Vida entre grades

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SALVADOR DOMINGO 4/10/2015

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#381 / DOMINGO, 4 DE OUTUBRO DE 2015 REVISTA SEMANAL DO GRUPO A TARDE

TERESA MESSEDER VINHOS COTIDIANO CINEMA

O cotidiano no Conjunto Penal Feminino (CPF), na Mata Escura, onde cumprem pena 144 mulheres

Vida entre

GRADES

BELÉM DO PARÁ MANGAIO «


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O

sorriso parece não encontrar jeito no rosto de Suzana*. Quando algum deles escapole, ela logo se arrepende, como se não fosse do seu merecimento. Com os olhos baixos e uma voz que quase não sai, diz que está ali porque traficava drogas. E também por homicídio. Não vê valia em se fazer de inocente. Em novembro de 2014, foi condenada a 23 anos, seis meses e 29 dias de prisão. Tem mais tempo de pena do que de vida. “Tento não pensar muito nisso”. Quando chegou ao Conjunto Penal Feminino (CPF), na Mata Escura, depois de apanhar por quatro dias seguidos na delegacia, Suzana tinha 18 anos e uma história que todos ali já conheciam dos programas sanguinolentos da televisão. A fama fez com que logo fosse viver no seguro, cela destinada às presas enjeitadas pelas outras detentas. Suzana envolveu-se no assassinato de um adolescente e por isso era como se sua paga precisasse ser maior que a prisão. Enquanto ouve as conversas, risadas e bate-bocas no pátio

Entre as 144 detidas no CPF, 91 estavam envolvidas com o tráfico de drogas. A maioria da população carcerária feminina no Brasil, 63%, responde por venda de entorpecentes Texto TATIANA MENDONÇA tatianam@gmail.com Fotos FERNANDO VIVAS vivasf@gmail.com

Do outro Acesso às celas do Conjunto Penal Feminino de Salvador

LADO


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sorriso parece não encontrar jeito no rosto de Suzana*. Quando algum deles escapole, ela logo se arrepende, como se não fosse do seu merecimento. Com os olhos baixos e uma voz que quase não sai, diz que está ali porque traficava drogas. E também por homicídio. Não vê valia em se fazer de inocente. Em novembro de 2014, foi condenada a 23 anos, seis meses e 29 dias de prisão. Tem mais tempo de pena do que de vida. “Tento não pensar muito nisso”. Quando chegou ao Conjunto Penal Feminino (CPF), na Mata Escura, depois de apanhar por quatro dias seguidos na delegacia, Suzana tinha 18 anos e uma história que todos ali já conheciam dos programas sanguinolentos da televisão. A fama fez com que logo fosse viver no seguro, cela destinada às presas enjeitadas pelas outras detentas. Suzana envolveu-se no assassinato de um adolescente e por isso era como se sua paga precisasse ser maior que a prisão. Enquanto ouve as conversas, risadas e bate-bocas no pátio

Entre as 144 detidas no CPF, 91 estavam envolvidas com o tráfico de drogas. A maioria da população carcerária feminina no Brasil, 63%, responde por venda de entorpecentes Texto TATIANA MENDONÇA tatianam@gmail.com Fotos FERNANDO VIVAS vivasf@gmail.com

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Acima, Rosângela* e Sara*, mãe e filha presas. E a oficina de escrita e leitura

do presídio, Suzana permanece trancafiada, protegida no seu castigo. Nas quartas e sextas, depois que as visitas vão embora, podeaproveitarobanhodesol.Duashoras por semana nos últimos quatro anos. Entre as mulheres presas de Salvador, ela é ao mesmo tempo exceção e regra. Carrega a pecha de ter cometido um crime contra a vida, raridade para o sexo feminino, e também o clichê de ter traficado drogas, serviço em que começou menina, aos 10 anos. Das 144 detidas no CPF, 91 respondemportráfico.Asituaçãoserepete em outras penitenciárias brasileiras. A maioria das encarceradas (63%) está atrás das grades por causa da venda de entorpecentes. Entre os homens, esse percentual cai para 25%. O tráfico de drogas tem pena de reclusão de cinco a 15 anos e equipara-se ao de crime hediondo. Por isso, elas ficam mais tempo no regime fechado e não têm direito ao indulto. A defensora pública Fabíola Pacheco acredita que essa situação precisa mudar. “Essa mulher não oferece periculosidade. Quando é presa, há consequências para toda a família”. O país tem hoje mais de 37 mil presas, quinta maior população carcerária feminina do mundo. Esse número segue crescendo num ritmo superior ao dos homens – 256% contra 130%, entre 2000 e 2012. Luz Marina, que dirige o CPF há cinco anos, acompanhou esse aumento de perto. A Penitenciária Feminina de Salvador, como o CPF era chamado, foi inaugurada em 8 de março de 1990, para fazer parte das comemorações pelo Dia Internacional da Mulher. Pouco mais de um mês depois, Luz dava ali seu primeiro plantão como agente penitenciária. Na época, o lugar tinha cerca de 30 internas. Pelas suas memórias, a maioria estava presa por crimes passionais, loucuras de ciúme. “Hoje, elas

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«Mulher é difícil. Tem TPM, tem a sensibilidade aflorada... Age mais pela emoção do que pela razão»

ENTRE 2000 E 2012, o número de mulheres presas no Brasil cresceu

Luz Marina, diretora do Conjunto Penal Feminino

homens. A maioria das 37 mil presas responde pelo crime de tráfico de drogas –

estão na associação criminosa, atrás de lucro fácil”. A contar pelas histórias que circulam ali, duas décadas se passaram e o amor permanece cúmplice em dezenas de crimes, especialmente o do tráfico. Muitas mulheres começam a vender drogas para ajudar companheiros ou familiares, ocupando cargos subalternos nas organizações. “Digo sempre para elas que aqui não tem nenhuma Fernandinha Beira-Mar”, provoca Luz, como se ralhasse por terem caído por papéis tão coadjuvantes. Há dois anos, Amanda, 23, veste o mesmo conjunto: uma camisa larga laranja, uma bermuda larga laranja, um chinelinho nos pés. Quando foi presa, trabalhava numa loja de roupas e fazia supletivo. Nas horas vagas, ajudava o marido, que era traficante. “Eu era envolvida, estava com ele. Era conveniente”. Quando o juiz deu a sentença, Amanda foi condenada e seu homem, absolvido. Até hoje não entende. Nunca tinha se sentido tão sozinha, desamparada e desvalida como na primeira noite em que passou no CPF. A distância física virou também a decisão de se separar dele. “Hoje a gente é dois estranhos um pro outro”. Na contagem regressiva para sair da prisão – faltava apenas um mês –, Amanda pensa que talvez tenha sido bom tudo isso que passou. “Estava privada da vida, e agora estou liberta”.

PIPER CHAPMAN A alegria de Amanda contrastava com o estranhamento perpétuo de Lorena, 28, fisioterapeuta, que da sua cela espiava a conversa. Era impossível olhar para ela, branquinha, loirinha, magrinha, e não pensar em Piper Chapman, a personagem bem-nascida que é presa por tráfico na série Orange is the new black, do Netflix. A história de como Lorena chegou ao CPF também parece ficção. Ela estava passeando com o namorado em Salvador, para rever a família, quando ele foi preso. Rumou angustiada à delegacia, para saber o que tinha acontecido, e lá descobriu que também havia um mandado de prisão em seu nome por tráfico de drogas e associação criminosa. Não voltou mais para casa. Há quatro meses, foi transferida para o CPF. Chora quando lembra que lhe puseram algemas e farda. “Nunca trafiquei. Me re-

256%, contra

130% entre os

lacionei com uma pessoa que fazia essas coisas”. Parece impossível que Lorena não soubesse como seu namorado ganhava a vida, mas certamente desconhecia a importância que ele tinha naquela rede. Quando chegou ao presídio, as outras detentas a apontavam e ela não entendia por quê. Só com o tempo descobriu que aquela indicação era para dizer que já tinham trabalhado com ele. Era a mulher do patrão. Por ter curso universitário, Lorena mora numa cela especial, mais espaçosa e arejada. Só come o que a mãe traz de casa, lê livros, assiste à televisão. Ela ainda não sabe por quanto tempo vai viver o martírio de um cadeado a afastando do mundo. É que, como a maioria das mulheres presas no CPF, seu caso ainda não foi julgado. Outras 95 “processadas”, como são chamadas, esperam dia após dia uma sentença. É assim com Rosângela, 66, e Sara, 34, mãe e filha. Há oito meses, elas dividem a mesma cela no CPF. Foram presas por causa de uma escuta telefônica. Não foi flagrante, repetem à exaustão, como uma maneira de dizer que são inocentes. “Todo mundo sabe que a gente trabalha numa barraca na feira de Cachoeira”. O outro filho de Rosângela também está preso, mas esse tem envolvimento com o tráfico, ela diz não ter como esconder. Na prisão, viraram evangélicas e buscam ter amizade com as colegas cristãs. “Aqui tem muita fofoca, deslealdade, intriga, porque uma tem mais merenda, porque a outra tem mais visita”, conta Sara.

63%

. Para os homens, esse número cai para 25%.

EM SALVADOR, a situação se repete. Das 144 encarceradas no Conjunto Penal Feminino (CPF),

91 foram parar lá por causa do tráfico. O segundo crime mais cometido é roubo, com

17 casos.

Apenas três estão presas por homicídio.


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Acima, Rosângela* e Sara*, mãe e filha presas. E a oficina de escrita e leitura

do presídio, Suzana permanece trancafiada, protegida no seu castigo. Nas quartas e sextas, depois que as visitas vão embora, podeaproveitarobanhodesol.Duashoras por semana nos últimos quatro anos. Entre as mulheres presas de Salvador, ela é ao mesmo tempo exceção e regra. Carrega a pecha de ter cometido um crime contra a vida, raridade para o sexo feminino, e também o clichê de ter traficado drogas, serviço em que começou menina, aos 10 anos. Das 144 detidas no CPF, 91 respondemportráfico.Asituaçãoserepete em outras penitenciárias brasileiras. A maioria das encarceradas (63%) está atrás das grades por causa da venda de entorpecentes. Entre os homens, esse percentual cai para 25%. O tráfico de drogas tem pena de reclusão de cinco a 15 anos e equipara-se ao de crime hediondo. Por isso, elas ficam mais tempo no regime fechado e não têm direito ao indulto. A defensora pública Fabíola Pacheco acredita que essa situação precisa mudar. “Essa mulher não oferece periculosidade. Quando é presa, há consequências para toda a família”. O país tem hoje mais de 37 mil presas, quinta maior população carcerária feminina do mundo. Esse número segue crescendo num ritmo superior ao dos homens – 256% contra 130%, entre 2000 e 2012. Luz Marina, que dirige o CPF há cinco anos, acompanhou esse aumento de perto. A Penitenciária Feminina de Salvador, como o CPF era chamado, foi inaugurada em 8 de março de 1990, para fazer parte das comemorações pelo Dia Internacional da Mulher. Pouco mais de um mês depois, Luz dava ali seu primeiro plantão como agente penitenciária. Na época, o lugar tinha cerca de 30 internas. Pelas suas memórias, a maioria estava presa por crimes passionais, loucuras de ciúme. “Hoje, elas

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«Mulher é difícil. Tem TPM, tem a sensibilidade aflorada... Age mais pela emoção do que pela razão»

ENTRE 2000 E 2012, o número de mulheres presas no Brasil cresceu

Luz Marina, diretora do Conjunto Penal Feminino

homens. A maioria das 37 mil presas responde pelo crime de tráfico de drogas –

estão na associação criminosa, atrás de lucro fácil”. A contar pelas histórias que circulam ali, duas décadas se passaram e o amor permanece cúmplice em dezenas de crimes, especialmente o do tráfico. Muitas mulheres começam a vender drogas para ajudar companheiros ou familiares, ocupando cargos subalternos nas organizações. “Digo sempre para elas que aqui não tem nenhuma Fernandinha Beira-Mar”, provoca Luz, como se ralhasse por terem caído por papéis tão coadjuvantes. Há dois anos, Amanda, 23, veste o mesmo conjunto: uma camisa larga laranja, uma bermuda larga laranja, um chinelinho nos pés. Quando foi presa, trabalhava numa loja de roupas e fazia supletivo. Nas horas vagas, ajudava o marido, que era traficante. “Eu era envolvida, estava com ele. Era conveniente”. Quando o juiz deu a sentença, Amanda foi condenada e seu homem, absolvido. Até hoje não entende. Nunca tinha se sentido tão sozinha, desamparada e desvalida como na primeira noite em que passou no CPF. A distância física virou também a decisão de se separar dele. “Hoje a gente é dois estranhos um pro outro”. Na contagem regressiva para sair da prisão – faltava apenas um mês –, Amanda pensa que talvez tenha sido bom tudo isso que passou. “Estava privada da vida, e agora estou liberta”.

PIPER CHAPMAN A alegria de Amanda contrastava com o estranhamento perpétuo de Lorena, 28, fisioterapeuta, que da sua cela espiava a conversa. Era impossível olhar para ela, branquinha, loirinha, magrinha, e não pensar em Piper Chapman, a personagem bem-nascida que é presa por tráfico na série Orange is the new black, do Netflix. A história de como Lorena chegou ao CPF também parece ficção. Ela estava passeando com o namorado em Salvador, para rever a família, quando ele foi preso. Rumou angustiada à delegacia, para saber o que tinha acontecido, e lá descobriu que também havia um mandado de prisão em seu nome por tráfico de drogas e associação criminosa. Não voltou mais para casa. Há quatro meses, foi transferida para o CPF. Chora quando lembra que lhe puseram algemas e farda. “Nunca trafiquei. Me re-

256%, contra

130% entre os

lacionei com uma pessoa que fazia essas coisas”. Parece impossível que Lorena não soubesse como seu namorado ganhava a vida, mas certamente desconhecia a importância que ele tinha naquela rede. Quando chegou ao presídio, as outras detentas a apontavam e ela não entendia por quê. Só com o tempo descobriu que aquela indicação era para dizer que já tinham trabalhado com ele. Era a mulher do patrão. Por ter curso universitário, Lorena mora numa cela especial, mais espaçosa e arejada. Só come o que a mãe traz de casa, lê livros, assiste à televisão. Ela ainda não sabe por quanto tempo vai viver o martírio de um cadeado a afastando do mundo. É que, como a maioria das mulheres presas no CPF, seu caso ainda não foi julgado. Outras 95 “processadas”, como são chamadas, esperam dia após dia uma sentença. É assim com Rosângela, 66, e Sara, 34, mãe e filha. Há oito meses, elas dividem a mesma cela no CPF. Foram presas por causa de uma escuta telefônica. Não foi flagrante, repetem à exaustão, como uma maneira de dizer que são inocentes. “Todo mundo sabe que a gente trabalha numa barraca na feira de Cachoeira”. O outro filho de Rosângela também está preso, mas esse tem envolvimento com o tráfico, ela diz não ter como esconder. Na prisão, viraram evangélicas e buscam ter amizade com as colegas cristãs. “Aqui tem muita fofoca, deslealdade, intriga, porque uma tem mais merenda, porque a outra tem mais visita”, conta Sara.

63%

. Para os homens, esse número cai para 25%.

EM SALVADOR, a situação se repete. Das 144 encarceradas no Conjunto Penal Feminino (CPF),

91 foram parar lá por causa do tráfico. O segundo crime mais cometido é roubo, com

17 casos.

Apenas três estão presas por homicídio.


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A MAIORIA DAS DETIDAS EM SALVADOR –

66% – está em

prisão provisória. Elas ainda esperam uma decisão final da Justiça.

51%

das presidiárias são jovens, têm até 30 anos.

Filhos de detentas na creche Nova Semente, que funciona ao lado do conjunto penal

94%

são pardas ou negras e

70%

A última briga foi por causa do orelhão. Com um único aparelho em vez de dois, o tempo para falar com a família foi reduzido de sete para quatro minutos, e nem todo mundo adaptou-se a cumprir o acordo. Verdadeiramente, o CPF não sofre de monotonia. Quase todo dia Luz desce do seu escritório para resolver alguma pendenga no pátio. “Mulher é difícil. Tem TPM, tem a sensibilidade aflorada... Age mais pela emoção do que pela razão”. Luz não tem que lidar com as temidas facções – “no masculino, é fato” –, mas em 25 anos já teve de enfrentar duas rebeliões. A última foi em 2012. Por quatro horas, as presas fizeram duas visitas e um agente de reféns para pedir melhorias na alimentação e rapidez no andamento dos processos judiciais. O CPF tem capacidade

para abrigar 132 mulheres. Em cada cela, há duas “comarcas”, como as camas de cimento são chamadas. Algumas presas dormem no chão. Se seus processos fossem agilizados, uma das reivindicações do motim, talvez o problema da superlotação diminuísse.

não terminaram o ensino fundamental.

PRISÃO DOMICILIAR A Penitenciária Feminina de Salvador virou Conjunto Penal Femininoem2005,paramarcarquealihaviamulherescumprindoos três regimes: fechado, semiaberto e aberto. Como a estrutura era uma só, na prática não havia distinção, nem progressão. Todas pagavam com a pena mais gravosa. Uma visita do juiz de execuções penais acabou com a arbitrariedade. As detentas apenadas com o semiaberto ou aberto passaram a ser beneficiadas com a prisão domiciliar. Como não há tornozeleiras eletrônicas – e naturalmente há o risco de fuga –, elas precisam se apresentar a cada dois meses ao juiz. Algumas acabam voltando para o CPF, como aconteceu com Michele, 24. Os policiais chegaram na casa onde estava, em Morro de SãoPaulo,eencontraramdinheirograúdo(R$1.800)edrogamiú-

da (39 g de maconha). Grávida de sete meses, Michele diz que foi tudo armado. Que quer que seu filho nasça morto se tiver algum envolvimento nessa história. De noite não dorme por causa das muriçocas e dos pensamentos de como vai ser na hora de parir, se alguém vai escutar sua dor. E tem a pior parte, a de imaginar se separar do seu bebê quando ele completar seis meses. Reza para Jeová para que antes disso esteja livre. Há pouco mais de uma década, as crianças ficavam presas com a mãe no CPF até estarem maiores, com seis anos. Acabavam internalizando o comportamento das detentas. Eram as primeiras a correr para as cela quando soavam os apitos da tranca, tiravam logo as roupinhas quando se anunciava o “baculejo”, revista pela qual as internas volta e meia têm de passar. A situação mudou em 1999, também por determinação judicial. Elas não podiam mais ficar lá, mas tampouco tinham para onde ir. Sensibilizada com o caso, a Pastoral Carcerária, ação da Igreja Católica, resolveu cuidar dos filhos das presidiárias até que pudessem tê-los de volta. Hoje, a Casa Nova Semente, comandada pela irmã italiana Adele Pezone, toma conta de 28 crianças e adolescentes. Para manter o vínculo com as mulheres que as pariram e também com os pais encarcerados, elas são levadas para visitá-los uma vez por semana e sempre estão presentes nas datas especiais, como o Dia das Mães e o Natal. A hora mais triste é a de pegar os bebês no CPF. É Adele mesmo quem vai. Em meio a um choro generalizado, ela alteia a voz e arruma força para dizer: “Se não me der, eu não pego”. Juliana* chegou assim um dia à Nova Semente e hoje está com 15 anos. Estuda, joga futebol, participa de um grupo de formação cidadã. “Quero ser a diferença, e não a diferente”. Quando deixa de lado o discurso, conta que a mãe já morreu, e o pai, e a avó. Não chora, nem estremece a voz. Adormeceu suas dores, envelheceu antes da hora. Está tentando convencer a irmã Adele a emancipá-la. “Aqui é meu único chão, a base a quem devo tudo que sou. Mas quero ter minha vida, a minha liberdade”.

ABANDONO

Fontes: Sistema Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) / Conjunto Penal Feminino (CPF)

À parte a visita eventual dos filhos e de suas próprias mães, as mulheres costumam ser abandonadas nos cárceres. O cadastro de pessoas autorizadas no CPF não passa muito dos 60 nomes. É raro que entre eles esteja o de namorados e maridos. Na teoria, quem vem de fora não precisa mais passar por revistas íntimas. O CPF utiliza um banquinho com detectores de metais. É preciso apenas torcer para que ele não esteja quebrado. Do lado de dentro das grades, a carência vai regando outros

Abandono: no cárcere, maridos e namorados desaparecem

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A MAIORIA DAS DETIDAS EM SALVADOR –

66% – está em

prisão provisória. Elas ainda esperam uma decisão final da Justiça.

51%

das presidiárias são jovens, têm até 30 anos.

Filhos de detentas na creche Nova Semente, que funciona ao lado do conjunto penal

94%

são pardas ou negras e

70%

A última briga foi por causa do orelhão. Com um único aparelho em vez de dois, o tempo para falar com a família foi reduzido de sete para quatro minutos, e nem todo mundo adaptou-se a cumprir o acordo. Verdadeiramente, o CPF não sofre de monotonia. Quase todo dia Luz desce do seu escritório para resolver alguma pendenga no pátio. “Mulher é difícil. Tem TPM, tem a sensibilidade aflorada... Age mais pela emoção do que pela razão”. Luz não tem que lidar com as temidas facções – “no masculino, é fato” –, mas em 25 anos já teve de enfrentar duas rebeliões. A última foi em 2012. Por quatro horas, as presas fizeram duas visitas e um agente de reféns para pedir melhorias na alimentação e rapidez no andamento dos processos judiciais. O CPF tem capacidade

para abrigar 132 mulheres. Em cada cela, há duas “comarcas”, como as camas de cimento são chamadas. Algumas presas dormem no chão. Se seus processos fossem agilizados, uma das reivindicações do motim, talvez o problema da superlotação diminuísse.

não terminaram o ensino fundamental.

PRISÃO DOMICILIAR A Penitenciária Feminina de Salvador virou Conjunto Penal Femininoem2005,paramarcarquealihaviamulherescumprindoos três regimes: fechado, semiaberto e aberto. Como a estrutura era uma só, na prática não havia distinção, nem progressão. Todas pagavam com a pena mais gravosa. Uma visita do juiz de execuções penais acabou com a arbitrariedade. As detentas apenadas com o semiaberto ou aberto passaram a ser beneficiadas com a prisão domiciliar. Como não há tornozeleiras eletrônicas – e naturalmente há o risco de fuga –, elas precisam se apresentar a cada dois meses ao juiz. Algumas acabam voltando para o CPF, como aconteceu com Michele, 24. Os policiais chegaram na casa onde estava, em Morro de SãoPaulo,eencontraramdinheirograúdo(R$1.800)edrogamiú-

da (39 g de maconha). Grávida de sete meses, Michele diz que foi tudo armado. Que quer que seu filho nasça morto se tiver algum envolvimento nessa história. De noite não dorme por causa das muriçocas e dos pensamentos de como vai ser na hora de parir, se alguém vai escutar sua dor. E tem a pior parte, a de imaginar se separar do seu bebê quando ele completar seis meses. Reza para Jeová para que antes disso esteja livre. Há pouco mais de uma década, as crianças ficavam presas com a mãe no CPF até estarem maiores, com seis anos. Acabavam internalizando o comportamento das detentas. Eram as primeiras a correr para as cela quando soavam os apitos da tranca, tiravam logo as roupinhas quando se anunciava o “baculejo”, revista pela qual as internas volta e meia têm de passar. A situação mudou em 1999, também por determinação judicial. Elas não podiam mais ficar lá, mas tampouco tinham para onde ir. Sensibilizada com o caso, a Pastoral Carcerária, ação da Igreja Católica, resolveu cuidar dos filhos das presidiárias até que pudessem tê-los de volta. Hoje, a Casa Nova Semente, comandada pela irmã italiana Adele Pezone, toma conta de 28 crianças e adolescentes. Para manter o vínculo com as mulheres que as pariram e também com os pais encarcerados, elas são levadas para visitá-los uma vez por semana e sempre estão presentes nas datas especiais, como o Dia das Mães e o Natal. A hora mais triste é a de pegar os bebês no CPF. É Adele mesmo quem vai. Em meio a um choro generalizado, ela alteia a voz e arruma força para dizer: “Se não me der, eu não pego”. Juliana* chegou assim um dia à Nova Semente e hoje está com 15 anos. Estuda, joga futebol, participa de um grupo de formação cidadã. “Quero ser a diferença, e não a diferente”. Quando deixa de lado o discurso, conta que a mãe já morreu, e o pai, e a avó. Não chora, nem estremece a voz. Adormeceu suas dores, envelheceu antes da hora. Está tentando convencer a irmã Adele a emancipá-la. “Aqui é meu único chão, a base a quem devo tudo que sou. Mas quero ter minha vida, a minha liberdade”.

ABANDONO

Fontes: Sistema Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) / Conjunto Penal Feminino (CPF)

À parte a visita eventual dos filhos e de suas próprias mães, as mulheres costumam ser abandonadas nos cárceres. O cadastro de pessoas autorizadas no CPF não passa muito dos 60 nomes. É raro que entre eles esteja o de namorados e maridos. Na teoria, quem vem de fora não precisa mais passar por revistas íntimas. O CPF utiliza um banquinho com detectores de metais. É preciso apenas torcer para que ele não esteja quebrado. Do lado de dentro das grades, a carência vai regando outros

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afetos. Até mesmo no seguro se pode arrumar uma namorada, como aconteceu com Suzana. “A maioria na cadeia namora”. A agonia maior ali, que ganha até da ruindade da comida, é a falta de trabalho. Só 35 detentas têm ocupação – são responsáveis pela manutenção do Conjunto. Neste cenário, parece piada falar em ressocialização. Outras 61 presas estudam nas turmas da alfabetização à oitava série. Há ainda os cursos mantidos por voluntários, como o de canto coletivo e aprimoramento vocal, da professora Acenísia de Azevedo, e a oficina de escrita e leitura, comandada por Denise Carrascosa, com apoio de Saulo Moreira, Patrícia Freitas, Luciane Aparecida e Luana Soledade. Denise iniciou a oficina, batizada de Corpos Indóceis e Mentes Livres, em 2011. Antes, já tinha tentado dar aulas no CPF de tai chi chuan, mas a coisa não deu muito certo. Atraiu-se de tal modo pela “crueza” daquela “periferia da periferia” que não saiu mais. “É um desejo de experimentar esse abismo entre nossas experiências sociais e é também uma posição política. Não é mais o momento do intelectual asséptico”. Desde então a oficina acontece anualmente, de março a setembro. O trabalho acabou se desdobrando num livro com poesias das participantes e em uma biblioteca. Os títulos mais procurados são os que tratam do Código de Processo Penal, mas os romances também são concorridos. A depender do número de páginas, são oito, 13 ou 30 dias para devolução do empréstimo.

Após o parto, na prisão, as detentas ficam com os filhos só até os seis meses

* Os nomes das presas e da adolescente são inventados.

As oito galerias do CPF são identificadas pelas letras do alfabeto, e em cada uma delas há oito celas. Numa tarde de sexta-feira, uma agente penitenciária subiu as escadas que levam à galeria C com uma missão que lhe dava gosto. Como se estivesse num programa de auditório da TV, anunciou com voz empostada: “Tânia e Daniele, escutem bem aqui. O alvará não chegou. Não tô com nenhum alvará na mão. Mas pode ser que chegue amanhã ou segunda. Vou tirar vocês pra fazerem uma oração”. Elas saem tremendo, chorando um choro gutural, gritando por Deus como se estivessem falando de frente para ele. “Com a força da alma que vocês têm, rezem. E eu também não vou ver vocês mais. Vocês foram umas das poucas que nunca deram trabalho. Venha pra cá, dona Luz. Orem bonito para ela”. Sem aguentar aquele suspense, Luz faz a revelação: “Podem comemorar que o alvará chegou”. Depois de um ano e cinco meses, que em vida dão 515 dias, Tânia e Daniele, 20 anos, amigas de infância, estavam livres. Não sabiam se pulavam de alegria ou ajoelhavam para agradecer. As outras presas batiam os portões, cantavam, berravam aleluias, se abraçavam numa despedida em que não cabiam tristezas. Depois de um ano e cinco meses, que em vida dão 515 dias, Tânia e Daniele, 20 anos, amigas de infância, foram absolvidas da acusação de extorsão mediante sequestro. Saíram levando seus colchões de espuma e uns ventiladores brancos. Quando passaram o portão, um homem disse que não dava um mês para que voltassem. Elas não ouviram, ou estavam felizes demais para dar atenção àquela ruindade. Jogaram os colchões no lixo, deram os ventiladores para o primeiro que encontraram e correram para ligar para a mãe no orelhão de minutos não contados. «

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