Trilha da resistência

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#420 / DOMINGO, 24 DE JULHO DE 2016 REVISTA SEMANAL DO GRUPO A TARDE

ANTÓNIO DA NÓVOA TROPOS BATALHA DE SALTO

CLÉCIA QUEIROZ VINHOS «

Trilha da RESISTÊNCIA Um roteiro turístico percorre seis dos 14 quilombos da Baía do Iguape, às margens do Paraguaçu


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SALVADOR DOMINGO 24/7/2016

VIAGEM AO CENTRO DA TERRA

Turismo étnico e cultural, a Rota da Liberdade, em suas trilhas, percorre seis dos 14 quilombos da Bacia de Iguape, no Recôncavo

Texto TATIANA MENDONÇA tatianam@gmail.com Fotos LÚCIO TÁVORA luciotavora@gmail.com

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VIAGEM AO CENTRO DA TERRA

Turismo étnico e cultural, a Rota da Liberdade, em suas trilhas, percorre seis dos 14 quilombos da Bacia de Iguape, no Recôncavo

Texto TATIANA MENDONÇA tatianam@gmail.com Fotos LÚCIO TÁVORA luciotavora@gmail.com

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barulho do ônibus se aproximando da porteira faz as meninas e meninoscorreremparaaentrada da comunidade. Já estão vestidos com tecidos estampados, coloridos, africanos. Um rapaz está de boné e leva uma bronca por isso. “Já falei que é pra tirar”, diz a professora e coreógrafa Jucilene Jovelino, 36. Ele protesta, ensaia fazer questão, mas acaba cedendo. Mais atrás, um outro se mantém na resistência. Amuado, cabeça baixa e braços cruzados, diz que não vai tirar a camisa de jeito nenhum. “Você vai, sim! Bora logo, bora!”, retruca impaciente Juvani Viana, 65, mãe de Jucilene e líder espiritual do quilombo Kaonge. O adolescente segue imóvel, coberto e encostado na parede. Ficou por lá. Com as visitas para chegar, não era hora de criar maiores casos. À frente, o grupo devidamente trajado canta e bate palmas para dar as boas-vindas aos turistas estrangeiros. “Alô! Bom dia! Como vai você?”. Celulares e câmeras em punho, eles não entenderam muito bem o que diziam, mas sorriram em retribuição. Numa manhã nublada de sábado, quinze professores e estudantes da Universidade de St. Thomas, nos Estados Unidos, deixaram um pouco de lado os pontos turísticos de Salvador para conhecer a vida na comunidade, situada nas proximidades de Cachoeira, no Recôncavo baiano. O passeio foi organizado pelo Núcleo de Turismo Rota da Liberdade, criado em 2005. Além do Kaonge, onde hoje vivem cerca de 800 pessoas, o roteiro turístico percorre outros cinco quilombos da Baía do Iguape, na beira do rio Paraguaçu: Engenho da Ponte, Dendê, Kalemba, São Francisco do Paraguaçu e Santiago do Iguape. Ao contrário de outros projetos do gê-

nero, a Rota da Liberdade não surgiu por iniciativa de atores externos. Foram os próprios quilombolas que tiveram a ideia e escolheram os pontos a serem visitados e as atividades a serem exibidas aos olhos de quem chega. A ideia é beneficiar as comunidades envolvidas de modo sustentável, criando uma renda extra para os moradores, que tiram o sustento da roça, da pesca, da mariscagem, da feitura de farinha, do azeite de dendê, do mel. “Aqui, a pessoa só morre de fome se for muito preguiçosa”, diz o guia Anderson Jovelino, 30, nascido e criado em Kaonge e um dos 20 trabalhadores diretos da Rota.

VIDA TURÍSTICA O grupo de estrangeiros da St. Thomas fazia o roteiro Dia a dia. HáoutrobatizadodeHistórico,noqualosturistaspodemchegaràs comunidades pelo rio-mar, e um terceiro chamado Trilha Griô – Caravana dos Orixás, que refaz o ritual da Esmola Cantada dos festejos para São Roque, numa caminhada de quatro quilômetros. Como havia chovido na noite anterior, tiveram que se equilibrar para não escorregar na lama que tomava o caminho de terra. Uma moça de cabelos ruivos e pele de um branco translúcido preferiu

As duas fotos são no quilombo do Kalemba, que faz parte da Rota da Liberdade, criada em 2005

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barulho do ônibus se aproximando da porteira faz as meninas e meninoscorreremparaaentrada da comunidade. Já estão vestidos com tecidos estampados, coloridos, africanos. Um rapaz está de boné e leva uma bronca por isso. “Já falei que é pra tirar”, diz a professora e coreógrafa Jucilene Jovelino, 36. Ele protesta, ensaia fazer questão, mas acaba cedendo. Mais atrás, um outro se mantém na resistência. Amuado, cabeça baixa e braços cruzados, diz que não vai tirar a camisa de jeito nenhum. “Você vai, sim! Bora logo, bora!”, retruca impaciente Juvani Viana, 65, mãe de Jucilene e líder espiritual do quilombo Kaonge. O adolescente segue imóvel, coberto e encostado na parede. Ficou por lá. Com as visitas para chegar, não era hora de criar maiores casos. À frente, o grupo devidamente trajado canta e bate palmas para dar as boas-vindas aos turistas estrangeiros. “Alô! Bom dia! Como vai você?”. Celulares e câmeras em punho, eles não entenderam muito bem o que diziam, mas sorriram em retribuição. Numa manhã nublada de sábado, quinze professores e estudantes da Universidade de St. Thomas, nos Estados Unidos, deixaram um pouco de lado os pontos turísticos de Salvador para conhecer a vida na comunidade, situada nas proximidades de Cachoeira, no Recôncavo baiano. O passeio foi organizado pelo Núcleo de Turismo Rota da Liberdade, criado em 2005. Além do Kaonge, onde hoje vivem cerca de 800 pessoas, o roteiro turístico percorre outros cinco quilombos da Baía do Iguape, na beira do rio Paraguaçu: Engenho da Ponte, Dendê, Kalemba, São Francisco do Paraguaçu e Santiago do Iguape. Ao contrário de outros projetos do gê-

nero, a Rota da Liberdade não surgiu por iniciativa de atores externos. Foram os próprios quilombolas que tiveram a ideia e escolheram os pontos a serem visitados e as atividades a serem exibidas aos olhos de quem chega. A ideia é beneficiar as comunidades envolvidas de modo sustentável, criando uma renda extra para os moradores, que tiram o sustento da roça, da pesca, da mariscagem, da feitura de farinha, do azeite de dendê, do mel. “Aqui, a pessoa só morre de fome se for muito preguiçosa”, diz o guia Anderson Jovelino, 30, nascido e criado em Kaonge e um dos 20 trabalhadores diretos da Rota.

VIDA TURÍSTICA O grupo de estrangeiros da St. Thomas fazia o roteiro Dia a dia. HáoutrobatizadodeHistórico,noqualosturistaspodemchegaràs comunidades pelo rio-mar, e um terceiro chamado Trilha Griô – Caravana dos Orixás, que refaz o ritual da Esmola Cantada dos festejos para São Roque, numa caminhada de quatro quilômetros. Como havia chovido na noite anterior, tiveram que se equilibrar para não escorregar na lama que tomava o caminho de terra. Uma moça de cabelos ruivos e pele de um branco translúcido preferiu

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Cotidiano na comunidade: Anderson, no Engenho da Ponte, as crianças, Juvani e Valdelice

tirar logo as sapatilhas, para estar mais próxima dos costumes locais. A primeira parada foi no Terreiro 21 Aldeias de Mar e Terra, para uma conversa com Juvani. Antes de contar sua história, ela avisou logo que não gostava de ser chamada de mãe de santo. “Tenho 10 filhos e nenhum deles é santo”, riu. É a sua tirada de abertura, aquela que sempre funciona. Os turistas riram com delay, depois da tradução do guia que os acompanhava. O segundo recado foi que naquele momento era melhor que não tirassem fotos. Ia perguntaraossantossepodia,depoisavisava. Não puderam esconder certa decepção. Com os gringos sentados em cadeiras ao seu redor, Juvani desfiou sua vida desde os tempos de meninice. Contou que o pai, queantescomandavaoterreiro,alevoucedo para estudar em Salvador, porque “não queria filho burro”. Ela foi para uma escola de freira guardando o sonho de tornar-se professora e voltar para o Kaonge. O retorno veio mais cedo do que pen-

sava. Os pais adoeceram e morreram logo, um seguido do outro. Aos 18 anos, viu-se na obrigação de tomar conta de casa. Crescida na cidade, teve que aprender na marra como se plantava, como se mariscava, como se fazia azeite de dendê. Mas, como continuava querendo ensinar, arrumou seu tempo. Trabalhava de dia e depois davaaulas,lámesmonoterreiro.Transformouumatábuaemquadro, carvão em giz, tocos de árvore em bancos. Como ainda tinha lembranças um tanto traumáticas dos tapas que levava quando errava a carta do ABC, preferiu cantar músicas nas aulas. Os pais dos alunos pagavam com o que tinham, peixe, marisco, farinha. Acabou chamando a atenção de um político de Cachoeira, que ouviu falar da sua história e prometeu que se votasse nele, e ele vencesse, a contrataria e lhe daria um salário. Os acasos se somaram, e Juvani finalmente realizou o sonho de virar ‘pró’ de carteira assinada.

CONSELHO QUILOMBOLA Outras lutas se seguiram até que botasse de pé a Escola Cosme e Damião, que fica na entrada da comunidade. Hoje, é Jucilene quem dá aulas lá, para crianças do 1º ao 5º ano. Depois, para continuar os estudos, eles têm que seguir até Santiago do Iguape. Atualmente há transporte escolar para levá-los até lá, mas no tempo de Jucilene, o jeito era ir a pé mesmo. Muita coisa mudou num curto espaço de tempo. Há coisa de uma década, não havia ali es-

tradas, água encanada ou luz elétrica. Por causa disso, muitos foram embora, mas agora há quem queira voltar. Mas aí é preciso antes pedir permissão a quem resistiu. No último domingo de cada mês, o Conselho Quilombola da Bacia e Vale do Iguape se reúne para tratar desta e de outras questões. Formado por 14 comunidades, a Rota da Liberdade também foi assunto por ali para saber se todos aprovavam a novidade. Agora, estão estudando se outros locais farão parte do roteiro. É um processo vagaroso de mapear atrativos e de capacitar guias locais. “Tem que ser uma coisa bem conversada para não ter erro. Só fica quem quer. Muita gente entrou no princípio achando que ia dar muito dinheiro, depois viu que não era aquilo, não gostou e saiu”, explica Juvani. Depois da palestra com a “griô” (na tradição africana, aquela que transmite a memória do grupo), os visitantes excursionaram pelasdemais atrações. Foramaté uma casa de taipa ver como é que se transforma

mandioca em farinha, acompanharam os trabalhosos processos de mutação do dendê em azeite, distraíram-se com os cachorros e galinhas que passeavam por ali e depois conversaram com Valdelice Mota, 89, rezadeira e fazedora de xarope. Engrandecia a sua miudeza contando que a primeira vez que foi num médico já era avó. Sua farmácia é ali mesmo pelo quintal. Os gringos queriam saber os nomes científicos das plantas usadas naquele xarope de “rancar catarro”, mas ela só as conhecia pelos apelidos. Ela também contou que antes a vida era dura, tinha que ir caminhando até Cachoeira com as bacias de frutas de vender na cabeça, e também buscar água escondida no rio de uma fazenda ali perto. “A gente tinha que passar pelo mangue, ficava toda cheia de lama. Eles botavam boi valente para assustar o povo. Toda hora precisava deitar no mato para se esconder. Aqui hoje é o paraíso. A gente tá contente e satisfeita”. Pela vontade dos seus filhos, hoje só es-

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taria quietinha dentro de casa, mas Valdelice não aguenta. “Eu ainda arranho no quintal escondida. Aí, quando eles descobrem e brigam, eu falo: ‘Ah, isso daí fui eu que pedi o menino pra arrumar...’ ”, ri. Gosta também de estar ali contando sua história, e não liga de ter que repeti-la sempre. “É um divertimento”. Depois de toda a conversa e demonstrações, faltava ainda uma atração. O grupo de crianças e adolescentes que recebeu os turistas na porteira fez uma pequena apresentação de dança afro no interior do terreiro. “Chegou o povo negro / Da África distante”, entoavam com variados níveis de animação. Em alguns, os movimentos eram tão elegantes e naturais que nem pareciam ensaiados. Portrásdosatabaques,LuizFerreira,15, emitia os sons que os faziam dançar. Tímido até a medula, prefere mil vezes tocar a conversar. Mas baixinho mesmo conta que não pensa em morar em nenhum lugar além dali onde nasceu. E que para se di-


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Cotidiano na comunidade: Anderson, no Engenho da Ponte, as crianças, Juvani e Valdelice

tirar logo as sapatilhas, para estar mais próxima dos costumes locais. A primeira parada foi no Terreiro 21 Aldeias de Mar e Terra, para uma conversa com Juvani. Antes de contar sua história, ela avisou logo que não gostava de ser chamada de mãe de santo. “Tenho 10 filhos e nenhum deles é santo”, riu. É a sua tirada de abertura, aquela que sempre funciona. Os turistas riram com delay, depois da tradução do guia que os acompanhava. O segundo recado foi que naquele momento era melhor que não tirassem fotos. Ia perguntaraossantossepodia,depoisavisava. Não puderam esconder certa decepção. Com os gringos sentados em cadeiras ao seu redor, Juvani desfiou sua vida desde os tempos de meninice. Contou que o pai, queantescomandavaoterreiro,alevoucedo para estudar em Salvador, porque “não queria filho burro”. Ela foi para uma escola de freira guardando o sonho de tornar-se professora e voltar para o Kaonge. O retorno veio mais cedo do que pen-

sava. Os pais adoeceram e morreram logo, um seguido do outro. Aos 18 anos, viu-se na obrigação de tomar conta de casa. Crescida na cidade, teve que aprender na marra como se plantava, como se mariscava, como se fazia azeite de dendê. Mas, como continuava querendo ensinar, arrumou seu tempo. Trabalhava de dia e depois davaaulas,lámesmonoterreiro.Transformouumatábuaemquadro, carvão em giz, tocos de árvore em bancos. Como ainda tinha lembranças um tanto traumáticas dos tapas que levava quando errava a carta do ABC, preferiu cantar músicas nas aulas. Os pais dos alunos pagavam com o que tinham, peixe, marisco, farinha. Acabou chamando a atenção de um político de Cachoeira, que ouviu falar da sua história e prometeu que se votasse nele, e ele vencesse, a contrataria e lhe daria um salário. Os acasos se somaram, e Juvani finalmente realizou o sonho de virar ‘pró’ de carteira assinada.

CONSELHO QUILOMBOLA Outras lutas se seguiram até que botasse de pé a Escola Cosme e Damião, que fica na entrada da comunidade. Hoje, é Jucilene quem dá aulas lá, para crianças do 1º ao 5º ano. Depois, para continuar os estudos, eles têm que seguir até Santiago do Iguape. Atualmente há transporte escolar para levá-los até lá, mas no tempo de Jucilene, o jeito era ir a pé mesmo. Muita coisa mudou num curto espaço de tempo. Há coisa de uma década, não havia ali es-

tradas, água encanada ou luz elétrica. Por causa disso, muitos foram embora, mas agora há quem queira voltar. Mas aí é preciso antes pedir permissão a quem resistiu. No último domingo de cada mês, o Conselho Quilombola da Bacia e Vale do Iguape se reúne para tratar desta e de outras questões. Formado por 14 comunidades, a Rota da Liberdade também foi assunto por ali para saber se todos aprovavam a novidade. Agora, estão estudando se outros locais farão parte do roteiro. É um processo vagaroso de mapear atrativos e de capacitar guias locais. “Tem que ser uma coisa bem conversada para não ter erro. Só fica quem quer. Muita gente entrou no princípio achando que ia dar muito dinheiro, depois viu que não era aquilo, não gostou e saiu”, explica Juvani. Depois da palestra com a “griô” (na tradição africana, aquela que transmite a memória do grupo), os visitantes excursionaram pelasdemais atrações. Foramaté uma casa de taipa ver como é que se transforma

mandioca em farinha, acompanharam os trabalhosos processos de mutação do dendê em azeite, distraíram-se com os cachorros e galinhas que passeavam por ali e depois conversaram com Valdelice Mota, 89, rezadeira e fazedora de xarope. Engrandecia a sua miudeza contando que a primeira vez que foi num médico já era avó. Sua farmácia é ali mesmo pelo quintal. Os gringos queriam saber os nomes científicos das plantas usadas naquele xarope de “rancar catarro”, mas ela só as conhecia pelos apelidos. Ela também contou que antes a vida era dura, tinha que ir caminhando até Cachoeira com as bacias de frutas de vender na cabeça, e também buscar água escondida no rio de uma fazenda ali perto. “A gente tinha que passar pelo mangue, ficava toda cheia de lama. Eles botavam boi valente para assustar o povo. Toda hora precisava deitar no mato para se esconder. Aqui hoje é o paraíso. A gente tá contente e satisfeita”. Pela vontade dos seus filhos, hoje só es-

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taria quietinha dentro de casa, mas Valdelice não aguenta. “Eu ainda arranho no quintal escondida. Aí, quando eles descobrem e brigam, eu falo: ‘Ah, isso daí fui eu que pedi o menino pra arrumar...’ ”, ri. Gosta também de estar ali contando sua história, e não liga de ter que repeti-la sempre. “É um divertimento”. Depois de toda a conversa e demonstrações, faltava ainda uma atração. O grupo de crianças e adolescentes que recebeu os turistas na porteira fez uma pequena apresentação de dança afro no interior do terreiro. “Chegou o povo negro / Da África distante”, entoavam com variados níveis de animação. Em alguns, os movimentos eram tão elegantes e naturais que nem pareciam ensaiados. Portrásdosatabaques,LuizFerreira,15, emitia os sons que os faziam dançar. Tímido até a medula, prefere mil vezes tocar a conversar. Mas baixinho mesmo conta que não pensa em morar em nenhum lugar além dali onde nasceu. E que para se di-


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vertir jogam dominó e futebol. Diz que foi num jogo que ganhou a cicatriz que exibe próximo à clavícula, mas não se intimidou e continua batendo seu baba.

SACOLAS DE OSTRAS Já passava do meio-dia, barrigas estrangeiras e locais roncavam, era hora do almoço. No Restaurante É de Oxum, aberto há cinco anos por Juvani, tinha vatapá, caruru, ostra frita e moqueca de ostra. Um estudante nigeriano, depois de fazer seu prato, não se aguentou de emoção e anunciou aos colegas, para quem tudo ali era inédito: “Oh, that’s my food!” (Essa é a minha comida!). A chiqueza dessa fartura de ostra é ali coisa corriqueira. Elas são criadas no Dendê, quilombo vizinho, nas águas do rio Paraguaçu. Nilton Santos, conhecido como Nico, foi o primeiro produtor da região. No começo, relutou muito em apostar nessa história. “Para a gente que trabalhava em roça, isso era uma coisa de outro mundo... Criação de ostra em cativeiro? Oxen, era estranho”. Uma ONG levou a proposta e ensinou a tecnologia. Ele foi se animando ao ver as “sacolas” se enchendo. “Hoje isso é a minha riqueza”, diz, olhando sua plantação no rio. Outraspessoasforamseinteressando,eem2004foicriada uma cooperativa com 30 integrantes. “Só que nem todo mundo era produtor. Tinha gente ali que nem sabia o que era a lama da maré”, conta Nico, primeiro presidente da organização. Com uma desavença aqui, outra acolá, o grupo acabou mudando de forma. Passou a se chamar núcleo e hoje só reúne produtores, 32, para ser exata, a maioria mulheres. Seis pessoas estão na lista de espera. Pela dúzia, cobram R$ 10, mas estão tentando melhorar o preço. A degustação da ostra fresca, recém-saída do rio, só com um limãozinho que Nico cata em casa, enche de alegria os turistas brasileiros e estrangeiros. Mas há muitas outras formas de experimentá-las, especialmente se a visita calhar com o Festival da Ostra, que acontece em outubro e este ano terá sua oitava edição. Tem ostra cozida, frita, assada, gratinada, crua, de moqueca, ensopada. E além de toda comida, há ainda rodas de conversa e de samba. Quem quiser acompanhar mais de perto a vida dos quilombolas, as miudezas que não se avistam em eventos, pode optar por ficar mais um tempo e se hospedar na casa dos moradores, no esquema “cama e café”. Os quilombos da região foram formados a partir de fugas

Nilton das ostras – que são comercializadas em restaurantes de Salvador – e o almoço para os turistas

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vertir jogam dominó e futebol. Diz que foi num jogo que ganhou a cicatriz que exibe próximo à clavícula, mas não se intimidou e continua batendo seu baba.

SACOLAS DE OSTRAS Já passava do meio-dia, barrigas estrangeiras e locais roncavam, era hora do almoço. No Restaurante É de Oxum, aberto há cinco anos por Juvani, tinha vatapá, caruru, ostra frita e moqueca de ostra. Um estudante nigeriano, depois de fazer seu prato, não se aguentou de emoção e anunciou aos colegas, para quem tudo ali era inédito: “Oh, that’s my food!” (Essa é a minha comida!). A chiqueza dessa fartura de ostra é ali coisa corriqueira. Elas são criadas no Dendê, quilombo vizinho, nas águas do rio Paraguaçu. Nilton Santos, conhecido como Nico, foi o primeiro produtor da região. No começo, relutou muito em apostar nessa história. “Para a gente que trabalhava em roça, isso era uma coisa de outro mundo... Criação de ostra em cativeiro? Oxen, era estranho”. Uma ONG levou a proposta e ensinou a tecnologia. Ele foi se animando ao ver as “sacolas” se enchendo. “Hoje isso é a minha riqueza”, diz, olhando sua plantação no rio. Outraspessoasforamseinteressando,eem2004foicriada uma cooperativa com 30 integrantes. “Só que nem todo mundo era produtor. Tinha gente ali que nem sabia o que era a lama da maré”, conta Nico, primeiro presidente da organização. Com uma desavença aqui, outra acolá, o grupo acabou mudando de forma. Passou a se chamar núcleo e hoje só reúne produtores, 32, para ser exata, a maioria mulheres. Seis pessoas estão na lista de espera. Pela dúzia, cobram R$ 10, mas estão tentando melhorar o preço. A degustação da ostra fresca, recém-saída do rio, só com um limãozinho que Nico cata em casa, enche de alegria os turistas brasileiros e estrangeiros. Mas há muitas outras formas de experimentá-las, especialmente se a visita calhar com o Festival da Ostra, que acontece em outubro e este ano terá sua oitava edição. Tem ostra cozida, frita, assada, gratinada, crua, de moqueca, ensopada. E além de toda comida, há ainda rodas de conversa e de samba. Quem quiser acompanhar mais de perto a vida dos quilombolas, as miudezas que não se avistam em eventos, pode optar por ficar mais um tempo e se hospedar na casa dos moradores, no esquema “cama e café”. Os quilombos da região foram formados a partir de fugas

Nilton das ostras – que são comercializadas em restaurantes de Salvador – e o almoço para os turistas

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bo, em 2005. A peleja durou uns três, quatro anos, mas hoje a disputa se acalmou. Antônio Garcia dá testemunho. Ele vive alieéoesmeradocuidadordoConventode Santo Antônio, de 1688, ponto turístico da Rota. No convento, foram gravadas cenas da novela Velho Chico. O altar construído para a trama ainda enfeita a igreja, convivendo com elementos tricentenários. De domingo a domingo, Antônio está por lá. “Às vezes, estou de férias e aparece alguém me procurando para vir para cá. E eu venho. Faço por amor. Isso daqui é uma pepita de ouro. Não pode ser esquecida”.

INTERESSE SOCIAL

Acima, o convento. Ao lado, a fabricação do dendê e Luiz, morador do quilombo de Kaonge

e rebeliões, mas também explicam-se pela decadência econômica que se abateu sobre o Recôncavo. Com o declínio dos engenhos de açúcar, as populações escravizadas acabaram “à própria sorte”, como explica a pesquisadora Ana Paula Comin de Carvalho, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Os grandes senhores se foram, os trabalhadores ficaram, “mantendo os espaços abandonados”. Algumas comunidades ainda carregam no nome essa ligação, como o Engenho da Ponte. Ali a antiga sinhá é vista como uma pessoa boa, porque contam que não maltratava os escravos e que teve a ideia de trazer uma imagem de São Roque para a igrejinha do lugar, para acabar com a mortandade das pestes que os dizimavam, co-

mo conta a guia local Selma Santos, 35. Na escola que fica a alguns passos da igreja, a professora Maria da Conceição da Silva, 39, também gosta de contar para seus alunos a história do lugar onde vivem. “Mostro que eles são descendentes de reis e rainhas que foram trazidos para cá. E que eles podem ser tudo que quiserem”. Quando era criança, ela ouvia falar que os moradores dali vinham do povo escravizado, mas lembra que não tinham orgulho de serem negros. Aí começaram a aparecer uns seminários falando de autoafirmação. “Mesmo assim, muita gente dizia: ‘Eu não sou quilombola, sou fulano’”, Maria conta. Depois, se apaziguaram quando vieram as “vantagens” das “políticas públicas voltadas ao povo de matriz africana”, como as vagas nas universidades. O clima na região é tranquilo. Não há conflitos violentos pela posse das terras. O último registro de disputas do gênero aconteceu em São Francisco do Paraguaçu, quando fazendeiros e quilombolas passaram a se enfrentar assim que a Fundação Palmares certificou a área como uma comunidade remanescente de quilom-

ROTA DA LIBERDADE Agendamento pelos telefones (71) 99607-1452 ou (71) 99108-4768 e pelo e-mail rotadaliberdade.turismo @cecvi.org.br. Para grupos com cinco ou mais pessoas, valor individual a partir de R$ 150. Para passeios com menos pessoas, valor a combinar, a depender da rota escolhida.

Os processos legais para conceder o título coletivo dos territórios quilombolas da BaciadoIguapecaminhamvagarosos.Certificados entre 2004 e 2006, muitos ainda não possuem o Relatório Técnico de Delimitação e Identificação (RTID) finalizado, de acordo com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), responsável pela titulação. Só depois da publicação do RTID é possível declarar a área como de interesse social e desapropriar as terras, para concedê-las à comunidade. A situação se repete em outros locais do Estado. Desde 2003, quando a política de reconhecimentodascomunidadesquilombolas foi instituída pelo governo federal, nenhum quilombo baiano recebeu a titulação total. Apenas dois deles, Pau D’Arco Parateca, em Malhada, e Jatobá, em Muquém de São Francisco, possuem a titulação parcial das terras. Juvani, do Kaonge, faz planos para quando esse dia chegar. Vão poder ocupar uma área já demarcada, mas ainda cercada por um fazendeiro. “A gente podia fazer uma plantação maior, de mamona, não sei, algo que estimulasse os jovens. Aqui, em se plantando, tudo dá bem”. «


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bo, em 2005. A peleja durou uns três, quatro anos, mas hoje a disputa se acalmou. Antônio Garcia dá testemunho. Ele vive alieéoesmeradocuidadordoConventode Santo Antônio, de 1688, ponto turístico da Rota. No convento, foram gravadas cenas da novela Velho Chico. O altar construído para a trama ainda enfeita a igreja, convivendo com elementos tricentenários. De domingo a domingo, Antônio está por lá. “Às vezes, estou de férias e aparece alguém me procurando para vir para cá. E eu venho. Faço por amor. Isso daqui é uma pepita de ouro. Não pode ser esquecida”.

INTERESSE SOCIAL

Acima, o convento. Ao lado, a fabricação do dendê e Luiz, morador do quilombo de Kaonge

e rebeliões, mas também explicam-se pela decadência econômica que se abateu sobre o Recôncavo. Com o declínio dos engenhos de açúcar, as populações escravizadas acabaram “à própria sorte”, como explica a pesquisadora Ana Paula Comin de Carvalho, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Os grandes senhores se foram, os trabalhadores ficaram, “mantendo os espaços abandonados”. Algumas comunidades ainda carregam no nome essa ligação, como o Engenho da Ponte. Ali a antiga sinhá é vista como uma pessoa boa, porque contam que não maltratava os escravos e que teve a ideia de trazer uma imagem de São Roque para a igrejinha do lugar, para acabar com a mortandade das pestes que os dizimavam, co-

mo conta a guia local Selma Santos, 35. Na escola que fica a alguns passos da igreja, a professora Maria da Conceição da Silva, 39, também gosta de contar para seus alunos a história do lugar onde vivem. “Mostro que eles são descendentes de reis e rainhas que foram trazidos para cá. E que eles podem ser tudo que quiserem”. Quando era criança, ela ouvia falar que os moradores dali vinham do povo escravizado, mas lembra que não tinham orgulho de serem negros. Aí começaram a aparecer uns seminários falando de autoafirmação. “Mesmo assim, muita gente dizia: ‘Eu não sou quilombola, sou fulano’”, Maria conta. Depois, se apaziguaram quando vieram as “vantagens” das “políticas públicas voltadas ao povo de matriz africana”, como as vagas nas universidades. O clima na região é tranquilo. Não há conflitos violentos pela posse das terras. O último registro de disputas do gênero aconteceu em São Francisco do Paraguaçu, quando fazendeiros e quilombolas passaram a se enfrentar assim que a Fundação Palmares certificou a área como uma comunidade remanescente de quilom-

ROTA DA LIBERDADE Agendamento pelos telefones (71) 99607-1452 ou (71) 99108-4768 e pelo e-mail rotadaliberdade.turismo @cecvi.org.br. Para grupos com cinco ou mais pessoas, valor individual a partir de R$ 150. Para passeios com menos pessoas, valor a combinar, a depender da rota escolhida.

Os processos legais para conceder o título coletivo dos territórios quilombolas da BaciadoIguapecaminhamvagarosos.Certificados entre 2004 e 2006, muitos ainda não possuem o Relatório Técnico de Delimitação e Identificação (RTID) finalizado, de acordo com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), responsável pela titulação. Só depois da publicação do RTID é possível declarar a área como de interesse social e desapropriar as terras, para concedê-las à comunidade. A situação se repete em outros locais do Estado. Desde 2003, quando a política de reconhecimentodascomunidadesquilombolas foi instituída pelo governo federal, nenhum quilombo baiano recebeu a titulação total. Apenas dois deles, Pau D’Arco Parateca, em Malhada, e Jatobá, em Muquém de São Francisco, possuem a titulação parcial das terras. Juvani, do Kaonge, faz planos para quando esse dia chegar. Vão poder ocupar uma área já demarcada, mas ainda cercada por um fazendeiro. “A gente podia fazer uma plantação maior, de mamona, não sei, algo que estimulasse os jovens. Aqui, em se plantando, tudo dá bem”. «


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