C3_2 | cronofotografia de rua

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Mecanismos Incorporadores Gancho (ferramentas)

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CRONOFOTOGRAFIA DE RUA

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representação; representação; rastro de realidade; rastro de realidade; tempo. tempo.

mecanismos incorporadores mecanismos incorporadores gancho (ferramentas) gancho (ferramentas)

CRONOFOTOGRAFIA DEDE RUA CRONOFOTOGRAFIA RUA


Incorporado o trapeiro e todas suas características de construtor de narrativas possíveis sobre o viver na cidade contemporânea, é preciso agora estabelecer possíveis procedimentos investigativos práticos, formas de recolher os trapos inúteis deixados para trás. Uma das formas reconhecidas diante da presença do corpo do trapeiro na cidade é utilizar a fotografia como artifício para construção de tais narrativas urbanas. Está na fotografia de rua a gênese para um projeto possível de cidade. Ou melhor, a fotografia de rua com algo a mais. Se fosse possível iniciar um texto que fala da fotografia sem ser repetitivo e já saber de antemão que seu fim seria obscuro e relativizado, iniciaria com a sagrada comparação da pintura com a fotografia. Mas não há teórico, crítico ou historiador do campo fotográfico que já não tenha se debruçado sobre essa questão, coisa que minha especialidade vaga não faria senão repeti-las sem nenhum mérito adicional. Mesmo assim arrisco, sem antes capturar de todos os discursos já lidos, que não são muitos, confesso, uma linha que atravessa a todos, concreta ou obtusamente: a escolha corriqueira da pintura para seus cenários era o campo, as paisagens naturais – claro que considerando aqui a pintura contemporânea à invenção da fotografia. Enquanto que a fotografia se interessava muito mais pelos cenários urbanos e citadinos. Fotografia e cidade sempre estiveram muito ligadas, basta considerar as primeiras tentativas bem sucedidas dos franceses Joseph Niépce e Louis Jacques Daguerre entre os anos de 1826 e 1838, quando, respectivamente, desenvolviam a heliografia e a daguerreotipia. Ambos experimentavam a fixação, a marcação com luz, da cena que avistavam de suas janelas: a cidade.

Joseph Niépce, 1826.

Boulevard du Temple - Louis J. Daguerre, 1838.

Uma das soluções encontradas para esse esgarçamento relacional estava na utilização daquela mesma tecnologia racionalizante que catalisava a “descorporalização” do espaço urbano. A fotografia, ou melhor, o ato fotográfico poderia refazer essa ligação. Uma reconstrução artificializada é verdade, mas talvez a única possível naquele momento. Fotografar a cidade seria uma forma de reaproximação, reconhecimento, reconexão do

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No começo do século XIX, a cidade estava lá fora, distante e arrebatadora. Transformandose em algo que o ser humano não conseguia mais dominar e controlar. A cidade estava acontecendo sem que seu habitante sequer conseguisse percebê-la por completo. A modernização e implantação de avanços e aparatos tecnológicos nos sensíveis espaços urbanos estavam distanciando o corpo de suas relações cotidianas.


corpo distante com o espaço habitado. Uma reapropriação como forma de manter-se presente. Pois Fotografar é apropriar-se da coisa fotografada. Significa pôr a si mesmo em determinada relação com o mundo, semelhante ao conhecimento – e, portanto, ao poder. (SONTAG, 2004, p. 14)

Mas mesmo tendo a fotografia como artifício para reaproximação, a cidade é grande, desproporcional à experiência do corpo. Não temos capacidade suficiente para percorrer e memorizar toda a cidade de uma só vez. Por isso recorremos novamente à fotografia, que Ao nos ensinar um novo código visual, as fotos modificam e ampliam nossas ideias sobre o que vale a pena olhar e sobre o que temos o direito de observar. (SONTAG, 2004, p. 13)

Um novo código visual que vai além do espelhamento do mundo, do espaço urbano. Fotografamos para não esquecer, para guardar, para garantir como prova irrefutável de que aquilo existe, ou existiu em algum momento perante mim. Ao fotografarmos a cidade, criamos imagens fotográficas que são pedaços de cidade, miniaturas de realidades, duplicações contra um ritmo vertiginoso de transformações e registros daquilo que está deixando de ser nosso, de ser no tempo, de ser no espaço (SONTAG, 2004). Em última instância, os métodos de reprodução mecânica constituem uma técnica de miniaturização e ajudam o homem a assegurar sobre as obras [cidade] um grau de domínio sem o qual elas não mais poderiam ser utilizadas. (BENJAMIN, 2012, p.111)

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A fotografia, justamente por ter essa característica de um método mecânico de reprodução, convida a todos, artistas ou não, pintores e cientistas, homens e mulheres de gostos e apuramentos estéticos diversos para se debruçarem, enfrentarem aquelas grandes cidades, não com cavaletes e telas de especialistas, mas com câmeras fotográficas Kodak vendidas à varejo, com preços cada vez mais populares. Tal expansão técnica e banalização intelectual sobre o processo de registrar, duplicar e imitar a realidade através de imagens fotográficas fez com que o campo de interesse destes registros se ampliasse, indo além do que a pintura tradicionalmente se dedicara: a documentação, a alusão, a representação de objetos. A foto se torna parte e extensão de seus temas, uma possibilidade de atribuir importância a qualquer coisa. (SONTAG, 2004). Por isso, tirar fotos da cidade se torna um exercício de reconhecimento do espaço urbano pela multidão urbana, uma forma de valorização de sua própria condição de massa que agora tem forma, pode ser vista. A cidade continua a ser indomável, mas agora, com as fotos, ela pode ser reconhecida pela massa que lhe dá corpo. Através da visão fotográfica é possível reconstruir a cidade que nos escapa, é possível “contatar ou pleitear outra realidade” (SONTAG, 2004, p. 27), não necessariamente aquela visão impessoal, concreta, objetiva, real, mas uma estabelecida a partir de indícios daquilo que o indivíduo fotógrafo vê; “não apenas um registro mas uma avaliação do mundo” (SONTAG, 2004, p. 105). Uma avaliação do mundo que convida aqueles com “aptidão para descobrir a beleza naquilo que todos veem mas desdenham como algo demasiado comum” (SONTAG, 2004, p. 106). A fotografia e a cidade mais uma vez se retroalimentam. Miniaturizar a cidade através da fotos é enaltecer o cotidiano, iluminar o pormenor (BENJAMIN, 2012), inventariar a vida sem pose. “Fotos, que em si mesmas nada podem explicar, mas são convites inesgotáveis à dedução, à especulação e à fantasia.” (SONTAG, 2004, p. 33).


Vários indivíduos começam a se destacar dentro do campo fotográfico, justamente por apresentar esse olhar preciso, pormenor, sem pose perante a realidade, desmascarando-a (BENJAMIN, 2012). Lançar o olhar para a vida cotidiana das cidades ganha força e sentido estético, percebe-se a beleza voluptuosa dentro do ordinário urbano. Não tenho dúvida de que a majestade e a beleza do mundo estão latentes em qualquer migalha do mundo (...). Não tenho dúvidas de que existe muito mais em coisas banais, em insetos, em pessoas vulgares, em escravos, em anões, em ervas, no refugo e na escória do que eu supunha. (WHITMAN, W. apud. SONTAG, 2004, p. 41)

A cidade convida mais uma vez a fotografia para escrutinar seus recantos mais vulgares, mais ordinários, mais normais. E havia sempre a vida cotidiana, com seu interminável suprimento de aberrações – se a pessoa tiver um bom olho para vê-las. A câmera tem o poder de captar as chamadas pessoas normais de tal modo que pareçam anormais. A fotógrafa [Diane Arbus] escolhe a estranheza, a persegue, a enquadra, a revela, a intitula. (SONTAG, 2004, p. 47)

Assim como Diane Arbus, também aceitaram o convite Walker Evans, Henri CartierBresson, Éugene Atget, John Thomson, Paul Martin, Brassaï, Berenice Abbott, Arnold Genthe, Arthur Fellig (Weegee), Robert Doisneau, Vivian Maier e tantos outros que “pela primeira vez saíram a vagar pelas ruas de Londres, Paris e Nova York, em busca de sua fatia de vida sem pose.” (SONTAG, 2004, p. 68).

Arnold Genthe, Berenice Abbott, Paul Martin, Walker Evans e Berenice Abbott

Mas não é o interesse aqui, neste momento, tratar da produção fotográfica daqueles artistas-flâneur. Isso tem lugar em outro lugar.

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De fato, a fotografia alcançou pela primeira vez o merecido reconhecimento como uma extensão do olho do Flâneur de classe média, cuja sensibilidade foi mapeada tão acuradamente por Baudelaire. O fotógrafo é uma versão armada do solitário caminhante que perscruta, persegue, percorre o inferno urbano, o errante voyeurístico que descobre a cidade como uma paisagem de extremos voluptuosos. (...) O Flâneur não se sente atraído pelas realidades oficiais da cidade, mas sim por seus recantos escuros e sórdidos, suas populações abandonadas – uma realidade marginal por trás da fachada da vida burguesa que o fotógrafo “captura”. (SONTAG, 2004, p. 70)


Aqui faz-se um desvio na fascinante relação que a fotografia tem com a cidade. Um desvio que dará suporte à construção de um procedimento investigativo da cidade que tem na fotografia sua possibilidade ferramental de registro. O que interessa aqui é problematizar uma condição inerente à ação do fotógrafo e que não é transportado para o registro realizado por ele, pelo menos não concretamente. Uma ação contraditória. A condição inerente a qualquer fotógrafo que se propõe registrar algum objeto, cena, pessoa, acontecimento é que ele deve se colocar perante seu tema portando seu equipamento fotográfico; ou seja, deve existir necessariamente uma presença e uma passagem do tempo. No caso específico desta argumentação, o fotógrafo que se interessa por fotografar a cidade, seus espaços, seus personagens, precisa obviamente estar na cidade, de preferência inserido em seu cotidiano. Essa presença aproxima o olhar, aprofunda o reconhecimento, aflora pormenores e torna extraordinário o ordinário. O fotógrafo, neste caso, incorpora características de um etnógrafo urbano, um ser investigador inserido no próprio objeto investigado (AGIER, 2015). Uma presença que se habitua ao local, reconhece os que estão à sua frente, transmite uma confiança e indiferença, no sentido de semelhança e identidade, aos que aponta sua câmera fotográfica. Para o fotógrafo conseguir registrar a vida sem pose ele deve se fazer invisível dentro do território urbano fotografado. Essa invisibilidade vem da uma ação etnológica, que precisa ser “aprovada” pelos indivíduos, pelo espaço e pelo tempo. Afinal, só é possível conquistar essa posição perante o tema a ser fotografado após uma considerável, e variável, passagem do tempo. É preciso uma duração, uma ligação, uma lenta aproximação, uma permanência. Vagava pelas ruas o dia inteiro, sentindo-me muito alerta, pronto a dar um bote, determinado a ‘capturar’ a vida – a preservar a vida no ato de viver. Acima de tudo, eu ansiava captar, no âmbito de uma só foto, toda a essência de uma situação que estivesse em processo de desdobramento diante dos meus olhos. (CARTIER-BRESSON, H. apud SONTAG, 2004, p. 201-2)

Justamente aí se encontra uma contradição. Aí se configura uma distância entre a ação do fotógrafo, baseada na permanência, no tempo, e o resultado obtido nesta ação, a imagem, a foto. O resultado que o fotógrafo tem de sua relação temporal com o tema é transformado em uma imagem congelada, um instante, um momento, uma pausa. Captura e fixação de um fluxo, de um movimento, de uma passagem presenciada pelo seu autor, a foto talvez seja a grande algoz do tempo, ela subjulga a passagem do tempo. Tirar uma foto é participar da mortalidade, da vulnerabilidade e da mutabilidade de outra pessoa (ou coisa). Justamente por cortar uma fatia desse momento e congelá-la, toda foto testemunha a dissolução implacável do tempo. (SONTAG, 2004, p. 26)

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A natureza que fala à câmera não é a mesma que fala ao olhar; é outra, especialmente porque substitui um espaço preenchido pela ação consciente do homem por um espaço que ele preenche agindo inconscientemente. Percebemos, em geral, o movimento de um homem que caminha, ainda que de modo grosseiro, mas nada percebemos de sua postura na fração de segundo em que ele dá um passo. A fotografia torna-a acessível, (...) revela esse inconsciente ótico. (BENJAMIN, 2012, p. 100)

Mas a fotografia como registro de um instante, como sua eternalização, tem seu valor na história e talvez seja uma de suas grandes capacidades. Isso já está consagrado. Mas e se pensássemos em uma categoria de ação fotográfica que não subjugasse o tempo mas que considerasse e, inclusive, registrasse a passagem do tempo? Seria possível em uma


única representação termos o registro de um instante e o registro de uma passagem do tempo? Seria possível aproximar a ação etnográfica do fotógrafo ao seu resultado representacional? Uma primeira experiência responde a estas perguntas, que poderia se converter em um procedimento de leitura da cidade e, consequentemente, construção de uma narrativa urbana, particularmente interessante para o Trapeiro contemporâneo. A experiência apresentada pelo personagem ficcional Auggie Wren, interpretado pelo ator Harvey Keitel, no filme Smoke [Cortina de fumaça no Brasil], de 1995. Produção cinematográfica independente, dirigida por Wayne Wang e Paul Auster, escrito por este último e baseado em um personagem de um pequeno conto de natal escrito também por Auster: “Auggie Wren’s Christmas Story”. Auggie é um homem sem muita escolaridade, proprietário de uma tabacaria em uma esquina no Brooklin, em Nova York, amigo e confidente de uma série de outros personagens que passam pela sua loja. Um desses personagens é Paul Benjamin, interpretado pelo ator William Hurt, escritor em crise com dificuldade de relacionar-se com outras pessoas após a morte da mulher. Em determinado momento do filme, um pouco paralelo ao desenvolvimento da trama central do enredo, Paul nota a presença de uma câmera fotográfica no balcão da tabacaria de Auggie, e este confidencia que tem um hobby: fotografar diariamente, sempre às 08h00, a esquina de sua loja (cruzamento das 3ª e 7ª avenidas). São mais de 4 mil fotos da mesma esquina, catalogadas em álbuns etiquetados e organizados cronologicamente1. Curioso e incrédulo com a possível sensibilidade do vendedor de cigarros, Paul acompanha Auggie até seu apartamento para conhecer a atividade fotográfica. O escritor, já cansado da vida em sociedade, folheia os álbuns da coleção sem entender muito bem o porquê daquela proposta, aparentemente sem sentido. Paul não compreende qual a serventia de fotografar sempre o mesmo lugar, afinal a tabacaria já estava imortalizada no primeiro registro e nada mudara naquele espaço desde então.

Frames do filme, mostrando a conversa entre Paul e Auggie, sobre o procedimento fotográfico do último.

Auggie Wren – Você nunca entenderá se não olhar mais devagar, meu amigo. Paul Benjamin – O que quer dizer? A. W. – Está indo muito rápido, mal está olhando as fotografias.

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As fotos para essa cena foram tiradas pelo fotógrafo K. C. Bailey especialmente para o filme.

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P. B. – Mas elas são todas iguais.


A. W. – Elas são todas iguais, mas cada uma tem algo diferente da outra. Você verá manhãs brilhantes e manhãs escuras. Verá a luz do verão e a luz do outono. Você verá dias de semana e os finais de semana. Verá pessoas com casacos e galochas, e em outras fotos pessoas de camiseta e bermuda. Às vezes são as mesmas pessoas, outras vezes são pessoas diferentes. E algumas vezes aquelas que eram as diferentes se tornam as mesmas, e as mesmas de antes desaparecem. O tempo caminha em pequenos passos.

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Tudo o que a câmera registra é um desvelamento – quer se trate de algo imperceptível, partes fugazes de um movimento, uma ordem de coisas que a visão natural é incapaz de perceber ou uma ‘realidade realçada’ (expressão de Moholy-Nagy), quer se trate apenas de um modo elíptico de ver. (SONTAG, 2004, p. 137)


Auggie, em uma singela posição de observador do seu entorno, se converte em um etnógrafo que lê o território ao redor de sua loja e percebe, com a ação repetitiva de registrar o mesmo lugar sempre no mesmo horário, as constituições mutantes geradas pela simples passagem do tempo. Auggie é capaz de construir uma narrativa urbana apenas com a repetição fotográfica sobreposta e costurada pelo fluxo temporal. O tempo de permanência do observador é transferido para as fotografias no momento em que elas são agrupadas nos álbuns. Uma catalogação infinita e inesgotável muito semelhante àquela proposta pelo escritor Georges Perec, nos idos de 1975 na Place Saint Sulpice, em Paris2. Um procedimento que pretendia ler e documentar a totalidade daquele espaço em um determinado período de tempo. Uma tentativa de esgotamento documental de tudo que pode ser presenciado, além dos elementos arquitetônicos já bastante estudados e catalogados por outros estudiosos. Tentativa frustrada, constatada pelo próprio Perec, justamente pela inevitável ação constante do tempo na vida cotidiana. Tentativa frustrada que ocasiona, em contrapartida, o desvelar de um procedimento investigativo que assume e incorpora as ações do tempo nos registros documentais congelados, tanto da escrita, no caso de Perec, quanto fotográfico, no caso de Auggie. Com a fusão da experiência fotográfica no tempo feita por Auggie e da proposta de tentativa de esgotamento feita por Perec, esta reflexão sobre a fotografia, a cidade, o tempo e o etnógrafo ganham ares definitivos de um possível procedimento investigativo que pode ser absorvido e incorporado pelo Trapeiro, como ferramenta-gancho para o resgate dos trapos urbanos da modernização. Interessa aqui explorar mais exaustivamente as maneiras de escrever sobre os temas investigados pelo leitor urbano, maneiras que assumam, em uma só representação, uma só escrita, a convergência da presença do leitor, do congelamento de instantes, da construção da realidade desdenhada, da tentativa de esgotamento e da passagem do tempo. O passo seguinte dessa elaboração de procedimento investigativo, dando continuidade e complexidade à obsessiva coleção da mesma esquina de Auggie, seria encontrar outras experiências fotográficas que assumam a escritura em uma mesma imagem, não só dos efeitos da luz sobre o elemento sensível, mas também da passagem do tempo como elemento registrador. Uma escrita simultânea de luz e tempo, uma (crono)(foto)(grafia). Cronofotografia – s.f. cine. Processo de análise do movimento mediante uma série de fotografias feitas com regularidade e repetição dos tempos de pose e do ritmo das tomadas. (HOUAISS e VILLAR, 2009, p. 577)

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PEREC, Georges. Tentativa de esgotamento de um local parisiense. São Paulo: Gustavo Gili, 2016.

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Revista La Nature nº 464 de 22 de abril de 1882 p. 326.

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Não muito distante das experiências de Niépce e Daguerre, em 1926 e 1838, o cientista francês Étienne-Jules Marey (1830-1904), interessado em compreender os processos físicos e anatômicos de movimentos rítmicos corporais, tanto do homem quanto de animais, desenvolve, em 1882, um equipamento fotográfico capaz de registrar, em uma única película fotossensível, 12 instantes sequenciais daqueles movimentos. Com sua pistola cronofotográfica3 apontada para atletas de salto em altura, salto em distância, lançamento de peso etc, e aves iniciando ou encerrando um voo, cavalos trotando e saltando obstáculos, Marey gravava em uma mesma imagem cerca de 12 instantes congelados daqueles movimentos, tudo dentro de um intervalo de 1 segundo. Com essas


imagens cronofotográficas o cientista tinha a capacidade de perceber pormenores do movimento da perna do atleta no instante do impulso para o salto, ou mesmo perceber e constatar que em determinado instante da cavalgada o cavalo não tem nenhuma pata tocando o solo, como se estivesse dando pequenos e rápidos saltos. A força de uma foto reside em que ela mantém abertos para escrutínios instantes que o fluxo normal do tempo substitui imediatamente. (SONTAG, 2004, p. 127)

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Apresentação da pistola cronofotográfica feita por Marey na revista La Nature.

Cronofotografias de atletas, realizadas por Marey.


Cronofotografias de um atleta de salto com vara, realizada por Marey.

Estes estudos foram publicados por Marey em 1894 no livro Le Mouvement. Antes disso, as cronofotografias de Marey já contaminavam os estudos artísticos do fotógrafo inglês Eadweard Muybridge (1830-1904), que, com seu invento zoopraxiscópio, registrou bisões e jóqueis em galope durante sua viagem ao oeste americano. Essas imagens, já não escritas em uma mesma foto, foram colocadas em sequência e postas em movimento rítmico e repetitivo. Muybridge estava dando início aos experimentos do cinema. Importante ressaltar que cinema e cronofotografia não se configuram como desenvolvimentos convergentes do registro do tempo e do movimento, pois, como anuncia Cristian Borges (2011), a representação do movimento, e consequentemente da passagem do tempo, é estruturalmente diferente em cada um dos meios imagéticos: a passagem do tempo é simulada na pintura, condensada na fotografia, decomposta na cronofotografia e restituída no cinema. Ou seja, condensar e restituir são ações de síntese do tempo, constituem uma presença temporal aurática, enquanto simular e decompor são ações analíticas do tempo, constituem uma varredura do rastro temporal no espaço. Ações analíticas que foram encaminhadas, por exemplo, estética e conceitualmente por Marcel Duchamp, não só mas principalmente, na pintura Nu descendant un escalier nº 2, de 1912. The fact that I had seen chronophotographs of fencers in action and horses galloping gave me the Idea for the nude. It doesn’t mean that I copied these photographs. (DUCHAMP, 1961)

Mas ao mesmo tempo a fotografia revela nesse material os aspectos fisionômicos, mundos de imagens habitando as coisas mais minúsculas, suficientemente ocultas e compreensíveis para encontrarem um refúgio nos devaneios. (BENJAMIN, 2012, p. 101) Nu descendant un escalier nº 2, de Marcel Duchamp.

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Uma varredura do rastro temporal que nos interessa para converter em escrita as experiências etnográficas vividas pelo trapeiro contemporâneo. Forma de documentar a passagem do tempo e o cotidiano urbano que se transforma em procedimento investigativo e projetual.


Procedimento que pode ser exemplificado nas séries fotográficas, ou melhor, séries cronofotográficas de Pelle Cass e Peter Funch, intituladas Selected People e Babel Tales, respectivamente. Devaneios poéticos e artísticos convertidos em leituras e escrituras do cotidiano urbano. Construção de narrativas urbanas cronofotográficas. Tais imagens são de fato capazes de usurpar a realidade porque, antes de tudo, uma foto não é apenas uma imagem (como uma pintura é uma imagem), uma interpretação do real; é também um vestígio, algo diretamente decalcado do real, como uma pegada ou uma máscara mortuária. (SONTAG, 2004, p. 170)

Selected People (2008 – em andamento) e Babel Tales (2006-2011) O fotógrafo americano Pelle Cass nasceu em 1954, no Brooklyn, em Nova York. Estudou Artes Visuais na School of the Museum of Fine Arts e, em 1993, se graduou Bacharel em Artes pela Universidade de Massachusetts, ambas em Boston. Atualmente vive e trabalha em Brockline, MA. Sua produção fotográfica que nos interessa para exemplificar o procedimento investigativo apresentado acima é a série cronofotográfica intitulada Selected People, iniciada em 2008, e que já conta com três edições, com novas produções compositivas em andamento. O fotógrafo dinamarquês Peter Funch nasceu em 1974, numa pequena cidade na zona rural do interior da Dinamarca. Graduou-se em Fotojornalismo na Danish School of Journalism, em 1999, e atualmente vive e trabalha em Nova York. Da produção artística de Funch, a série Babel Tales (2006-2011), composta por 40 cronofotografias das ruas de Nova York, servirá de exemplo para ilustrar o possível procedimento investigativo a ser assumido pelo trapeiro contemporâneo. Com duas séries bastante semelhantes, tanto Cass, com Selected People, quanto Funch, com Babel Tales, assumem o registro do cotidiano de grandes centros urbanos, na esteira dos fotógrafos de rua clássicos, com suas imagens ora documentais ora construtoras de outras realidades. Mas os registros destes dois artistas especulam algo a mais. Ambos assumem a postura de um etnógrafo urbano e utilizam o procedimento da cronofotografia como mecanismo de tentativa de esgotamento de catalogação do que acontece perante a câmera. Ambos se permitem permanecer um longo período de tempo em uma esquina qualquer da cidade lendo e escrevendo a cidade que acontece.

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Este trabalho tanto ordena o mundo como enxerga seu caos. Com uma câmera num tripé, eu capturo muitas dezenas de fotos, e simplesmente mantenho na cena as figuras que escolho e omito o restante. As fotografias são compostas, mas nada é alterado, apenas selecionado. Meu assunto é a estranheza do tempo, a maneira precisa de como as pessoas enxergam, e um mundo surpreendente que só é visível com uma câmera. (CASS, 2016) Eu sento todo dia em uma esquina diferente de Manhattan, por 10 a 15 dias, e fotografo pessoas passando. Não dirijo a cena. Depois, no computador, crio categorias: classifico as pessoas pelo que fazem, como aparentam ou o que vestem, e então sobreponho as imagens de modo a acentuar as coincidências. Mas não mudo o contexto em que as pessoas aparecem, apenas o tempo é manipulado. (FUNCH, 2012)


Para incorporarmos o procedimento investigativo, façamos uma análise preliminar das imagens produzidas pelos dois artistas. Ao nos depararmos com as fotografias, numa primeira mirada, reconhecemos apenas uma cena urbana ordinária, com pessoas circulando, atravessando, carregando, olhando, desviando, vivendo. Num primeiro momento vemos um instante congelado do movimento da cidade. Mas, assim como Auggie solicita a Paul, é preciso olhar com calma, prestar atenção, deter-se sobre a imagem. Imediatamente surge um ruído naquele aparente caos urbano, naquele aparente registro aleatório. Pequenas repetições, padrões, sutis semelhanças de gestos, movimentos, características. Sim, pensamos, são coincidências que ocorrem no intenso movimento da multidão, basta apenas se posicionar em algum local movimentado e esperar até presenciar alguma dessas coincidências. Basta esperar... Mas, se analisarmos com maior cuidado, e resgatarmos nosso vasto repertório do aleatório urbano, nos damos conta de que os pormenores que se associam, os padrões de movimento humano, as semelhanças físicas entre os sujeitos fotografados estão extremamente harmoniosos, ordenados, orquestrados. Só um fotógrafo com extrema paciência e sorte conseguiria captar um instante tão particular do aleatório. Mas, ao tomarmos consciência do processo de manipulação e sobreposição, ou mesmo esmagamento, de tempos distintos numa mesma imagem, tempos distintos embaralhados num mesmo espaço, conseguimos dar um passo adiante da apreciação dela como produto e ir na direção de uma leitura mais complexa e aprofundada do que foi escrito com a passagem do tempo. As fotografias, portanto, são representações gráficas, cartografias escritas com a passagem do tempo. Permanência do corpo e passagem da vida cotidiana que permitem ao observador que se familiariza, se habitua, se acostuma, a aprofundar as percepções dos acontecimento ordinários além da realidade imediata. Babel Tales são imagens sobre relações humanas, sobre quem somos na cidade grande. Somos um grupo? Uma fileira de indivíduos? É sobre a vida cotidiana, que é mais inter-relacionada do que pensamos. (FUNCH, 2012) Algumas imagens são baseadas em critérios puramente estéticos. Principalmente no início do projeto, eu me sentava numa esquina movimentada aleatória e observava. Fotografava muitas coisas, as categorias eram criadas depois. Em “Dobbeltganger”, por exemplo, cada pessoa aparece duas ou três vezes na foto. Comecei a ver uma rotina: as mesmas pessoas passavam todos os dias no mesmo horário em frente à câmera. Isso foi algo que descobri enquanto fotografava. (FUNCH, 2012)

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Com esse procedimento investigativo, esse colecionar de fragmentos de tempos ordinários, trapos temporais, é possível ao trapeiro agrupa-los de maneiras diversas, “a partir da cor de suas roupas, do humor, da idade, gestos, posições, raça ou mesmo esquisitices em comum.” (CASS, 2016). Um procedimento investigativo que, entre tantas outras coisas possíveis e disponíveis, evidencia do que é feita a cidade, a vida cotidiana: nossas sutis semelhanças que compartilhamos.


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Peter Funch

Communicating Community.

Peter Funch

Pantone Pantomime.


Red Rule.

Peter Funch

Posing Posers.

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Peter Funch


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Pelle Cass

sem tĂ­tulo.


sem tĂ­tulo.

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Pelle Cass


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