Sante Scaldaferri completa 80 anos sem parar de pintar
O VISIONÁRIO
Novos talentos da moda baiana O olhar crítico de Diógenes Moura
DOMINGO, 7 DE SETEMBRO DE 2008 #23
SALVADOR DOMINGO
REVISTA SEMANAL DO JORNAL A TARDE. NÃO PODE SER VENDIDA SEPARADAMENTE
COLABORE COM AS PRÓXIMAS EDIÇÕES DA MUITO E VEJA O MAKING OF DAS REPORTAGENS EM WWW.ATARDE.COM.BR/MUITO
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SALVADOR DOMINGO
24 SALVADOR DOMINGO 7/9/2008
Voto de vanguarda Prestes a completar 80 anos, o pintor Sante Scaldaferri faz questão de se manter na vanguarda. Porque para ele o artista é, antes de tudo, um visionário
Texto TATIANA MENDONÇA tmendonca@grupoatarde.com.br Fotos REJANE CARNEIRO rcarneiro@grupoatarde.com.br
7/9/2008 25
SALVADOR DOMINGO
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Voto de vanguarda Prestes a completar 80 anos, o pintor Sante Scaldaferri faz questão de se manter na vanguarda. Porque para ele o artista é, antes de tudo, um visionário
Texto TATIANA MENDONÇA tmendonca@grupoatarde.com.br Fotos REJANE CARNEIRO rcarneiro@grupoatarde.com.br
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7/9/2008 27
«Comecei a expressar tudo que eu queria, através do ex-voto» Sante Scaldaferri, pintor
Com a mulher, Marina, 74, com quem é casado há 41 anos, na casa em Itapuã, onde também funciona o seu ateliê
S
ante passeava com a mulher, Marina, em Canindé, no Ceará. Sol a pino, 40 graus, um bocado de devoto, um monte de romeiro, os meninos suando vestidinhos de São Francisco, tadinhos. Foi Marina quem o alertou: “Sante, olhe pra ali”. Ao lado da igreja, uma casa cheia de ex-votos. “Minha Nossa Senhora, meu São Francisco”, ele exclamou. Correu para chamar o rapaz que tomava conta do lugar e ouviu em sussurros um "Deixe o padre sair". Foi o padre sair para ele dar ao homem quinhentos cruzados, um bom dinheiro na época. O cara abriu um sorrisão e encheu um panacu,
uma cesta de palha, com um monte de ex-voto. “Botei no carro e fui embora. Corrompi o cara, compreendeu?”, Sante ri. Na cesta um ex-voto de um gordo, com três grandes cicatrizes na barriga. “O desgraçado sofreu três cirurgias e conseguiu escapar”. Foi a partir dessa escultura, que ele guarda até hoje no seu ateliê, que Sante começou a deformar as figuras que pintava, para expressar o que chamou de "As Fraquezas do Caráter Humano". Mas esse não foi o primeiro ex-voto a ir parar em suas telas – para quem não está ligando o nome à pessoa, ex-voto é um testemunho público de gratidão pela graça alcançada. Pode ser uma perna que ficou cu-
rada e voltou a andar ou um coração para lembrar certo amor que voltou. Tratava-se de paixão antiga. O pintor Sante Scaldaferri foi fisgado pelos objetos da religiosidade popular quando ainda estava na faculdade, e lá se vão mais de cinco décadas. “Comecei a expressar tudo que eu queria, meus sentimentos, através do ex-voto. E continuo até hoje. Porque aí aparece uma nova linguagem, e eu adapto à minha temática”. Prestes a completar 80 anos no próximo dia 30, ele não tem parte alguma do corpo para deixar na igreja. Talvez seu pedido seja apenas que tudo fique como está. “Deus me deu tantas graças que eu não posso me
queixar, só agradecer. Não sou diabético, não sou cardíaco, tenho uma mulher maravilhosa, para que eu quero mais?” No seu ateliê, em Itapuã, 600 ex-votos de madeira, cerâmica e metal dividem espaço com os quadros e as gavetas que guardam toda a sua produção desde 1949. Foi ele mesmo quem discriminou as obras por nome, ano e técnica utilizada, além de registrar as vendas e doações. Sante calcula que já deve ter pintado quase três mil quadros. "Se escapou algum foram uns dez, só. Além de estar registrado aqui, no papel, está tudo fotografado. E estou, aos poucos, passando para o computador". Essa disciplina e organização talvez não tenham dado brecha para que as crises se instalassem. Em todos esses anos, ele nunca parou de pintar. “Esse negócio de crise é frescura. Eu nunca vou ter crise existencial, nunca vou ter depressão”. Filho de italianos, veio para o Brasil “pré-fabricado”. “Vim na barriga da velha e desemborquei aqui no Porto da Barra, que Glauber Rocha dizia que era o lugar mais civilizado de Salvador”. Desde os dez anos não pensava em outra coisa que não fosse ser artista. Guardava os cadernos do primário com os desenhos de coelhinhos e barquinhos até a umidade destruí-los há alguns anos. “Fiquei tão sentido”. Mas mesmo tendo o dom, que é o “Espírito Santo” quem dá, na hora de escolher a profissão foi inventar de ser engenheiro.
“O amigo do homem”, trabalho recente de Sante, com a técnica da encáustica
“Rumo ao desconhecido”, uma das inforgravuras que faz com o computador
SALVADOR DOMINGO
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«Comecei a expressar tudo que eu queria, através do ex-voto» Sante Scaldaferri, pintor
Com a mulher, Marina, 74, com quem é casado há 41 anos, na casa em Itapuã, onde também funciona o seu ateliê
S
ante passeava com a mulher, Marina, em Canindé, no Ceará. Sol a pino, 40 graus, um bocado de devoto, um monte de romeiro, os meninos suando vestidinhos de São Francisco, tadinhos. Foi Marina quem o alertou: “Sante, olhe pra ali”. Ao lado da igreja, uma casa cheia de ex-votos. “Minha Nossa Senhora, meu São Francisco”, ele exclamou. Correu para chamar o rapaz que tomava conta do lugar e ouviu em sussurros um "Deixe o padre sair". Foi o padre sair para ele dar ao homem quinhentos cruzados, um bom dinheiro na época. O cara abriu um sorrisão e encheu um panacu,
uma cesta de palha, com um monte de ex-voto. “Botei no carro e fui embora. Corrompi o cara, compreendeu?”, Sante ri. Na cesta um ex-voto de um gordo, com três grandes cicatrizes na barriga. “O desgraçado sofreu três cirurgias e conseguiu escapar”. Foi a partir dessa escultura, que ele guarda até hoje no seu ateliê, que Sante começou a deformar as figuras que pintava, para expressar o que chamou de "As Fraquezas do Caráter Humano". Mas esse não foi o primeiro ex-voto a ir parar em suas telas – para quem não está ligando o nome à pessoa, ex-voto é um testemunho público de gratidão pela graça alcançada. Pode ser uma perna que ficou cu-
rada e voltou a andar ou um coração para lembrar certo amor que voltou. Tratava-se de paixão antiga. O pintor Sante Scaldaferri foi fisgado pelos objetos da religiosidade popular quando ainda estava na faculdade, e lá se vão mais de cinco décadas. “Comecei a expressar tudo que eu queria, meus sentimentos, através do ex-voto. E continuo até hoje. Porque aí aparece uma nova linguagem, e eu adapto à minha temática”. Prestes a completar 80 anos no próximo dia 30, ele não tem parte alguma do corpo para deixar na igreja. Talvez seu pedido seja apenas que tudo fique como está. “Deus me deu tantas graças que eu não posso me
queixar, só agradecer. Não sou diabético, não sou cardíaco, tenho uma mulher maravilhosa, para que eu quero mais?” No seu ateliê, em Itapuã, 600 ex-votos de madeira, cerâmica e metal dividem espaço com os quadros e as gavetas que guardam toda a sua produção desde 1949. Foi ele mesmo quem discriminou as obras por nome, ano e técnica utilizada, além de registrar as vendas e doações. Sante calcula que já deve ter pintado quase três mil quadros. "Se escapou algum foram uns dez, só. Além de estar registrado aqui, no papel, está tudo fotografado. E estou, aos poucos, passando para o computador". Essa disciplina e organização talvez não tenham dado brecha para que as crises se instalassem. Em todos esses anos, ele nunca parou de pintar. “Esse negócio de crise é frescura. Eu nunca vou ter crise existencial, nunca vou ter depressão”. Filho de italianos, veio para o Brasil “pré-fabricado”. “Vim na barriga da velha e desemborquei aqui no Porto da Barra, que Glauber Rocha dizia que era o lugar mais civilizado de Salvador”. Desde os dez anos não pensava em outra coisa que não fosse ser artista. Guardava os cadernos do primário com os desenhos de coelhinhos e barquinhos até a umidade destruí-los há alguns anos. “Fiquei tão sentido”. Mas mesmo tendo o dom, que é o “Espírito Santo” quem dá, na hora de escolher a profissão foi inventar de ser engenheiro.
“O amigo do homem”, trabalho recente de Sante, com a técnica da encáustica
“Rumo ao desconhecido”, uma das inforgravuras que faz com o computador
SALVADOR DOMINGO
28 SALVADOR DOMINGO 7/9/2008
Sante Scaldaferri com seus ex-votos, inspiração dos seus trabalhos
«Se diz que sua obra é feia. Não é ‘bela’ no sentido de que seus quadros são inconformados» Aldo Tripodi, crítico de arte
“E logo eu que até hoje não sei quanto é dois e dois, tenho que fazer na maquininha”. Ele se inscreveu no curso, mas quem disse que foi? “Parei na porta e falei ‘Eu, hein? Não é pra mim não’. Me piquei”. Depois de um ano “malandreando”, viu num belo dia que a Escola de Belas Artes estava com inscrições abertas. Faltavam cinco dias para a prova. Não tinha estudado absolutamente nada. “Me lembro como se fosse hoje: um amigo meu que era aluno de lá me falou mais ou menos como era a prova. Fiz e passei. Acho que eles estavam precisando de alunos”.
ODE AO FEIO Nos anos 80, um jornalista argentino disse a Sante que não conseguia compreender sua obra. Ele complicou: “Esses quadros aqui são ex-votos com cara de gente. Esses atuais são gente com cara de ex-vo-
to”. Como o repórter continuava sem entender, Sante foi fazer o que talvez esteja na lista das coisas mais detestadas pelos artistas: explicar suas intenções. “Quero dizer que os ex-votos incorporam a condição humana, para expressar seus sentimentos de ódio, de amor, de tudo”. Em sua fase atual, onde estão os ex-votos, pergunto, aproveitando a deixa. “ Tá ali”, diz, apontando os quadros da nova safra. “Aquelas mulheres de bunda grande, tudo é ex-voto”. E se os ex-votos viraram gente de verdade, mostrando os sentimentos que o homem leva por dentro na impossibilidade de ser santo, qual havia de ser o resultado? Pintando há tanto tempo, de Sante já se disse tudo – de forma mais recorrente, que seus quadros são “feios”. Perambulando entre suas obras, ele aponta para a pintura de uma mulher que
tem ao lado um coração. “Aí, o que é que tem de feio nisso? Olha ali, ó, amor! Ela fez uma promessa para arrumar um namorado, está ali com a periquita do lado de fora (Risos). Então, quem tem sensibilidade, quem entende de arte, quando olha, sente a beleza, o conteúdo, que é do bem. Fui muito atacado, mas estou me lixando”. Em 2000, o crítico de arte Aldo Tripodi ganhou o título de mestre pela Escola de Belas Artes da Ufba com a dissertação "Sante Scaldaferri: uma poética do feio". Em novembro deste ano, o trabalho vai virar livro. Sante ligou para Tripodi pedindo para que ele retirasse a palavra feio do título. “Mas eu falei que ele tem que manter o feio dele”, ri Tripodi. Ele acredita que a marca da obra de Sante é o pintor ter incorporado o cotidiano do Nordeste, mas com uma linguagem que “transfigura a realidade e a faz cruel como as fraquezas humanas”. “Por isso se diz que sua obra é feia. Não é ‘bela’ no sentido de que seus quadros são inconformados. Mas ele também vai do feio para o belo da alma humana. Com os ex-votos, mostra que ela pode se renovar, que é possível mudar”, analisa. Sante diz que a crítica passou a tomar conhecimento da sua obra quando, na terceira tentativa, conseguiu ser selecionado para o Salão Nacional. “Tirei vários prêmios, foi aí que minha carreira começou”. No ateliê, ele mantém um documento encadernado com todas as matérias que já foram publicadas, talvez para provar que pode ter a crítica como inimiga íntima. “Claro que ligo, mas nunca fiz arte para agradar ninguém. Nunca fiz concessão, nunca me abaixei senão minha bundinha ia aparecer”. Tripodi avalia que Sante é um dos maiores expoentes da sua geração. “Nos anos 80 houve uma grande rejeição à sua obra.
E foi justamente aí, quando ficou ‘feio’ mesmo, que nasceu a sua melhor fase. Sua obra foi considerada absurda, louca, se manteve distante do mercado. Mas depois veio a notoriedade pela singularidade”. O galerista Paulo Darzé concorda que essa é uma das grandes virtudes de Sante. “Ele é hoje um artista consagrado, bem posicionado, que não se deixou levar pelo modismo, pelo comercial. Sobreviveu nesse mercado sem fugir das suas raízes e se manteve inabalável no propósito de apenas agradar a si próprio. Por isso talvez tenha atravessado tantos períodos. O tempo está sendo generoso com ele”. De acordo com Darzé, os quadros de Sante custam entre R$ 8 e R$ 70 mil.
7/9/2008 29
ENCÁUSTICA E PHOTOSHOP Mas vamos deixar essa história de feio pra lá, porque Sante garante que é uma fase que já passou e está enterrada. E ele que já foi expressionista, agora é pop. “Estou trabalhando em duas linhas: uma pintura contemporânea, que é completamente diferente das outras, e fazendo inforgravuras com o computador. Não podia deixar essa máquina fantástica”. Ele cooptou um sobrinho para iniciá-lo no maravilhoso mundo da informática. Como menino pequeno, vai mostrar as artes no computador. Um homem segura um guarda-chuva se protegendo de um céu rosado, apoiado num mar de letras de jornal. "O fundo eu pintei, a figura também. Depois escaneei. Aí no Photoshop cliquei aqui, em cor automática, para realçar, compreendeu? Depois imprimi, está vendo como é? Às vezes demora dez dias para fazer uma coisa assim". Por isso, ai de quem disser que é tudo graça do tal do Photoshop. “Tem a minha interferência! Esse rosa fui eu que fiz, esse homem eu que desenhei. Tem uns imbecis que dizem ‘Ah, é de Photoshop!’ Photoshop uma ova!” Ele pinta todos os dias, mas sem muita rotina. Além da arte digital, ou como se queira chamar, também utiliza uma técnica muito sofisticada, a encáustica, em que usa cera de abelha. De novo, a lei é se adaptar. “Não posso hoje fazer impressionismo, porque os grandes criadores já estão na história. O resto é macaquice”.
SALVADOR DOMINGO
28 SALVADOR DOMINGO 7/9/2008
Sante Scaldaferri com seus ex-votos, inspiração dos seus trabalhos
«Se diz que sua obra é feia. Não é ‘bela’ no sentido de que seus quadros são inconformados» Aldo Tripodi, crítico de arte
“E logo eu que até hoje não sei quanto é dois e dois, tenho que fazer na maquininha”. Ele se inscreveu no curso, mas quem disse que foi? “Parei na porta e falei ‘Eu, hein? Não é pra mim não’. Me piquei”. Depois de um ano “malandreando”, viu num belo dia que a Escola de Belas Artes estava com inscrições abertas. Faltavam cinco dias para a prova. Não tinha estudado absolutamente nada. “Me lembro como se fosse hoje: um amigo meu que era aluno de lá me falou mais ou menos como era a prova. Fiz e passei. Acho que eles estavam precisando de alunos”.
ODE AO FEIO Nos anos 80, um jornalista argentino disse a Sante que não conseguia compreender sua obra. Ele complicou: “Esses quadros aqui são ex-votos com cara de gente. Esses atuais são gente com cara de ex-vo-
to”. Como o repórter continuava sem entender, Sante foi fazer o que talvez esteja na lista das coisas mais detestadas pelos artistas: explicar suas intenções. “Quero dizer que os ex-votos incorporam a condição humana, para expressar seus sentimentos de ódio, de amor, de tudo”. Em sua fase atual, onde estão os ex-votos, pergunto, aproveitando a deixa. “ Tá ali”, diz, apontando os quadros da nova safra. “Aquelas mulheres de bunda grande, tudo é ex-voto”. E se os ex-votos viraram gente de verdade, mostrando os sentimentos que o homem leva por dentro na impossibilidade de ser santo, qual havia de ser o resultado? Pintando há tanto tempo, de Sante já se disse tudo – de forma mais recorrente, que seus quadros são “feios”. Perambulando entre suas obras, ele aponta para a pintura de uma mulher que
tem ao lado um coração. “Aí, o que é que tem de feio nisso? Olha ali, ó, amor! Ela fez uma promessa para arrumar um namorado, está ali com a periquita do lado de fora (Risos). Então, quem tem sensibilidade, quem entende de arte, quando olha, sente a beleza, o conteúdo, que é do bem. Fui muito atacado, mas estou me lixando”. Em 2000, o crítico de arte Aldo Tripodi ganhou o título de mestre pela Escola de Belas Artes da Ufba com a dissertação "Sante Scaldaferri: uma poética do feio". Em novembro deste ano, o trabalho vai virar livro. Sante ligou para Tripodi pedindo para que ele retirasse a palavra feio do título. “Mas eu falei que ele tem que manter o feio dele”, ri Tripodi. Ele acredita que a marca da obra de Sante é o pintor ter incorporado o cotidiano do Nordeste, mas com uma linguagem que “transfigura a realidade e a faz cruel como as fraquezas humanas”. “Por isso se diz que sua obra é feia. Não é ‘bela’ no sentido de que seus quadros são inconformados. Mas ele também vai do feio para o belo da alma humana. Com os ex-votos, mostra que ela pode se renovar, que é possível mudar”, analisa. Sante diz que a crítica passou a tomar conhecimento da sua obra quando, na terceira tentativa, conseguiu ser selecionado para o Salão Nacional. “Tirei vários prêmios, foi aí que minha carreira começou”. No ateliê, ele mantém um documento encadernado com todas as matérias que já foram publicadas, talvez para provar que pode ter a crítica como inimiga íntima. “Claro que ligo, mas nunca fiz arte para agradar ninguém. Nunca fiz concessão, nunca me abaixei senão minha bundinha ia aparecer”. Tripodi avalia que Sante é um dos maiores expoentes da sua geração. “Nos anos 80 houve uma grande rejeição à sua obra.
E foi justamente aí, quando ficou ‘feio’ mesmo, que nasceu a sua melhor fase. Sua obra foi considerada absurda, louca, se manteve distante do mercado. Mas depois veio a notoriedade pela singularidade”. O galerista Paulo Darzé concorda que essa é uma das grandes virtudes de Sante. “Ele é hoje um artista consagrado, bem posicionado, que não se deixou levar pelo modismo, pelo comercial. Sobreviveu nesse mercado sem fugir das suas raízes e se manteve inabalável no propósito de apenas agradar a si próprio. Por isso talvez tenha atravessado tantos períodos. O tempo está sendo generoso com ele”. De acordo com Darzé, os quadros de Sante custam entre R$ 8 e R$ 70 mil.
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ENCÁUSTICA E PHOTOSHOP Mas vamos deixar essa história de feio pra lá, porque Sante garante que é uma fase que já passou e está enterrada. E ele que já foi expressionista, agora é pop. “Estou trabalhando em duas linhas: uma pintura contemporânea, que é completamente diferente das outras, e fazendo inforgravuras com o computador. Não podia deixar essa máquina fantástica”. Ele cooptou um sobrinho para iniciá-lo no maravilhoso mundo da informática. Como menino pequeno, vai mostrar as artes no computador. Um homem segura um guarda-chuva se protegendo de um céu rosado, apoiado num mar de letras de jornal. "O fundo eu pintei, a figura também. Depois escaneei. Aí no Photoshop cliquei aqui, em cor automática, para realçar, compreendeu? Depois imprimi, está vendo como é? Às vezes demora dez dias para fazer uma coisa assim". Por isso, ai de quem disser que é tudo graça do tal do Photoshop. “Tem a minha interferência! Esse rosa fui eu que fiz, esse homem eu que desenhei. Tem uns imbecis que dizem ‘Ah, é de Photoshop!’ Photoshop uma ova!” Ele pinta todos os dias, mas sem muita rotina. Além da arte digital, ou como se queira chamar, também utiliza uma técnica muito sofisticada, a encáustica, em que usa cera de abelha. De novo, a lei é se adaptar. “Não posso hoje fazer impressionismo, porque os grandes criadores já estão na história. O resto é macaquice”.
SALVADOR DOMINGO
30 SALVADOR DOMINGO 7/9/2008
GALERIA Confira obras de diversas fases do pintor Sante Scaldaferri, que foi do expressionismo ao contemporâneo
A Flagelação do Beato (1966): figuras representativas do misticismo do Nordeste
O Poder (1981): da série "Tríptico da Tentação", composta de "O Prazer" e "O Êxito prestigioso"
O Homem Porco Beija a Mulher Porca (1982): rabicho para mostrar a perversão humana
Sertão (1967): obra reúne os elementos sempre retomados pelo artista, fincados na cultura popular nordestina
Mulher na Terra e Ex-votos (1999): aplicações nos quadros de bonecos de pano ou ex-votos de madeira marcam a fase pop de Sante
É por isso que Sante é Sante. “Seu estilo é um expressionismo muito particular, voltado para a figura humana, que ele soube adaptar ao severo olhar do tempo”, analisa Matilde Matos, da Associação Brasileira de Críticos de Arte. Além de sobreviver ao tempo, ele quer estar na vanguarda. “A arte pode ou não ser crítica. Mas uma das características que um artista deve ter é prever o futuro, ser visionário”. Mas para isso há que se pagar certo preço. “Tem muito artista vivendo até melhor do que eu, porque faz um negócio bonitinho assim. A decoradora vai lá, pede um quadro vermelho e o cara faz”. Ele também reclama que não consegue expor suas inforgravuras. “A fotografia já ganhou o status de arte, mas com inforgravura ainda torcem o nariz”, diz Sante. Para Tripodi, é só o caso de esperar o tempo passar. “As galerias e os compradores demoram a se adaptar. Sante inova, mas sem perder a coerência estilística. Não importa que técnica utilize”. O crítico diz que desde o começo de sua carreira Sante rompe paradigmas. “Ele uniu o expressionismo alemão à cultura popular, mostrando o Nordeste de uma forma até violenta, que era contrário à oligarquia baiana. Foi muito corajoso. Enquanto a obra de Calasans (Neto), da mesma geração de Sante, se tornou comum, ele até hoje rompe com os padrões”. E pensar que em uma das primeiras mostras, em janeiro de 1958, o crítico José Valadares escreveu: “Tem a coragem de se conservar acadêmico, em vez de se meter moderno, possível é que jamais venha a ser um artista de vanguarda, mas antes isso do que zombar do bom senso alheio".
MAPA Andava o pintor pela rua Chile, acompanhando o ”footing“ da burguesia baiana.
«Sante tem uma coerência. Os temas são sempre voltados para a nossa circunstância, o nosso lugar» Fernando da Rocha Peres, poeta
Um sujeito encarava Sante e ele pensava: ”Esse cara é viado“. Uma mão o tocou o ombro, quando ele virou deu de cara com Glauber Rocha, que não conhecia. ”Ele falou: ‘Você vai trabalhar no meu filme’. Eu não tive como escapar”. O curta para o qual ele estava a partir dali escalado não saiu do papel. Sante seria o amante de uma prostituta que levaria um buquê para o seu funeral. Os dois tornaram-se amigos ele não pôde fugir de outro convite de Glauber, desta vez para filmar O Dragão da Maldade, recentemente restaurado. “A sorte é que meu personagem, o guia do cego, não tinha falas. Não tenho memória para decorar”. Sante e Glauber fizeram parte do grupo de amigos que viria a ser conhecido como Geração Mapa, que também reunia Calasans Neto, Florisvaldo Mattos, João Carlos Teixeira Gomes, Ângelo Roberto, João Enrico Mata, Frederico de Souza Castro, Fernando da Rocha Peres, Carlos Anísio Melhor e Paulo Gil Soares. “À noite a gente ia para a Cubana. Ficava conversando e tomando milk shake com bolinho. Não tinha bebida, não tinha maconha, nada disso”, lembra Sante. O nome do grupo foi referência à revista que editaram, a Mapa, que trazia artes visuais e literatura e teve apenas três números, publicados em 1957.
7/9/2008 31
Uma vida longa, é inevitável, acaba colecionando saudades. “Essa época era uma coisa fantástica. Tinha muita gente de talento”. Um deles, o poeta Fernando da Rocha Peres, amigo de Sante desde 1956. “Ele tem sido uma presença grande na minha vida. Quando não nos falamos por telefone sei que um está preocupado com o outro”. Fernando faz questão de acompanhar o trabalho do amigo. “Sante tem uma coerência no tema e na técnica que utiliza. Os temas são sempre voltados para a nossa circunstância, o nosso lugar”.
BOCA DO INFERNO DA PINTURA Sante também virou personagem de livro. Ciceroneou o escritor italiano Umberto Eco na Bahia, surrupiou um ex-voto da Igreja do Bonfim para lhe dar de presente e acabou em um dos seus livros, O Pêndulo de Foucault. “Ele me disse ‘Ó, o pintor é você, viu’. E eu falei pra ele, brincando: ‘Não é novidade, também sou personagem de Jorge Amado’”. Lembro de outro amigo seu, o poeta Ferreira Gullar, que uma vez o chamou de “Boca do Inferno da pintura baiana". A mordacidade que talvez os ligue permanece apenas no âmbito de suas obras. Sante é doce e simples, parece ser um custo conseguir deixá-lo de mau humor. Marina, 74, é casada com Sante há 41 anos. Ela diz que o segredo que os une há tanto tempo é um só: “amor”. Sante conta que preferiram viajar a ter filhos, e que a decisão foi sábia. Sua casa, onde funciona o ateliê, está cheia de árvores e obras de arte, com vista para o mar de Itapuã. E tudo comprado com dinheiro de quadro. Sante confessa que sua grande frustração é não ser um cantor lírico. Fã de ópera italiana, chora toda vez que ouve a ópera "Pagliacci". “Aí no fim ele diz: ‘La commedia é finita!’ Ê, que coisa bonita”. «
SALVADOR DOMINGO
30 SALVADOR DOMINGO 7/9/2008
GALERIA Confira obras de diversas fases do pintor Sante Scaldaferri, que foi do expressionismo ao contemporâneo
A Flagelação do Beato (1966): figuras representativas do misticismo do Nordeste
O Poder (1981): da série "Tríptico da Tentação", composta de "O Prazer" e "O Êxito prestigioso"
O Homem Porco Beija a Mulher Porca (1982): rabicho para mostrar a perversão humana
Sertão (1967): obra reúne os elementos sempre retomados pelo artista, fincados na cultura popular nordestina
Mulher na Terra e Ex-votos (1999): aplicações nos quadros de bonecos de pano ou ex-votos de madeira marcam a fase pop de Sante
É por isso que Sante é Sante. “Seu estilo é um expressionismo muito particular, voltado para a figura humana, que ele soube adaptar ao severo olhar do tempo”, analisa Matilde Matos, da Associação Brasileira de Críticos de Arte. Além de sobreviver ao tempo, ele quer estar na vanguarda. “A arte pode ou não ser crítica. Mas uma das características que um artista deve ter é prever o futuro, ser visionário”. Mas para isso há que se pagar certo preço. “Tem muito artista vivendo até melhor do que eu, porque faz um negócio bonitinho assim. A decoradora vai lá, pede um quadro vermelho e o cara faz”. Ele também reclama que não consegue expor suas inforgravuras. “A fotografia já ganhou o status de arte, mas com inforgravura ainda torcem o nariz”, diz Sante. Para Tripodi, é só o caso de esperar o tempo passar. “As galerias e os compradores demoram a se adaptar. Sante inova, mas sem perder a coerência estilística. Não importa que técnica utilize”. O crítico diz que desde o começo de sua carreira Sante rompe paradigmas. “Ele uniu o expressionismo alemão à cultura popular, mostrando o Nordeste de uma forma até violenta, que era contrário à oligarquia baiana. Foi muito corajoso. Enquanto a obra de Calasans (Neto), da mesma geração de Sante, se tornou comum, ele até hoje rompe com os padrões”. E pensar que em uma das primeiras mostras, em janeiro de 1958, o crítico José Valadares escreveu: “Tem a coragem de se conservar acadêmico, em vez de se meter moderno, possível é que jamais venha a ser um artista de vanguarda, mas antes isso do que zombar do bom senso alheio".
MAPA Andava o pintor pela rua Chile, acompanhando o ”footing“ da burguesia baiana.
«Sante tem uma coerência. Os temas são sempre voltados para a nossa circunstância, o nosso lugar» Fernando da Rocha Peres, poeta
Um sujeito encarava Sante e ele pensava: ”Esse cara é viado“. Uma mão o tocou o ombro, quando ele virou deu de cara com Glauber Rocha, que não conhecia. ”Ele falou: ‘Você vai trabalhar no meu filme’. Eu não tive como escapar”. O curta para o qual ele estava a partir dali escalado não saiu do papel. Sante seria o amante de uma prostituta que levaria um buquê para o seu funeral. Os dois tornaram-se amigos ele não pôde fugir de outro convite de Glauber, desta vez para filmar O Dragão da Maldade, recentemente restaurado. “A sorte é que meu personagem, o guia do cego, não tinha falas. Não tenho memória para decorar”. Sante e Glauber fizeram parte do grupo de amigos que viria a ser conhecido como Geração Mapa, que também reunia Calasans Neto, Florisvaldo Mattos, João Carlos Teixeira Gomes, Ângelo Roberto, João Enrico Mata, Frederico de Souza Castro, Fernando da Rocha Peres, Carlos Anísio Melhor e Paulo Gil Soares. “À noite a gente ia para a Cubana. Ficava conversando e tomando milk shake com bolinho. Não tinha bebida, não tinha maconha, nada disso”, lembra Sante. O nome do grupo foi referência à revista que editaram, a Mapa, que trazia artes visuais e literatura e teve apenas três números, publicados em 1957.
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Uma vida longa, é inevitável, acaba colecionando saudades. “Essa época era uma coisa fantástica. Tinha muita gente de talento”. Um deles, o poeta Fernando da Rocha Peres, amigo de Sante desde 1956. “Ele tem sido uma presença grande na minha vida. Quando não nos falamos por telefone sei que um está preocupado com o outro”. Fernando faz questão de acompanhar o trabalho do amigo. “Sante tem uma coerência no tema e na técnica que utiliza. Os temas são sempre voltados para a nossa circunstância, o nosso lugar”.
BOCA DO INFERNO DA PINTURA Sante também virou personagem de livro. Ciceroneou o escritor italiano Umberto Eco na Bahia, surrupiou um ex-voto da Igreja do Bonfim para lhe dar de presente e acabou em um dos seus livros, O Pêndulo de Foucault. “Ele me disse ‘Ó, o pintor é você, viu’. E eu falei pra ele, brincando: ‘Não é novidade, também sou personagem de Jorge Amado’”. Lembro de outro amigo seu, o poeta Ferreira Gullar, que uma vez o chamou de “Boca do Inferno da pintura baiana". A mordacidade que talvez os ligue permanece apenas no âmbito de suas obras. Sante é doce e simples, parece ser um custo conseguir deixá-lo de mau humor. Marina, 74, é casada com Sante há 41 anos. Ela diz que o segredo que os une há tanto tempo é um só: “amor”. Sante conta que preferiram viajar a ter filhos, e que a decisão foi sábia. Sua casa, onde funciona o ateliê, está cheia de árvores e obras de arte, com vista para o mar de Itapuã. E tudo comprado com dinheiro de quadro. Sante confessa que sua grande frustração é não ser um cantor lírico. Fã de ópera italiana, chora toda vez que ouve a ópera "Pagliacci". “Aí no fim ele diz: ‘La commedia é finita!’ Ê, que coisa bonita”. «