Denice santiago

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#486 / DOMINGO, 12 DE NOVEMBRO DE 2017 REVISTA SEMANAL DO GRUPO A TARDE

MUSEU DO AMANHÃ MODA LINGERIE COSMÉTICOS VEGANOS LÍGIA BENIGNO APLICATIVOS DE VINHO «

Comando

FEMININO O trabalho da major Denice Santiago à frente da Ronda Maria da Penha


ABRE ASPAS n DENICE SANTIAGO n MAJOR

«Eu

sou uma menina de escola pública» Texto TATIANA MENDONÇA tatianam@gmail.com Foto RAUL SPINASSÉ raulspina@gmail.com

O Espelho vai se abrindo, grande, colorido, sob o olhar atento da major Denice Santiago do Rosário, 46. “Cuidado aí para não sujar!”, diz, antes de inclinar a cabeça e sussurrar: “Menina, a impressão disso foi R$ 700! Paguei do meu bolso”. O Espelho é o jogo que Denice criou para que mulheres pensem sobre as violências cotidianas que sofrem. Já tinha versões menores do tabuleiro, mas quis fazer um gigante para que as participantes se tornassem o próprio peão. Em 2015, a major idealizou e passou a coordenar a Ronda Maria da Penha, que atende mulheres vítimas de violência doméstica em Salvador e outras seis cidades do estado. Sabe que o crime que combate é “eminentemente cultural” e por isso cuida para que as ações de enfrentamento – impedindo que os agressores se aproximem das vítimas – sejam tão urgentes quanto as preventivas. Há muita conversa na ronda, entre mulheres, especialmente, mas também entre homens. Em maio, a iniciativa ganhou o selo de práticas inovadoras do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, e em outubro Denice foi uma das vencedoras do Prêmio Claudia, na categoria políticas públicas. Gracejando, ela diz que os reconhecimentos a deixaram “insuportabilíssima”. Psicóloga e bacharel em segurança pública, Denice fez parte da primeira turma de mulheres da PM baiana, em 1990. Na corporação, criou o Centro Maria Felipa, para atender as colegas de farda, e acabou de idealizar um novo núcleo, o AMO Direitos Humanos, ainda sem data de implantação, para monitorar práticas de discriminação racial na polícia, esse tema nada polêmico que esmiuçou durante o mestrado na Ufba.

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A Ronda Maria da Penha é inspirada numa experiência do Rio Grande do Sul. Que adaptações foram feitas para cá? A concepção do Rio Grande do Sul era de uma tropa de policiais que fizesse visitas a mulheres vítimas de violência doméstica. Quando estivemos lá, isso acontecia em um bairro. Aqui, nós fizemos outro filtro. Nós fomos atender todas as mulheres vítimas de violência doméstica com medida protetiva de urgência deferida. Por quê? Primeiro, o universo de mulheres que são vítimas de violência doméstica é enorme. Nós teríamos que colocar quase 70% do efetivo da polícia para poder acolher... Segundo, a gente quer proteger as mulheres que eu chamo de mulheres de coragem. Nós queremos empoderar essas mulheres, para que outras também possam romper o ciclo da violência. E nós também mudamos o nome de patrulha para ronda. Aqui, patrulha remete muito ao que a gente faz no Carnaval, aquele patrulhamento da concepção do Exército. E a ronda já é mais conhecida, tem a ronda escolar, a ronda nos bairros. Então nós fazemos visitas nas residências dessas mulheres, no local de trabalho, no bairro onde ela mora, e também a acompanhamos em audiências, porque pode acontecer de a família do agressor ou o próprio agressor querer intimidá-la para que recue. É uma maneira de ela se sentir mais segura. As visitas são sempre surpresa ou a ronda também pode ser acionada em casos que a mulher se sinta ameaçada? Nós fazemos as duas coisas. Tanto as visitas são surpresa, para que o agressor não pense: ‘Ah, a ronda vem aqui segunda-feira de manhã, né? Então eu vou aparecer segunda de tarde’, quanto essa mulher pode ligar para a gente se sentir a aproximação do agressor. Hoje nós temos três viaturas. E aí, se por acaso não dermos conta de atender no momento, há uma parceria com a Superintendência de Telecomunicações, que encaminha a viatura mais próxima, e depois nós chegamos em acompanhamento. Há priorização para os casos de urgência. Como vocês fazem para dar conta de assistir todas essas mulheres e fazer com que as visitas não se tornem muito espaçadas? Na primeira visita, a gente preenche um questionário de acolhimento, que vai traçar o perfil

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« Hoje nós atendemos 607 mulheres em Salvador. No total, são 1.595 em sete cidades. A triagem é feita pelo Tribunal de Justiça»

psicossocial dessa mulher e também uma avaliação do risco. Ainda que seja subjetiva essa avaliação, é nela que a gente se baseia para estabelecer o número de visitas. Tem mulheres que recebem duas, três por semana, outras uma vez por semana, outra de 15 em 15 dias... Hoje nós atendemos 607 mulheres em Salvador. No total, são 1.595 em sete cidades. A triagem é feita pelo Tribunal de Justiça, que nos encaminha os casos mais complexos. A gente tem uma relação muito bacana, e eu credito o sucesso da ronda a essa parceria. Nós temos um comitê de governança formado pelo Tribunal de Justiça, Ministério Público, Defensoria Pública e a Secretaria de Política para as Mulheres. Nós nos reunimos de dois em dois meses, e isso faz com que a gente vá azeitando as questões, os problemas, as demandas. É curioso que a ronda exista justamente porque as ordens judiciais de afastamento não sejam cumpridas pelos agressores. Nesse sentido, o que a presença física da polícia muda nessa dinâmica? Antigamente, a cultura da nossa sociedade era a de que os crimes relacionados à violência doméstica e familiar não eram levados a sério pelo estado. ‘Ah, eu bato em você e amanhã tô livre’. Mas quando o governo do estado capa-

cita um grupo de policiais militares exclusivamente para esse atendimento, ele está dando uma sinalização para esses agressores. Agora você não vai ficar impune por décadas, séculos, eu diria. Agora nós temos uma força policial para proteger essa mulher. Já realizamos até hoje 90 prisões. São 90 feminicídios a menos. A ideia é que essas mulheres eventualmente deixem de ser assistidas pela ronda ou não? É um processo contínuo. Algumas sinalizam que não precisam mais do acompanhamento, mas a gente não encerra. Porque, infelizmente, a questão da violência é processual. Hoje ela pode estar bem, esse homem pode estar tranquilo... Tenho um caso para você entender. Ela já tinha um ano separada dele, um ano que ele não aparecia mais, mas quando ela começou a se relacionar de novo, voltaram as agressões. Então a gente sempre deixa as mulheres cientes de que a qualquer momento podem nos acionar. Tem um formulário aqui que eu chamo de pós-venda. Depois que elas dizem que estão seguras, que não precisam mais das visitas, a gente dá 30 dias e liga para saber se gostou do atendimento, se está tudo bem... Duas destas que pediram para parar, depois pediram para a gente voltar. Como o cotidiano dessas mulheres muda com as visitas da ronda? É fascinante. Tem mulheres que chegam para a gente tão desesperadas, tão fragilizadas, que não conseguem enxergar as belezas que possuem, não têm ânimo para trabalhar, para sair, e depois, quando a gente começa a acompanhar, elas vão recuperando as forças. Tem uma que voltou a ir para a praia. Parece simples, né? Mas ela não saía mais de casa, por medo. Impunha-se um cárcere. E aí quando a gente encoraja, mostra a nossa presença, se aproxima, esse agressor acaba ficando mais temeroso e deixa de se aproximar. E aí a gente consegue que elas voltem a ter vida. Por que a maioria dos policiais da ronda são homens? Temos na polícia um efetivo masculino de 87%, então acho que tem a questão da proporcionalidade. E tem também a questão de que a mulher policial militar não está distante do que acontece com qualquer mulher na sociedade.


A major e o Jogo do Espelho: dinheiro do próprio bolso

ADILTON VENEGEROLES / AG. A TARDE

Trabalhar com violência doméstica acaba sendo muito mais complexo para nós mulheres, porque estamos mais próximas dessas histórias. Asqueestão aqui são muitodedicadas,um poucomalucas...Masacho queéprincipalmente uma reivindicação do feminino, é uma militância ser mulher e trabalhar neste lugar. Nós temos 29 policiais e nove são mulheres. Nosso curso de formação dura 80 horas. Este ou esta policial precisa entender o fenômeno em que esta mulher está absorta. Não é simplesmente dizer: ‘Ah, ela gosta de apanhar’, ou então ‘ela é muito fraca, é uma covarde’. Tem muito mais histórias que permeiam essa relação de manutenção da violência, do relacionamento abusivo, de essa mulher continuar nesse lugar. Homens e mulheres, seres humanos, são falíveis, em sua essência, e trabalhar com isso... Digo que toda polícia militar trabalha com a miséria humana. Só que esse policial que está lá na rua, ele espera a miséria vir até ele, quando o crime acontece. No nosso caso, não. Nós vamos atrás. E ouvimos relatos tão complexos. Pegamos mulheres queimadas de ferro de passar em seio, braço, face, mulheres que têm unhas arrancadas de alicate pelo cara, e a gente tem que olhar para essa mulher e ouvi-la com atenção, afagá-la, ainda que técnico-profissionalmente, mas afagá-la em sua dor, dizer: ó, entendo o que aconteceu, mas a gente tá aqui. Sabe? É uma responsabilidade extrema. Eu não me acostumo, e nem quero perder a possibilidade de me indignar com isso. Cada caso mexe comigo. A única coisa que aprendi foi a separar. E como é que você faz isso? Chego em casa e fico com meus filhos. Eu aprendi, mas não quer dizer que eu pratique... Às vezes eu erro. A gente também tem uma parceria muito boa com a Fundação Terra Mirim, que faz um trabalho com os policiais militares da ronda de integração, de recuperação, sabe, porque é importante para eles, também. Eles chegam lá e falam sobre tudo que viveram... É uma parceria que eles fazem gratuitamente, por amor à proposta. Esses reconhecimentos externos, os prêmios, e esse reconhecimento por parte das mulheres, nos faz hoje ser motivo de orgulho para toda a Polícia Militar. Nós somos hoje a melhor política de enfrentamento à violência doméstica do país. Eu me envaideço direto. Estou metida, insuportável. Insuportabilíssima.

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Denice na cerimônia de entrega do Prêmio Claudia

DIVULGAÇÃO

A ronda também atua no interior do estado. Como foi esse processo de implementação em cidades onde o machismo costuma ser mais arraigado? Algumas cidades do interior, especialmente na zona rural, ainda estão no século 19 em relação à posse e ao domínio da mulher. O que a gente propõe com essas rondas talvez seja um trabalho até mais complexo que o meu, que estou na capital. Aqui talvez existam nichos do século 19, ou talvez um pouco antes, mas não é na mesma proporção. Mas há esse desafio de as rondas no interior fazerem esse diálogo com uma cultura que é tão normalizada naquelas relações. Para fazer frente a isso a gente tem um projeto muito bacana que é o Ciranda Rural. Nós estamos indo a essas localidades, a assentamentos de reforma agrária, quilombos, comunidades de marisqueiras, para dialogar sobre o fenômeno da violência. Teve um depoimento maravilhoso de um senhor que falou: ‘Antes, eu achava que a Lei Maria da Penha era só para punir os homens. Hoje eu sei que é para educar’. O trabalho que a gente desenvolve na ronda, esse enfrentamento, é imprescindível, claro, precisa ser feito, mas os projetos de pre-

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venção também são fundamentais. O crime que a gente combate é eminentemente cultural. Tenho exemplo de agressores que já estão no seu terceiro relacionamento abusivo. Mulheres que já estão no seu quarto, quinto relacionamento abusivo. Então é preciso conversar com os homens e também com as mulheres, para que identifiquem os tipos de violência a que estão submetidas. Nós fazemos aqui o Ronda para Homens, que é um trabalho em que os policiais da ronda conversam exclusivamente com homens, discutindo relações de gênero. Porque eles têm um dialeto próprio, né? Este projeto ganhou o selo de práticas inovadoras de enfrentamento à violência contra a mulher do Fórum Brasileiro de Segurança Pública este ano. Fomos a única Polícia Militar do país a receber este reconhecimento. Então eles discutem por que se delimita a mulher no espaço doméstico, enquanto o espaço do homem é o da rua, explicam as mudanças na legislação, mostram os vários tipos de violência que as mulheres sofrem, porque muitos homens só entendem a violência como a física e não param para prestar atenção quando pro-

pagam a violência moral, patrimonial, sexual, psicológica. E para as mulheres nós temos dois projetos. Com as nossas assistidas, fazemos o Mulheres de Coragem. Elas vêm para a sede da ronda, passam o dia inteiro aqui, fazem oficinas terapêuticas, dialogam sobre suas dores e conquistas, fazemos oficinas de artesanato... Tá vendo aquelas garrafinhas ali? Foram elas que fizeram! Também fizeram um mosaico, mas levaram. No dia 25 de novembro nós vamos grafitar as paredes daqui. Eu também vou participar, estou ansiosa para ver o que vai sair desse negócio (risos). E o outro projeto? O outro é um jogo que desenvolvi chamado Espelho. É um jogo de tabuleiro e o nome é porque a ideia é que ele faça a mulher se espelhar nas violências cotidianas. Ela joga o dado, anda o número de casas indicado e cai numa cor. Cada cor corresponde a uma violência. Fui eu quem criei, as meninas ficam mandando eu parar de inventar coisa (risos). O azul, por exemplo, é violência psicológica. Aí ela tira uma cartinha, que pode dizer assim: toda vez que eu


saio, ele manda eu tirar uma selfie e enviar a localização de onde estou. Aí tem duas soluções. A primeira pode ser: eu mando, né, ele só está preocupado comigo. Aí a gente fala: reflita, volte duas casas. Já se ela disser: eu não vou mandar, porque tenho minha autonomia, aí a gente faz: parabéns, toda mulher é dona da sua vida... Damos uma empoderadinha, e aí avance duas casas. Então ela avança quando tem uma postura que vá lhe dar autonomia, garantir direitos, e o de recuar quando deixa passar essas violências cotidianas que elas podem achar que é cuidado, zelo, proteção. Há também cartas que explicam o que é cada órgão da rede: Ministério Público, Delegacia da Mulher, Defensoria Pública... É para que elas saibam onde procurar ajuda. Já levamos o jogo para vários lugares, associações de bairro, escolas. A gente fez um no chão, grandão, deu um trabalho... Eu falei: quero um de cinco metros! (risos). Porque aí as mulheres é que são o peão. Nas cartas de violência física, tem uma que é: ele me bateu, e uma das opções é: ah, mas ele estava nervoso... São histórias que a gente ouve na ronda. ‘Ah, ele me bateu, mas ele estava muito chateado, a senhora sabe, major, porque o time dele perdeu’, ou ‘ah, ele queria comer tal coisa, e eu fiz outra, aí ele me bateu, mas não tem problema, não, não doeu, não, foi só um empurrãozinho’... Parceiros e ex-parceiros são autores de muitos homicídios de mulheres. Nós estávamos falando desses cursos todos que a ronda está promovendo, mas esse tema não deveria ser tratado nas escolas? Acredito que para a gente promover uma mudança significativa do fenômeno da violência doméstica e familiar, a gente tem que fazer uma ressignificação cultural. E a escola é o espaço para isso. A escola é o espaço do diálogo. Entendo que os adultos de hoje vieram de uma geração que não discutia esse tema. Mas a gente precisa trazer isso para o debate com a família, com os alunos e alunas. E em casa é preciso conversar sobre isso com os nossos filhos. Quando um filho nosso estiver ríspido, agredindo a namorada, a família precisa entrar como ferramenta de instrução, de ensinamento, para que esse jovem saiba que aquilo é violência doméstica. E as escolas precisam, sim, transversalizar esse tema nos seus currículos. Inclusive isso está lá na Lei Maria da Penha, que

«Para promover uma mudança significativa do fenômeno da violência doméstica e familiar, a gente tem que fazer uma ressignificação cultural» é uma lei completa, linda. Então não é uma invenção. Não vou entrar na discussão de gênero... Não estou falando da questão de gênero nas escolas. Estou falando na questão de violência doméstica familiar. Mas uma coisa não passa pela outra? Está muito relacionado, extremamente, mas... a gente está tentando fazer um projeto aqui, eu quero dialogar com os meninos do ensino fundamental. Uma soldado nossa desenvolveu um jogo no seu TCC para que esses meninos aprendam um pouco sobre essa questão. Mas como é que eu falo isso sem tocar em gênero? Então eu estou negociando muito, porque vou ter que tirar da escola e passar para um outro espaço... Por quê? Existe uma indicação mesmo das secretarias de educação para que a gente não faça. Que horrível. É, eu acho. Aí estou tirando do ambiente escolar e passando para praças, para associações

de bairro, para outros espaços, já que a escola me limita. Mas ainda acredito que o ambiente escolar... Hoje, por exemplo, eu estava numa escola de ensino médio de manhã, o Colégio Estadual Vicente Pacheco de Oliveira, em Dom Avelar. Foi uma experiência maravilhosa conversar com aqueles meninos. Meninos e meninas que estão se descobrindo na sexualidade, nos namoros, tudo, e a gente precisa conversar com eles e explicar o fenômeno da violência doméstica, para eles perceberem quando estiverem sendo violentos. Deixar uma mensagem para que conversem com seus amigos, para que possam dizer a um amigo que esteja se excedendo: cara, você está tendo posse... Fiquei muito impressionada positivamente de ver aqueles meninos de um bairro periférico atentos, atenciosos, colaborativos, participativos. Falei para eles de como estava orgulhosa. Eu sou uma menina de escola pública, né? Teve um até que perguntou se eu já tinha encontrado alguma Bibi [personagem da novela A Força do Querer, que se envolve com o tráfico de drogas]. E eu falei: vocês estão assistindo muita novela, viu? (risos) Mas a resposta que dei foi que a gente não tem que trazer como ícone alguém que está envolvido com a criminalidade. Isso não pode ser. Disse para procurarem seus professores como ídolos, seus pais, suas mães, que são pessoas que estão numa luta constante. E aí no final falei: ou então façam melhor, procurem a mim como ícone! (risos). E aí eles riram para caramba! Pronto, ao invés de seguir Bibi, me sigam! A senhora fez parte da primeira turma de mulheres da PM baiana. Como foi a recepção dos seus colegas, dos seus superiores? Nós entramos em 1990, numa polícia que tinha 165 anos só com homens. Então nós estávamos desbravando um universo que se fundamenta historicamente pela suas masculinidades. Polícia é lugar de força, e, historicamente, força é coisa de homem. Algumas colegas tendiam a engrossar a voz em abordagens, para obedecer a esses critérios de masculinidades. Nesses 27 anos, a gente vem transformando isso. Nós estamos aprendendo a conviver com eles e eles estão aprendendo a conviver conosco. E a Ronda é uma unidade que vai trabalhar especificamente com mulheres, ou prioritariamente com mulheres. Somos dentro da

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polícia um espaço delimitado de atendimento e cuidado com mulheres. Nessas quase três décadas que tenho de polícia, já vivi todo tipo de situação. Pessoas que acreditam em mim, na minha técnica, no meu profissionalismo como policial militar, e pessoas que duvidam de mim e tentam me proteger, por conta dessa relação de que eu protejo minha mãe, protejo minha irmã, vou ter que proteger minha colega. E também pessoas que sequer pensam que caberia uma mulher dentro de uma corporação policial militar... Hoje, nós somos quatro mulheres majores em situação de comando. É pouco ainda. Pouquíssimo. Mas nós estamos começando a mostrar à polícia o jeito feminino de comandar. E tem dado muito certo. Digo que a mulher comanda da melhor forma possível, e da mais experiente, mais antiga que existe: como mãe. Educa na hora que tem que educar e afaga quando tem que afagar. Isso a gente aprende desde pequenininha. É fácil, fácil. E hoje você ainda sente essas resistências por parte de seus colegas homens, estando nessa posição de comando? Ou isso é algo já superado? Existe, ainda... O policial não é um alien. O que você vê na sociedade, você vê aqui dentro. É algo processual. Não sei se quando existir a primeira mulher comandante-geral da Polícia Militar ela fará uma história diferente. Você escolheu um tema supersensível, nada polêmico, para o seu mestrado, a discriminação racial na abordagem da Polícia Militar. Meu Deus, nem fale! (risos). Eu não sei por que eu invento essas coisas. Só se for para apanhar, só pode... Como a corporação recebeu os resultados da sua pesquisa? Quando eu era aluna, oficial, um professor perguntou para a gente na aula: ‘Se vocês virem um carro se movimentando com cinco negões, o que é que vocês fazem?’. Aí meus colegas começaram, em um tom de brincadeira, a dizer: ‘Faço abordagem em nível máximo, coturno no pescoço’, aquelas coisas... E aí eu falei: professor, e se não forem cinco negões, mas cinco brancões? E ele respondeu: ‘Minha filha, branco correndo é atleta, preto correndo é ladrão’.

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Isso reverberou na minha mente. Acabei trazendo para as minhas práticas profissionais essa máxima. Então, no mestrado, quis discutir como é que essas representações sociais que permeiam o processo de formação podem impactar na ação policial na ponta. Dialoguei com alunos, com professores, e também costurei o mapa conceitual desse suspeito. O que identifiquei foi que se a gente perguntar diretamente a um policial militar se ele vai abordar um homem negro, ele vai dizer que não. Mas ele vai dizer que vai abordar uma pessoa que usa bermuda tactel, batidão, boné de aba reta, morador da periferia, que ouve pagodão, funk. Quem é esse suspeito? Se você fechar o olho, você vai enxergar. Então, propus na dissertação, e o comando-geral aceitou, a criação de uma central de Avaliação, Monitoramento e Observatório em Direitos Humanos dentro da instituição, que eu chamei de AMO Direitos Humanos. É um projeto que está sendo discutido e aprimorado pelo Departamento de Polícia Comunitária e Direitos Humanos. Esse centro vai trabalhar nos processos de formação, na práxis de cada profissional, avaliando, monitorando essas ações, e vai servir também como referencial de diálogo com a sociedade, como

«Estamos começando a mostrar à polícia o jeito feminino de comandar. E tem dado muito certo (...). A mulher comanda da melhor forma possível»

um observatório. Hoje, a sociedade fica de lá acusando, e a polícia fica de cá acusando. Não vou nem dizer que um dos lados se defende, porque os dois acusam. A gente precisa parar e se escutar, para encontrar uma solução. Sim, eu já sei que a Polícia Militar do Estado da Bahia tende a fazer uma discriminação racial na seleção de suspeitos. Pronto. Como eu resolvo isso? Penso que nós temos que discutir o que fazer, e não o que acontece, porque o que acontece já está delimitado historicamente. É interessante que hoje a gente possa abrir esse debate na Secretaria da Segurança Pública, na Polícia Militar, para que a gente possa avançar sobre isso. Mas não é algo fácil. Há algum prazo de implantação deste centro? Não, é algo que ainda está em análise. Eu faço uma proposta, mas a polícia precisa adequá-la à sua realidade de gestão. Já que estamos falando desse tema espinhoso, como a senhora, que é mãe de um menino negro, lida com essa realidade de mães que perdem os filhos, muitos jovens e negros, vítimas de PMs? Parto sempre do pressuposto de que não posso negar a existência desses atos. Também não posso negar, como mãe, que tenho diversos medos em relação a meu filho, de violências, de opções, e um desses está aí também. Foi uma das razões que me moveram a estudar e pensar isso. Quero a tranquilidade de que meu filho possa conviver com quem quiser, vestir o que quiser, ouvir o que quiser, se portar como quiser, desde que dentro da legalidade. Então, preciso preparar minha corporação para viver isso. O movimento que a gente faz hoje é de dialogar internamente sobre isso. A gente já fez alguns processos com comandantes de unidades de Salvador e região metropolitana, alguns processos com policiais militares lotados nessas unidades, especificamente com a Rondesp, já dialogamos para que eles discutam e nos deem soluções para isso. A gente precisa ouvir os policiais também do lugar deles. Eu não estou nas ruas diariamente, como esses policiais estão, não tenho a experiência deles, e sei que a maioria da população baiana é negra. A maioria obedece a esse perfil meio lombrosiano. Mas a gente não deve colocar isso como regra. Quando se coloca como regra é que talvez seja o problema. «


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