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Ponto de Mira
Em Viagem
Técnica
3,90€ (Continente) IVA Inc.
TREVL#5 | Outono-Inverno 2014 — Quadrimestral
Gobi
Mongólia • toscânia • Peru • São tomé e príncipe • América
poupe34% até
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Primavera 2013
Inverno 2013
Primavera 2014
1
Verão 2014
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Outono-Inverno 2014
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Editorial
Encontro às
D
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esliguei o motor. O mesmo que vencera há pouco a subida desafiante desde o lago Ogii, lá bem em baixo. E agora, desde ali de cima, não havia mais nada para além de mim e daquela nuvem de poeira que se afastava, envolvendo o João, companheiro de viagem, e a sua moto de quadro partido. Levamos ambos uma missão: regressar com a moto soldada. Soldada sobrevivente de uma guerra em território de impérios milenares, conquistados pela espada nos dentes de mongóis aguerridos e arcos prontos a matar, certeiros. Mas isso ia ter de esperar um pouco mais. Agora quero apenas estar a sentir o calor dos primeiros raios de Sol no cimo daquela colina na Mongólia cujo nome, impronunciável, é como aquelas pequenas coisas maravilhosas que, mesmo sem se pereceberem, adoram-se e não se conseguem explicar. Nada mais se ouve. Estamos na Mongólia e só ali, naquele instante, sozinho, interiorizei essa sensação de liberdade. Lembro-me então dos momentos em que amaldiçoei a estrada, as pedras, a moto. Em que me doíam os ossos e os braços cansados. Das vezes em que parava porque continuar já não era possível, que atingira o limite. E, quando deitado sob as estrelas dos ancestrais Khans, revivi os obstáculos que passámos não resistia ao sorriso. E desconfio que assim, com um sorriso gravado, me deixara dormir. Sem a procurar, encontrara ali no mais insuspeito e isolado dos sítios uma resposta para a pergunta que me perseguia: “Porquê partir de moto?” Guardo-a para mim; a tua resposta tens de ser tu a encontrá-la, mais longe ou mais perto ela espera-te. Que esta TREVL te aproxime dela. José Bragança Pinheiro | viajante | jbpinheiro@trevl.pt
Cada capa da TREVL é especial. Queremos que se destaque na multidão, que inspire mistério, exotismo e que ela também encerre a promessa de uma boa história.
Para esta edição a imagem de uma pequena moto carregada para lá do que aguenta e um iaque transportamnos até à Mongólia.
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Técnica. Este artigo transpõe as principais ideias transmitidas no workshop TREVL “Roadbook para escrever um artigo de viagem” no Touratech Travel Event de 2014, em Avis. Siga o QRCode para aceder à apresentação.
História deViagem como escrever a sua
“When you enter into an experience with the intention of writing about it, you tend to travel the world more creatively and observe it more thoughtfully.” @ Rolf Potts, “Marco Polo didn’t go there”
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ste artigo serve para ajudar quem quer encontrar melhores formas de contar a sua história de viagem. Para nós na TREVL é importante que o saibamos fazer de forma cativante, empolgante e que incite o leitor a partir. Mas não termina aí: queremos contagiar e acordar o contador de histórias que há dentro de cada viajante de moto. A capacidade de conseguir contar uma boa história aprende-se como muitas outras técnicas. Mas não há receitas nem caminhos fáceis. Como na viagem, cada um terá de fazer o seu e perceber o que resulta consigo. O que reunimos neste artigo reflecte o que connosco funciona, a vários níveis.
As palavras acima do viajante e escritor Rolf Potts não nos atrevemos a traduzir. Mas acreditamos ter interiorizado bem a sua essência: quando sabemos de antemão que vamos escrever sobre uma experiência, isso encoraja-nos a ser mais atentos, curiosos e intensificar a vivência. Para que consigamos maximizar as probabilidades do artigo de viagem sair bem escrito, temos de começar o trabalho ainda antes de partir e repensar algumas das coisas que nos propomos a fazer durante a própria viagem e experiência. É fácil esquecermo-nos do nomes dos locais e pessoas que encontramos, dos pormenores. Dentro do capacete enquanto viajamos são muitas as ideias fantásticas: ângulos frescos de abordar a história, sensações únicas
que marcam aqueles momentos. Chegamos a imaginar como seria a frase e sorrimos por nos parecer perfeita. Mas se não tomarmos nota, palavras leva-as o vento. Ao regressar, a disciplina anterior permite-nos colher alguns frutos, mas o trabalho não termina aí. O que vos apresentamos são boas práticas que podem melhorar os resultados, e quanto melhores forem, melhor a TREVL é e a comunidade de viajantes de moto.
L e i a!
É importante ler escritores concei tuad e aprende-se mui os to a ler os mestres. Es ta selecção de livros é focada no ensino da escrita de viagen s.
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Começa por ser um livro de histórias de viagem. Até aqui tudo normal. Mas Rolf aproveita e vai partilhando connosco dicas e técnicas que utilizou, não só no processo de escrita como também na recolha durante a viagem.
Desta selecção, este é o mais focado em ensinar como escrever boas histórias de viagem para vários objectivos. Muito bem estruturado e com as ideias bem arrumadas, é um manual ideal para quem quer começar.
Este livro fala sobre como manter um diário de viagem e como esse esforço combina bem com a intensificação da experiência e a preparação de livros ou artigos de viagem.
“Marco Polo didn’t go there”, Rolf Potts
“Travel Writing, Lonely Planet’s guide to”, Don George
“Writing away”, Lavinia Spalding
As personagens trazem uma vida e côr às histórias. Mas isso é um simples bónus, porque na verdade toda a viagem ganha com elas. Ao sair do grupo e procurar o contacto com quem nos rodeia, sejam estrangeiros ou locais, dá uma riqueza a toda a experiência.
Acrescenta uma perspectiva diferente ao que contamos e um ritmo que cativa o leitor. Considere apontar e usar mais tarde as partes marcantes dos diálogos. Por vezes resulta bem usar discursos na primeira pessoa de outros que não o autor.
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expectativas e preconceitos que preparou antes de partir e questione cada uma: Foi mesmo assim? Porque não (ou sim)?
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destino de viagem e quando cada vez temos menos tempo em cada local, estar no sítio certo à hora certa pode fazer a diferença. Mesmo para adeptos da serendipidade, que amaldiçoam as expectativas e imagens pré-feitas, importa conhecer o povo e a cultura que nos acolhe. Isso permite-nos compreender e estabelecer uma ligação muito mais genuína e sentida. Sugestões: ler um livro ou ver um filme passado no destino, falar com alguém de lá, cruzar informação de várias fontes, criar o seu próprio contexto.
7 a ad Ru crita Es
viagem. Dessa lista vai usar mais à frente apenas alguns. Reflectindo um pouco, escreva o que foi mais importante e porque razões. Desenterre aquela lista de
Em tempos tive a sorte de ouvir um grande fotógrafo dar uma daquelas palestras motivacionais para grandes empresas. Steve Uzzell disse algo que ficou: tirar uma grande foto é pouco sobre talento e muito sobre preparação. Num
dos s Beco livreiro
Regressado a casa o primeiro passo para a escrita é listar os momentos e episódios mais marcantes da
Estudar
na vai lhe ça? ue O q cabe
MOmentos principais
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“Como se chamam”, “Onde andámos”, “O que me marcou mais”. Guarde pequenas coisa que apanhe: rótulos, etiquetas, recibos, fósforos, caricas, flores, manchas de óleo...
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nd a s leve Pasaqui, EVL R por ma T u
e reflicta sobre quais são as suas: o que comem por lá, como vivem, o que temo mais e o que mais anseio e desejo. E escreva cada uma delas numa página do seu bloco de notas. Mais tarde vamos precisar dela.
se perde no próximo. Seja disciplinado. Pode ser de manhã antes de todos acordarem ou quando já todos dormem a sesta. “Que cheiros, sons, sensações”, “Que obstáculos”, “Quem conhecemos”,
?
Não há forma de evitar termos ideias preconcebidas sobre o nosso destino, expostos a tanto estímulo e imersos em tanta informação hoje. Antes de partir, páre
Defina qual o momento do dia que vai dedicar a escrever as notas desse dia. A memória é curta e um dia intenso de viagem facilmente
o ad nid ento Aventam apo
Ideias feitas
pare e tome nota
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a d i rt a P o
digno de nota O bloco de notas será o seu melhor amigo e confidente durante a viagem, mas também aquele que mais tentará evitar. Escolha uma forma de tomar notas, escrevendo, gravando voz, fazendo bonecos. Não precisa de ser um Moleskine mas tem de funcionar e estar à mão para não haver desculpas “Ah e tal... não sei onde está”.
Melhor ainda se, para saciarmos a curiosidade, tivermos de vencer a vergonha e perguntar a alguém.
do ça gem Prasona per
Personagem
Porque só se come borrego? O que diz aquele senhor do alto do minarete? Ser curioso revela mais sobre o que encontramos e deixa-nos mais atentos e compreensivos.
dos go os larurios c
Pergunte-se porque são as coisas assim. O que faz aquilo ali? Porque vão todos para ali? Porque não há cães na rua? Onde estão as mulheres? O que vestem as gentes?
nto me na Estaciolivre
Seja Curioso
Estrutura
No final a sua história terá uma estrutura parecida com esta, onde intercalará momentos fortes com transições entre episódios. Terá um princípio, um meio e um fim. Parece simples, mas na realidade não é.
o? Orgulhos
O que se deve procurar fazer, para atingir uma riqueza e um ritmo que empolgue quem lê, sem perder de vista o que se pretende partilhar e a mensagem principal a passar.
Título
O primeiro que se lê deve ser a última coisa a escrever. Deve ser único e assentar que nem um luva a esta história e a mais nenhuma.
Princípio Agarre o leitor à história, deixe-o pendurado, brinque com ele. Mas quando estiver a fechar a história não se esqueça das promessas que lhe fez.
Momento Da lista de momentos e episódios da viagem escolha os mais sumarentos e desenvolva. Dê a cada um uma identidade e ritmo próprios a cada um, escolhendo quando usar diálogos, uma personagem ou uma descrição mais cuidada de algo.
Transição A transição é uma peça fundamental que dá ritmo à história e lhe permite passar de um episódio para outro. Pode ser uma viagem, uma descrição de uma paisagem, uma análise de expectativa, uma pergunta que se faça. Algo que torne natural a ligação com o próximo momento.
Fim
As últimas palavras que escolhemos para fechar a história são muito importantes. Elas têm de ressoar e de ficar na cabeça de quem lê. Devem concluir os pontos abertos durante o artigo e ligar com o início. Termine com chave de ouro e guarde alguns trunfos para o final.
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co a Partilhe connos agem vi de ia ór st hi sua que ir nt se e faça-nos já ir rt pa os am ví de ais m m ne e amanhã um dia.
“Do’s”
primeiras impressões
Metáforas
Data e local
Apontar sempre a data e local das notas que tomamos em viagem. A densidade e quantidade de apontamentos podem tornar-se enormes num piscar-deolhos. Tenha a preocupação de acertar o relógio da sua máquina fotográfica e, à falta de apontamento, tire uma foto.
São as coisas complicadas de viver que dão as melhroes histórias para contar. O problema é que é precisamente nessas alturas que as emoções estão ao rubro e não tomamos o tempo para apontar ou tirar uma foto. Uma escrita forte vive também de momentos fortes: não tenha receio deles, mas aceite-os como parte da viagem e experiência.
O meu ângulo
Perguntas
Ler em voz alta
Factos
As primeiras palavras vão determinar se quem se dispôs a ler a nossa história ficará connosco até ao fim. É aqui que vai perceber se vai rir, chorar. É onde o ângulo da história deve ser evidente. E tudo isto de forma curta, deixando indícios no ar que o meio do artigo resolverá. Como nas primeiras impressões, só se tem uma chance de as causar.
Há mais formas de contar uma história do que há viajantes; encontre o seu ângulo. Pode ser através de diálogos imaginários com pessoas que encontra, banda desenhada, fotografia, drama, mistério, comédia. Escolha o território que lhe é natural e use-o. Optar por algo onde não se sente à vontade vai deixá-lo frustado e tentado a desistir.
Uma boa comparação com algo que o leitor se relacione poupa descrições longas e nem sempre bem sucedidas. As metáforas têm essa força e simplicidade. Perguntar-nos “O que me faz lembrar isto?” ajuda a encontrar figuras por semelhança. Se aquele sítio fosse uma pessoa, quem seria?
Se a página em branco assusta, talvez fazer-nos umas perguntas a nós mesmos ajude: “Que músicas se ouvia nas ruas“, “O que dava nas televisões”, “O que diziam as capas dos jornais”, “Como me veriam os outros“, “Se tivesse mais tempo...”, “Sentiame à vontade? porquê?”, “Do que me arrependi”, “Sinto-me diferente hoje?“ Surpreenda-se com as respostas.
Ao ouvirmos as nossas próprias palavras ditas em alta voz, mesmo sem ninguém mais a ouvir, torna-se evidente o que não resulta. Por vezes é uma cacofonia infeliz como “as carretas” ou “Alverca gare”. Outras a mensagem revela-se confusa, enrolada. A musicalidade da leitura é cruel e não perdoa o que não resulta. Por isso, faça um chá de cebola, pigarreie e dê voz à sua história.
Cabeça fria
Reúna alguns factos interessantes e específicos do destino. Podem ser desde estatísticas curiosas a momentos da história que tornam aquele lugar ou pessoas singulares. Chegando a casa, confirme tudo uma e outra vez sempre que possível.
O melhor mesmo? É fazer alguns cursos de escrita dados por quem realmente sabe. Nós na TREVL seremos sempre alunos eternos. A escola Escrever Escrever tem uma linha de cursos e professores excepcionais.
Desacordo Apaixone-se pela língua portuguesa e, como a TREVL, diga não ao acordo ortográfico.
Muito para lá do virtuosismo da escrita ou do talento, se evitarmos pequenos pormenores conseguimos uma maior clareza no que escrevemos e isso sentese do lado de quem lê.
“Dont’s”
“Olha, mãe”
Somos nós que vivemos os episódios e aventuras que contamos ao escrever. Somos nós quem sentiu as emoções, angústias e felicidades. Mas centrar-se apenas em si próprio afasta o leitor. Encoraje o contacto com outros e procure estabelecer relação com os demais. Um exemplo é procurar perceber como nos vêem, o que pensarão, ou qual o seu ponto de vista. Evite que a sua história seja uma “selfie”.
Herros
Escrever encerra uma responsabilidade pedagógica e cultural. Cometer erros de ortografia é um insulto para quem lê. Qualquer simples processador de texto hoje tem corrector ortográfico que vai ao ponto de detectar construções gramaticais incorrectas.
Infindável
A capacidade de concentração já não é o que era. Procure ser económico e directo nos começos de capítulo ou artigo. Foque-se na mensagem principal e no objectivo primordial que quer cumprir. Tudo o resto chute para o lado. Um bom início é um início curto e directo ao assunto.
“Drama queen”
Dar demasiado drama ou esticar demais as emoções ou sentimentos cria um afastamento de quem lê por parecer exagerado, forçado. Não quer dizer que evite demonstrar porque se sente de uma determinada forma naquele momento.
Conversa a mais
Factos errados
“Clichés”
Águas passadas
Generalizar
Pintar quadros
O diálogo, sendo encorajado enquanto se viaja, deve ser usado com conta, peso e medida. De outra forma, torna-se uma novela e fica cansativo. Pontue descrições com algumas trocas parafraseando o que foi dito, especialmente quando a expressão foi engraçada e coloquial.
A opção de contar uma história no presente, como se a estivéssemos a viver naquele preciso momento é, não só válida, como uma arma poderosa. Mas exige que não misturemos passado, presente e futuro de forma confusa. Escolha um tempo e mantenha-o.
Imagine que alguém lhe conta uma história e algures no meio detecta-lhe um erro. A partir desse momento a credibilidade do autor cai aos trambolhões por aí abaixo e nem ouvimos o resto. Ou só ouvimos para descobrir a próxima asneira. Hoje não há desculpas para se citarem factos errados ao escrever; seja rigoroso e exigente consigo como seria com os demais.
Um viajante está durante curtos períodos de tempo em contacto com realidades estranhas. O que testemunha é breve e não passa de uma observação isolada. Construir quadros de generalização como “a comida é toda horrível” ou “os habitantes são todos antipáticos”, “as casas são todas lindas” revelam que o autor não está atento e se precipita a julgar. Seja curioso nos pormenores mas não construa mundos sobre eles.
O problema de usar expressões comuns é que já perderam o significado. Estamos desensibilizados para o que querem realmente dizer e na prática acabam por não reflectir em nada o que se sente. “Paraíso na Terra”, “Viagem de sonho“, “Encher a alma” ou “Terra de contrastes”. Procure usar palavras suas para dizer como se sente.
Para transportar quem lê para o local da acção sentimos a tentação de descrever o contexto, a envolvência. Devemos ser criteriosos nos pormenores que optamos por descrever: uma sala específica, uma paisagem, uma estrada, uma pessoa. Alongar-se e suceder uma descrição atrás da outra é difícil e está ao alcance dos mais talentosos.
Adjectivos “Arranha-céus altíssimos”, “Grandes elefantes”, “Aldeias pequenas” são adjectivos desnecessários. Como o são também dizer que algo é “maravilhoso”, “lindo “ou “fantástico”
Desistir à 1ª
Todo este processo da escrita é difícil. O importante é não “atirar com a toalha ao chão” e continuar a tentar, mudando o que não funcionou e encontrar o que gera resultados consigo. Cada um tem as suas horas do dia em que prefere escrever, outros sentir-se-ão mais à vontade a ditar para um gravador. Não encare a crítica como um sinal para desisitir.
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