TREVL 18 "Primavera 2019" — sample/amostra

Page 16

Abertura — «Eu vou, mesmo em bicos de pés.» Foto: Jorge Matos (@Porto)

Banda Sonora Descobre aqui a banda sonora que a Eunice sugere para leres as suas histórias.

80

percorrer e guardei todas as ideias e recomendações nos meus apontamentos, como uma aluna atenta e bem-comportada de partida para a sua primeira viagem. O meu objectivo era seguir apenas por estradas secundárias, encontrar caminhos e, se necessário, meter até por alguns atalhos. Ao quarto dia apanhei-lhe o jeito e comecei a desenhar esses trilhos no dia anterior, marcando também o alojamento. Mas prefiro deixar a vida me levar, e mesmo de mapa na mão — ou podendo seguir as tabuletas —, não podia deixar de perguntar por indicações aos locais com quem me ia cruzando. E foi assim que fiz amizade com a tia, a sobrinha, o marido da tia e ainda uma amiga em Montalegre. Que recebi uma bacia inteira de tomates cherry biológicos de um senhor na serra do Gerês. Que conheci três mirandesas de gema que deixaram saudades. Ou um senhor que me contou que, há muitos anos, também andou numa Royal Enfield, enquanto os seus olhos se enchiam de alegria. Uma simpática senhora que se surpreendeu com a minha coragem e aproveitou para conversar um bocadinho porque ajudava a passar a tarde. Ou aquela senhora em Arruda dos Vinhos que, depois de um grande abraço, ainda me ofereceu um gelado. A minha rotina era muito simples — levantar devagarinho, tomar um pequeno-almoço reforçado, passear pelo local onde havia pernoitado, e seguir pelo trajecto idealizado na noite anterior. E depois aceitar que nada sairia como programado… E ainda bem! Porque de todas as vezes que me perdi — e tenho de admitir que ainda foram algumas — foi para reencontrar-me com algo melhor. Ou de cada vez que sofri —com lágrimas à mistura —, foi para depois ser recompensada com um gesto maior, com uma paisagem que não cabia inteira no coração, ou um qualquer momento de especial singularidade. E assim, de repente, vem-me logo à cabeça aquela pequena praia fluvial no meio de um silêncio absolutamente verde, ou um pequeno caminho que me ensinaram para fazer sempre ao lado do rio quando saía de Torre de Moncorvo. Ainda aquela sensação indescritível quando deixei a costa atlântica e me adentrei pelo fabulário de Sintra, ou a vista para o Alqueva desde o belo castelo de Monsaraz. A simples descoberta de um café a abarrotar de arte e estilo contemporâneo com música chill out no profundo Alentejo foi uma bênção para o meu espírito. Já para não falar daquela deliciosa sesta que tirei ali para os lados de Moura, antes de encontrar uma estrada contra o sol do entardecer que me adoçou os sentidos.

Aliás, quando penso no seguimento de toda a minha viagem, reparo — ou, pelo menos, gosto de assim pensar — que esta foi feita de boas coincidências. Quando cheguei a Montemor-oVelho não fazia ideia de como chegar a Lamego e, de repente, estava sentada frente-a-frente com quem muito bem conhecia toda aquela região e me animou a seguir alguns desígnios. Ou no radioso domingo em que uma senhora professora de arte que conhecia Portugal de fio a pavio me ofereceu mil lições a explorar. E mesmo aquela jovem em Mesão Frio que depois de me ver aflita a segurar a mota e deixá-la cair lentamente em cima de mim, me deu um abraço retemperador e me indicou um caminho incrível por onde seguir viagem. No total foram 33 dias de viagem e 4336 km aos comandos de uma Royal Enfield Himalayan, tornando-me na primeira mulher a dar sozinha uma volta completa a Portugal continental. Mas foi longo o caminho para ali chegar... Uns tempos antes a minha vida tinha virado do avesso. Depois de deixar de conseguir seguir com a minha existência corriqueira, sem força até para as tarefas mais simples, foi-me diagnosticado fadiga crónica e fibromialgia — o que trocado em miúdos, significa que ando sempre cansada e a queixar-me que me dói em algum lugar. Teria então de reaprender a viver, alterar o que já não suportava, e retirar a melhor lição para continuar — mais fácil dizer que fazer. Mas foi nessa aprendizagem que voltei ao ponto de partida, onde me reencontrei com os meus sonhos e com o que sempre esteve lá — as motas. Conheci a Himalayan nesse entretanto, ao mesmo tempo que me enchia de vontade de me superar e mostrar a mim mesma que era capaz, deixando que a fortuna guiasse e me levasse a isto — à volta a Portugal em Royal Enfield.

Sem reservas

Saí do Porto com o depósito quase cheio e decidi averiguar até onde chegaria com aqueles litros de gasolina. A reserva chegou quando eu estava no meio da Serra Amarela do Parque Natural PenedaGerês. Eram sete da tarde, não havia casas, não havia carros nem passava ninguém, e por acaso também não existiam bombas de gasolina. E por momentos pensei que era ali que iria dormir. Na companhia dos cavalos selvagens…

Na segunda pedra à direita

Conhecia Vilar de Perdizes por causa da Feira do Oculto — ou das mezinhas e das bruxas, como diz o povo — mas nunca lá tinha estado. Era já meio-dia e parei para almoçar no


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.