#495 / DOMINGO, 21 DE JANEIRO DE 2018 REVISTA SEMANAL DO GRUPO A TARDE
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ROTEIROS Turismo em Salvador pode proporcionar experiências mais enriquecedoras do que as tradicionais selfies nos cartões-postais
A alma da
CIDADE
Texto TATIANA MENDONÇA tatianam@gmail.com Fotos ADILTON VENEGEROLES asvvas@gmail.com A guia escocesa Julia McNaught da Silva, ao lado de Rosângela e Érica Santos, em São João do Cabrito
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Roteiros turísticos diferentes dos tradicionais tornam Salvador um destino ainda mais vibrante e com muito a ser conhecido – inclusive por soteropolitanos
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Texto TATIANA MENDONÇA tatianam@gmail.com Fotos ADILTON VENEGEROLES asvvas@gmail.com A guia escocesa Julia McNaught da Silva, ao lado de Rosângela e Érica Santos, em São João do Cabrito
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Roteiros turísticos diferentes dos tradicionais tornam Salvador um destino ainda mais vibrante e com muito a ser conhecido – inclusive por soteropolitanos
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alvador é, antes de tudo, uma ideia. Mesmo quem nunca pisou aqui conhece de algum modo o Elevador Lacerda, o Farol da Barra, o Pelourinho. Todos os anos, a cidade recebe mais de 8 milhões de turistas em busca de ver de perto o que a Cidade da Baía tem, quanto foi que Jorge Amado viu e quanto inventou. Mas dentro desse número massivo, tem umas gentes que vêm assuntar lugares que o próprio soteropolitano muitas vezes desconhece. Engenho Velho da Federação, para ver os terreiros tão próximos e tão distantes em suas nações. Plataforma, para conhecer o Acervo da Laje, com obras de artistas do subúrbio ferroviário e fazer comprinhas na feira agroecológica. Vale das Pedrinhas, para aprender a fazer um abará que passa a morar na memória. No Centro, uma visita ao Museu Nacional de Cultura Afro Brasileira (Muncab), para saber quem somos. A guia de turismo Paula Santos costuma levar os visitantes a esses lugares e outros mais, dependendo do gosto de quem chega, do que está interessado em fazer. Começou a ir além do “feijão com arroz” em meados da década de 1980, com o que chamava na época de turismo socialmente engajado, e que depois rebatizou de turismo étnico. Enquanto os outros guias faziam visitas a terreiros de noite, para incursões meio fetichistas a festas nos barracões, passou a levar grupos de dia, para que conhecessem o cotidiano das famílias de santo, principiando na Casa Branca, primeira casa de candomblé de Salvador. E como recebia muitos professores norte-americanos – ainda os recebe – passou também a frequentar escolas em bairros como o Calabar. Da primeira vez, ligou pedindo permissão. O rapaz da associação perguntou se ela estava com medo. Paula disse que não, que era respeito, vontade de saber se eles também queriam conhecê-la. Quando a Bahiatursa, órgão de fomento ao turismo do estado, estruturou o programa de turismo étnico, em 2007, Paula já era catedrática no tema. “O que acontece é que não há um reconhecimento nem dosórgãosoficiaisnemdosmoradoresdeSalvadorde que toda a cidade é uma construção afro-brasileira. Então, trata-se como um produto, sem uma visão global. Não há uma valorização do que essa cidade tem de diferencial”. Já tinha sua própria empresa do que hoje chama de turismo educacional quando visitou a Steve Biko e viu um grupo de americanos juntarem-se para arrecadar o valor que restava para que o instituto cultural lançasse um programa de acesso à tecnologia. E estava na Universidade do Estado da Bahia (Uneb), também
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acompanhada por turistas norte-americanos, quando o Conselho da universidade discutia a histórica adoção da política de cotas. Os professores foram convidados pela então reitora, Ivete Sacramento, a compartilhar a experiência dos Estados Unidos. “O turismo também muda a cidade”, Paula acredita. Inacreditável é sua memória mais marcante dessa vida de guia. Pois que acompanhou uma nova-iorquina que veio com os filhos e o neto para Salvador procurando ajuda espiritual. Paula a levou a um terreiro, ondeamulherrecebeuorientaçãodequeficassemais tempo aqui, mas ela não tinha recursos para permanecer. Antes de voltar aos Estados Unidos, foram no dia 2 de fevereiro para a festa de Iemanjá, no Rio Vermelho. Quando estava na areia, a gringa foi tomada por uma entidade, que Paula até hoje não sabe qual era, e passou a benzer quem se aproximava. Juntou gente, formou fila, durou horas. E Paula ali, traduzindo toda aquela maravilhosa improbabilidade, até serem vencidas pelo cansaço.
UMA ESCOCESA DA SILVA
Paula Santos: “O turismo também muda a cidade”
A Bahia tem 780 guias de turismo regularizados, dos quais 350 atuam em Salvador, de acordo com o Ministério do Turismo. A escocesa Julia McNaught da Silva passou a integrar o grupo no ano retrasado, depois de quase vinte anos vivendo em Salvador. Sua primeiraaproximaçãofoicomosbairrospopularesda cidade.TrabalhavanumaONGquepromoviaprojetos de intercâmbio entre a Grã-Bretanha e o nordeste brasileiro. Em 2007, passou a conhecer e desenvolver ações de turismo comunitário com os moradores. Foi a partir dessa experiência que pensou em trabalhar como guia de turismo, fazendo para outros estrangeiros a ponte com a Salvador real, tão, tão distantedaquesevênoscartões-postais.“Nestespontos tradicionais, que o turista até já viu pela internet, ficam só o tempo da selfie e pronto. Assim, não dá para sentir, compreender um povo. Para isso, é preciso interagir, conhecer as pessoas no seu cotidiano”. Hoje,elatrabalhacomquatrocomunidadesdeSalvador: Calafate, Uruguai, Alto do Cabrito e Plataforma,nummodelobemdiferentedaqueleimpregnado no nosso imaginário: um jipão em que turistas brancos passeiam por ruelas de favelas cariocas como se estivessem num safári ou num zoológico. “É a comunidade que está à frente, por isso chamamos de turismo de base comunitária. São eles que definem quando os grupos podem visitar, o que vão visitar, e sempre há orientações quanto à fotografia. É horrível você se sentir fotografado sem sua permissão”. Qualquer que seja o roteiro, há sempre um ba-
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te-papo entre locais e visitantes, de “igual para igual”, diz Julia. “É o olhar no olho, apertar a mão, trocar uma ideia”. Depois, há o tour gastronômico, com direito a geladinho de fruta e almoço no restaurante do bairro. No Calafate, tem uma amendoada (feijoada de amendoim) e em Plataforma a pedida é peixe e frutos do mar. Depois, partem para uma visita a um grupo cultural, e aí vai desde capoeira a hip-hop, passando por discussões sobre feminismo. “Não é um olhar só para o que é tradicional da cultura afro-brasileira, mas também para as manifestações mais atuais”. Outro dia, ela estava acompanhando um grupo de estudantes americanos de Nova York num intercâmbio no Uruguai. Os jovens tinham situações próximas de vida. Ficaram conversando sobre samba, hip-hop, e Julia riu quando percebeu que eles eram tão parecidos, as roupas, os cabelos, que só dava para saber quem veio de onde olhando para os seus pés. Os de fora estavam de tênis, os de cá, de chinelos de ficar em casa. “Os moradores se sentem valorizados, percebem a riqueza da sua cultura, da resistência criativa, ainda mais em frente a tantas adversidades. É um reconhecimento em meio a uma sociedade cheia de preconceitos”. Umdospreconceitos–e,infelizmente,tantasvezes conceito – é o de que essas comunidades são violentas. Julia conta que nunca teve qualquer episódio em
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Maria Nunes no Mosteiro do Salvador: circuito da fé católica
que se sentisse insegura. “A melhor segurança é estar junto com quem mora no lugar. E quando você está fazendo um trabalho sério, coletivo, que gera benefícios para o bairro, isso já cria uma segurança. E se houver algum motivo para insegurança, a comunidade não hesita em cancelar a visita. Não é qualquer um de fora entrar sem saber o que está fazendo”. O dono de uma agência de Salvador conta que costumava fazer um roteiro pelo subúrbioferroviário.IamdetrematéaCalçadaedelápegavamumjipeabertopara percorrer a orla de Tubarão, São Tomé de Paripe, parando para almoçar na Pedra Furada e finalizando com um sorvete na Ribeira. “Os turistas amavam, mas tive que encerrar o tour porque os traficantes estavam querendo cobrar pedágio”. Professora do curso de turismo da Uneb, Paula Silva conta que o chamado turismo de experiência surgiu entre o final da década de 1990 e o começo dos anos 2000, quando o mundo mudava de século. Começou com norte-americanos e europeus que, mais que visitantes, queriam ser voluntários nos países pobres em que a Terra é pródiga. Com o tempo, o que era um turismo mais alternativo ganhou ares também mercadológicos – o que, por Deus, há de escapar ao mercado? –, com agências e guiasquerendoofereceratividadesmaisimersivasenãosódeobservaçãodesteou daquele massificado ponto turístico. “A tendência é que este tipo de turismo cresça. As pessoas, na verdade, estão buscando o sentido da vida. Já teve o caso de um americano que pagou para passar uma noite numa penitenciária, e de um inglês que pagou para fazer trabalhos domésticos numa casa. Há esse desejo de se sentir útil, de interagir com o outro”. Paula pondera, no entanto, que é preciso ter cuidado para que as comunidades visitadas não se transformem em produtos mercadológicos. “Não dá para museologizar a comunidade, mas sim desvelar o que é valoroso naquele local, de modo que todos ganhem com essa convivência, essa troca”. E, nisso, aposta nos lugares
de maior risco social. “As chamadas periferias sociais guardam um legado cultural incrível, muito distante dos grupos quase folclóricos que costumam ser apresentadas no turismo de massa”. Há quase dez anos, ela promove conjuntamente com a comunidade do Cabula, vizinho da Uneb, o turismo no bairro. “Os moradores são auto-gestores. São eles que tomam as decisões e decidem como e quando vão receber os visitantes. Já construíram um museu virtual do quilombo do Cabula e estão agora promovendo um coletivo de artesanato”.
SOTAQUE Gasta-se um certo tempo para identificar aquele sotaque que ecoa pela capela do Convento de São Francisco, no Pelourinho, como quem esforça-se para encontrar as palavras certas em português. Viria da Itália, Espanha, Estados Unidos, Inglaterra? Maria Nunes, guia de turismo em Salvador há 34 anos, esclarece que nasceu em Jacobina, interior da Bahia. Ganhou o sotaque por força do hábito de tentar explicar aos gringos o que é essa cidade. Desde o final da dé-
cada de 1980, investe no turismo religioso católico, segmento que cresce, segundo Silvana Rós, presidente do Sindicato dos Guias de Turismo do Estado da Bahia (a prefeitura não tem dados específicos sobre a modalidade). Nos primeiros anos de trabalho, de tanto entrar e sairdeigreja,Maria ficouincomodada de quealeitura da arte sacra de Salvador, esta riqueza, fosse feita de maneira tão apressada. Naquela época, o turismo religioso se restringia basicamente às visitas noturnas às festas de candomblé. Foi aí que pensou em criar uma rota católica, ela que cresceu indo para a igreja com a mãe. Começou visitando de maneira mais aprofundada a esplendorosa Igreja de São Francisco, a Catedral Basília, a Igreja da Conceição da Praia e a Igreja do Bonfim. Um ou outro turista pedia para conhecer Irmã Dulce. E antes de encerrar o roteiro, passava por Alagados, um lugar distante dos passeios tradicionais, para que conhecessem a única igreja do mundo construída para ser inaugurada por um papa, a Paróquia de Nossa Senhora dos Alagados, erguida em tempo
recorde para receber o então Papa João Paulo II em sua primeira visita ao Brasil (diga a verdade, que isso são coisas sagradas: você sabia disso?) Atualmente, ela oferece vários “circuitos da fé”, criadosemparceriacomaPastoraldeTurismodaIgreja Católica, a Pastur. “Há interesses em comum. Além da geração de emprego e renda, tem também o propósito da evangelização por parte da igreja”. Os visitantes são, em maioria, italianos, que vêm em grandes grupos. Num dos tours, depois de assistir com os turistas a uma missa na Igreja do Bonfim, leva-os até o Mosteiro do Salvador, das monjas beneditinas, para o ofício das horas médias, um momento em que os fiéissevoltamàreflexãoequietude.Eaípodemelevar o espírito ouvindo as monjas tocarem cítara, fazer uma caminhada pelo pinheiral ali perto e degustar os bricelets, biscoitinhos feitos no mosteiro, vivendo as calmas e delícias de um lugar que muito soteropolitano nem sabe que existe.
SALVADOR POR DENTRO Numa manhã de quarta-feira de céu nublado, boa
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ALESSANDRA LORI / AG. ATARDE
para descansar do calor opressivo do verão, o artista visual Eder Muniz encontrou-se com um pequeno grupo de mulheres norte-americanas em Castelo Branco, bairro onde mora. Primeiro, mostrou-lhes num PowerPoint um pouco da história do grafite no mundo e na Bahia e falou da importância de respeitar todas as formas de expressão, incluindo a pichação, que para ele mantém a relação mais forte com a cidade. Depois, passeou com elas exibindo os desenhos muito coloridos que espalhou pelo bairro com outros grafiteiros. O segundo destino foi o Comércio, para contar sobre os grandes murais que “verticalizaram” o grafite em Salvador e de lá rumaram para o Dois de Julho, onde ele ia dando nome e vida a cada trabalho avistado em meio ao tumulto das ruas. A última parada foi a comunidade do Solar do Unhão, vizinha ao Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM), endereço de um outro museu, este informal, como é informal o roteiro que Eder, que não é guia, conduz. As obras do Museu de Street Art de Salvador (Musas) mostram-se logo na entrada do lugar, enfeitando os arcos que sustentam a Avenida Contorno, de frente para aquele mar que é sempre tão bonito que chega a ser indizível, não importa quantas vezes se olhe. Ele explica que por causa do Musas, feito de trabalhos de artistas de vários estados do Brasil e também do exterior, a imagem que se tinha dali mudou. “As pessoas associavam muito a comunidade às drogas. E aí veio o grafite e transformou tudo. É um lugar que passou a ser tendência”, diz, num inglês elogiado. Mais adiante, parado numa escadaria ladeada por desenhos seus, Éder conta que o grafite permitiu que ele conhecesse de verdade a cidade, ganhando o respeito e a proteção dos moradores das comunidades. E que sua intenção ali era também essa, fazer com que conhecessem Salvador por dentro. Do último degrau dava para ver o MAM de uma perspectiva nova, diretamente do miolo da encosta
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Eder Muniz leva grupo de turistas norte-americanas para conhecer grafites na comunidade do Solar do Unhão
de casinhas empilhadas, a vida pulsando ao redor. Eder começou com os passeios em 2011, de maneira “orgânica”, como diz. Recebeu em casa um grupo de americanos, amigos da sua ex-mulher, e os acompanhou por Castelo Branco mostrando os grafites do bairro. Eles se encantaram com as obras e com a vista da favela. No ano seguinte, um dos visitantes pediu para que refizesse o roteiro com outros americanos que estavam vindo trabalhar na Bahia e aí, pela soma de “wow”, “wow” e “wow” que acumulou, Eder reparou que aquilo podia interessar a mais gente. Para falar com propriedade também sobre a cidade, estudou a história da Bahia e de seus bairros, “essas coisas que a gente não vê na escola”. A convite da Acbeu, passou a mostrar o grafite da cidade para professores universitários que fazem intercâmbio em Salvador – são cerca de oito grupos por ano – e também para turistas que pedem para fazer o tour. É uma atividade esporádica, que o ocupa em média uma vez por mês. Como já deu para reparar, os visitantes que acompanha são, em grande maioria, estrangeiros. “O soteropolitano só reconhece o que vem de fora. Então essas visitas são importantes também para mostrar que se tem gente pagando para ver grafite, por que não dar valor também?”. «