Gira Mundo

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#462 / DOMINGO, 21 DE MAIO DE 2017 REVISTA SEMANAL DO GRUPO A TARDE

Gira MUNDO A experiência de mulheres que viajam sozinhas, como a blogueira baiana Gabriela Boaventura


Trilha

PRÓPRIA Texto TATIANA MENDONÇA tatianam@gmail.com

As incríveis aventuras de mulheres que, com muita coragem, independência e bom humor, encaram o desafio de viajar sozinhas pelo mundo e compartilham dicas e experiências

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Maiara Almeida se presenteia no aniversário com viagens solo

ô em Myanmar, nega. Hahaha. Que país incrível!”. A frase é a justificativa de Gabriela Boaventura, 31, para não ter respondido antes. E, sejamos sinceros, só a mais pura inveja nos impediria de desculpá-la. A psicóloga, que costuma usar o “hahaha” como pontuação e tem um avião tatuado no braço, já visitou 53 países. Seu roteiro mais recente é um mochilão pelo sudeste asiático, onde irá ficar por dois meses. A primeira parada foi a Tailândia, depois veio Myanmar, o “país incrível”, e de lá ela vai para Laos, Cambodja, Filipinas, Indonésia e Tailândia de novo. Pelo menos, esse é o plano original. Passagem mesmo ela só comprou duas, a de ida e a de volta para o Brasil, marcada para o dia 29 de junho. Para todos esses lugares, ela vai como veio ao mundo: só. A primeira vez que viajou sozinha foi para Itaúnas, no Espírito Santo, em 2003. Seus pais ficaram com medo, mas ela foi mesmo assim. “Voltei viva e eles conseguiram respirar aliviados, haha”. Quase dez anos depois, foi para o exterior. Perdeu o sono planejando cada detalhe da viagem de três meses e meio pela Europa. Quando chegou, cumpriu o combinado de falar sempre com a família e os amigos, mas eles continuavam preocupados. Foi aí que resolveu sucumbir aos


pedidos e criar um grupo no Facebook para compartilhar suas “aventuras”. Era o embrião do Viajando com Gabi, perfil que reúne 124 mil seguidores no Instagram. As fotos de Myanmar já estão por lá. Muitas das imagens são selfies em que aparece rodeada por recém-conhecidos, como indica numa das legendas: “Agora deixo vocês com a selfie mágica que tiramos no final de mais um tour f**ástico, num lugar inusitado, com pessoas que eu nunca vi na vida. Se a vida é bela? A vida é surrealmente a coisa mais incrível que alguém pode experienciar. E que bom que eu decidi viver minha vida na estrada”. Para bancar os custos das viagens, ela trabalha seis meses por ano em navio de cruzeiro. Os outros seis, passa na estrada. Por causa dessa decisão, que consideraamelhordasuavida,Gabrielasesente hoje uma “líder de si mesma”. Faz o seu caminho do jeito que quer, aberta às situações e pessoas que aparecerem. “Estar só é muito mais prazeroso do que se pensa. Adoro parar e apreciar os lugares a que vou, as oportunida-

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des que tenho. Já pensou ter tempo pra ler um livro interessante numa praia paradisíaca nas Filipinas? Fora isso, me tornei uma pessoa mais segura”. Masnemporissoeladeixadetermedo.Éumdosseuscompanheirosdeviagem. “O medo e a sensação de liberdade caminham juntos na minha vida mochileira. Ambos tornam minhas aventuras mais reais e me ajudam a amadurecer”. Muitas mulheres estão fazendo como Gabriela, inspiradas talvez naquela popular frase de autoajuda que diz: “Vai. E, se der medo, vai com medo mesmo”. De acordo com um levantamento divulgado no ano passado pela Airbnb, plataforma de aluguel de quartos e casas particulares, as brasileiras estão entre as que mais viajam sozinhas (só perdem para as japonesas). Em março deste ano, outra pesquisa, desta vez realizada pelo Ministério do Turismo, mostrou que 17,8% das mulheres brasileiras desejam viajar sozinhas. O índice é maior do que o registrado entre turistas homens (11,8%).

Para Leana Mattei, viajar sozinha é como “arrumar as prateleiras” de si mesma


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A relações-públicas Leana Mattei, 35, acostumou-se a viajar sozinha a trabalho. Só depois transferiu o hábito para a esfera da diversão. “Eu passei a achar que era muito desaforo abrir mão de um desejo legítimo meu por falta de companhia”, conta. Hoje, pode-se dizer que até prefere viajar assim. No ano passado, foi conhecer Fernando de Noronha, um sonho antigo. Um paquera, sabendo dos seus planos, ensaiou ir junto, mas Leana o fez desistir da ideia. “Era uma viagem minha. Brinquei que era melhor a gente começar pela Praia do Forte, mesmo...”. Para ela, viajar só é um momento de se “desembaralhar”, sem precisar ficar cumprindo horários que não são seus nem renunciando a programas que queira fazer. Em 2015, Leana percorreu um trecho do Caminho de Santiago, na Espanha, onde potencializou o processo de autodescoberta. “Senti como se eu tivesse arrumando as prateleiras de mim mesma. Você está ali, fazendo o seu caminho, sem precisar provar nada a ninguém. É muito prazeroso se permitir a completude, estar sozinha e não sentir falta de outras pessoas. É o presente maior que alguém pode dar a si”. No meio do percurso, ela acabou “adotada” por um grupo de espanhóis. Diz que essa é outra vantagem de viajar desacompanhada: estar mais receptiva a conhecerpessoas.“Eufalavatantoquetinhaaprendidoame perdoar que talvez eles tenham pensado que eu tinha matado alguém no Brasil e tinha ido me redimir”, ri. Quando vê alguma coisa muito incrível e não tem nenhum conhecido por perto para compartilhar o encanto, ela se vale de algumas estratégias: fala consigo mesma,escrevenumbloquinho,mandaáudiosparasi ou posta imagens e impressões nas redes sociais. Compartilha belezas e também angústias, como a vez em que saiu apressada de um albergue em Roma, na Itália, em março deste ano. Num post no Facebook, escreveu que precisou maneirar no vinho para estar alerta e decidir se sairia do hostel ou não. Teve medo da forma como o recepcionista falou com ela – “muito perto de mim, enquanto me entregava o mapa com as mãos trêmulas” – e de não ter outras pessoas hospedadas lá. Decidiu reservar um hotel, mesmo pagando mais caro por isso, e confessou que chorou no táxi. Sentiu o que chamou de “solidão social”, uma solidão de perceber que sua presença não bastava. “A minha presença parece precisar ser validada socialmente por um outro ser com um órgão sexual diferente do meu, um macho. E quando falo isso, eu me mordo de raiva, uma raiva coletiva, plural. Essa fala não é minha, é coro”. De outras vezes, Leana foi perseguida por um homem nas ruas de Londres; recebeu de um casal um

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Gabriela Boaventura em Myanmar: 53 países com a mochila nas costas

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convite bem direto para um ménage enquanto dormia num quarto coletivo para 150 pessoas num dos pousos do Caminho de Santiago; acompanhou a história de uma menina que estava junto com ela num hostel em Barcelona e que foi estuprada pelo cara com quem saiu de um bar. Os episódios não a fazem desistir das viagens, mas aprimorar o “senso de sobrevivência”: não anda sozinha em ruas escuras muito tarde, não bebe muito se não tem conhecidos por perto, aceita os sinais do “império do invisível”, como o que a fez mudar de albergue. “Tenho medo é de ficar parada, sem o gosto do novo, sem dar a mim a chance de me encontrar em uma rua qualquer que eu não sei o nome”.

ESTRATÉGIAS DE SEGURANÇA No começo do ano passado, um crime brutal marcou o imaginário das mulheres que viajam sozinhas, ou das que desejam fazê-lo. Duas jovens argentinas foram assassinadas no Equador. O caso ganhou repercussão mundial, rendendo uma avalanche de hashtags que defendiam o direito de as mulheres percorrerem o mundo da forma que quisessem. O curioso é que as argentinas não viajavam sozinhas, propriamente, como os marcadores indicavam. As amigas tinham a companhia constante uma da outra, mas estavam “sós” de uma presença masculina que as protegesse e validasse. Machista assim. Uma campanha mais recente foi lançada no final de 2016 pelo site WorldPackers, a #ITravelAlone. A ideia é que as mulheres usem a hashtag para compartilhar experiências e dicas. Algumas delas estão disponíveis num livro que pode ser baixado gratuitamente na página da plataforma (há versão em português). As recomendações vão desde tentar ficar em lugares públicos e abertos até evitar parecer com um turista, coisa que não é lá muito fácil de ser feita. Para Gabriela, que apontou algumas dicas para a Muito, é importante conhecer e respeitar os costumes de cada país, para evitar “encrencas desnecessárias”. Em Istambul, na Turquia, ela foi seguida por locais e abordadadiversasvezes.Gabrielamudouojeitodese vestir e de se comportar, mas não se sentiu tolhida por isso. “São costumes e culturas diferentes. A gente aprende e melhora”.

A arquiteta Maiara Almeida, que há três anos resolveu se dar de presente de aniversário viajar sozinha,costumaaproveitarmaisascidadesquevisitadurante o dia. Costuma sair de manhã cedo e volta para o hotel às 9h da noite. Como descobriu que gosta muito de andar, prefere assim. É sua estratégia de segurança. Ela já foi sozinha para São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, e na Europa conheceu a Holanda, Espanha e Alemanha. “Eu sempre fico com o pé atrás antes de ir, mas decidi ir mesmo assim. Você percebe que é capaz de resolver as situações que vão aparecendo. Sempre tem um jeito”. Maiara também acredita que sozinha dá para prestar mais atenção no que se está vendo e vivendo. Para registrar as viagens, ela abusa do temporizador da câmera, mas também pede para quem estiver passando por perto, preferencialmente se for uma família com cara amistosa. “Não pode pedir pra qualquer um não...”. Já Leana costuma marcar o lugar onde quer que a foto seja tirada e depois vai recrutar o anônimo mais próximo, para não ficar refém das selfies. “Eu digo: ó, fica aqui, nessa luz. É só apertar aqui”.

CORAÇÃO ABERTO Uma boa dica para quem quer viajar sozinha, mas sente um medão que parece intransponível, é começar a fazer coisas sozinhas por aqui mesmo. Pode ser um show, um restaurante, uma água de coco na praia.Afinal,nãodáparadeixardefazeralgoquevocê queira por falta de companhia, né não? “Não faz o menor sentido”, diz, convicta, Ana Teresa Andrade, 22, estudante de medicina. Ela começou a viajar só porque queria muito ir ver um festival de música em São Paulo e não encontrou ninguém para ir junto. Foi com ela mesma. Gostou da experiência e a repetiu indo para Amsterdã, em 2015. Não queria ficar em hostel, mas também não queria pagar o hotel sozinha. Aí mandou e-mail para um grupo de estudantes que conhecia e avisou que estava indo viajar tal dia, se alguém se interessava por rachar os custos. Dois estudantes franceses toparam. Acabou que ela nem ficou muito com eles. “Estavam numa vibe mais de turista-padrão, eu queria mais festa... Fui de coração aberto, mente aberta. Teve um dia que acabei numa praia com um monte de

DICAS PARA MULHERES 1 Não anuncie aos quatro ventos que está viajando sozinha (ninguém precisa saber dos detalhes)

2 Mantenha contato com família e amigos sempre que possível, com detalhes dos próximos lugares a visitar e onde vai se hospedar 3 Se tiver um itinerário ou plano de viagem, mande cópias para a família e amigos mais próximos 4 Sempre avise se for ficar sem comunicação por mais de um dia, deixando com alguém de confiança o contato da agência de turismo ou do hostel onde vai estar 5 Vista-se de maneira condizente com a cultura e os costumes dos lugares onde estiver 6 Tome cuidado com bebidas oferecidas e em grande quantidade. Lembre-se de que não há amigos próximos para tomar conta de você 7 Evite andar sozinha por lugares que os locais não recomendam, especialmente à noite FONTE: Gabriela Boaventura, do Viajando com Gabi (@viajandocomgabi, facebook.com/viajandocomgabi)

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gente que tinha conhecido há poucas horas”. A experiência afagou sua autoestima. “Você se valoriza mais. Se vê como alguém capaz de cativar outras pessoas, de viver coisas bacanas. Conhece muita gente legal, e gente chata também”, ri. Lá se sentiu segura para andar de madrugada na rua, pegar transporte público, mas não desligou o sensor de alerta. Quando um cara que conheceu num bar a chamou para dar uma volta no parque, ela achou melhor não ir, sugeriu outro programa. “Viajando sozinha, aumenta a responsabilidade das suas escolhas. É você com você mesma. E é isso”. Apesar de não ter passado por nenhuma situação de perigo nas viagens que fez, Ana não esteve imune ao machismo. Na viagem para a Europa, fez conexão emMadri. Depois depassarpor uminterrogatório em

A produtora cultural Rosângela Cordaro, que viajou sozinha para a África

que perguntaram mais de dez vezes se ela tinha algum namorado europeu, foi escoltada por policiais até o avião em que seguiria a viagem. “E olhe que eu estava vestida dos pés à cabeça, por causa do frio. Mas por ser jovem, morena, brasileira, eles acharam que eu estava indo para trabalhar como prostituta”. A produtora cultural Rosângela Cordaro, 54, é uma veterana em viagens a sós. Fez a primeira há quase vinte anos, quando se separou do marido. Foi para o Maranhão e logo que chegou encontrou cinco mulheres que também estavam viajando sozinhas. Ficaram tão próximas que se falam até hoje. Depois, já foi para Nova Iorque e também para a África, onde visitou cinco países. É verdade que sem companhia os custos da viagem aumentam, já que não dá para rachar aquele táxi na saída do aeroporto. Mas Rosângela chama isso de “preço da liberdade”. Vai sempre acompanhada da confiança “no universo” e na que ganhou por si mesma. “Descobri que posso tudo”. Só uma vez sentiu medo. Estava indo para a Tanzânia com um guia, numa viagem de 10 horas de carro em meio à savana, e pensou: “Meu Deus, se ele me joga para os leões, ninguém vai saber onde eu tô”. Viveu para contar. E diz mais: “Na verdade, a gente nunca está sozinha”. «

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