Na era racional

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SALVADOR DOMINGO 11/4/2010 33

32 SALVADOR DOMINGO 11/4/2010

Na era racional Lembra da Cultura Racional? Numa pequena sala, em frente ao Relógio de São Pedro, uma livraria é ponto de encontro de quem ainda acredita nos ensinamentos de Manoel Jacintho Coelho e nos enigmas dos extraterrestres Texto TATIANA MENDONÇA tmendonca@grupoatarde.com.br Foto THIAGO TEIXEIRA ttxphoto@gmail.com

Q

uem vende xuxinha ou compra ouro, quem senta na praça olhando os carros passarem, quem volta para casa ou segue apressado para o trabalho, todos seres sem raciocínio, incapazes sequer de desconfiar que ali, em frente ao Relógio de São Pedro, no antigo edifício que também leva o nome do santo, mais precisamente na sala 503 do 5º andar, há muito se tem todas as respostas que atormentam a humanidade desde que o mundo é mundo. De onde viemos, por que viemos, para onde vamos. Não é feitiçaria, não é tecnologia, não é seita, não é religião, nem filosofia. Para descobrir do que se trata, é só tocar a campainha e esperar virem abrir a porta de ferro da livraria. Se for segunda-feira, quem atenderá será o senhor Raymundo Miranda Brandão, 69 anos, coordenador regional da Cultura Racional na Bahia. Há 25 anos, ele

Raymundo Brandão na livraria: missão

estuda os 1.006 livros escritos pelo Racional Superior, o carioca Manoel Jacintho Coelho, que iniciou a sua vasta obra Universo em Desencanto em 1935 e a concluiu em 1990. Para fixar os conhecimentos e ativar a “glândula pineal, responsável pelo raciocínio”, seu Raymundo diz que já leu todos os livros quatro vezes. Está, então, mais do que credenciado a explicar. Repare, vou resumir: quando o Racional Superior, extraterreno, recebeu A mensagem, iniciou-se uma nova era, a Era Racional, do Terceiro Milênio, substituindo as eras anteriores da Imaginação (1º Milênio) e do Pensamento (2º Milênio). Nesta era, todas as pessoas devem desenvolver seu raciocínio – lendo os livros, naturalmente – para que descubram de onde vieram (o Mundo Racional), para que vieram (para espalhar essa mensagem) e para onde voltarão (Mundo Racional, de novo). “Quando a gente diz assim: ‘Esse mundo é uma mentira’, é difícil para as pessoas entenderem. Também ficam assombradas com o nome do livro, mas não sabem que é porque elas estão encantadas, e o desencanto é quando se descobre a verdade”. E Deus, onde fica nessa história? “A prova de que Deus existe está dentro de cada um de nós, é o raciocínio”. Raymundo conheceu a Cultura Racional por intermédio da mãe, que estudava os livros. Vivia adoentado, sem acreditar em nada. “Não aceitava que a gente estivesse aqui apenas sofrendo, condenado a morrer”. Agora, por estar “sintonizado com a energia racional”, diz que não fica mais doente. É a tal Imunização Racional (Que Beleza), que Tim Maia canta. O cantor foi um dos maiores divulgadores dos livros de Manoel Jacintho Coelho. A devoção relâmpago foi registrada em dois discos, Tim Maia Racional Vol. 1 e Vol. 2, de


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Na era racional Lembra da Cultura Racional? Numa pequena sala, em frente ao Relógio de São Pedro, uma livraria é ponto de encontro de quem ainda acredita nos ensinamentos de Manoel Jacintho Coelho e nos enigmas dos extraterrestres Texto TATIANA MENDONÇA tmendonca@grupoatarde.com.br Foto THIAGO TEIXEIRA ttxphoto@gmail.com

Q

uem vende xuxinha ou compra ouro, quem senta na praça olhando os carros passarem, quem volta para casa ou segue apressado para o trabalho, todos seres sem raciocínio, incapazes sequer de desconfiar que ali, em frente ao Relógio de São Pedro, no antigo edifício que também leva o nome do santo, mais precisamente na sala 503 do 5º andar, há muito se tem todas as respostas que atormentam a humanidade desde que o mundo é mundo. De onde viemos, por que viemos, para onde vamos. Não é feitiçaria, não é tecnologia, não é seita, não é religião, nem filosofia. Para descobrir do que se trata, é só tocar a campainha e esperar virem abrir a porta de ferro da livraria. Se for segunda-feira, quem atenderá será o senhor Raymundo Miranda Brandão, 69 anos, coordenador regional da Cultura Racional na Bahia. Há 25 anos, ele

Raymundo Brandão na livraria: missão

estuda os 1.006 livros escritos pelo Racional Superior, o carioca Manoel Jacintho Coelho, que iniciou a sua vasta obra Universo em Desencanto em 1935 e a concluiu em 1990. Para fixar os conhecimentos e ativar a “glândula pineal, responsável pelo raciocínio”, seu Raymundo diz que já leu todos os livros quatro vezes. Está, então, mais do que credenciado a explicar. Repare, vou resumir: quando o Racional Superior, extraterreno, recebeu A mensagem, iniciou-se uma nova era, a Era Racional, do Terceiro Milênio, substituindo as eras anteriores da Imaginação (1º Milênio) e do Pensamento (2º Milênio). Nesta era, todas as pessoas devem desenvolver seu raciocínio – lendo os livros, naturalmente – para que descubram de onde vieram (o Mundo Racional), para que vieram (para espalhar essa mensagem) e para onde voltarão (Mundo Racional, de novo). “Quando a gente diz assim: ‘Esse mundo é uma mentira’, é difícil para as pessoas entenderem. Também ficam assombradas com o nome do livro, mas não sabem que é porque elas estão encantadas, e o desencanto é quando se descobre a verdade”. E Deus, onde fica nessa história? “A prova de que Deus existe está dentro de cada um de nós, é o raciocínio”. Raymundo conheceu a Cultura Racional por intermédio da mãe, que estudava os livros. Vivia adoentado, sem acreditar em nada. “Não aceitava que a gente estivesse aqui apenas sofrendo, condenado a morrer”. Agora, por estar “sintonizado com a energia racional”, diz que não fica mais doente. É a tal Imunização Racional (Que Beleza), que Tim Maia canta. O cantor foi um dos maiores divulgadores dos livros de Manoel Jacintho Coelho. A devoção relâmpago foi registrada em dois discos, Tim Maia Racional Vol. 1 e Vol. 2, de


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34 SALVADOR DOMINGO 11/4/2010

ARQUIVO PESSOAL / PAULINHO GUITARRA

«A leitura desenvolve o raciocínio. Isso que a gente vê hoje é coisa de animal feroz»

MARGARIDA NEIDE / AG. A TARDE

Jandoval Conceição, funcionário público aposentado

1975, que não fizeram muito sucesso. Só Que Beleza ficou famosa, assim mesmo com o nome fantasia. Um ano depois, Tim renegou tudo e pediu sua razão de volta. “Isso foi por causa da ganância, da ambição do ser humano”, Raymundo tenta explicar.

LUZES E ETS

LIVRARIA RACIONAL Av. Sete de Setembro, Ed. São Pedro, 80, 5º Andar, sala 503. Tel.: 71 3322-1829

O ser humano, de todo modo, ambiciona provas. É natural que elas existam num ideário que apela à razão – ao menos uma razão que consiga não zombar de ETs e acostume-se a ver luzes brilhantes enquanto passa o café ou caminha pela rua. Raymundo, ex-comerciante, hoje aposentado, estava em Itaparica quando viu “uma luzinha azul piscando”. São os seres extraterrenos. Vê sempre. Um panfleto que ele costuma distribuir em feirinhas em Salvador diz que a pessoa vai tendo essas comprovações à medida que fica “desencantada”. “São elas o aparecimento de luzes de diversos matizes, tamanhos e formas; o contato direto com seres extraterrenos, dialogando e sendo orientado em qualquer lugar. E o mais importante é adquirir a paz interior”. Sentado numa cadeira da livraria, o funcionário público aposentado Jandoval Conceição, 62, acena a tudo que sai da boca de Raymundo. Ele é um dos vendedores voluntários da livraria, que funciona há mais de 20 anos (os volumes custam entre R$ 15 e R$ 44). “A leitura desenvolve o raciocínio, fica tudo mais claro. Isso que a gente vê hoje, do homem passando por cima de tudo, é coisa de animal feroz, de quem não se conhece”. Jandoval lê os livros todos os dias, mas faz questão de registrar que não é fanático. “Tudo tem que ser na medida”. Volta e meia, vê luzes piscando, ou caindo como “uma chuva de prata”. “Os seres extraterrenos estão o tempo todo aqui”. “Ah, mas não fala assim, que a gente conversa com ET, senão fica parecendo coisa de maluco. A pessoa, quando é evoluída, vê

luzes. Eu não vi ainda”, conta a estudante Sabrina Machado, 17, que começou a ler os livros na carona da mãe, em 2003, e diz ter encontrado “a verdade”. Todos os sábados, ela dá uma pausa nos estudos – quer cursar direito – para participar do ensaio da Banda Racional Universo em Desencanto, onde toca lira. Cerca de 40 pessoas, de 13 a 70 anos, participam dos ensaios, no Colégio Estadual Góes Calmon, em Brotas. Eles costumam se apresentar em eventos cívicos em Salvador (estão sempre presentes no 2 de Julho) e no interior. Em todo o País, são 29 bandas, reunindo 1.700 racionais. A banda baiana existe há 25 anos. O maestro Jorge Luís Silva, 57, foi um dos fundadores. “Era uma pessoa perdida, não tenho por que mentir. Já tinha participado de tudo que era seita e religião e vi que a salvação da humanidade está nos livros do Universo em Desencanto”.

CIDADÃO SOTEROPOLITANO Quem está achando tudo isso uma loucura precisa saber que o Racional Superior, falecido em 1991, já virou até cidadão soteropolitano. O título foi entregue à neta de Manoel Jacintho Coelho em julho do ano passado pelas mãos do vereador Odiosvaldo Vigas (PDT). Vigas contou que o autor do projeto foi o professor e ex-vereador Nilton Costa, estudioso da Cultura Racional. “Me identifico com seus princípios, principalmente quando prega a união dos povos”, diz Vigas. Crente que trazia o fim de todas as dúvidas – um delírio que não deixa de ser divino –, Manoel Jacintho Coelho escreveu: “E assim, Eu, o Racional Superior, noite e dia, estou junto a todos os colaboradores para a boa marcha e elevação da vida de todos, em tudo por tudo”. Não só acreditou, como achou quem o seguisse. «

Tim Maia fez shows, entre 1975 e 1976, e lançou um disco: Tim Maia Racional

Os seguidores baianos, no Colégio Góes Calmon, apostam na música e na leitura

HAROLDO ABRANTES / AG. A TARDE


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ARQUIVO PESSOAL / PAULINHO GUITARRA

«A leitura desenvolve o raciocínio. Isso que a gente vê hoje é coisa de animal feroz»

MARGARIDA NEIDE / AG. A TARDE

Jandoval Conceição, funcionário público aposentado

1975, que não fizeram muito sucesso. Só Que Beleza ficou famosa, assim mesmo com o nome fantasia. Um ano depois, Tim renegou tudo e pediu sua razão de volta. “Isso foi por causa da ganância, da ambição do ser humano”, Raymundo tenta explicar.

LUZES E ETS

LIVRARIA RACIONAL Av. Sete de Setembro, Ed. São Pedro, 80, 5º Andar, sala 503. Tel.: 71 3322-1829

O ser humano, de todo modo, ambiciona provas. É natural que elas existam num ideário que apela à razão – ao menos uma razão que consiga não zombar de ETs e acostume-se a ver luzes brilhantes enquanto passa o café ou caminha pela rua. Raymundo, ex-comerciante, hoje aposentado, estava em Itaparica quando viu “uma luzinha azul piscando”. São os seres extraterrenos. Vê sempre. Um panfleto que ele costuma distribuir em feirinhas em Salvador diz que a pessoa vai tendo essas comprovações à medida que fica “desencantada”. “São elas o aparecimento de luzes de diversos matizes, tamanhos e formas; o contato direto com seres extraterrenos, dialogando e sendo orientado em qualquer lugar. E o mais importante é adquirir a paz interior”. Sentado numa cadeira da livraria, o funcionário público aposentado Jandoval Conceição, 62, acena a tudo que sai da boca de Raymundo. Ele é um dos vendedores voluntários da livraria, que funciona há mais de 20 anos (os volumes custam entre R$ 15 e R$ 44). “A leitura desenvolve o raciocínio, fica tudo mais claro. Isso que a gente vê hoje, do homem passando por cima de tudo, é coisa de animal feroz, de quem não se conhece”. Jandoval lê os livros todos os dias, mas faz questão de registrar que não é fanático. “Tudo tem que ser na medida”. Volta e meia, vê luzes piscando, ou caindo como “uma chuva de prata”. “Os seres extraterrenos estão o tempo todo aqui”. “Ah, mas não fala assim, que a gente conversa com ET, senão fica parecendo coisa de maluco. A pessoa, quando é evoluída, vê

luzes. Eu não vi ainda”, conta a estudante Sabrina Machado, 17, que começou a ler os livros na carona da mãe, em 2003, e diz ter encontrado “a verdade”. Todos os sábados, ela dá uma pausa nos estudos – quer cursar direito – para participar do ensaio da Banda Racional Universo em Desencanto, onde toca lira. Cerca de 40 pessoas, de 13 a 70 anos, participam dos ensaios, no Colégio Estadual Góes Calmon, em Brotas. Eles costumam se apresentar em eventos cívicos em Salvador (estão sempre presentes no 2 de Julho) e no interior. Em todo o País, são 29 bandas, reunindo 1.700 racionais. A banda baiana existe há 25 anos. O maestro Jorge Luís Silva, 57, foi um dos fundadores. “Era uma pessoa perdida, não tenho por que mentir. Já tinha participado de tudo que era seita e religião e vi que a salvação da humanidade está nos livros do Universo em Desencanto”.

CIDADÃO SOTEROPOLITANO Quem está achando tudo isso uma loucura precisa saber que o Racional Superior, falecido em 1991, já virou até cidadão soteropolitano. O título foi entregue à neta de Manoel Jacintho Coelho em julho do ano passado pelas mãos do vereador Odiosvaldo Vigas (PDT). Vigas contou que o autor do projeto foi o professor e ex-vereador Nilton Costa, estudioso da Cultura Racional. “Me identifico com seus princípios, principalmente quando prega a união dos povos”, diz Vigas. Crente que trazia o fim de todas as dúvidas – um delírio que não deixa de ser divino –, Manoel Jacintho Coelho escreveu: “E assim, Eu, o Racional Superior, noite e dia, estou junto a todos os colaboradores para a boa marcha e elevação da vida de todos, em tudo por tudo”. Não só acreditou, como achou quem o seguisse. «

Tim Maia fez shows, entre 1975 e 1976, e lançou um disco: Tim Maia Racional

Os seguidores baianos, no Colégio Góes Calmon, apostam na música e na leitura

HAROLDO ABRANTES / AG. A TARDE


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