Morte e vida

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Você tem onde

cair morto? S Texto TATIANA MENDONÇA tmendonca@grupoatarde.com.br Ilustrações TÚLIO CARAPIÁ tcarapia@grupoatarde.com.br

E eis que a “indesejada das gentes” chega, não tem como escapar. Se viver anda pela hora da morte, a encenação final não haveria de ser diferente. Muito foi pesquisar quanto custa deixar o mundo

endo ocorrência única, algum desavisado diria que não dá para falar em experiência quando se trata da morte. Mas quem trabalha vendo a devastação no rosto dos que ficam acaba entendendo mais do assunto. "Você já perdeu algum parente?", pergunta, com certo ar de superioridade, a gerente da funerária A Decorativa, em Brotas. É que a repórter queria saber a média de preços dos caixões. "Não é só isso, entendeu? Tem a remoção do corpo, a locomoção, a ornamentação e a documentação. Ninguém sai daqui com o caixão na cabeça".

Hum, claro. Mas, então, quanto é o "pacote fúnebre"? Ela diz que o mais barato custa R$ 550, a média fica em R$ 1.500. Vai encarecendo se o caixão vier de outros Estados, ou de outros países, como é o caso do mais caro da loja: R$ 6 mil. O que ele tem que os outros não têm: "É americano, mais pesado, tem mais madeira, duas portas de abertura...", como aqueles que a gente vê em filme. É esse caixão que está na entrada da funerária, dando as boas-vindas, se for possível falar assim. Pergunto se o negócio é lucrativo. “Lucro dá, né, como qualquer outro comércio”. De acordo com a Associação Brasileira


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de Empresas e Diretores Funerários, o setor movimenta entre R$ 400 e R$ 500 milhões por ano, no Brasil. Glória Cerqueira, a gerente, chuta que existam na cidade cerca de 100 funerárias – na lista telefônica, são 55. Só A Decorativa tem seis lojas. A funerária é uma das mais antigas da cidade. Pelas contas de Francisco Bonadia, subgerente da matriz, na Federação (próximo ao Campo Santo), são pelo menos 120anos.Eleestáláhábemmenostempo, 27. “Pensa que enterrar gente é fácil? Dá muito trabalho”. Diz que já acostumou, mas a voz ainda embarga quando lembra das histórias que costuma ouvir. “A gente sente muito, se comove. Não é que a gente deseje a morte de ninguém”.

TANATOPRAXIA Como serviço extra, a funerária oferece cabelo e pintura para o defunto, sem cobrar. “Mas não é igual lá nos Estados Unidos, em que eles conseguem recuperar mesmo o físico da pessoa”. Funerárias, em São Paulo, já oferecem a técnica, conhecida como tanatopraxia, e o serviço custa em média R$ 450. Na funerária Alternativa, que tem lojas na ladeira do Campo Santo e em São Marcos, os caixões – ou “urnas” – custam a partirdeR$280.Opreçopelotransladodocorpo varia entre R$ 80 e R$ 100, e a documentação, entre R$ 5 e R$ 15 (regime de plantão). Está achando meio caro? Pois, saiba que a parte do caixão é a mais barata. O espanhol Delmiro Perez, que também trabalha na Decorativa, é taxativo: “O principal adversário da funerária é o cemitério, que cobra caro demais”. No Jardim da Saudade, em Brotas, a morada eterna custa R$ 7.500, valor que inclui o lote (R$ 5.600) e a preparação do jazigo (concreto, lápide, suporte e grava-

ção do número). As despesas de sepultamentosomamoutrosR$750,divididosentre o custo do velório (R$ 250) e taxas (R$ 500).Total:R$8.250.Ah,paragravaronome na lápide são R$ 3,50 por letra. E ainda tem a taxa de manutenção, R$ 100 por ano. "Você acha que é barato manter todo esse jardim?", pergunta Alcides Santana, administrador do cemitério. O preço, no cemitério Bosque da Paz, em Nova Brasília, é mais em conta e dá para passar a eternidade ouvindo música clássica – há caixinhas de som espalhadas portodaaárea.Ocusto:R$5.115,taxasde sepultamento inclusas. Ainda é preciso desembolsar, anualmente, R$ 114, pelo custo da manutenção. Quem não puder ter parasemprepodealugarportrêsanos,por R$ 1.725.

COLUMBÁRIO Uma opção para quem tem asco de minhoca e outros bichos, ou até mesmo sofre de claustrofobia – não que isso realmente conte quando você estiver morto – é a cremação. A única opção é no Jardim da Saudade, e o custo é de R$ 2.200. A urna para depositar as cinzas sai por R$ 200. A cerimônia costuma durar cerca de 30 minutos. Os parentes podem fazer discursos, e há opções de trilhas sonoras até o caixão descer, simulando um enterro. O caixão é cremado junto com o corpo – as alças e tampos de vidro, se houver, são retirados. "A gente ainda não tem essa cultura de queimar só o corpo não", diz Alcides. Quem não quiser jogar as cinzas no mar ou enterrá-las no jardim de casa pode deixar a urna no cemitério, num espaço chamado de columbário. A taxa de manutenção, também anual, é de R$ 200. O cemitério Jardim da Saudade ainda oferece aos clientes a opção do ossuário (gavetas), cujo preço é de R$ 1.800 – por


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um espaço para dois corpos. Claro que também há uma taxa de manutenção anual: R$ 40. Alcides corre a lembrar que o Jardim da Saudade é uma ONG e que toda a renda é revertida para o Abrigo do Salvador, asilo que fica anexo ao local. Nasuaseqüênciaquaseinterminávelde ‘casos de morte’, ele estava especialmente tocado, quando conversamos, por uma mulher que morreu enquanto dançava numa festa de casamento. “É assim, acontece de repente”. Será que quem vive da morte aprende a lidar melhor com a vida? Vai saber. O caso é que na sua ele prefere não pensar muito. Mas já tem onde cair morto. "O meu [jazigo] está lá no interior, em Vitória da Conquista".

GLAMOUR Se a morte puder ter algum glamour, o lugar para ser enterrado é o Campo Santo, com requintados mausoléus e esculturas. O cemitério – primeiro de caráter privado da capital, fundado no século 19 e administrado pela Santa Casa de Misericórdia – virou até museu, em março do ano passado. Estão lá os restos mortais de ex-governadores como J.J Seabra, Octávio Mangabeira e ACM. Mas fazê-los companhia em igual nível de "moradia" é para poucos e bem providos – seja herança do trabalho ou da nascença. Para os reles mortais – ó, trocadilho

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«Pensa que enterrar gente é fácil? Dá muito trabalho (...) A gente sente muito, se comove»

rado de graça, na parte do latifúndio que a cada um couber, nos cemitérios municipais e nas covas gratuitas do Campo Santo. No cemitério da Baixa de Quintas, os sepultamentos em covas estão suspensos até agosto. Os pagos custam R$ 450.

Francisco Bonadia, subgerente da funerária A Decorativa

Há vinte anos o empresário Tescon Nogueira, 66, adquiriu dois “apartamentos” no Jardim da Saudade. Cada um para duas pessoas.Atualmenteestáláseupai.“Comprei para evitar as preocupações da família”. Pagou em 10 prestações, nem lembra mais o preço que foi. “O cemitério era novo ainda, tinha só um ano de funcionamento, para você ter uma idéia”. Quem também preferiu garantir em vida um espacinho para a hora da morte foi a professora aposentada Bernadete Sena, 62, que mora em Conceição de Almeida. Há dois anos paga R$ 20 por mês para quando sua mãe, de 91 anos, ou ela morrer ter direito ao caixão e às empadinhas para o velório. Só faltam três prestações. Aderiu ao "plano",comochama,depoisquefoiauns funerais e os achou “superbem organizados”. “Eles levam as cadeiras, daquelas brancas de plástico, e também está incluso o caixão, a ornamentação, que é linda, cheia de flores. E para o velório também tem pãezinhos e salgados".

infame – só alugando uma campa (túmulos no chão). O período do aluguel é de três anos e custa R$ 3.058. Em quadras mais para baixo, sai por R$ 2.338, também por três anos. Nesse período é preciso desembolsar R$ 150, valor somado das taxas anuais de manutenção. Uma opção mais em conta são os carneiros, como são chamadas as gavetas. A estratificação social também está presente ali, na hora da morte. Pode-se ficar na quadra A/B, na ala 01 a 09 ou na 10 a 19. O preço varia entre R$ 1.780 e R$ 1.423. Os preços incluem as taxas de sepultamento. Na Ordem Terceira de São Francisco, na Baixa de Quintas, é mais barato. O sepultamento com velório custa R$ 900. Se a família optar pelo velório na capela, o preço vaiparaR$980.Eparanãodizerqueéofim do mundo, também é possível ser enter-

ASSIM NA TERRA...


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A família estranha a antecipação. "Meus sobrinhos dizem que não vão comer a empada", ela conta, caindo na gargalhada. "Quem não quiser comer, não coma.Oimportanteéquejáestátudopago". A vantagem, diz, é que na hora da morte, quando todo mundo tiver chorando – "espero que chorem por mim" – ela não vai dar dor de cabeça a ninguém. "É só dar um telefonema e pronto. Até a documentação eles vão providenciar. A história já vai estar resolvida, para não onerar ninguém". E a morte, não há como negar, é nossa única certeza. "Vamos dizer que a vida é uma festa, e que algumas pessoas saem antes, vão cansando, para outras poderem chegar". Ela tem até um pouco de inveja de quem já deixou a festa. "Outro dia, morreu umaamicíssimaminha.Elafoiseencontrar com Deus, né? E eu fiquei pensando: ela já sabe os mistérios que a gente desconhece aqui. Fiquei até invejando um pouco". Melhor fez o americano Bill Bramanti, que construiu um caixão em forma de lata de cerveja. Enquanto não chega o dia, o usa como freezer. É aquela história do “bebo sim, estou vivendo”. Nada mais terapêutico que rir da própria morte.

Morte ao cemitério

CONTATOS Jardim da Saudade 71 3389-7842 Bosque da Paz 71 2201-4222 Campo Santo 71 3247-0324 Funerária A Decorativa (Federação) 71 3247-4371 Funerária A Alternativa 71 3235-2599

Enterrarosseusdeformadignaéumapreocupaçãoantigadosque ficam. Esse era um dos pilares que sustentava a existência das irmandades, que deveriam prezar para que seus membros fossem viver a eternidade adequadamente, dentro das igrejas e pertinho do Senhor. Foi por esse costume – e não pelos preços exorbitantes – que, em 1836, membros de irmandades de Salvador participaram da manifestação popular que ficou conhecida como Cemiterada. No dia 25 de outubro, cerca de três mil religiosos marcharam contra a privatização dos cemitérios e a proibição dos enterros nas igrejas. O Doutor em História e professor da Universidade Federal da Bahia, José João Reis, contou essa história no livro A morte é uma festa, lançado em 2001 pela Companhia das Letras (R$ 58,50). Eles partiram do Terreiro de Jesus em direção ao recém-inaugurado cemitério Campo Santo, aos gritos de "morra o cemitério". A capela do local foi destelhada, o muro foi demolido e os carros fúnebres foram queimados.

MERCANTILIZAÇÃO “Essas pessoas eram contrárias porque havia a idéia de que ser enterrado nas igrejas era bom para a alma, que estaria a um passo de Deus. Essa mentalidade barroca se contrapunha à mentalidade modernizante dos médicos higienistas”, diz Reis. A manifestação de 1836 foi vitoriosa. A lei ficou suspensa por 29 anos, até o surgimento de uma epidemia de cólera, “quando a população baiana se convenceu da necessidade dos enterros em cemitérios”. Paraoprofessor,aformacomoenterramoshojeosmortoséum reflexo da mercantilização generalizada. “Os cemitérios entraram na mesma lógica da especulação imobiliária que a Bahia e o Brasil vivem. Não há o que se estranhar. Temos até as favelas dos cemitérios, para onde vão os mortos pobres. Não há cova permanente; os ossos são removidos. É o capitalismo selvagem no mundo dos mortos”. «


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