#460 / DOMINGO, 7 DE MAIO DE 2017 REVISTA SEMANAL DO GRUPO A TARDE
DANILLO BARATA SEREÍSMO INSTANTÂNEO MURILO SÁ
Saída para o
VIVER
O impasse em torno do Projeto Viver, que atende vítimas de violência sexual em Salvador
TURISMO UVAS EMBLEMÁTICAS «
CRÔNICA DE UM
IMPASSE ANUNCIADO Texto TATIANA MENDONÇA tatianam@gmail.com Fotos ADILTON VENEGEROLES asvvas@gmail.com
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Os debates em torno da reformulação do Serviço de Atenção a Pessoas em Situação de Violência Sexual – Projeto Viver, que atende majoritariamente crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual, além de oferecer assistência às suas famílias SALVADOR DOMINGO 7/5/2017
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aúltima quarta-feirade abril,assalas de atendimento do Serviço de Atenção a Pessoas em Situação de Violência Sexual– Projeto Viverestavam todas vazias. Iriam permanecer assim pelos próximos dias. Talvez ainda estejam apagadas agora. Enquanto isso, 62 pessoas, a maioria crianças e adolescentes abusados sexualmente, têm seus nomes anotados numa lista de espera. Outras 63 vítimas, que eram atendidas pelo serviço, foram encaminhadas para outros órgãos ou aguardavam por uma vaga. Não é que o Viver estivesse fechado, mas também não estava aberto. Os funcionários do setor administrativo estavam lá, mas os contratos dos psicólogos e assistentes sociais que atuavam no serviço tinham acabado no dia anterior, sem que novos tivessem sido contratados. O governo estadual, responsável pelo serviço, buscava uma solução emergencial para dar continuidade aos atendimentos, remanejando funcionários de outros locais, o que não tinha acontecido atéofechamentodestaedição.Odiscursooficialéque o serviço será reformulado. Para discutir essas mudanças, e a própria sobrevivência do Viver, na terça-feira, 25, foi realizada no auditório do Tribunal da Justiça uma audiência pública com representantes da Comissão de Mulheres da Câmara dos Vereadores, da Defensoria Pública, do Ministério Público, da Justiça e da Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SJDHDS), responsável pelo projeto. Nas poucas cadeiras ocupadas estavam ativistas, familiares de vítimas e profissionais do Viver. Uma delas era a psicóloga Selma Evangelista, que encerrava ali o seu vínculo com o serviço. De tão agoniada, assistiu à audiência de pé. Ouviu a desembargadora Nágila Brito dizer que o Viver era um serviço cujos moldes beiravam “a perfeição”; ouviu a superintendente da SJDHDS, Leísa Sousa, falar sobre o redesenho do projeto, que passaria prioritariamente a oferecer capacitação técnica para órgãos da rede de assistência social; ouviu a defensora pública Eva Rodrigues retrucar que em vez de contornar limitações e especificidades de outros espaços de acolhimento, o estado deveria fortalecer a solução que já existe, o próprio Viver. Quando a secretária estadual de Políticas para as Mulheres, Julieta Palmeira, disse que garantia que não haveria descontinuidade do serviço, Selma se exasperou. Nem esperou o microfone para falar. Contou que a descontinuidade já ocorria na prática. Desde março, o Viver parou de receber novos casos, pela im-
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possibilidade de assumir acompanhamentos terapêuticos, que logo seriam interrompidos. Selma também indignou-se por não ter tido a oportunidade de encaminhar de maneira responsável os casos que acompanhou por quatro anos, tempo em que atuou no serviço. “Quem vai se responsabilizar pelos danos a essas crianças e seus familiares? Nós estamos lidando com vidas”. Vanessa, mãe de uma menina de 5 anos, abusada pelo pai, falou em seguida. Emocionada, contou que, para ela, o Viver era um “oásis em meio ao deserto”. “Quando um fato desse acontece, a gente perde o companheiro, a renda, fica desestabilizada e precisa continuar lutando, precisa buscar respostas. E quem nosdeuesseamparofoioViver”.Aofinaldoencontro, a socióloga Vilma Reis pediu a palavra para fazer uma pergunta: por que um “projeto de excelência” estava sendo “desmantelado”? É mais fácil explicar o como, e para isso é preciso partir do começo.
SERVIÇO INOVADOR
O ensaio que acompanha esta reportagem foi feito na audiência pública sobre o Projeto Viver
Em 2000, quando trabalhava na Secretaria da Segurança Pública, a pedagoga Débora Cohim recebeu de Kátia Alves, então secretária da pasta, a tarefa de criar um serviço que atendesse vítimas de violência sexual. O pedido era oferecer mais que um boletim de ocorrência ou um laudo pericial a quem procurasse a polícia com uma denúncia. Por um ano, Débora conversou com delegados das especializadas da Mulher e
da Criança e do Adolescente, além de peritos da área desexologiaeprofissionaisdasaúde.Buscouprojetos similares no Brasil onde pudesse se inspirar, mas só encontrou centros que atendiam separadamente mulheres ou crianças e adolescentes. “Estávamos criando um serviço de aspectos bem inovadores. O primeiro deles era o fato de ser um projeto dentro da Segurança Pública, que tem um modelo tradicional de repressão, e não de prevenção. O segundo era ser um lugar onde qualquer pessoa que sofreu violência sexual pudesse ser atendida de modo interdisciplinar, com médicos, enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos e advogados”, Débora rememora, recostada no sofá do seu apartamento na Pituba. Em 2001, o Viver foi inaugurado numa ala do Instituto Médico-Legal Nina Rodrigues, no Vale dos Barris, funcionando 24 horas por dia, sete dias por semana. O local foi escolhido de forma estratégica, já que as vítimas de violência sexual, após registrar a ocorrência na delegacia, precisam seguir para o IML para fazer os exames periciais. “A pessoa que sofre violência sexual precisa de atendimento imediato, de medicamentos para evitar doenças sexualmente transmissíveis, Aids e gravidez indesejada”. Depois da consulta com o médico, as vítimas eram acolhidas pelaassistentesocial,queexplicavaqueelaspodiamdispor dos serviços de psicólogos e advogados, assim como seus familiares. Pelo atendimento integral que oferecia num único
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espaço, evitando que a vítima tivesse que recontar o que sofreu numa via crúcis por órgãos diversos – o que os especialistas chamam de “revitimização” –, o Viver tornou-se referência no Brasil. “Algumas usuárias diziam que nem parecia serviço público. Outras perguntavam se tinham de pagar alguma coisa...”, conta Débora, que costumava receber ali visitantes de outros países, como Inglaterra, França e Cuba. Em 2010, o serviço foi ampliado. A partir de um estudo, verificou-se que a maior parte (cerca de 40%) das pessoas atendidas vivia no subúrbio ferroviário. Por essa razão, uma nova unidade do Viver passou a funcionar em Periperi, no complexo policial do bairro. Os profissionais que atuavam no Viver passavam por uma seleção cuidadosa antes de ser admitidos, mas os contratos eram temporários, por meio do regime especial de direito administrativo (Reda). A precariedade no modelo de contratação era reflexo de um outro problema: o Viver não possuía (e não possui) um marco legal que o constituísse como um serviço. Débora conta que, nas variadas trocas de comando na Secretaria da Segurança Pública, houve aqui e ali tentativas de formalização do Viver, até que ouviu de um gestor que aquele serviço não deveria ser prestado pelo governo, mas por uma ONG. A partir daí, diz Débora, o serviço passou a perder apoio institucional: deixou de funcionar 24 horas, o atendimento jurídico às vítimas foi suspenso, contratos chegaram ao fim sem que novos profissionais fossem admitidos. Em 2014, depois de 13 anos à frente do projeto, Débora foi exonerada. Estava viajando e soube da notícia por amigos, que viram a publicação no Diário Oficial. Dois anos depois, em 2016, a unidade de Periperi foi fechada. O local tinha acabado de receber a doação de uma ludoteca – espaço com brinquedos, para auxiliar no atendimento das crianças vítimas de violência –, que nunca chegou a ser usada.
MUDANÇA DE PASTA Acostumada a atender mães de crianças vítimas de violência sexual em busca de justiça, a defensora pública Gisele Argolo estranhou quando algumas delas disseram que não estavam conseguindo atendimento no Viver. “Era um serviço que funcionava tão bem que a gente reparou logo que algo estava acontecendo”. Ao lado das defensoras Laíssa Rocha e Eva Rodrigues, Gisele participou em abril do ano passado da primeira reunião com a equipe do serviço. No encontro, descobriram que apenas duas psicólogas estavam atuando no Viver. Uma delas era Selma. Quando foi contratada, era a quinta psicóloga da manhã. Viu a equipe minguar até tornar-se a única do turno.
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O mais grave, porém, era a notícia de que o contrato das psicólogas e assistentes sociais se encerraria dali a um ano, sem possibilidades de renovação. A Comissão de Mulheres da Câmara dosVereadores jáacompanhavao casoe, em junho do ano passado, promoveu a primeira audiência pública para tratar da crise no Viver. Dali, os participantes saíram decididos a fazer um abraço simbólico na sede do projeto, já no mês seguinte. Em agosto de 2016, o governo do estado anunciou que o serviço, até então vinculado à Secretaria da Segurança Pública, migraria para a SJDHDS, por orientação de Rui Costa, “em função da afinidade do serviço com a área dos Direitos Humanos”. Em dezembro, um decreto formalizou a migração. No mesmo mês, aconteceu a segunda audiência pública para discutir o projeto. Sem receber respostas práticas do governo, as defensoras entraram com uma ação civil pública requerendo a contratação do mesmo número de profissionais que o Viver tinha quando foi criado: oito psicólogos, cinco assistentes sociais, três enfermeiras, seis médicas e seis advogados, além de pessoal para compor o quadro administrativo. A ação também pede a reabertura da unidade de Periperi, com a consequente contratação de profissionais para atuarem no local. Em nota técnica encaminhada à Justiça, a SJDHDS afirmou que não pode contratar profissionais com “perfis de saúde”, como médicos e psicólogos, por “in-
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15 anos, o projeto Viver atendeu mil cerca de pessoas. 12 Em
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compatibilidade com o perfil de recursos humanos que preconiza o Sistema Único de Assistência Social (Suas)”. Tardiamente, percebeu-se que, para dar conta da necessidade básica de manter o serviço funcionando, seria preciso promover uma “atuação integrada” com outras pastas, como a de Saúde, Política para Mulheres e Segurança Pública.
REFORMULAÇÃO A seis dias de encerrarem-se os contratos dos profissionais que atuavam no Viver, Carlos Martins, secretário de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social, recebeu a reportagem da Muito. Estava acompanhado de Leísa Sousa, superintendente de assistência social. Martins começou a conversa dizendo que “emergencialmente” não haveria “problema nenhum”. “Hoje o estado já conta com o Hospital da Mulher, que faz todos os serviços do projeto Viver. Se a preocupação é essa, não existe nenhum problema de continuidade do serviço”. Inaugurado em janeiro, o Hospital da Mulher, que funciona no Largo de Roma, possui uma equipe que atende mulheres vítimas de violência sexual, com médico, psicólogo e assistente social, mas, ao contrário do Viver, há um limite de tempo para o acompanhamento psicoterapêutico (por até seis meses) e um limite de ida-
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Até fevereiro deste ano, aguardavam na lista de espera.
PESSOAS
NOVOS CASOS FORAM ATENDIDOS. A MAIORIA DAS VÍTIMAS (71%) TINHA ATÉ 15 ANOS E ERA MULHER (86% DOS ATENDIMENTOS).
O número de novos usuários cai a partir de 2013, quando não houve mais contratação de profissionais para o serviço:
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de das pacientes (a partir de 12 anos). Em 2016, 203 dos 540 novos casos atendidos pelo Viver eram de crianças entre 0 e 11 anos. E, apesar de as usuárias do serviço serem majoritariamente do gênero feminino (87%), apenas no ano passado 71 meninos e homens foram atendidos pelo projeto, público que não poderia ser absorvido pelo Hospital da Mulher. Quando à continuidade dos atendimentos no Viver, Leísa informou que a secretaria estava fazendo uma articulação com a pasta da Saúde, que disponibilizaria quatro psicólogos e quatro assistentes sociais para atuarem no projeto, acolhendo apenas os novos casos. A orientação era a de que os atuais usuários fossem todos encaminhados para a “rede de serviços de atendimento à violência sexual” do governo. A rede é composta por três serviços principais: o Hospital da Mulher, os Centros de Referência Especializados de Assistência Social (Creas) e o Centro de Defesa da Criança e do Adolescente Yves de Roussan (Cedeca), organização social que possui convênio com o estado. Por variadas razões, nenhum deles está apto, neste momento, a oferecer atendimento psicoterapêutico a crianças abusadas sexualmente em Salvador. O Hospital da Mulher porque, como já foi dito, só atende meninas a partir dos 12 anos; o Creas porque não oferece psicoterapia; e o Cedeca porque já atua no limite da sua capacidade. “Sem dúvida, não temos condições de atender a essa demanda. O governo deveria aprimorar o Viver, dar condições para que se aprimore e se amplie”, diz Waldemar Oliveira, coordenador do Cedeca. Há alguns meses, o governo fala em reformular o serviço, que na prática seria descaracterizado. Em linhas gerais, a ideia é que o Viver se transforme em um “espaço de referência e formação de profissionais”, disseminando a sua tecnologia para outros órgãos, inclusive no interior do estado. Os profissionais remanejados da Secretaria da Saúde prestariam ali apenas os atendimentos iniciais às vítimas de violência sexual. “Os atendimentos permanentes devem ficar com os entes municipais”, diz Martins. “O estado pode fazer os exames periciais, as questões profiláticas posteriores, mas a manutenção de pessoas, ano após ano, no serviço de psicoterapia... Eu não creio que essa seja uma tarefa que caiba ao estado. Isso pode ser feitopelaprefeitura.Onossopapeléapoiarfinanceira e tecnicamente os municípios, e não ofertar diretamente os serviços”. Para reforçar seu argumento, Martins disse que o “contexto legal” de atuação da secretaria é o Suas, o Sistema Único de Assistência Social, e não “apenas um programinha chamado Viver”. A reportagem per-
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guntou se Martins já havia visitado o projeto, e ele disse que não. Para adefensoraGiseleAguiar,oargumentodamunicipalização“nãoprocede”. “Quando falamos em violência sexual, falamos também de saúde, direito social de competênciacomumentreosentesfederativos”.Elaafirmaaindaqueoestadonão pode, “após mais de dez anos prestando um serviço de excelência”, querer fechá-lo “questionando sua competência”. “A doutrina e a jurisprudência vetam de forma veemente o retrocesso de direitos sociais aos quais os cidadãos já possuem acesso, em respeito à segurança jurídica dos mesmos”. A prefeitura de Salvador, por sua vez, não considera que tenha esta obrigação. “Se o projeto Viver estivesse vinculado à pasta de saúde, aí seria atribuição do município. Mas como está vinculada a uma pasta de cidadania, a atribuição é do governo”, diz, por telefone, Taissa Gama, à frente da Secretaria Municipal de Políticas para Mulheres, Infância e Juventude. A secretaria mantém o Centro de Referência de Atenção à Mulher Loreta Valadares, que atende mulheres vítimas de violência, mas diz que o lugar já funciona com problemas estruturais e de pessoal, o que inviabilizaria o atendimento às usuárias do Viver. O Loreta também não atende crianças e adolescentes.
ENSINA-ME A VIVER Em meio a disputas políticas e burocráticas, crianças abusadas sexualmente em Salvador, muitas vezes por pais, tios, avós, vizinhos, pessoas próximas a quem estavam ligadas por sobrevivência e afeto, seguem desassistidas. Júlia, 10, que aparece aqui com um nome inventado, é uma dessas meninas. Quando foi ao Viver, ficou conversando com uma moça numa sala cheia de brinquedos. Gostou tanto do encontro que contou para a mãe que aquela mulher era melhor que sua professora. Míriam, a mãe, sorriu com a comparação. Às vezes, Júlia pergunta quando vai voltar lá, mas a mãe explica que, por enquanto, não dá. Selma, a psicóloga que acolheu Júlia, informou com pesar que não poderia continuar atendendo a criança, já que seu contrato se encerraria em pouco tempo. Ela buscou um lugar para onde pudesse encaminhá-la, mas não encontrou. Míriam descobriu que a filha foi abusada pelo pai no começo deste ano, depois de notar que Júlia andava mudada, respondona, quebrando os brinquedos do irmão quando antes fazia questão de mantê-los arrumados. Perguntou o que estava acontecendo para ela andar assim chateada, a menina disse um monte de vezes que não era nada até que tomou coragem para contar. Míriam ficou desnorteada e encontrou conforto no Viver. A filha não poderia ser atendida individualmente, mas se ela quisesse poderia participar de um grupo de apoio para familiaresdevítimasdeviolênciasexual.Elafoiecontoutodaessahistóriaemmeio a outras mães e avós na última reunião do grupo, no dia 20 de abril. Essa palavra, última, Míriam não admitia. Disse que ia lutar contra ela até o fim. Porque chegou ali nervosa, achando que a culpa pelo que sua filha passou era sua, sem querer ver ninguém, tomando remédio para dormir, e com os encontros foi se acalmando, sabendo dos seus direitos, conquistando outro lugar na vida. “Aqui passei a me sentir gente, ser humano. Eu estou vivendo porque o Viver me ensinou a viver. Adquiri autoestima, que eu não tinha. Tinha medo até de olhar para as pessoas, de levantar a cabeça. Se o Viver acabar, não vai destruir só a vida das crianças, que foram vítimas, mas dos familiares também. Nós não vamos ter apoio para dar a essas crianças que estão com traumas, com fantasmas, que vão crescer doentes. É tanto projeto que não tem necessidade de ser inventado, e eles estão inventando, e o que está fazendo a diferença eles estão acabando? Por quê? Porque não estão vivendo na pele. Não estão dentro da casa da gente, não sabem nosso deitar e nosso levantar. Por isso a gente precisa gritar”. «
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