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#209 / DOMINGO, 1º DE ABRIL DE 2012 REVISTA SEMANAL DO GRUPO A TARDE
RECEITAS DE BACALHAU JOÃO MIGUEL ROMA
O poder das
ESCOLHIDAS A trajetória de mulheres, como mãe Índia do Bogum, que equilibram a liderança religiosa com a vida pessoal
O VINHO DA SEMANA SANTA «
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Senhoras do
terreiro Texto TATIANA MENDONÇA tmendonca@grupoatarde.com.br Fotos FERNANDO VIVAS fvivas@grupoatarde.com.br
As histórias de mães de santo que, ainda jovens, assumiram a responsabilidade de serem líderes de famílias religiosas tradicionais, e que conseguiram equilibrar com sabedoria suas obrigações e o cotidiano profissional e pessoal
S
e querem um alívio para dor, doença, desemprego ou desamor, vão lá buscar ajuda. E quando a veem varrendo o chão ou costurando, não se acanham de perguntar: onde é que está a mãe de santo? E então responde, serena, “tá lá para dentro, já, já chega”. Mas é nada, a ela mesma procuram, Lúcia das Neves, a Mameto Kamurici do Terreiro São Jorge Filho da Gomeia. Não a reconhecem pela falta do traje de gala, que reserva para as ocasiões especiais, e principalmente pelo viço do rosto pouco marcado pelo tempo. Tem apenas 47 anos. O espanto dos visitantes já foi maior. Quando assumiu a famosa casa, era uma moça de 28 anos com medos crescidos e poucas certezas.
Mirinha de Portão, de quem era neta, afilhada e filha de santo, fundou o terreiro em 1948, em Lauro de Freitas. Quarenta e um anos depois, faleceu. Lúcia, que a imaginava eterna, ficou sem chão. Para preservar o que a avó construiu, pediu o tombamento da casa e ficou por ali fazendo uma coisa e outra, enquanto esperava que a “pessoa certa aparecesse”. O tempo corria e não havia meios de ela chegar. Cheia de dúvidas, foi procurar o mítico pai Agenor, no Rio de Janeiro, que riu de vê-la tão aflita. “Você ainda tem dúvida? Volte, porque todo mundo sabe que a pessoa para tomar conta é você”. Ela retrucou que sabia pouco, mas ouviu como resposta um conselho precioso: “Faça com o coração. E se por acaso fizer alguma coisa errada, tenha certeza de que Iansã conserta”.
Mãe Lúcia, 47, do Terreiro São Jorge Filho da Gomeia, assumiu a casa aos 28 anos
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Senhoras do
terreiro Texto TATIANA MENDONÇA tmendonca@grupoatarde.com.br Fotos FERNANDO VIVAS fvivas@grupoatarde.com.br
As histórias de mães de santo que, ainda jovens, assumiram a responsabilidade de serem líderes de famílias religiosas tradicionais, e que conseguiram equilibrar com sabedoria suas obrigações e o cotidiano profissional e pessoal
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e querem um alívio para dor, doença, desemprego ou desamor, vão lá buscar ajuda. E quando a veem varrendo o chão ou costurando, não se acanham de perguntar: onde é que está a mãe de santo? E então responde, serena, “tá lá para dentro, já, já chega”. Mas é nada, a ela mesma procuram, Lúcia das Neves, a Mameto Kamurici do Terreiro São Jorge Filho da Gomeia. Não a reconhecem pela falta do traje de gala, que reserva para as ocasiões especiais, e principalmente pelo viço do rosto pouco marcado pelo tempo. Tem apenas 47 anos. O espanto dos visitantes já foi maior. Quando assumiu a famosa casa, era uma moça de 28 anos com medos crescidos e poucas certezas.
Mirinha de Portão, de quem era neta, afilhada e filha de santo, fundou o terreiro em 1948, em Lauro de Freitas. Quarenta e um anos depois, faleceu. Lúcia, que a imaginava eterna, ficou sem chão. Para preservar o que a avó construiu, pediu o tombamento da casa e ficou por ali fazendo uma coisa e outra, enquanto esperava que a “pessoa certa aparecesse”. O tempo corria e não havia meios de ela chegar. Cheia de dúvidas, foi procurar o mítico pai Agenor, no Rio de Janeiro, que riu de vê-la tão aflita. “Você ainda tem dúvida? Volte, porque todo mundo sabe que a pessoa para tomar conta é você”. Ela retrucou que sabia pouco, mas ouviu como resposta um conselho precioso: “Faça com o coração. E se por acaso fizer alguma coisa errada, tenha certeza de que Iansã conserta”.
Mãe Lúcia, 47, do Terreiro São Jorge Filho da Gomeia, assumiu a casa aos 28 anos
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Mas Lúcia, consagrada à divindade que na nação angola é chamada de Bamburucema, confessa que sua esperança era que dissesse para continuar esperando, e assim estaria absolvida da missão perpétua de zelar por sua família de santo. “É uma responsabilidade muito grande”. O que não é, de modo algum, reclamação. “Como aprendi candomblé brincando, correndo aqui pelo quintal, remedando o pessoal dançar, indo pegar folha no mato, não é algo que me pesa, não dói. É o normal”. E como resposta aos que acharam que ela não ia dar conta, a ex-auxiliar de enfermagem tratou foi de arrumar mais trabalho. Abriu o terreiro para oficinas gratuitas de tecelagem, capoeira, música e dança. E
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para ter onde mostrar tudo isso, criou em 2001 o bloco afro Bankoma. O resultado é que tem poucas lembranças do que seja uma folga. “Nossa liberdade aqui é vigiada. É o direito que a gente tem de poder fazer o que faz no dia a dia. Esse é o nosso lazer”.
O TEMPO
Mãe Valnízia de Ayrá, 52, do Terreiro do Cobre: gosto por música
Em 1977, o antropólogo Vivaldo da Costa Lima escreveu que “a vida de um líder de candomblé é muito menos sua do que da comunidade a que serve. Ninguém tão exposto à observação e à crítica”. Quando a esta condição soma-se a inexperiência da juventude, multiplicam-se as dificuldades, especialmente numa religião que reverencia a sabedoria acumulada com o tempo. A história de jovens mulheres que, como Lúcia, tiveram de assumir o comando de terreiros tradicionais não é recente – Mãe Menininha tinha 28 anos quando tornou-se a ialorixá do Gantois, em 1922 –, mas tampoucoéregra.Amédiadeidadedasmãesdesantosoteropolitanas é de 60 anos, bem superior à dos pais de santo, que é de 46. Os
JOÃO ALVAREZ / DIVULGAÇÃO
dadossãodoMapeamentodosTerreirosde Salvador, 2008, coordenado pelo pesquisador Jocélio Teles. Zaildes de Mello, iniciada para o vodum Azonsu, tinha 36 anos quando os búzios revelaram que era ela quem deveria estar à frente do centenário Terreiro do Bogum (Zoogodô Bogum Malê Rundó), de tradição jeje mahi. Recebeu a notícia como se estivesse vivendo um “pesadelo”. “Tinha muitos mais velhos na casa, não imaginava que essa responsabilidade ia caber a mim. Mas infelizmente não é como a gente quer, é como eles querem”. Seus planos eram mais prosaicos. Continuar cuidando da casa, do filho e do marido e entrar num cursinho pré-vestibular paraverserealizavaosonhodeestudarenfermagem. E, para falar a verdade, depois que mãe Nicinha, sua tia e mãe de santo, morreu, deixando o Bogum sem liderança por sete anos, ela decidiu que “não queria mais saber de candomblé”. Já tinha uma viagem marcada para o Rio de Janeiro quando pediram que ficasse, para acompanhar as revelações do oráculo. E foi o que foi. “Não queria essa vida, achava que não tinha estrutura, que não ia conseguir... Como tinha que andar, como tinha que me vestir? Mas tive muito apoio e estou aí há quase 10 anos”. Hoje, Nandoji Índia (também pode chamar por mãe Índia ou tia Índia, que ela atende) sente-se mais mulher com a nova família que ganhou para guiar. “Agradeço a Deus e aos voduns por estar aqui com saúde. Vou levando até o dia que eles quiserem, cumprindo minhas obrigações sem
Mãe Hildelice Benta de Oxalá, 51, do Terreiro Jitolu, no Curuzu
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Mas Lúcia, consagrada à divindade que na nação angola é chamada de Bamburucema, confessa que sua esperança era que dissesse para continuar esperando, e assim estaria absolvida da missão perpétua de zelar por sua família de santo. “É uma responsabilidade muito grande”. O que não é, de modo algum, reclamação. “Como aprendi candomblé brincando, correndo aqui pelo quintal, remedando o pessoal dançar, indo pegar folha no mato, não é algo que me pesa, não dói. É o normal”. E como resposta aos que acharam que ela não ia dar conta, a ex-auxiliar de enfermagem tratou foi de arrumar mais trabalho. Abriu o terreiro para oficinas gratuitas de tecelagem, capoeira, música e dança. E
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para ter onde mostrar tudo isso, criou em 2001 o bloco afro Bankoma. O resultado é que tem poucas lembranças do que seja uma folga. “Nossa liberdade aqui é vigiada. É o direito que a gente tem de poder fazer o que faz no dia a dia. Esse é o nosso lazer”.
O TEMPO
Mãe Valnízia de Ayrá, 52, do Terreiro do Cobre: gosto por música
Em 1977, o antropólogo Vivaldo da Costa Lima escreveu que “a vida de um líder de candomblé é muito menos sua do que da comunidade a que serve. Ninguém tão exposto à observação e à crítica”. Quando a esta condição soma-se a inexperiência da juventude, multiplicam-se as dificuldades, especialmente numa religião que reverencia a sabedoria acumulada com o tempo. A história de jovens mulheres que, como Lúcia, tiveram de assumir o comando de terreiros tradicionais não é recente – Mãe Menininha tinha 28 anos quando tornou-se a ialorixá do Gantois, em 1922 –, mas tampoucoéregra.Amédiadeidadedasmãesdesantosoteropolitanas é de 60 anos, bem superior à dos pais de santo, que é de 46. Os
JOÃO ALVAREZ / DIVULGAÇÃO
dadossãodoMapeamentodosTerreirosde Salvador, 2008, coordenado pelo pesquisador Jocélio Teles. Zaildes de Mello, iniciada para o vodum Azonsu, tinha 36 anos quando os búzios revelaram que era ela quem deveria estar à frente do centenário Terreiro do Bogum (Zoogodô Bogum Malê Rundó), de tradição jeje mahi. Recebeu a notícia como se estivesse vivendo um “pesadelo”. “Tinha muitos mais velhos na casa, não imaginava que essa responsabilidade ia caber a mim. Mas infelizmente não é como a gente quer, é como eles querem”. Seus planos eram mais prosaicos. Continuar cuidando da casa, do filho e do marido e entrar num cursinho pré-vestibular paraverserealizavaosonhodeestudarenfermagem. E, para falar a verdade, depois que mãe Nicinha, sua tia e mãe de santo, morreu, deixando o Bogum sem liderança por sete anos, ela decidiu que “não queria mais saber de candomblé”. Já tinha uma viagem marcada para o Rio de Janeiro quando pediram que ficasse, para acompanhar as revelações do oráculo. E foi o que foi. “Não queria essa vida, achava que não tinha estrutura, que não ia conseguir... Como tinha que andar, como tinha que me vestir? Mas tive muito apoio e estou aí há quase 10 anos”. Hoje, Nandoji Índia (também pode chamar por mãe Índia ou tia Índia, que ela atende) sente-se mais mulher com a nova família que ganhou para guiar. “Agradeço a Deus e aos voduns por estar aqui com saúde. Vou levando até o dia que eles quiserem, cumprindo minhas obrigações sem
Mãe Hildelice Benta de Oxalá, 51, do Terreiro Jitolu, no Curuzu
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fugir da regra”. Zaildes, que já foi doméstica e vendedora de shopping, vez ou outra pensa em voltar a estudar, mas nunca consegue encontrar tempo. “Mãe de santo não tem férias, nada... Não dá nem para se comparar com o presidente, o vereador ou o prefeito, porque aí são só quatro anos, não é?”, ri. Somadas as gerações todas da família que já estiveram à frente da casa, aí, sim, é ano que não acaba mais. Sua “voinha”, mãe Runhó (sacerdotisa entre 1925 e 1975), era tão querida e respeitada que ganhou busto no Engenho Velho da Federação, onde fica o Bogum. Quando tem uma folga, mãe Índia já sabe o que fazer. Corre para tomar um solzinho na Ribeira e comer um pirão. Ah, ela também é doida por uma novela.
DUPLICIDADE Ali mesmo, no Engenho Velho da Federação, há outra mulher que se acostumou a ter dupla identidade. No Terreiro do Cobre (Ilê Obá do Cobre), é mãe Valnízia de Ayrá. Quando seus afazeres terminam, é Valnízia Pereira de Oliveira, 52, que adora sair com seu companheiro para um barzinho, teatro ou cinema. “Também sou carnavalesca, viu? Amo dançar e ouvir uma boa música”. Sua outra paixão é ficar descansando na casinha que tem na Ilha de Itaparica. Foi lá que começou a escrever seu primeiro livro, Resistência e Fé, lançado em 2009. Queria que sua história fosse contada por suas próprias mãos e tratou de encher dois cadernos explicando como virou mãe de santo aos 26 anos, depois de ver o Cobre fechado por mais de três décadas. Última bisneta de famosa yalorixáFlavianaBianchi,Valníziaassumiuopostoqueseriadesua mãe, que nunca quis aceitar o cargo. “Ela estava muito doente e algomediziaquenãoeradoençademédico.AípediajudaaXangô. Disse que, se ela ficasse boa, viria tomar conta dele”. Desde esse dia, não saiu mais de lá. Teve que reconstruir a casa, de nação ketu, e comprovar que ali funcionava um terreiro secular, para conseguir recuperar parte da roça que estava ocupada. Fácil não foi, mas hoje ela esbanja a tranquilidade de quem conquistou a confiança do povo de santo e da comunidade. “Lembro que nos primeiros dias chegou uma senhora e falou: ‘É essa menina que vai assumir o Cobre?’. Eu não podia dizer nada, porque ela estava certa... Também me questionei muito, não tinha experiência, não conhecianada.Mastiveaajudadosmeusmaisvelhos,e,naverdade, ninguém sabe tudo. Cada lugar é diferente do outro, e diferente não é errado, não é minha filha?”. Para registrar as lições que aprendeu no Cobre, a ex-funcionária pública tratou de publicar um outro livro, Aprendo Ensinando: experiências num espaço religioso, de 2011, e já está pensando no
RAUL SPINASSÉ / AG. A TARDE
Mãe Índia, 46, do Terreiro do Bogum: sem tempo para férias
terceiro, em que quer refletir sobre os valores que andam meio esquecidos. Como o respeito, por exemplo. O Cobre funciona em frente a uma igreja evangélica e depois de lamentáveis episódios de discriminação, mãe Val teve a ideia de criar uma caminhada pela liberdade religiosa, que no ano passado chegou à sétima edição. “Nós não estamos ali para exigir tolerância, mesmo porque chegamos antes de todos eles. O que exigimos é respeito. E hoje é muito mais para pedir paz. Isso é o mais importante”.
TATUAGEM Encostada numa mureta do Terreiro Jitolu (Ilê Axé Jitolu), na Liberdade, Doné Hildelice Benta de Oxalá, 51, faz troça da sua modernidade. “Já viu mãe de santo de tatuagem”? O nome marcado no braço é uma homenagem à filha, Micaela Jawale, 13, e ela está pensando em fazer outra, para levar no corpo a memória da sua mãe, a ialorixá Hilda Jitolu, que abriu o terreiro jeje em 1952 e faleceu em 2009. Algum tempo depois, em 7 de agosto de 2011, a caçula Hildelice tornou-se líder da casa, por escolha dos búzios. Chorou de emoção, mas depois ficou apreensiva com a nova vida que ganhava. “Não é que eu não queria, mas demorei um tempo para aceitar. Mas é como mãe dizia, o candomblé é uma escola da vida”. Há menos de um ano no cargo, ela já sente mu-
danças no seu jeito de ser. “Antes, eu era muito nervosa, mandona, e agora estou mais humilde, parando mais para ouvir as pessoas”. Mesmo quando não está ali, ouvir é o que Hildelice mais faz. Formada em pedagogia, ela dirige, desde 2004, a Escola Mãe Hilda, projeto social do Ilê Aiyê que reúne 200 estudantes. Todos os dias tem um pequeno conflito a ser mediado, envolvendo desavenças, microshorts e atrasos. Ainda assim, ela diz que otrabalhonãolhedádordecabeça–esuaempolgaçãoétantaque não resta outra opção senão acreditar. Mal termina a entrevista, corre para dentro da casa onde vive desde que nasceu para se despir do traje solene. Volta refeita – saia no joelho, blusa cavada, cabelo solto. É, de novo, a tia Deli, correndo para ver se chega antes de os alunos deixarem a escola. «
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fugir da regra”. Zaildes, que já foi doméstica e vendedora de shopping, vez ou outra pensa em voltar a estudar, mas nunca consegue encontrar tempo. “Mãe de santo não tem férias, nada... Não dá nem para se comparar com o presidente, o vereador ou o prefeito, porque aí são só quatro anos, não é?”, ri. Somadas as gerações todas da família que já estiveram à frente da casa, aí, sim, é ano que não acaba mais. Sua “voinha”, mãe Runhó (sacerdotisa entre 1925 e 1975), era tão querida e respeitada que ganhou busto no Engenho Velho da Federação, onde fica o Bogum. Quando tem uma folga, mãe Índia já sabe o que fazer. Corre para tomar um solzinho na Ribeira e comer um pirão. Ah, ela também é doida por uma novela.
DUPLICIDADE Ali mesmo, no Engenho Velho da Federação, há outra mulher que se acostumou a ter dupla identidade. No Terreiro do Cobre (Ilê Obá do Cobre), é mãe Valnízia de Ayrá. Quando seus afazeres terminam, é Valnízia Pereira de Oliveira, 52, que adora sair com seu companheiro para um barzinho, teatro ou cinema. “Também sou carnavalesca, viu? Amo dançar e ouvir uma boa música”. Sua outra paixão é ficar descansando na casinha que tem na Ilha de Itaparica. Foi lá que começou a escrever seu primeiro livro, Resistência e Fé, lançado em 2009. Queria que sua história fosse contada por suas próprias mãos e tratou de encher dois cadernos explicando como virou mãe de santo aos 26 anos, depois de ver o Cobre fechado por mais de três décadas. Última bisneta de famosa yalorixáFlavianaBianchi,Valníziaassumiuopostoqueseriadesua mãe, que nunca quis aceitar o cargo. “Ela estava muito doente e algomediziaquenãoeradoençademédico.AípediajudaaXangô. Disse que, se ela ficasse boa, viria tomar conta dele”. Desde esse dia, não saiu mais de lá. Teve que reconstruir a casa, de nação ketu, e comprovar que ali funcionava um terreiro secular, para conseguir recuperar parte da roça que estava ocupada. Fácil não foi, mas hoje ela esbanja a tranquilidade de quem conquistou a confiança do povo de santo e da comunidade. “Lembro que nos primeiros dias chegou uma senhora e falou: ‘É essa menina que vai assumir o Cobre?’. Eu não podia dizer nada, porque ela estava certa... Também me questionei muito, não tinha experiência, não conhecianada.Mastiveaajudadosmeusmaisvelhos,e,naverdade, ninguém sabe tudo. Cada lugar é diferente do outro, e diferente não é errado, não é minha filha?”. Para registrar as lições que aprendeu no Cobre, a ex-funcionária pública tratou de publicar um outro livro, Aprendo Ensinando: experiências num espaço religioso, de 2011, e já está pensando no
RAUL SPINASSÉ / AG. A TARDE
Mãe Índia, 46, do Terreiro do Bogum: sem tempo para férias
terceiro, em que quer refletir sobre os valores que andam meio esquecidos. Como o respeito, por exemplo. O Cobre funciona em frente a uma igreja evangélica e depois de lamentáveis episódios de discriminação, mãe Val teve a ideia de criar uma caminhada pela liberdade religiosa, que no ano passado chegou à sétima edição. “Nós não estamos ali para exigir tolerância, mesmo porque chegamos antes de todos eles. O que exigimos é respeito. E hoje é muito mais para pedir paz. Isso é o mais importante”.
TATUAGEM Encostada numa mureta do Terreiro Jitolu (Ilê Axé Jitolu), na Liberdade, Doné Hildelice Benta de Oxalá, 51, faz troça da sua modernidade. “Já viu mãe de santo de tatuagem”? O nome marcado no braço é uma homenagem à filha, Micaela Jawale, 13, e ela está pensando em fazer outra, para levar no corpo a memória da sua mãe, a ialorixá Hilda Jitolu, que abriu o terreiro jeje em 1952 e faleceu em 2009. Algum tempo depois, em 7 de agosto de 2011, a caçula Hildelice tornou-se líder da casa, por escolha dos búzios. Chorou de emoção, mas depois ficou apreensiva com a nova vida que ganhava. “Não é que eu não queria, mas demorei um tempo para aceitar. Mas é como mãe dizia, o candomblé é uma escola da vida”. Há menos de um ano no cargo, ela já sente mu-
danças no seu jeito de ser. “Antes, eu era muito nervosa, mandona, e agora estou mais humilde, parando mais para ouvir as pessoas”. Mesmo quando não está ali, ouvir é o que Hildelice mais faz. Formada em pedagogia, ela dirige, desde 2004, a Escola Mãe Hilda, projeto social do Ilê Aiyê que reúne 200 estudantes. Todos os dias tem um pequeno conflito a ser mediado, envolvendo desavenças, microshorts e atrasos. Ainda assim, ela diz que otrabalhonãolhedádordecabeça–esuaempolgaçãoétantaque não resta outra opção senão acreditar. Mal termina a entrevista, corre para dentro da casa onde vive desde que nasceu para se despir do traje solene. Volta refeita – saia no joelho, blusa cavada, cabelo solto. É, de novo, a tia Deli, correndo para ver se chega antes de os alunos deixarem a escola. «