C1_1 | caminhar

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Mecanismos Incorporadores Lanterna (auxiliares)

C1_1

CAMINHAR

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prática estética; conceito-movimento; procedimento metodológico.

mecanismos incorporadores lanterna (auxiliadores)

CAMINHAR


“How many roads must a man walk down before you can call him a man?” [Quantos caminhos um homem deve caminhar antes que possam chamá-lo de um homem?]

CAMINHAR

ANDAR

CORRER

ENGATINHAR

MARCHAR

VAGAR

PERAMBULAR

FLANAR

DERIVAR

CAMBALEAR

TROPEÇAR

ZIGUEZAGUEAR

SALTITAR

REBOLAR

MANCAR

VADIAR

SERPENTEAR

VAGABUNDEAR

PASSEAR

VIAJAR

PERCORRER

ZANZAR

PERSEGUIR

DESFILAR

TRANSITAR

DESLIZAR

ESCORREGAR

SUBIR

DESCER

TRILHAR

PASSAR

ATRAVESSAR

CIRCULAR

DANÇAR

ARRASTAR-SE

DIRIGIR-SE

PROGREDIR

REGRESSAR

SEGUIR

ANDEJAR

PISAR

GALGAR

JORNADEAR

PEREGRINAR

ANDARILHAR

CURSAR

CALCORREAR

PALMILHAR

RUMAR

PERDER-SE

ERRAR

DESVIAR

RODEAR

MEANDREAR

ESQUIVAR-SE

MIGRAR

DESLOCAR-SE

TRANSLOCAR-SE

TRANSPORTAR-SE C1_1 ... 3

Bob Dylan, Blowing in the wind, 1963


Caminhar. Ação banal, quase inconsciente, o caminhar é um das ações humanas mais primitivas e essências à própria existência do homem e sua formação civilizatória. Caminhar é verbo intransitivo, é um pensamento prático, ato de resistência, reflexão espiritual, aproximação ao desejado, exercício físico, é instrumento de leitura e escritura, do tempo e do espaço, é um movimento ativo, é humano. Errare humanum est. É a primeira forma que o homem dispõe para habitar e construir a paisagem. Pois já fomos nômades, e nossa condição estava atrelada às dimensões do tempo, mas ao assentarmos morada, ao sedentarizar o habitar, substituímos nossa condição para uma outra dimensão, a do espaço. Agora, nossa condição já não solicita mais o espaço como dimensão necessária, voltamo-nos novamente às dimensões do tempo. E naquele momento em que o espaço nos condicionava, a arquitetura foi criada. Mas estamos libertando-nos desse espaço. O que faremos então com a arquitetura? Com a Cidade? Construamos a Cidade com o caminhar. Ao caminhar. Com o tempo... Caminhar pela cidade é um ato poético, construtivo, reflexivo e, ao mesmo tempo, exploratório. Ao investigar os espaços urbanos atravessados com o corpo, abre-se a possibilidade do afloramento da identidade do espaço atravessado. Uma identidade peculiar. Uma identidade que não está acessível ao corpo desavisado. Uma identidade submersa. Uma identidade soterrada pela espetacularização do espaço urbano. Espetáculo e crise. Homogeneização e pasteurização das relações. Apaziguamento das superfícies da cidade. A identidade visível é a da superfície espetacular e produtiva. Onde tudo é mais fácil e rápido. A identidade de vitrine, consumível e descartável. Identidade soterrando identidade. Soterrando o corpo. Caminhar para desenterrar o corpo. Colocá-lo, mais uma vez, na rua, para perceber, identificar, ler; mas também para constituir, formalizar, escrever o espaço vivido das cidades. Caminhar como meio, ferramenta, coisa com o que fazer, conceito. Por isso, assumido como conceito, o caminhar é pressuposto e condição nesta tese. O caminhar é onipresente. Todos os antecedentes, elogios, instrumentos, mecanismos e dinâmicas estão ligados, de uma forma ou de outra, a esse conceito-movimento. A todo instante vetores de outros fragmentos podem direcionar a leitura para cá. A cada ponto final aqui, linhas invisíveis ligam esse fragmento a áreas de outras partes da tese, até às mais afastadas, como a coleção de Carelman (A2_5) ou as caixas e valises de Duchamp (A3_1). Caminhar.

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Mas caminhar é sempre repetir os movimentos de outros anteriores a você, pois “quando você caminha, você sempre caminha sobre os passos de outras pessoas, às vezes passos reais, outras metafóricos, imaginários, ou saudosos; nunca, você deseja, que eles sejam falsos.” (NICHOLSON, 2011, p. 177. Tradução livre). E apresentar as características e postulados do conceito-movimento “caminhar” é também um caminhar, portanto caminharemos sobre os passos de outros que, antes de mim, já experimentaram esse caminho. Daremos nossos passos sobre os passos de Rebecca Solnit, autora do livro A História do caminhar (2016); sobre os passos de Francesco Careri, autor do livro Walkscapes: caminhar como prática estética (2002/2013); sobre os passos de Paola Berenstein Jacques, autora do livro Elogio aos errantes (2012);


sobre os passos de Michel de Certeau, autor do livro A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer (1980/2013); sobre os passos de Geoff Nicholson, autor do livro The lost art of walking (2011); e sobre os passos de Adriano Labbucci, autor do livro Caminhar: uma revolução (2013). Caminhar. E falar do conceito-movimento “caminhar” como se fosse uma caminhada: com passadas. Compassadas, rítmicas. Eu Poderia falar que o caminhar tem uma história não escrita, implícita, amadora e fragmentada em inumeráveis dimensões da criação, reflexão e pensamento humanos. Esses pedaços de história estão, quase sempre de uma forma vulgar, em livros, poemas, pinturas, experiências pessoais. Talvez encontraríamos vestígios mais condensados, nem por isso tão interessantes, na história da evolução bípede do homem ou nos estudos médicos e fisiológicos da anatomia humana. Poderia... mas Solnit já falou1. e Poderia considerar que essa história do caminhar começa com passos, ao rés do chão. Passos que não se constituem uma série, não são contáveis, são particulares. Cada um tem suas qualidades: são formas de apreensão e apropriação do corpo e do movimento. Poderia... mas Certeau já considerou2. e Poderia lembrar que o próprio ato caminhar começa com um esforço muscular: uma das pernas fincadas no chão sustentando todo o peso do corpo, enquanto a outra perna oscila pendularmente vindo de trás. Calcanhar, planta do pé, estabilidade. Peso corporal distribuído entre as duas pernas. Movimento muscular dos dedos impulsionam novamente o peso do corpo a alternar seu ponto de equilíbrio gravitacional, resultando em um passo. Repetição: passo, passo, passo. Ritmo do caminhar. Poderia... mas Solnit já lembrou3. e Poderia completar que essa repetição rítmica provoca no ser humano bípede uma constante hesitação catastrófica. Um movimento de pernas que nos impede, limiar e constantemente, de ir de encontro ao chão que caminhamos. Poderia... mas Napier já completou4. e

1

SOLNIT, 2016, p. 3.

2

CERTEAU, 2013, p. 163.

3

SOLNIT, 2016, p. 3.

4

Napier, John In. SOLNIT, 2016, p. 33.

C1_1 ... 5

Poderia pontuar que o caminhar, apesar daquela iminente, e permanente, catástrofe


nunca nos insinuou dificuldades. Basta perceber os movimentos de “caminhadas” que os bebês fazem ainda no útero materno já desde as primeiras 17 semanas de vida. Poderia... mas Nicholson já pontuou5. e Poderia enumerar e classificar o caminhar e seu agente: frouxamente, inutilmente, ordinariamente, penosamente, pesadamente, prazerosamente, futilmente, vagabundamente; passeando, flanando, vagando, cambaleando, vadiando, mandriando, deambulando, serpenteando, rebolando, saltitando, trilhando, explorando, arrastando, marchando, mancando, coxeando, boiando, derivando, percorrendo; a passos lentos, arrastando os pés, perdendo tempo, na água, no ar, na corda bamba, na moda... Poderia... mas Nicholson já enumerou e classificou6. e Poderia relacionar o caminhar com o pensamento, o primeiro sendo uma modalidade do segundo, com a peculiaridade de ser um pensamento prático, em movimento; Poderia... mas Labbucci já relacionou7. e Poderia pontuar ainda que aquele pensamento prático é alternativo e revolucionário perante o modo de pensar dominante da racionalidade instrumental acelerada e com destino ao pós-humano tecnicista. Poderia... mas Labbucci já pontuou8. e Poderia refletir sobre a relação existente entre os passos de uma caminhada e os da escrita, ambos comuns e simples. Um pé depois do outro, uma palavra depois da outra. Um texto que pode ser uma caminhada, que também pode ser um pensamento. Poderia... mas Nicholson já refletiu sobre9. e Poderia relacionar ainda a caminhada e a escrita por conta de seus destinos. Em ambas pode existir o desejo de chegar em algum lugar, mas nunca a certeza; caminhar e escrever são imprevisíveis, suscetíveis de erros, tropeços, becos sem saída, reformular caminhos. Condições necessárias e, pode apostar, agradáveis de um processo exploratório. Poderia... mas Nicholson também já relacionou10. e

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Poderia complementar que, além da escrita, o caminhar também pode ser relacionado com a leitura, a pesquisa. Assim como antes, ambos também podem ser exploratórios, indeterminados, mas precisam minimamente ter um rumo. Em ambos os casos é preciso, vez ou outra, ter a consciência de que se está indo à algum lugar. Poderia... mas

5

NICHOLSON, 2011, p. 16.

6

NICHOLSON, 2011, p. 24-5.

7

LABBUCCI, 2013, p. 9.

8

LABBUCCI, 2013, p. 166.

9

NICHOLSON, 2011, p.262.

10

NICHOLSON, 2011, p. 262.


Nicholson já complementou11. e Poderia perguntar-se porque afinal uma cidade substituiria uma comunicação linguística por um signo impessoal e abstrato? Afinal, que estrangeiro em Nova York seria tão ignorante a ponto de não reconhecer, e compreender, as palavras/ordens WALK e DON’T? Poderia... mas Nicholson já se perguntou12. e Poderia relembrar uma caminhada de 31.936 quilômetros, realizada por um alemão em 1954. Uma caminhada longa, mas peculiar: o então ministro de armamentos de Hitler, o arquiteto Albert Speer convenceu-se de caminhar de Berlim até Heidelberg (620 Km). A questão era que, naquele momento, Speer estava preso na cadeia de Spandau e só seria liberado doze anos depois. Por isso decidiu iniciar uma jornada teórica e imaginária no jardim da cadeia: em um circuito de 270 metros, o arquiteto estabeleceu uma meta de caminhar 7 quilômetros por dia, todos os dias da semana, totalizando 2.296 voltas naquele circuito. Uma caminhada bem sucedida que fez seu idealizador continuar e preparar uma nova jornada, estudando mapas, guias de viagem e livros de história da arte. O “viajante imaginativo” caminhava em círculos pensando nas diferenças entre as paisagens, rios, flores, plantas, árvores, pedras. Caminhava pensando nas travessias de cidades, nas igrejas, museus e grandes edifícios. Poderia... mas Nicholson já relembrou13. e Poderia refletir que, ao caminhar, o homem não responde a ninguém além de si mesmo. Poderia... mas Nicholson já refletiu14. e Poderia ilustrar o ato de caminhar com uma alegoria: caminhar como um camelo, o único que rumina e caminha simultaneamente. Poderia... mas Thoreau já ilustrou15. e Poderia provocar uma discussão com a constatação de que nem mesmo as prostitutas de Los Angeles caminham pela cidade. Poderia... mas Nicholson já provocou16. e Poderia ponderar que só uma caminhada é capaz de animar e reavivar ideias, apenas com o corpo em movimento é possível pensar e impulsionar a mente. Poderia... mas Rousseau já ponderou17. e

11

NICHOLSON, 2011, p. 168.

12

NICHOLSON, 2011, p. 132.

14

NICHOLSON, 2011, p. 18.

15

THOREAU, Henry David. Walking. Atlantic Monthly, jun. 1862.

16

NICHOLSON, 2011, p. 67.

17

Jean-Jacques Rousseau em seu livro Confissões, op. cit. LABBUCCI, 2013, p. 56.

C1_1 ... 7

13 NICHOLSON, 2011, p. 91; e relatos de Speer confidenciados no livro Spandau: the secret diaries. Nova York: Macmillan, 1976.


Poderia constatar que existe sempre uma grande dúvida com relação a sanidade e excentricidade dos adeptos de longas caminhadas sem propósito, como Will Self, por exemplo. As perguntas a esses “estranhos” sempre questionam as razões das caminhadas, que oscilam entre uma ação pela caridade ou por conta de uma aposta, razões não excêntricas entendidas pelas pessoas, além da razão “fisiescultórica” e atlética. Poderia... mas Nicholson já constatou18. e Poderia acompanhar “alguns dos procedimentos – multiformes, resistentes, astuciosos e teimosos – que escapam à disciplina sem ficarem mesmo assim fora do campo onde se exerce, e que deveria levar a uma teoria das práticas cotidianas, do espaço vivido e de uma inquietante familiaridade da cidade.” Poderia... mas Certeau já acompanhou19. e Poderia pontuar que o caminhar, o errar deveria ser um valor a ser considerado, não um erro, um equívoco. Poderia... mas Careri já pontuou20. e Poderia idealizar que o caminhar é um estar no mundo sem restrições, onde mente, corpo e mundo finalmente dialogam em um acorde harmônico. Poderia... mas Solnit já idealizou21. e Poderia perceber que o ato de caminhar tanto afirma suas próprias trajetórias “faladas”, quanto transgride e lança suspeitas sobre estas. Poderia... mas Certeau já percebeu22. e Poderia comparar os espaços nômades (opacos, lisos e indeterminados) com os espaços sedentários (luminosos, estriados e determinados), e que estão presentes, ambos, nas “cidades líquidas”, locais onde o “estar” são ilhas dentro do oceano formado pelo “ir”. Poderia... mas Careri já comparou23. e Poderia constatar que os passos de uma caminhada dão forma aos espaços. Espaços reais que não se apresentam fisicamente, não tem localização, apenas se espacializam com os movimentos dos pedestres nas cidades. Poderia... mas Certeau já constatou24. e

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Poderia analisar as “práticas microbianas” que resistem, sobrevivem ao controle panóptico do sistema urbanístico legitimador e encontrar o caminhar pela cidade.

18

NICHOLSON, 2011, p. 92.

19

CERTEAU, 2013, p. 163.

20

CARERI, 2013, p. 32.

21

SOLNIT, 2016, p. 5.

22

CERTEAU, 2013, p. 166.

23

CARERI, 2013, p. 28.

24

CERTEAU, 2013, p. 163.


Poderia... mas Certeau já analisou25. e Poderia encontrar os “praticantes ordinários da cidade”, os caminhantes que, com seus corpos, serpenteiam e tecem o espaço urbano, escrevendo-o e, muitas vezes, sem poder lê-lo. Poderia... mas Certeau já os encontrou26. e Poderia rebatizar esses “praticantes ordinários” com o título de “errantes urbanos”, que não veem a cidade de cima, como um mapa, mas sim a experimentam de dentro, de baixo para cima. Poderia... mas Jacques já rebatizou27. e Poderia reconhecer no caminhar desses “errantes” um ato que desfaz qualquer imagem legível e contamina a cidade oficial, planejada, com uma outra cidade, alternativa, metafórica. Poderia... mas Certeau já reconheceu28. e Poderia elogiar o ato de caminhar pela cidade como forma de valorizar a experiência da alteridade urbana, de recusar o controle disciplinar dos planos urbanos modernos, de resistir e desestabilizar as partilhas hegemônicas e homogênicas, de possibilidade de crítica ao empobrecimento das experiências urbanas, mais preocupadas com as práticas, ações e percursos do que com as representações, planificações ou projeções marcadas pelo pensamento racionalizador contemporâneo. Poderia... mas Jacques já elogiou29. e Poderia reconhecer que, ao caminhar, executaríamos o único procedimento capaz de considerar a dimensão do tempo na cidade em todas suas possibilidades e consequências. Poderia... mas Labbucci já reconheceu30. e Poderia enunciar o espaço onde, imprecisamente, o caminhar tem mais proximidade com as práticas, as apropriações e os usos da cidade, como sendo o “meio-lugar”, bem próximo do “lugar praticado” de Certeau. Poderia... mas Jacques já enunciou31. e

25

CERTEAU, 2013, p. 162.

26

CERTEAU, 2013, p. 159.

27

JACQUES, 2012, p. 24.

28

CERTEAU, 2013, p. 177.

29

JACQUES, 2012, p. 11, 19, 22, 23 e 24.

30

LABBUCCI, 2013, p. 40.

31

JACQUES, 2013, p. 9-10.

32

LABBUCCI, 2013, p. 54.

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Poderia lembrar que caminhar pela cidade significa viver uma experiência binária de diferenças e igualdades, de individualidades e sociabilidades, de si mesmo e dos outros. Poderia... mas Labbucci já lembrou32.


e Poderia explicitar que esses outros que experimentamos ao caminhar pela cidade é o outro urbano, ou “homens lentos” como queria Milton Santos, ou “sujeitos corporificados” como queria Ana Clara Torres Ribeiro. Poderia... mas Jacques já explicitou33. e Poderia lembrar que crianças começam a andar pois desejam coisas que só lhes cabe realizar, como a liberdade e a independência da proteção materna confinadora. Poderia... mas Solnit já lembrou34. e Poderia constatar que caminharemos ainda por muitos milhares de anos, independente das revoluções tecnológicas nas formas de mobilidade do futuro. Poderia... mas Fajardo já constatou35. e Poderia reconhecer que o caminhar é uma indefinida busca por um lugar que falta, busca que é multiplicada e reunida pela cidade, em seu tecido urbano, em seus cruzamentos entrelaçados, e que faz da própria cidade um imenso campo de experiências sociais esfareladas, mas compensadoras por conta das trocas possíveis, de privação daqueles lugares ausentes. Poderia... mas Certeau já reconheceu36. e Poderia propor um jogo de detetive e caminhar e investigar nas brechas, interstícios, sombras e sobras da cidade espetacular contemporânea em busca de situações lúdicas e experiências de alteridade ainda existentes nas cidades. Poderia... mas Jacques já propôs37. e Poderia estabelecer como meta urbana e humana, tendo o caminhar como ferramenta, que trocássemos o Citus pelo Lentius, o Altius pelo Profundius e o Fortius pelo Soavius, ou seja, que sejamos mais lentos, profundos e suaves ao invés de mais rápidos, superiores e enérgicos. Poderia... mas Langer já estabeleceu38. e

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Poderia considerar que o caminhar é um movimento diretamente ligado com a mente, o pensamento. E não podemos esquecer que os pés, ao caminhar, trabalham numa velocidade em torno de 5 km/h, ou seja, o caminhar, assim como o pensamento poderia ser, é lento. Poderia... mas Solnit já considerou39.

33

JACQUES, 2012, p. 14.

34

SOLNIT, 2016, p. 33.

35

FAJARDO, Washington. Jornal O Globo, edição de 24 de janeiro de 2015.

36

CERTEAU, 2013, p. 170.

37

JACQUES, 2013, p. 13.

38

Alexander Langer op. cit. LAMBBUCCI, 2013, p. 45.

39

SOLNIT, 2016, p. 10.


e Poderia estabelecer que os primeiros homens caminhando começam, além de ver as paisagens, a construir a paisagem natural pela qual passavam. Poderia... mas Careri já estabeleceu40. e Poderia dizer que o caminhar é um processo de apropriação do sistema topográfico pelo pedestre, e que nesse processo dominam e produzem, momentaneamente, seus lugares de domínio da cidade. Poderia... mas Certeau já disse41. e Poderia lembrar que a primeira coisa que o ser humano aprendeu a ler foram os vestígios, rastros, pegadas deixadas no território por seus semelhantes, inimigos, animas predadores e a serem predados. Poderia... mas Labbucci já lembrou42. e Poderia considerar que o caminhar é uma forte ação estética de transformação simbólica da paisagem, sem deixar sinais tangíveis mas modificando culturalmente o espaço habitado pela presença física do corpo do homem. Poderia... mas Careri já considerou43. e Poderia considerar ainda que foi com o ato de caminhar pelo espaço que o homem conseguiu estabilizar os territórios desconhecidos, vazios e caóticos, fazendo-os possíveis, ordenados e úteis, mesmo que provisoriamente, já que tais territórios se transformam no tempo e na memória. Poderia... mas Careri também já considerou44. e Poderia reconhecer que essa mesma ação estética de transformação simbólica da paisagem, agora urbana e metropolitana, foi também experimentada pelos Dadaístas ao percorrer as ruas parisienses em suas deambulações oníricas e surreais pelo espaço real e, como uma espécie de escrita automática, revelar as zonas inconscientes e subterrâneas da cidade. Poderia... mas Careri já reconheceu45. e Poderia constatar que o caminhar é registrar e sentir pequenos detalhes insignificantes e incorporar seus aspectos em um sentido mais amplo, uma consciência de coisas descobertas ou que não conhecia, é absorver informações. Poderia... mas Sinclair já constatou46.

40

CARERI, 2013, p. 27.

41

CERTEAU, 2013, p. 164.

42

LABBUCCI, 2013, p. 11.

43

CARERI, 2013, p. 51.

44

CARERI, 2013, p. 27 e 42.

45

CARERI, 2013, p. 29.

46

Iain Sinclair op. cit. NICHOLSON, 2011, p. 53.

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e


Poderia estabelecer o Menir como primeira ação concreta de transformação do território caminhado, atravessado. O seu erguimento, a alteração de sua posição natural no solo para seu fincamento a 90º ao lado de determinados percursos, transforma-se em uma nova presença com capacidade de dialogar e reconfigurar o tempo e o espaço. Poderia... mas Careri já estabeleceu47. e Poderia considerar que, segundo o significado da palavra Menir em gaélico o “falsohomem”, o “homem simulado”, o Menir converteu-se na primeira experiência de artificialização/virtualização do corpo do ser humano, pois marca um lugar, tanto no espaço quanto no tempo, em que o corpo do homem esteve e permaneceu, como, por exemplo, o menir de Carnac “Locmariaquer” com seus 23 metros de altura e 300 toneladas de peso manipulados por, estima-se, mais de 3.000 homens e vários meses de trabalho. Poderia... mas Careri já considerou48. e Poderia questionar que, ao longo das histórias e retrospectivas sobre o caminhar, as principais figuras destacadas – dos filósofos peripatéticos (peripatein = passear) aos Flâneurs – são todas do sexo masculino. E as mulheres? Não caminhavam? Por quê? Poderia... mas Solnit já questionou49. e Poderia provocar que um dos aspectos a considerar e que coloca a presença da mulher em suspensão nas histórias do caminhar, e também nos espaços urbanos como leitoras, é que o caminhar feminino é geralmente interpretado (equivocadamente é claro) como uma representação, uma atuação ao invés de um deslocamento, uma passagem. Isso implica de que a mulher não caminha para ver mas para ser vista, assistida; menos a experiência da mulher, mas o experimentar da mulher por uma audiência masculina interessada. Poderia... mas Solnit já provocou50. e Poderia ressaltar que o caminhar pela cidade é a única coisa que diferencia uma mulher do século XX da sua mãe ou avó. Poderia... mas Nelken já ressaltou51. e

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Poderia colocar, como exemplo da dicotomia e complementaridade tensa entre o caminhar e o permanecer, o nômade e o sedentário, mostrando sua necessária relação e manutenção: Caim e Abel, filhos de Adão e Eva, a exemplificação da segunda divisão da estirpe humana: primeiro os sexos (masculino e feminino) e agora as almas (sedentário e nômade): Caim era agricultor e Abel, pastor. Já nos significados dos nomes na língua hebraica a divisão se estabelece: a palavra Caim vem de Kanah, o verbo adquirir, obter, possuir; já a palavra Abel vem de Hebel, ou hálito, vapor, coisa animada que se

47

CARERI, 2013, p. 27-52.

48

CARERI, 2013, p. 58.

49

SOLNIT, 2016, p. 233.

50

SOLNIT, 2016, p. 234.

51

Margarida Nelken na revista espanhola “La moda elegante” de 1923. In. NICHOLSON, 2011, p. 28.


movimenta. Ou seja, o caminhar dividiu os homens bíblicos desde a página três. Caim sujeita a natureza, a artificializa; ele está no campo, faz o espaço; ele se submete ao tempo útil-produtivo; é dono da terra. Abel joga dialeticamente com a natureza; ele vai pelos campos, faz o tempo; ele se relaciona com o tempo exploratório não utilitarista; é dono de si. Caim matou Abel, e aqui estamos hoje. Poderia... mas Careri já colocou52. e Poderia até fazer uma lista de caminhantes e seus pensamentos sobre o caminhar. Nessa lista estaria a escritora Virginia Woolf e seu “Oxford Street tide”. Estaria o escritor e naturalista Henry David Thoreau e seu “ambulator nascitur”. Estaria o poeta Wallace Stevens e seu “sou o mundo no qual caminho”. Estaria o poeta romântico William Wordsworth e seu “caminhar e escrever são quase sinônimos”. Estaria o cineasta Werner Herzog e seu “Of walking in ice”. Estaria o fotógrafo Garry Winogrand e suas caminhadas contra o fluxo nas calçadas novaiorquinas. Estaria o escritor Anatole France e seu “é bom colecionar coisas, mas é melhor caminhar”. Estariam os caminhantes aborígenes australianos e seus “songlines”. Estariam os excêntricos Steve Gough e Jules Bourglay e seus alter-egos Naked Walker e Old Leatherman, respectivamente. Estariam os atletas caminhantes Capitão Robert Barclay Allardice, Allan McKean e Ada Anderson e seus títulos de “Pedestrian Race 1803”, “Thousand-mile/thousand-hour Walker 1858” e “2.700 miles/2.700 hours 1879”, respectivamente. Estaria o caminhante solitário Jacques Lanzmann e seu “se quiser se encontrar, comece por se perder”. Estaria o escritor Bruce Chatwin e seus “Patagonia” e “Songlines”. Estaria o figurão Charles Baudelaire e seu “uma viagem, uma máxima da paisagem”. E estariam uma infinidade de outras pessoas, mas alguém já fez essa lista, ou se não fizeram ainda é porque não vale a pena. e

52

CARERI, 2013, p. 36.

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Não vale a pena porque, o que o vale mesmo, ao se tratar de estabelecer o conceito de caminhar, é simplesmente parar de ler esse texto e sair caminhando, de preferência pela Cidade.


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