Jornal completo junho 2014

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JUNHO DE 2014

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TRIBUNA DO DIREITO

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ANOS Nº 254

SÃO PAULO, JUNHO DE 2014

R$ 7,00

HIC ET NUNC

VIOLÊNCIA

Internet

Justiça em tempos de cólera PERCIVAL DE SOUZA, especial para o "Tribuna"

Percival de Souza

Perdão, garoto

ico imaginando a cena: um menino de 11 anos (!) vai sozinho ao fórum (!) pedir ajuda porque era desprezado pelo pai, um médico cirurgião, e perseguido pela madrasta, uma enfermeira. Queria amor, afeto, carinho, atenção. Não tinha nada disso, comprovadamente. Negligência afetiva, diz o jargão jurídico. Não possuía sequer a chave de casa. Ficava trancado para fora, esperando até altas horas, passando frio, que o pai voltasse. No fórum (Três Passos, RS), sentou-se no colo da promotora (!) e chorou: “Meu pai não tem tempo para mim.” O juiz folheou as páginas do Estatuto da Criança e do Adolescente e decidiu dar uma “segunda oportunidade” ao pai. Após, o corpo de Bernardo Uglione Boldrini foi encontrado num buraco previamente aberto. A madrasta confessou ter aplicado uma dose de injeção letal no menino. Uma amiga dela, assistente social, indicou o local da ocultação de cadáver. Enfurecida, a população quis destruir a casa do médico. A delegada do caso, Caroline Bamberg Machado, precisou suplicar para conter a multidão: “O meu coração está dolorido quanto o de vocês. Vocês precisam me ajudar. Preciso das provas que estão aí dentro.” O povo ficou em silêncio. Perdão pelo que nós, sociedade, fizemos com você. Perdão, garoto. Você gritou, nós preferimos não ouvir. Você chorou, mas em vez de dar-lhe uma chance, preferimos contemplar o pai. Confundimos artigos e parágrafos com alma e coração. Perdão.

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B

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ste é o mês da Copa do Mundo e faz um ano que aconteceram grandes manifestações de rua. Agora, não se pode prever exatamente o que vai acontecer, mas uma coisa já é palpável, bem visível: o aumento, que podemos considerar estranho e impressionante, de norte a sul, da escalada da violência: assassinatos, linchamentos, depredações, vandalismos, ônibus e carros queimados, intolerância, tudo com formatos de brutalidade, estupidez, selvageria e boçalidade. Por muitas vezes, alianças — conscientes ou não — com criminosos. Manipulações, instrumentalizações. partidarismos e ideologias. Mas há uma unanimidade: todos gritam “queremos Justiça!” diante do inconfor-

mismo e da dor que os vitima. Mas que Justiça seria esta? Uma com as próprias mãos e pés? A de um Poder? Cobra-se da Polícia? Dos promotores? Da inutilidade das prisões para a reinserção social? Culpa coletiva ou única? Vamos procurar, nessa reportagem, encontrar caminhos, examinando a sociedade como uma espécie de olhar pelo buraco da fechadura — ou seja, meio escondido. Vamos espiar juntos? Porque chega sempre um momento na História, como escreveu Albert Camus, em que quem se atreve a dizer que dois mais dois são quatro é condenado à morte. Ou seja: coragem para afirmar até mesmo coisas que podem ser consideradas elementares. Não se raciona a verdade. O diagnóstico acaba sendo multifacetado, na busca de culpados, mas

já está explícito o descrédito nas instituições. A partir do mês que vem, começarão as promessas de campanhas eleitorais, estéreis na maioria, para reverter essa preocupante situação. No estudo que contém o Mapa da Violência 2013, com informações sobre armas de fogo como instrumentos de assassinato, o sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz usa a expressão “Mortes Matadas”. Parece redundante, mas não é. Trata-se de uma citação do poeta João Cabral de Melo Neto em Morte e Vida Severina: E foi morrida essa morte/irmãos das almas/essa morte foi morrida ou foi matada? Até que não foi morrida/irmão das almas/esta foi morte matada/numa emboscada. Continua na página 19


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