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FILHO DE MUITOS PAIS (E M\u00C3ES); PATRIM\u00D4NIO DE TODOS N\u00D3S

• O SAMBA CELEBRA UM SÉCULO DA CONSAGRAÇÃO DE SUA PRIMEIRA GRAVAÇÃO, “PELO TELEFONE”, CRIAÇÃO TIDA COMO COLETIVA E REGISTRADA POR DONGA

• TRANSFORMADO EM SÍMBOLO DA NOSSA IDENTIDADE, REINVENTA-SE PARA SEGUIR REPRESENTANDO UM PAÍS QUE IGUALMENTE MUDA SEM PARAR

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Por Leonardo Lichote, do Rio

A certidão de nascimento do samba data de 27 de novembro de 1916. O batismo, porém, foi só em fevereiro de 1917, quando sua primeira gravação, “Pelo Telefone”, registrada meses antes na Biblioteca Nacional por Donga e Mauro Almeida, consagrou-se no carnaval. Se o samba inaugural tem duas datas fundacionais, sua criação é ainda mais plural: foi coletiva, como tantas outras surgidas nos encontros de Tia Ciata, baiana moradora da Cidade Nova que ocupa o lugar mítico de “mãe do samba”. Igualmente compartilhado é o sucesso das primeiras gravações, primeiro por Bahiano, depois pela Banda da Casa Édison. Esse nascimento “coral”, feito de tantas contribuições diferentes, diz muito sobre o caráter agregador, múltiplo, do gênero, antecipando o lugar que ele ocuparia no imaginário coletivo nacional tantas décadas depois.

A letra desse marco, como se sabe, satiriza com malandragem a vida do Rio de então (“O chefe da polícia pelo telefone mandou me avisar/ Que na Carioca tem uma roleta para se jogar”). Mais do que um tema constante, a então capital federal, a despeito da discussão sobre se o samba nasceu aqui ou lá na Bahia (ou mesmo se foi trazido da África), teve papel fundamental na gestação da cultura sambista. É o que explica o historiador Luiz Antonio Simas, autor, com Nei Lopes, do “Dicionário da História Social do Samba”.

“Você tem no Rio um raro momento de encontro, que se explica pela própria geografia da cidade, na qual, a rigor, é difícil se falar de periferia no início do século. O trânsito entre áreas abastadas e menos abastadas é muito frequente.

Primeiro você tem a entrada maciça de escravos, gente da lavoura cafeeira do Vale do Paraíba, com sua memória do jongo, dos cantos bantos. E, ao mesmo tempo em que é depositária de saberes africanos, a cidade tinha um projeto cosmopolita, de ser europeia, a Paris Tropical”, ele descreve. “De um encontro que, a princípio, é tenso entre uma cidade que é profundamente negra, que herda a cultura da África, e uma outra que se deseja o contrário disso, desse caldo muito contraditório é que surge o samba. Ele é resultado dos batuques negros com a música tonal europeia, mais o violão ibérico, o pandeiro árabe.”

E PROIBIDO SAMBAR

A tensão se mostrava na forma como o samba se desenvolvia na cidade. Ao mesmo tempo em que se afirmava como sucesso popular, enfrentava preconceitos nos salões nobres – baseado, seguramente, no racismo – e, até mesmo, perseguição policial.

A imagem do gênero perante o Estado só sofreu uma mudança significativa a partir do governo de Getúlio Vargas, que tinha a música (e, mais precisamente, o samba) entre suas estratégias de criação de uma unidade nacional. Vargas fortaleceu o batuque ao incluir seu uso como instrumento de propaganda de sua política trabalhista, via seu Departamento de Imprensa e Propaganda. O famoso caso da mudança da letra do samba “O Bonde São Januário”, composta por Wilson Batista e sucesso na voz de Ataulpho Alves, ambos fundadores da UBC, é tão simbólico quanto anedótico. Originalmente, ele dizia “Quem trabalha não tem razão/ Eu digo e não tenho medo de errar/ O bonde São Januário leva mais um sócio otário/ Sou eu que vou trabalhar”. Depois da “cooptação pelo regime”, virou: “Quem trabalha é quem tem razão/ Eu digo e não tenho medo de errar/ O bonde São Januário leva mais um operário/ Sou eu que vou trabalhar”. Da resignação irônica do malandro ao orgulho do trabalhador.

O Estado Novo, portanto, marca o processo de legitimação do samba como gênero da identidade nacional, a “síntese da alma do brasileiro”. Mas Simas contesta a teoria de que esse movimento tenha sido de mão única, do Estado na direção do samba. “Pensar isso é achar que o samba foi meramente manipulado. O mundo do samba é um elemento ativo desse processo. É um diálogo tenso, de afago e de porrada de parte a parte. Havia esse estado, que se apoiava sobre um discurso supercomplicado de mestiçagem cordial para legitimar o samba. Mas, do outro lado, o samba queria garantir sua legitimidade. O desejo do sambista sempre foi o de ascensão, o de conseguir uma viração que não seja tão pesada. Esse discurso de que o sambista tem que ficar ferrado no gueto é perigoso, além de equivocado. Wilson Baptista dizia que o pedreiro construía a casa e, depois, ela ia ser de outra pessoa: 'O que sei fazer é samba, então vou negociar o samba.' O próprio movimento de Donga de registrar 'Pelo Telefone' é o de perceber esse encontro da indústria fonográfica com aquilo que vinha das ruas.”

UMA CULTURA QUE PRECEDE O PROPRIO GENERO

Alfredo Del Penho, que samba entre os ofícios de pesquisador, instrumentista, cantor e compositor, acredita que o gênero conseguiu se firmar como marca de nossa identidade porque sempre conversou diretamente com os elementos que nos caracterizam. “As pessoas no Brasil já eram o samba antes de se dar esse nome. A ideia de uma música corporal, que se faz em roda, coletivamente... Isso representa práticas que semearam nossa sociedade. As características do samba, principalmente a ideia de endossar a coletividade, permitiram que ele fosse abraçado como sendo o Brasil.”

Caetano Veloso contou certa vez de um diálogo no qual citava algumas de suas cantoras de samba favoritas hoje. Ao ser questionado sobre a ausência de Mart’nália em sua lista, ele retrucou: “Mas ela não é uma cantora de samba, ela é o samba!”

Encarnação do gênero segundo o baiano, a filha de Martinho da Vila fala com intimidade da identificação dessa música tão nossa com o próprio Brasil: “O samba, para mim, é casa, vem de pai, mãe e bairro. É a alegria com que ele toma as pessoas, cada vez mais se misturando, com essa coisa de abrigar tudo”, diz, ecoando as palavras de Simas sobre a origem do gênero. “Daqui a 100 anos vai estar melhor ainda. Porque não tem mais o mistério do que se pode ou não fazer”, ela prevê. “O samba é de todo mundo, qualquer um faz um samba. Para a namorada, batucando na mesa, brincando... O preto e o branco. É como o Brasil. Isso não vai acabar, é parte da alegria. Mesmo quando é triste. Vim de um pai que canta sorrindo. Já me disseram 'você podia cantar blues'. Mas não tenho essa tristeza toda em mim. Então, canto samba.”

'CADENCIA, ALEGRIA E MALANDRAGEM'

A alegria – ou a “tristeza que balança” e “que tem sempre uma esperança de um dia não ser mais triste, não” – é apenas uma das faces do samba. Beth Carvalho chama a atenção para a importância do gênero como expressão de uma enorme massa de brasileiros que aprenderam a se manifestar por ele. “O samba não só combina com o Brasil, ele representa nossa resistência, a voz do morro, das minorias, das desigualdades, tudo cantado sem perder nossa coragem e nossa alegria. Sinto falta do samba revolucionário, que denuncia a favor do povo.”

Afilhado de Beth, que o lançou na gravação de “Camarão Que Dorme a Onda Leva”, Zeca Pagodinho lista as características de um bom samba: “Tem que ter uma boa melodia, uma boa mensagem. E, se não for samba-canção, uma boa batucada. O samba tem a cadência, a alegria e a boa malandragem do brasileiro. O povo se identifica com ele. Seja qual for a região, seja qual for a religião. E vai ser assim por muito tempo, porque, como diz Nelson Sargento, 'o samba agoniza, mas não morre'.

VIVO E CHEIO DE ENERGIA

O otimismo de Zeca é justificável, na visão de Alfredo Del Penho. Para ele, o samba está muito mais vivo do que pode parecer pelas paradas de sucesso, hoje dominadas por gêneros como o sertanejo universitário e o funk. “Tem muitos compositores fazendo samba bom. Artistas que chegam ao mercado, que se tornam realmente populares, como Zeca, Diogo Nogueira, Alcione, Arlindo Cruz, Beth Carvalho, representam apenas uma fatia pequena da produção do samba hoje. Inclusive em termos de instrumentação”, aponta Del Penho. “Quando você vê o trabalho de nomes como (o compositor paulista) Douglas Germano, você percebe que o samba dele não está na mesma gaveta que o de Diogo ou Zeca ou Arlindo. Soa contemporâneo, apesar de ser baseado em muitas tradições que são as mesmas fontes de Zeca. E é ousado, mas ao mesmo tempo tem potencial popular, pois um de seus sambas viralizou na voz de Elza Soares ('Maria da Vila Matilde', gravado no último disco da cantora).”

O samba segue sua história, portanto, entre a ousadia e a popularidade – tal qual no seu nascimento, há 100 anos. Desdobrando-se em gêneros, como vem fazendo desde sempre: samba-choro, samba-canção, samba-funk, sambarock, samba de roda, samba-enredo... Luiz Antonio Simas classifica alguns dos marcos fundamentais nessa trajetória:

“Em primeiro lugar, o samba baiano da casa das tias da Cidade Nova, por ter aberto essa perspectiva do encontro da rua com a indústria fonográfica. Depois, o samba do Estácio (da geração de Ismael Silva, Bide e Marçal, do fim dos anos 1920), que sedimentou a ideia de samba urbano. Num momento posterior, a bossa nova, que, apesar de alguns não aceitarem, é um marco na história do samba. Em seguida, o samba esquema novo de Jorge Ben Jor, um dos mais potentes renovadores do samba brasileiro, que soube refletir como ninguém esse diálogo entre tradição e modernidade. Por fim, a grande revolução caciqueana (a geração surgida no Cacique de Ramos no fim dos anos 1970 e início dos 1980), que abriu para tudo que veio depois, dando margem à mais absoluta diluição do pagode dos anos 1990 até o samba mais tributário aos clássicos, a chamada geração da Lapa (de nomes como Teresa Cristina e Pedro Miranda).”

Um gênero, como se vê, coletivo, variado, permissivo, criativo. Exatamente como gostamos de pensar que é a nossa cultura.

COMO BRILHAR NA SAPUCAÍ, A CATEDRAL DO SAMBA-ENREDO

Quando um refrão explode na Avenida Marquês de Sapucaí, num cantinho do Centro do Rio de Janeiro próximo à Praça Onze, a mítica “Pequena África” de Tia Ciata, traz consigo não só um século de história do samba, mas também longos meses entre a composição e a coroação nas quadras de cada escola. O processo é uma competição aberta, na qual conta muito o investimento em mobilizar torcidas – em outras palavras, em trazer ônibus de torcedores para apoiar seu samba. A qualidade, porém, é fundamental.

“O segredo é a união da parceria. Sozinho não se consegue ganhar nada no mundo do samba-enredo”, afirma Samir Trindade, um dos autores do tema vencedor da Portela em 2017, sétimo que leva à Avenida pelo Grupo Especial. “Vários encontros são feitos. Para esse da Portela de 2017, foram 10 encontros para compor.”

O formato se firmou na segunda metade dos anos 1940. Antes, o mais comum era as escolas improvisarem sobre refrãos ou cantarem sambas que faziam alusão ao enredo. Depois de muitas fases (da historiografia oficial aos enredos negros, da cadência melodiosa dos anos 1960 até os andamentos mais acelerados das últimas décadas), o gênero entrou num período de desgaste entre os 1990 e os 2000. Trindade, que chegou a comandar na Portela uma roda de samba só com sambasenredo, chama a atenção para a necessidade de buscar caminhos originais para sair da ideia de fórmula:

“Quando quiseram engessar, aquela coisa de dez versos, mais quatro de refrão do meio, mais dez versos e mais quatro de refrão de cabeça, ficou uma mesmice. Hoje tem sambaenredo com três refrãos, samba sem refrão, com refrão em tom maior, em tom menor. A melhor fórmula é não ter fórmula”, crê. “Ano passado, pusemos a águia da Portela como narradora do samba-enredo. Este ano, como o enredo era 'Foi um rio que passou em minha vida', tentamos captar o sentimento de Paulinho da Viola, imaginar o que ele sentiu quando viu a Portela na Avenida, para entender como é isso para o portelense, para entender o que a Portela é.”

Trindade e especialistas do gênero como o pesquisador Haroldo Costa ponderam que o samba-enredo atravessa um bom momento, de compositores atentos à tradição, mas que procuram inovar. A tecnologia também cumpre seu papel; afinal, a quantidade de informação com a qual a internet municia os compositores não era nem sonhada pelos mestres fundadores. Além disso, ela alterou a própria disputa de samba-enredo.

“Os sambas concorrentes são divulgados pela internet, o que impede que aconteçam injustiças como as que havia antigamente, quando só quem estava lá na hora sabia que um samba muito melhor havia sido eliminado. Hoje, graças à internet, vem gente de todo o Brasil abraçando o samba”, comemora Trindade, antes de fazer uma alerta: “A internet também é perigosa. Porque uma coisa é a gravação ouvida no fone, outra é a disputa na quadra. E é a quadra que tem que definir.”

OUÇA MAIS! Álbum com os sambas de enredo das escolas do Rio de Janeiro 2017. goo.gl/x5Gg69

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