B_1 | eis um homem

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Alegoria Central O Trapeiro

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EIS UM HOMEM

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hipótese; hipótese; incorporação; incorporação; cidade contemporânea. cidade contemporânea.

alegoria central alegoria central o trapeiro o trapeiro

HOMEM EISEIS UMUM HOMEM


Uma hipótese, uma possibilidade, uma proposta, uma narrativa, uma alegoria, um hino, um sermão, uma posição, um conselho, um desejo, uma inquietação, um novo paradigma, um velho direito, uma outra forma, um olhar reconquistado, uma ação metodológica, um devaneio, um rastro de algo já começado, um fim do caminho, uma finalidade inicial, uma sinalização de sobrevivência, um processo em curso, um discurso de inauguração de um movimento; um movimento que pode ter aqui um começo e um fim. Este fragmento tem um posicionamento estratégico dentro da tese, pois, de dentro dele é possível acessar praticamente todos os outros fragmentos, e o movimento inverso também é presumível. Não hesitarei em transitar entre eles, já que os caminhos estão marcados pelos passos de Outros. Encontra-se aqui a apresentação do Trapeiro. Personagem urbano – real, poético, conceitual, alegórico – resgatado no rastro da história, configurando um lugar onde se articulam argumentações e elogios, que, de volta ao corpo, se constituem como hipótese de incorporação ao homem contemporâneo. Uma incorporação da Cidade – via escritura e leitura dos espaços atravessado – e sua alteridade urbana. Encontro nesse personagem urbano, que tem genealogia, uma construção alegórica fértil e propícia para estabelecer uma humanidade ao discurso. Um discurso que ganha corpo. Assim como acontece com a personagem assustadora e estranhamente familiar (unheimlich) da ficção contada por Mary Shelley, em 1818, na Inglaterra recém-industrial: o Frankenstein. Ao interpretar conceitualmente esse “homem”, que não tem nome próprio – tem o nome do seu criador, é possível encontrar um discurso alegórico da autora para assuntos prementes naquele momento. As questões da multidão urbana, da individuação e da alteridade eram incorporadas na personagem via constituição do corpo – ele fora “montado” com pedaços de outros, um corpo feito do Outro. Ou mesmo as questões referentes a uma possível reflexão do processo civilizatório em curso, onde a industrialização e a mecanização da vida se intensificam, também incorporadas na figura do “monstro” Frankenstein, pensado como processo de caminho da sociedade à modernidade, representado no ser que se questiona ser coisa ou gente, pois é produzido artificialmente pelo homem. Ou até mesmo na provocação da autora aos movimentos literários tradicionais e consolidados, “parindo” um monstro, uma coisa nova, uma outra possibilidade de sujeito e de questionamento dentro do Romantismo literário. Mas não é do Frankenstein que viemos falar, nem da Londres engatinhando na industrialização.

Por isso, a hipótese aqui adotada é uma outra forma de estar, com o corpo, nessa Cidade. É fornecer um caminho viável, onde a presença do Outro e o sofrimento constitutivo do homem não sejam considerados anuladores de experiências urbanas, e sim elementos que favoreçam e intensifiquem o viver na Cidade.

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A coisa em questão aqui é o homem contemporâneo e sua relação com a Cidade. Um homem que é corpo. Um corpo que ressente a Cidade. Um corpo que está sendo fadado ao isolamento. Um corpo que está perdendo, sem perceber, sua corporeidade, através do escamoteamento de seu sofrimento, desconfortavelmente necessário à sua subjetivação. E isso tudo acontece na Cidade, na sua relação com o Outro na Cidade.


Um caminho que passa longe da Cidade Inteligente, da Cidade Participativa, da Cidade para Pessoas. Pois não acredito numa cidade para pessoas, numa cidade inteligente, nem numa cidade participativa. Todas elas são, ou melhor, pretendem ser cidades/espaços homogêneos, igualitários e unificadores. Todas elas partem do pressuposto do consenso social e da estandardização do cidadão. Todas têm a utopia como finalidade. E como muitos críticos creem, ir da utopia para a distopia, basta virar a esquina, trocar algumas letras, acrescentar alguns desejos humanos. Afinal, a homogeneização carrega consigo a passividade e a cordialidade da sociedade. Homens e mulheres, passivos e cordiais, em busca da felicidade. Na verdade, à espera da felicidade. Aguardando. Confiando à Cidade seu bem-estar. Esperando atrás de suas TVs cinematográficas, suas muralhas blindadas, visíveis ou não, com seus hiper-conectados aparelhos multifuncionais, se embriagando com suas bebidas fermentadas gourmet e seus medicamentos quimicamente milagrosos, que tanto anestesiam, viciam e simulam – o corpo, a mente, o prazer, o sofrimento, o sono, a felicidade, a sociabilidade, a Cidade. Prefiro acreditar numa cidade de pessoas, numa Cidade que tem dúvida, numa Cidade com lacunas, espaços entre, abertas à possibilidades, constituições. Acredito no conflito, na diferença, na heterotopia, na alteridade. Todas essas cidades abrem caminho para o dissenso e a individuação do cidadão. Cidadãos ativos e emancipados, que já não buscam a felicidade, mas tomam consciência do próprio sofrimento, melancolia, inevitável incompletude e castração. A cordialidade iguala, aliena; a alteridade provoca, questiona, retira. Vejo alteridade urbana nos espaços opacos de Milton Santos, nos espaços lisos de Gilles Deleuze e Felix Guattari, nos Walkscapes de Francesco Careri, nos espaços heterotópicos de Michel Foucault, nos Vazios Plenos de Lygia Clark, nos espaços mais lentos, profundos e suaves de Alexander Langer, nos grandes Labirintos de Hélio Oiticica, na congestão urbana de Rem Koolhaas, nas terrain vague de Ignasi de Solà-Morales, nas excursões e visitas por Paris do grupo Dada, nas derivas pelos arquipélagos urbanos de Guy Debord e os Situacionistas, nos tempos de grossura da Cidadela de Lina Bo Bardi, nas polifonias urbanas de Massimo Canevacci, nas experiências e novas modas de Flávio de Carvalho, nos álbuns fotográficos Parisienses de Eugène Atget, na Psicogeografia de Iain Sinclair e Will Self, na teoria crítica de Adorno, Marcuse e colegas frankfurtianos. Vejo na alteridade urbana um caminho da Cidade. Um caminho que os caminhadores acima caminharam. Caminhar no reconhecimento e assimilação da presença do Outro, daquele diferente de mim. Aquele que, pela simples oposição, me apresenta um espelho que me provoca, me coloca em meu lugar, me faz; esse Outro que investe e impõe ao eu um choque, uma instabilidade, tem seu lugar no espaço público, na rua. Espaço urbano impregnado com as características do Outro: desconhecido, ameaçador, traumático. Em oposição ao ambiente doméstico, privado, familiar, seguro, semelhante, onde mantenho minha subjetividade intacta, ou acredito manter. Mas como já foi colocado, a subjetividade do sujeito não se constitui apenas no semelhante, no igual, mas também em seu choque com o que não é próprio, mas que poderia ser.

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Afinal, temos como raiz e fim, simultaneamente, a civitas romana, uma Cidade que acolhe o diferente, o estranho, desde que assumida a semelhança, a igualdade perante a lei.


E nessa simultaneidade, nossa sociedade tem escolhido, já há algum tempo, a via da semelhança, da homogeneização, do apaziguamento do espaço público, com suas cidades para pessoas, cidades inteligentes, cidades participativas. Mas como já disse, não acredito nessa via. Nela vejo meu corpo distante da experiência urbana. Prefiro me ver num caminho que aproxima meu corpo da experiência urbana. Um corpo que incorpora a experiência urbana. Uma incorporação.

IN-CORPO-AÇÃO. E como um corpo em ação no espaço do Outro, me deparo com um espelho – apresentado pelo Outro – e nele vejo um homem e percebo: eis um homem. Eis um homem, ele é homem mas também mulher. É infante e de idade avançada; de antes e ainda agora. É personagem urbano daqui e também de lá. Eis um homem, ele é ordinário e anônimo. Não possui nome próprio, sem nenhuma grande qualidade ou especialidade. Raramente lembrado, é inexpressivo nas páginas da história e da cidade contemporânea. Apenas um homem que foi deixado para trás. Eis um homem, ele é andarilho da Cidade, na Cidade. Seu andar é lento, seu caminhar é inquieto. Em grande parte, solitário, mas raramente se encontra sozinho. Eis um homem, ele é descendente de Abel, o nômade. Faz da Cidade sua morada mas o único habitat real é seu corpo em movimento, perambulando. Ele faz da perambulação seu trabalho e encontra no trabalho sua subversão. Eis um homem, ele é um colecionador em sofrimento, de sofrimentos. Ele recolhe, coleta e cataloga as coisas encontradas na Cidade, no trabalho. Coisas esquecidas, coisas dos Outros. Eis um homem, ele é inútil à sociedade, mesmo assumindo seu papel social. Suas coleções não servem, não funcionam, não acrescentam, já não fazem parte, nem dos Outros, nem dos sistemas utilitários da sociedade. São dele, apenas dele. Eis um homem, ele é apaixonado pela Cidade, seus olhos e seu ouvido atento também procuram coisa diferente daquilo que a multidão vem ver, seus caminhos são também os do Flâneur. Mas este homem é outro, não lhe interessa observar o sofrimento constituído pela modernização, mas sim incorporá-lo, tomá-lo também para si. Eis um homem, ele é um personagem urbano em sofrimento, em movimento, em busca. Assim como o Flâneur, o Blasé, o Zapeur; ou mesmo o Marcovaldo de Italo Calvino, os primos de E.T.A. Hoffmann, o Bartleby de Herman Melville, o Bloom de James Joyce. Eis um homem, ele é suas coisas. Constitui-se delas; das coisas colecionadas, encontradas, recolhidas. Constitui-se dos pedaços dos Outros, dos pedaços de Outros. Pedaços e coisas que já não significam, mas um dia significaram. Memórias. Esse homem é suas coisas e seus pedaços, as coisas dos Outros, os pedaços de/dos Outros, memórias dos Outros.

Eis um homem, ele é um escritor urbano experimentando a Cidade, com suas lentas caminhadas e suas coletas de memórias. Ele escreve a cidade que caminha e coleciona, desenha mapas inúteis com seu “gancho”, seu “saco” e sua “lanterna”.

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Eis um homem, ele é um leitor urbano que se propõe entender e refletir sobre a Cidade, sobre o estar na Cidade, sobre o viver na Cidade, sobreviver na Cidade.


Le Petit Chiffonnier. Cartão postal início século XX.

Ilustração de um Chinese Rag-picker de São Francisco.

Caricatura do Chiffonnier parisiense. Honoré Daumier.

Eis um homem, eis um Trapeiro. Chiffonnier, Rag picker, Lumpensammler, Trapeiro, recolhedor de trapos... Naquele mesmo espelho, onde avistei o Trapeiro, vejo, por sobre meu ombro, um outro homem caminhando lentamente em minha direção. Charles Baudelaire se aproxima, olha no espelho e especula: Eis um homem encarregado de apanhar os restos de um dia da capital. Tudo o que perdeu, tudo o que desdenhou, tudo o que partiu, ele o cataloga e coleciona. Compulsa os arquivos da libertinagem, a cafarnaum dos refugos. Faz uma separação, uma escolha inteligente. Reúne, como um avarento um tesouro, os lixos que, mastigados pela divindade da indústria, se tornarão objetos de utilidade ou de recreio. (BAUDELAIRE, 1971, p. 150)

O Trapeiro se converte em personagem urbano como um homem que habita a Cidade, está na Cidade, permanece dentro. Dentro da Cidade, fora da casa. Acordado num contraturno da produção do capital contemporâneo. Um homem que perambula e recolhe os restos abandonados pela constante modernização da cidade e sua sociedade. Um homem que percebe, no rastro deixado pelo desenvolvimento tecnológico e hipercapitalista da metrópole global, uma urgência constitutiva da subjetividade. Um homem que resgata o que é desnecessário, inútil, descartado, um homem que coleciona trapos. Trapos, coisas inúteis, resto de algo antes importante, objetos – espaços e coisas – que um dia foram de alguém, foram do Outro. Restos deixados como rastro, deixados para trás como fragmentos de um viver, de uma narrativa já contada, pedaços de uma história que um dia foi, que ainda é. Um fragmento, um resto de narrativa que, aos olhos e ao corpo do Trapeiro, pode ser recolhido, reunido e registrado. E nessa reunião, uma coleção, os fragmentos e restos de muitos, memórias dos Outros, podem e são ressignificados e constituem uma outra narrativa, não somente de Outros, mas também dele. Eis uma Cidade, eis uma narrativa, eis uma hipótese. Incorpore-a, se quiser...

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A lanterna, o saco e o gancho estão disponíveis no caminhar pelos fragmentos dessa tese. Comprove-a, se quiser... A hipótese e a Cidade estão disponíveis para o caminhar.



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