Mia Couto

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SALVADOR DOMINGO 28/8/2011

SALVADOR DOMINGO 28/8/2011

ABRE ASPAS MIA COUTO ESCRITOR

«Eu

não sinto que tenho raça» Texto TATIANA MENDONÇA tmendonca@grupoatarde.com.br Foto MARCO AURÉLIO MARTINS mmartins@grupoatarde.com.br

Antônio Emílio Leite Couto rebatizou-se Mia ainda muito pequeno, por achar-se mais próximo dos gatos que das gentes. Era só a primeira das suas intervenções literárias. Viriam outras, em forma de poemas e romances. Mia tornou-se um dos maiores escritores de língua portuguesa, mas, como persistiu felino, fez questão de formar-se também biólogo. Outra simbiose, de distinto caráter, tem com Moçambique. “Se as coisas correrem como sonho, vou viver todo o tempo lá”. Quando nasceu, há 56 anos, o país era colônia portuguesa. Rebelou-se contra a terra de seus pais e passou a integrar a Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) na luta pela independência. Hoje assiste ao esforço do país para consolidar sua democracia. No começo do mês, Mia esteve em Salvador para participar do VII Enecult – Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura e do 11º Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais. Aproveitou a oportunidade para lançar E se Obama fosse africano?, livro de ensaios. Enquanto viaja, encontra brechas para trabalhar no seu próximo romance. “Não sei se é por medo de avião, mas assim que me sento naquela lata voadora, já começo a escrever”.

O senhor diz que E se Obama fosse africano? cumpre “a missão de intervenção social que a mim mesmo me incumbo como cidadão e como escritor”. De que modo esse sentimento sobrevive nos seus livros ficcionais? Ele está presente de uma outra maneira. Quando estou fazendo literatura, tenho que reelaborar aquilo que seria uma intervenção de natureza política, tenho que convertê-la numa outra coisa, numa outra linguagem. Mas evidente que há nesse livro uma intenção no sentido de intranquilizar as pessoas, de inquietar, pelo menos... De que se entenda que questionar os fundamentos desse nosso mundo pode ser uma coisa que dá prazer, de que não se tenha medo de fazer isso. Nas suas palestras, o senhor sempre usa como exemplos acontecimentos de comunidades rurais africanas. Como essa aproximação com essa forma de viver alimenta sua literatura? Tenho um privilégio enorme porque aquilo que faço como profissão, que é a biologia, me deixa muito próximo daquilo que faço como prazer, que é a literatura. A linha de fronteira entre uma coisa e outra, para mim, é muito tênue. Eu sou mau cientista, no sentido de que não tenho grandes certezas, e não acho que a ciência dá todas as respostas. É preciso se ter outras linguagens, outras aproximações que muitas vezes só podem vir da poesia, não é? O lugar de onde eu vim me ajuda, porque nessa África é impossível olhar para uma árvore só como uma entidade biológica. Quando olho para uma árvore, tenho que ver que essa árvore é um conjunto de outras coisas, é uma residência de espíritos, é um lugar de mortos, é um refúgio. Há ali uma multiplicidade de olhares que me ensinam, me ajudam. Eu, ademais, quero manter comigo próprio uma vida que me ponha em causa a mim, as minhas fraquezas. Quero não ter medo de ser ignorante, quero poder confessar que estou perdido. O senhor teme quando está escrevendo que esse encantamento soe piegas para alguns leitores? Eu entendo a sua pergunta. Às vezes, o que estou transmitindo é muito forte mesmo. Por exemplo, quando me

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ABRE ASPAS MIA COUTO ESCRITOR

«Eu

não sinto que tenho raça» Texto TATIANA MENDONÇA tmendonca@grupoatarde.com.br Foto MARCO AURÉLIO MARTINS mmartins@grupoatarde.com.br

Antônio Emílio Leite Couto rebatizou-se Mia ainda muito pequeno, por achar-se mais próximo dos gatos que das gentes. Era só a primeira das suas intervenções literárias. Viriam outras, em forma de poemas e romances. Mia tornou-se um dos maiores escritores de língua portuguesa, mas, como persistiu felino, fez questão de formar-se também biólogo. Outra simbiose, de distinto caráter, tem com Moçambique. “Se as coisas correrem como sonho, vou viver todo o tempo lá”. Quando nasceu, há 56 anos, o país era colônia portuguesa. Rebelou-se contra a terra de seus pais e passou a integrar a Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) na luta pela independência. Hoje assiste ao esforço do país para consolidar sua democracia. No começo do mês, Mia esteve em Salvador para participar do VII Enecult – Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura e do 11º Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais. Aproveitou a oportunidade para lançar E se Obama fosse africano?, livro de ensaios. Enquanto viaja, encontra brechas para trabalhar no seu próximo romance. “Não sei se é por medo de avião, mas assim que me sento naquela lata voadora, já começo a escrever”.

O senhor diz que E se Obama fosse africano? cumpre “a missão de intervenção social que a mim mesmo me incumbo como cidadão e como escritor”. De que modo esse sentimento sobrevive nos seus livros ficcionais? Ele está presente de uma outra maneira. Quando estou fazendo literatura, tenho que reelaborar aquilo que seria uma intervenção de natureza política, tenho que convertê-la numa outra coisa, numa outra linguagem. Mas evidente que há nesse livro uma intenção no sentido de intranquilizar as pessoas, de inquietar, pelo menos... De que se entenda que questionar os fundamentos desse nosso mundo pode ser uma coisa que dá prazer, de que não se tenha medo de fazer isso. Nas suas palestras, o senhor sempre usa como exemplos acontecimentos de comunidades rurais africanas. Como essa aproximação com essa forma de viver alimenta sua literatura? Tenho um privilégio enorme porque aquilo que faço como profissão, que é a biologia, me deixa muito próximo daquilo que faço como prazer, que é a literatura. A linha de fronteira entre uma coisa e outra, para mim, é muito tênue. Eu sou mau cientista, no sentido de que não tenho grandes certezas, e não acho que a ciência dá todas as respostas. É preciso se ter outras linguagens, outras aproximações que muitas vezes só podem vir da poesia, não é? O lugar de onde eu vim me ajuda, porque nessa África é impossível olhar para uma árvore só como uma entidade biológica. Quando olho para uma árvore, tenho que ver que essa árvore é um conjunto de outras coisas, é uma residência de espíritos, é um lugar de mortos, é um refúgio. Há ali uma multiplicidade de olhares que me ensinam, me ajudam. Eu, ademais, quero manter comigo próprio uma vida que me ponha em causa a mim, as minhas fraquezas. Quero não ter medo de ser ignorante, quero poder confessar que estou perdido. O senhor teme quando está escrevendo que esse encantamento soe piegas para alguns leitores? Eu entendo a sua pergunta. Às vezes, o que estou transmitindo é muito forte mesmo. Por exemplo, quando me

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confronto com a infelicidade dos outros, com a guerra, a fome, a miséria. É realmente muito apelativo, muito forte. Um escritor deve aprender a ter essa contenção, essa capacidade de não fazer um apelo muito simplista para o sentimento, muito piegas, como você disse. E aí é um jogo, quando se escreve é uma grande felicidade poder manter esses cordéis na mão. Mas em algum momento o senhor se considera piegas? Cada vez mais, agora sim (risos). Eu, até os meus 40 anos, tinha uma coisa para mim que eu não sabia chorar. Quase me inscrevi num curso “Chorar sem medo – Sete dias de treinamento intenso”. Mas agora é mais fácil virem-me as lágrimas. Continuo sem saber chorar, mas sou mais facilmente invadido pelos sentimentos, que me transportam e me roubam de mim próprio. Num dos ensaios de E se Obama fosse africano?, o senhor diz que o que todos nós queremos é “anular o tempo e fazer adormecer a morte”. Escrever é uma maneira de alcançar isso? Lembro as palavras de uma poetisa portuguesa que me marcou muito, chamada Sophia de Mello Breyner Andersen. Ela diz que percebeu que tinha que escrever quando os filhos estavam muito doentes e ela tinha que adormecê-los, então contava-lhes histórias. Acho que escrever é uma maneira de adormecer o mundo, é como se o mundo estivesse no nosso colo e fosse preciso encantá-lo com uma história. É a maneira pelo menos que eu gosto de ver a vida.

«Quero manter comigo uma vida que ponha em causa as minhas fraquezas. Quero não ter medo de ser ignorante, quero poder confessar que estou perdido»

Mas o senhor já aprendeu a lidar com a passagem do tempo sem angustiar-se? Digo sempre com uma certa presunção que aprendi, mas não aprendi nada (risos). Tem sempre alguma coisa que me faz pensar que eu tropeço na idade, que tenho tempo marcado de vida... Mas isso acontece com todo mundo. Essa é a terceira vez que o senhor vem a Salvador. Que aproximações vê entre a Bahia e a África, sendo essa ligação tão reivindicada por aqui? Eu vejo semelhanças em coisas que têm a ver com uma certa religiosidade. Não uma religião, mas a religiosidade. A maneira como se olha a tristeza, o corpo, o tempo está muito patente em lugares onde a influência da escravatura se fez presente. Mas acho também que muitas vezes se pensa que

é africano algo que já é profundamente brasileiro, algo que foi fabricado aqui. Agora, por exemplo, vínhamos do almoço e havia uma grande animação para mostrar: ‘Ah, vocês lá na África comem esses pratos com dendê?’. E na nossa África não conhecemos. Na África Ocidental, sim, mas na África Oriental, não. Há várias Áfricas, e é preciso ter cuidado com essas simplificações, assim como há vários Brasis. Há uma coisa ardilosa de tentar dizer que o Brasil é uma certa coisa e depois tem ali à volta uns adereços africanos, quando, na verdade, essa herança compôs o Brasil tão profundamen-

te... Porque ninguém fala em relação à herança europeia do Brasil. Ninguém diz: ‘Ah, vem cá ver como o Brasil tem influências europeias’. A maioria das pessoas tem uma imagem datada da África como um lugar de atraso, miséria, violência. Como o senhor costuma responder a isso? Tinha uma grande pressa e uma grande vontade de responder a essas coisas, mas encontrei uma forma mais simples, que é... Essa repartição da desgraça do mundo já não está tão polarizada assim. Hoje, nações que se apresentavam como estáveis, ricas, etc. se anunciam mais

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pobres do que parecem, com problemas sociais e financeiros gravíssimos, com níveis de violência que são bem próximos dos africanos e com sinais de corrupção que antigamente eram só vistos como sendo próprios do terceiro mundo. Por outro lado, também entendo que não temos que provar grande coisa porque... Veja o que aconteceu agora na Noruega. É de um nível de agressividade, de irracionalidade... Por outro lado, a África tem que batalhar para se afirmar naquilo que é positivo e não estar à espera de que os jornalistas do mundo vão lá descobrir, porque esses jornalistas só vão


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confronto com a infelicidade dos outros, com a guerra, a fome, a miséria. É realmente muito apelativo, muito forte. Um escritor deve aprender a ter essa contenção, essa capacidade de não fazer um apelo muito simplista para o sentimento, muito piegas, como você disse. E aí é um jogo, quando se escreve é uma grande felicidade poder manter esses cordéis na mão. Mas em algum momento o senhor se considera piegas? Cada vez mais, agora sim (risos). Eu, até os meus 40 anos, tinha uma coisa para mim que eu não sabia chorar. Quase me inscrevi num curso “Chorar sem medo – Sete dias de treinamento intenso”. Mas agora é mais fácil virem-me as lágrimas. Continuo sem saber chorar, mas sou mais facilmente invadido pelos sentimentos, que me transportam e me roubam de mim próprio. Num dos ensaios de E se Obama fosse africano?, o senhor diz que o que todos nós queremos é “anular o tempo e fazer adormecer a morte”. Escrever é uma maneira de alcançar isso? Lembro as palavras de uma poetisa portuguesa que me marcou muito, chamada Sophia de Mello Breyner Andersen. Ela diz que percebeu que tinha que escrever quando os filhos estavam muito doentes e ela tinha que adormecê-los, então contava-lhes histórias. Acho que escrever é uma maneira de adormecer o mundo, é como se o mundo estivesse no nosso colo e fosse preciso encantá-lo com uma história. É a maneira pelo menos que eu gosto de ver a vida.

«Quero manter comigo uma vida que ponha em causa as minhas fraquezas. Quero não ter medo de ser ignorante, quero poder confessar que estou perdido»

Mas o senhor já aprendeu a lidar com a passagem do tempo sem angustiar-se? Digo sempre com uma certa presunção que aprendi, mas não aprendi nada (risos). Tem sempre alguma coisa que me faz pensar que eu tropeço na idade, que tenho tempo marcado de vida... Mas isso acontece com todo mundo. Essa é a terceira vez que o senhor vem a Salvador. Que aproximações vê entre a Bahia e a África, sendo essa ligação tão reivindicada por aqui? Eu vejo semelhanças em coisas que têm a ver com uma certa religiosidade. Não uma religião, mas a religiosidade. A maneira como se olha a tristeza, o corpo, o tempo está muito patente em lugares onde a influência da escravatura se fez presente. Mas acho também que muitas vezes se pensa que

é africano algo que já é profundamente brasileiro, algo que foi fabricado aqui. Agora, por exemplo, vínhamos do almoço e havia uma grande animação para mostrar: ‘Ah, vocês lá na África comem esses pratos com dendê?’. E na nossa África não conhecemos. Na África Ocidental, sim, mas na África Oriental, não. Há várias Áfricas, e é preciso ter cuidado com essas simplificações, assim como há vários Brasis. Há uma coisa ardilosa de tentar dizer que o Brasil é uma certa coisa e depois tem ali à volta uns adereços africanos, quando, na verdade, essa herança compôs o Brasil tão profundamen-

te... Porque ninguém fala em relação à herança europeia do Brasil. Ninguém diz: ‘Ah, vem cá ver como o Brasil tem influências europeias’. A maioria das pessoas tem uma imagem datada da África como um lugar de atraso, miséria, violência. Como o senhor costuma responder a isso? Tinha uma grande pressa e uma grande vontade de responder a essas coisas, mas encontrei uma forma mais simples, que é... Essa repartição da desgraça do mundo já não está tão polarizada assim. Hoje, nações que se apresentavam como estáveis, ricas, etc. se anunciam mais

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pobres do que parecem, com problemas sociais e financeiros gravíssimos, com níveis de violência que são bem próximos dos africanos e com sinais de corrupção que antigamente eram só vistos como sendo próprios do terceiro mundo. Por outro lado, também entendo que não temos que provar grande coisa porque... Veja o que aconteceu agora na Noruega. É de um nível de agressividade, de irracionalidade... Por outro lado, a África tem que batalhar para se afirmar naquilo que é positivo e não estar à espera de que os jornalistas do mundo vão lá descobrir, porque esses jornalistas só vão


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olhar para a África quando houver guerras e fomes e catástrofes. Portanto, há um trabalho de casa que temos que fazer. Basta que houvesse um personagem como Nelson Mandela para voltar a crença na própria política. O próprio caso de Moçambique é um caso fantástico, quase miraculoso. É uma nação que esteve completamente destruída por uma guerra civil de 16 anos, com um milhão de mortos, e soube construir a paz, a democracia. Hoje é uma nação não próspera, ainda, mas com níveis de crescimento que podem fazer inveja a outras nações. Houve, nos últimos anos, uma aproximação da política brasileira com a África, mas muitos criticaram a proximidade com ditadores. Como o senhor vê isso? Não queria estar a comentar a política externa do Brasil (risos), mas os africanos são muito abertos a uma coisa que se pode chamar de envolvimento positivo, que é, em vez de excluir, tentar tirar alguma influência a partir de dentro, a partir do diálogo. Não sou muito simpático em relação a certos níveis de tolerância que se tem. Agora quero afirmar claramente que já não estou a falar do Brasil... O que digo é que parte das elites africanas têm cumplicidades que não são muito positivas. Em O último voo do flamingo, o personagem diz: “Na minha vila, havia agora tanta injustiça quanto no tempo colonial. Parecia de outro modo que esse tempo não terminara. Estava era sendo gerido por pessoas de outra raça”. O senhor mantém esse sentimento de uma certa neocolonização?

«Resolver (sobre cotas) problemas sociais de uma herança histórica por uma via administrativa me parece perigoso»

E SE OBAMA FOSSE AFRICANO? Mia Couto Companhia das Letras 208 páginas R$ 35

O que falo vale para toda a África, porque me parece que a ideia de querer essa arrumação do mundo, de que o colonialismo começou aqui, acabou aí, e, agora, vamos seguir a outro ponto, ao pós-colonialismo, é uma ideia ingênua. Sempre houve uma relação cúmplice, e o colonialismo foi feito tal e qual a escravatura, há duas mãos, uma a partir de dentro e outra a partir de fora. Não foi um esquema exterior à África. A África teve níveis de participação de elites pequenas contra a maioria dos africanos que se prolongaram depois. Isso é algo que sempre existiu. E depois escreveu-se a história de uma maneira que teve um certo sentimento de culpa europeu. Juntou-se a isso uma certa oportunidade de os africanos se afirmarem, escolhendo uma via muito maniqueísta daquilo que seria sua própria história. E isso convinha, porque nos colocava na posição de objeto de eterna vitimização. O senhor costuma dizer que “a história está em dívida com todos e não paga a ninguém”. O argumento da dívida é o que sustenta filosoficamente as cotas no Brasil. O que pensa disso? Não quero comentar muito sobre isso, porque é uma realidade que não acompanho. Mas em Moçambique eu seria inimigo de que isso fosse feito. Bom, mas não teria sentido de ser feito, porque Moçambique é um país negro. Se houvesse cotas lá, teria que ser ao contrário, a favor dos brancos. De fato, houve um grupo que foi vítima, mas resolver proble-

mas sociais de uma certa herança histórica por uma via administrativa me parece perigoso... E como é para o senhor ser branco em Moçambique? Essa questão se coloca? Não. Na maior parte do tempo eu não sinto que tenho raça. Mas quando participei da luta política (pela independência), estava avisado de que não poderia participar da luta armada. Se eu quisesse ser uma espécie de Che Guevara no meu próprio país, não o podia ser, porque brancos não podiam pegar em armas. Havia um certo grupo mais racista dentro da Frelimo que achava

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que não se podia confiar a esse ponto, porque no momento crucial de o branco ter que disparar contra outro branco, que seria o inimigo português, ele poderia repensar.

tenho um diálogo infinito para fazer, mesmo quando estou sozinho. Sou habitado por seres que antes eram só figurativos, eram só uma espécie daquilo que se chama paisagem.

Como seu trabalho como biólogo se funde à literatura? O que mais gosto na biologia é que ela me ajuda a descobrir linguagens, formas de falar com árvores, com os animais, não só no sentido poético. Quando olho uma árvore, sei o que ela quer dizer ao ter certo tipo de forma, de flor. Isso me alargou o horizonte. Tenho uma grande felicidade porque, quando chego a um lugar,

Sobre o que o senhor está escrevendo? Estou acabando um romance que se passa no norte de Moçambique e tem a ver com um fenômeno verídico, quando um grupo de leões matou 26 pessoas em quatro meses. Estava nessa área quando isso aconteceu e foi algo que me marcou muito. Então precisei escrever essa história para me defender desse trauma, dessa coisa tão terrível. «


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olhar para a África quando houver guerras e fomes e catástrofes. Portanto, há um trabalho de casa que temos que fazer. Basta que houvesse um personagem como Nelson Mandela para voltar a crença na própria política. O próprio caso de Moçambique é um caso fantástico, quase miraculoso. É uma nação que esteve completamente destruída por uma guerra civil de 16 anos, com um milhão de mortos, e soube construir a paz, a democracia. Hoje é uma nação não próspera, ainda, mas com níveis de crescimento que podem fazer inveja a outras nações. Houve, nos últimos anos, uma aproximação da política brasileira com a África, mas muitos criticaram a proximidade com ditadores. Como o senhor vê isso? Não queria estar a comentar a política externa do Brasil (risos), mas os africanos são muito abertos a uma coisa que se pode chamar de envolvimento positivo, que é, em vez de excluir, tentar tirar alguma influência a partir de dentro, a partir do diálogo. Não sou muito simpático em relação a certos níveis de tolerância que se tem. Agora quero afirmar claramente que já não estou a falar do Brasil... O que digo é que parte das elites africanas têm cumplicidades que não são muito positivas. Em O último voo do flamingo, o personagem diz: “Na minha vila, havia agora tanta injustiça quanto no tempo colonial. Parecia de outro modo que esse tempo não terminara. Estava era sendo gerido por pessoas de outra raça”. O senhor mantém esse sentimento de uma certa neocolonização?

«Resolver (sobre cotas) problemas sociais de uma herança histórica por uma via administrativa me parece perigoso»

E SE OBAMA FOSSE AFRICANO? Mia Couto Companhia das Letras 208 páginas R$ 35

O que falo vale para toda a África, porque me parece que a ideia de querer essa arrumação do mundo, de que o colonialismo começou aqui, acabou aí, e, agora, vamos seguir a outro ponto, ao pós-colonialismo, é uma ideia ingênua. Sempre houve uma relação cúmplice, e o colonialismo foi feito tal e qual a escravatura, há duas mãos, uma a partir de dentro e outra a partir de fora. Não foi um esquema exterior à África. A África teve níveis de participação de elites pequenas contra a maioria dos africanos que se prolongaram depois. Isso é algo que sempre existiu. E depois escreveu-se a história de uma maneira que teve um certo sentimento de culpa europeu. Juntou-se a isso uma certa oportunidade de os africanos se afirmarem, escolhendo uma via muito maniqueísta daquilo que seria sua própria história. E isso convinha, porque nos colocava na posição de objeto de eterna vitimização. O senhor costuma dizer que “a história está em dívida com todos e não paga a ninguém”. O argumento da dívida é o que sustenta filosoficamente as cotas no Brasil. O que pensa disso? Não quero comentar muito sobre isso, porque é uma realidade que não acompanho. Mas em Moçambique eu seria inimigo de que isso fosse feito. Bom, mas não teria sentido de ser feito, porque Moçambique é um país negro. Se houvesse cotas lá, teria que ser ao contrário, a favor dos brancos. De fato, houve um grupo que foi vítima, mas resolver proble-

mas sociais de uma certa herança histórica por uma via administrativa me parece perigoso... E como é para o senhor ser branco em Moçambique? Essa questão se coloca? Não. Na maior parte do tempo eu não sinto que tenho raça. Mas quando participei da luta política (pela independência), estava avisado de que não poderia participar da luta armada. Se eu quisesse ser uma espécie de Che Guevara no meu próprio país, não o podia ser, porque brancos não podiam pegar em armas. Havia um certo grupo mais racista dentro da Frelimo que achava

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que não se podia confiar a esse ponto, porque no momento crucial de o branco ter que disparar contra outro branco, que seria o inimigo português, ele poderia repensar.

tenho um diálogo infinito para fazer, mesmo quando estou sozinho. Sou habitado por seres que antes eram só figurativos, eram só uma espécie daquilo que se chama paisagem.

Como seu trabalho como biólogo se funde à literatura? O que mais gosto na biologia é que ela me ajuda a descobrir linguagens, formas de falar com árvores, com os animais, não só no sentido poético. Quando olho uma árvore, sei o que ela quer dizer ao ter certo tipo de forma, de flor. Isso me alargou o horizonte. Tenho uma grande felicidade porque, quando chego a um lugar,

Sobre o que o senhor está escrevendo? Estou acabando um romance que se passa no norte de Moçambique e tem a ver com um fenômeno verídico, quando um grupo de leões matou 26 pessoas em quatro meses. Estava nessa área quando isso aconteceu e foi algo que me marcou muito. Então precisei escrever essa história para me defender desse trauma, dessa coisa tão terrível. «


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