aposentada da Suerdieck, em 1980 Dalva criou o Samba de Roda Mirim, juntando as crianças da cidade para não pegarem essa “maldade” que é a droga e para não se perder a tradição do samba. Ana Olga, 51, sua filha, participou muito do grupo, e depois veio Any Manuela, 27, sua neta, que também rodopiou por ali e hoje é seu braço esquerdo e direito. Por falta de apoio, Dalva foi cansando. Quando Francisca chegou a Cachoeira, em 2002, ouviu de muitas bocas que o Samba de Roda Suerdieck tinha se acabado. Ela encontrou Dalva desanimada, mas a situaçãomelhorouquandocumpriuapromessa deproduziroprimeiroCDdogrupo.Juntas, acabaram formando duas ONGs, a Asso-
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As colegas ficaram impressionadas com a rapidez da rima. Por coincidência, a fábrica foi convidada para festejar Santa Cecília. Como não iam às missas, por sempre ter que levar a produção para terminar em casa, Dalva teve a ideia de fazer uma festa para elas também aproveitarem. Foi o que aconteceu em 22 de novembro de 1958. O sucesso foi tanto que passaram a sair todos os anos, na festa de Santa Cecília e de Nossa Senhora da Ajuda. Dalva sempre à frente da formação. Incorporaram como instrumento percussivo as ‘tabuinhas’ que usavam para fazer charutos – o que até hoje persiste, mesmo tendo a Suerdieck virado fumaça. Os ensaios aconteciam no intervalo do almoço, até que o chefe mandou avisar que estava autorizada a “brin-
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Dona Dalva comanda a roda de samba na casa que passou a integrar a Rede do Samba de Roda da Bahia
cadeira” delas, que podiam usar a fábrica à noite. O que juntava de gente não era de se contar. “Convidava os músicos da vila todos. Mandaram até comprar um negócio quente pra nóis tomar. E foram buscar um garrafão, um barril. O pessoal tomou a beber, aí saiu a lavagem durante o dia e foi uma festa. Era tanta gente que parecia aquele tapete dos Filhos de Gandhy. Quando correu a rua toda, todo mundo contente, eu toda satisfeita, aí uma me chamou e disse: ‘Ô Dalva, se riscar um fósforo aí não fica ninguém, né não?’. E eu respondi: nunca bebi, pode riscar meu fósforo!”, ri.
NA RUA Quando as coisas acontecem assim, como naturais, é difícil vê-las marco. Algumas décadas depois, já é possível apontar como começava ali uma microrrevolução, tirando o samba das festas domésticas e o botando na rua, como atesta a pesquisadora Fernanda Marques, que defendeu na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) dissertação de mestrado sobre o samba de roda em Cachoeira. “Dona Dalva reinventa o samba de roda intimista feito
nascasasduranteasfestasdesantoeoleva para um grande público, para as ruas, para o palco nos festivais. Isso foi inédito até que ela iniciasse esse tipo de performance. Dalva é uma mulher genial, uma artista completa. Compõe, canta, samba. Ela tem carisma e brilho próprios”. O historiador cachoeirano Cacau Nascimento lembra que ao contrário da chula, tipicamente rural, o samba de roda, outra matriz musical do Recôncavo, nasce nas zonas mais urbanizadas, como Cachoeira. Ele apontaqueDalvaarrumouum“traje”para o samba, inspirada pelas negras de partido alto. “Como o samba era uma manifestação espontânea, as pessoas não se trajavam para aquilo. O que ela faz é como se fosse um bloco, no bom sentido da pala-
vra”. As saias rodadas das sambadeiras é Dalva quem costura, comprando aqui e ali tecido fiado. Ela conta que teve a ideia de vesti-las de “baiana”quandofoi convidadapelaBahiatursa, há 40 anos, para participar da primeira festa de São João “organizada” de Cachoeira. Acabou tirando primeiro lugar. Mas também foi tanta música que fez que não havia de ser diferente. “Não sei o que foi que evoluiu tanto a minha mente. Eu já andava com um lápis e papel, qualquer coisa que eu tinha assim – uma pessoa que passava na rua, uma palavra que se dizia – eu anotava e tornava a guardar. Tava até impaciente pro lado dos meus filhos, porque eu só tava cuidando do samba. E quanto mais eu fazia, mais contente eu ficava”.
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RECONHECIMENTO Já aposentada da Suerdieck, em 1980 Dalva criou o Samba de Roda Mirim, juntando as crianças da cidade para não pegarem essa “maldade” que é a droga e para não se perder a tradição do samba. Ana Olga, 51, sua filha, participou muito do grupo, e depois veio Any Manuela, 27, sua neta, que também rodopiou por ali e hoje é seu braço esquerdo e direito. Por falta de apoio, Dalva foi cansando. Quando Francisca chegou a Cachoeira, em 2002, ouviu de muitas bocas que o Samba de Roda Suerdieck tinha se acabado. Ela encontrou Dalva desanimada, mas a situaçãomelhorouquandocumpriuapromessa deproduziroprimeiroCDdogrupo.Juntas, acabaram formando duas ONGs, a Asso-
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ciação de Pesquisa em Cultura Popular e Música Tradicional do Recôncavo e a Associação Cultural do Samba de Roda Dalva Damiana de Freitas. Foram essas ONGs que em 2004 solicitaram o registro do Samba de Roda do Recôncavo como patrimônio cultural brasileiro. Um ano depois, em 2005, foi a vez da Unesco reconhecê-lo como Obra-Prima e Patrimônio da Humanidade, atestando a riqueza da manifestação que mistura “música, coreografia e poesia numa única celebração”, como registrou o júri. Infelizmente, é um reconhecimento que Dalva não vê em sua própria terra. Any conta que no São João deste ano, o grupo se apresentou na praça com 35 sambadores. O cachê foi de R$ 800. Vinte e dois reais por pessoa, avalie. “É um desestímulo muito grande”. Dona Dalva compartilha o mesmo sentimento. “Na Cachoeira ninguémfezmaissambadoqueeu,atravésdoamor,daansiedade que eu tinha de brincar, mas não tinha sapato e roupa pra estar no meio das procissões e das missas. No samba se vai de chinelo, de pé descalço, roupa remendada, e todo mundo brinca. Para o samba eu dou minha vida, o meu cansaço. E ainda não vi os próprios filhos da terra planejar uma coisa de felicidade pra mim, sem ser do dente pra fora. Mas o meu cansaço se torna alegria porque não tenho amor ao dinheiro, tenho amor ao fazer, a engrandecer Cachoeira”. Para Francisca, faltam políticas públicas para valorizar o samba. “Não vejo mudanças significativas no posicionamento do poder público com relação a práticas eficientes para a manutenção e salvaguarda do Samba de Roda do Recôncavo. É uma pena, mas é a realidade”.
CASA DO SAMBA Mas vamos balançar a tristeza e dizer que a coisa melhorou um pouco em 2009, quando o Samba de Roda Suerdieck ganhou um espaço para fazer seus ensaios e reunir os pertences do grupo (são 52 pessoas no Suerdieck e 32 crianças e adolescentes no Samba Mirim). A iniciativa foi do padre Sebastião Hélder. Era ele quem pagava o aluguel da casa. Com a sua morte, Dalva assumiu a despesa, usando para isso sua aposentadoria, de R$ 545. A partir de abril deste ano, no entanto, a prefeitura passou a fornecer um salário mínimo para manter o espaço. Aos poucos, outros apoios vão surgindo. A casa foi “reinaugurada” no dia 14 de agosto, quando passou a integrar a Rede do Samba de Roda da Bahia, coordenada pela Associação dos Sambadores e Sambadeiras do Estado da Bahia (Asseba). Em parceria com o Iphan e com o Ministério da Cultura, será enfim possível reativar as oficinas de
CASA DO SAMBA DE RODA DE D. DALVA: Rua Ana Néri, 19, Cachoeira. Os ensaios acontecem às quartas-feiras, às 19h. O CD Samba Baiana está à venda no local, por R$ 15. Contato: sambasuerdieck@ hotmail.com
percussão, canto, coreografia e informática.Olugarreceberádoaçõesdeinstrumentos e computadores. Até o final do mês, outras 14 casas de samba de roda no Recôncavo estão sendo criadas ou fortalecidas, com a missão de divulgar os saberes dos sambadores. Para isso, a promessa é que possam contar com um orçamento anual, dividindo os R$ 400 mil destinados ao projeto. Na Casa de D. Dalva, os ensaios acontecem intermitentemente nas noites de quarta-feira.Noquintal,foimontadoopalco. Quem chega logo avista o aviso de que trata-se de ambiente familiar e o respeito é obrigatório. Antes da roda começar, Dalva bota para tocar o CD Samba baiana – A vivênciacantadadeDonaDalva,patrocinado pela secretaria de Cultura e lançado em junho. Pouca gente aparece para a festa, até as baianas que dançam com o Suerdieck não vêm. Dalva explica que é porque muitas moram longe. Mas além de puxar os sambas, ela também dá os seus passos, esquecendo da idade e do cansaço. Além de sambadeira, Dalva é irmã da Boa Morte. Desde pequena, acompanhavaaavópaterna,VicênciaRibeirodaCosta, nas festas da Irmandade – “a gente ia no interesse de comer o caruru, as pipocas, o feijão...”–masdemorouaaceitaroconvite para integrar o grupo, para não ter que sair na rua com a bolsa pedindo dinheiro. “O pessoal dá, mas diz muita liberdade”. Muita “liberdade” já teve que ouvir também por ser preta, filha de santo e mãe solteira. Criou sozinha seus cinco filhos. Enquanto conta suas histórias, vira-se para Ana e diz, enigmática: “Eu nem sei se para o ano estou aqui, com sinceridade. Estou toda gratificada, tudo na minha vida está sendorecordado,pensadoecerto.Etôdesconfiada de mim. Será que já vou morrer? Tem hora que lembro de tudo...” «
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