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Dignidade da porta para fora

Equipe media o acesso de pessoas em situação de rua a direitos básicos

Quem trabalha para oportunizar um pouco de dignidade às pessoas em situação de rua dificilmente consegue entregar-lhes direitos básicos da porta para dentro. Profissionais que lidam com essa camada da população longe do Censo, já que a coleta de dados estatísticos é sobretudo domiciliar, têm que atuar da porta para fora, nos espaços públicos.

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Saber se aproximar, escutar de forma qualificada, construir vínculos, reduzir danos e mediar acessos à rede de proteção social faz parte do tipo de abordagem planejado para a rua. Desde 2016, é isso que as equipes do Centro Social de Educação e Cultura Farrapos, também chamado de Fundação Fé e Alegria, fazem para atender pessoas sem moradias.

Embora algumas equipes atuem nas frentes da Fundação, acompanhamos a de Camila, Abel, Daniel, Fernando e Maurício no dia 20 de maio. Naquele sábado pela manhã, de aparências e sensações outonais, duas repórteres e uma fotógrafa da disciplina de Projeto Experimental embarcaram na kombi branca do motorista Mauro com os cinco integrantes.

Diariamente, as equipes desse serviço de abordagem social, composta por psicólogos, educadores e assistentes sociais, atua cerca de 6 horas nas ruas. Porto Alegre até oferece serviços no Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP), ou no Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), mas ambos são insuficientes devido à grande demanda. Sem contar que funcionam da porta para dentro.

Percurso Marcado Na Mem Ria

Durante o percurso inicial, trafegamos por algumas ruas e avenidas da zona Norte da capital gaúcha, localizadas próximas à Fundação Fé e Alegria. Mas foi quando cruzamos a rua Santo Antônio, pela avenida Farrapos, que me veio à memória (dolorida) a situação daquela região. Em dezembro de 2021, escrevi uma matéria sobre a invisibilidade e as humilhações sofridas pelas mulheres garis.

Quando estive na seção da terceirizada Cootravipa, na Santo Antônio, para conversar com uma das minhas fontes principais, andei bastante a pé naquele entorno, mas também de carro. Passei pela Rodoviária e por baixo do Viaduto da Conceição, até chegar no largo Glênio Peres. Presenciei cenas de pessoas jogadas ao Deus-dará. Abandonas pela falta de cuidado e pelo esquecimento de um serviço público que ignora os preceitos constitucionais.

De dentro da kombi, eu (Bruna) e minhas duas colegas Júlia Azevedo (a fotógrafa) e Paola De Bettio Tôrres (também repórter) observamos a rua como ela não deveria ser. Diante de tantos detalhes e da quantidade imensa de perguntas que vinham à mente, foi difícil acelerar a escrita em um pequeno bloco de papel, para registrar todas as palavras necessárias ditas pela equipe de abordagem social da Fundação.

O que escrevi até aqui, assim como as palavras e frases que vêm na sequência, têm muito da caligrafia ligeira naquele sábado pela manhã, das minhas pesquisas e vivências pessoais. Inclusive, quando saímos da avenida Farrapos e entramos na rua Garibaldi, lá estava a fila de sempre, no número 461. Tem um Restaurante Popular no Centro de Porto Alegre. Antes mesmo das 10 horas da manhã, já se concentra um número elevado de pessoas para pegar a marmita perto do meio-dia. São servidos 400 almoços de segunda a sexta-feira no Restaurante Popular do Centro de Porto Alegre, e apenas 200 aos finais de semana. Conforme indica o site da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS), o requisito necessário para conseguir uma refeição diária é o Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico) - uma base de dados que serve para coletar informações de pessoas e famílias vulneráveis Brasil afora.

VÍNCULOS FRAGILIZADOS

Com pés descalços e mãos que seguravam um sanduíche recém-mordido e um copo plástico até a metade de café. Foi assim que conhecemos João Paulo, 22 anos, naquele sábado por volta das 10h e pouco da manhã. Logo que estacionamos perto da Rodoviária de Porto Alegre e saímos da kombi, o pessoal do serviço de abordagem social - que é como se chama essa equipe da Fundação Fé e Alegria - nos apre-

Ltima Abordagem

“Um dos maiores problemas da rua é o álcool”, enfatizou Fernando. Na última parada daquela manhã de duras realidades, enquanto Camila e Maurício abordavam o aposentado João, de 73 anos, foi encostado no suporte de uma placa entre a avenida Independência e a rua Sarmento Leite que Fernando narrou o passado do idoso. Minutos antes da nossa chegada, João dormia estirado no chão sob uma lata de lixo da Praça Dom Sebastião, bem em frente ao Colégio Marista Rosário.

sentou o menino João.

“Bom dia, João! Tudo bem? Tudo certo com a tua identidade que te entreguei semana passada?”, perguntou Daniel. “Meu documento está lá”, apontou João, “está lá com um taxista amigo meu”. Um pouco antes de encontrarmos João, Daniel comentou que é comum a equipe dele ter que auxiliar a mesma pessoa em situação de rua, de duas a três vezes ou mais, com a documentação de identificação pessoal. “Eles perdem”, contou.

Aproveitando a mediação de Daniel, pedi que João nos contasse sua história. Ele saiu de casa com 14 anos de idade, que foi quando seus vínculos familiares começaram a se fragilizar. No início da adolescência, passou a não suportar ver seu padrasto bater e violentar sua mãe. Desde o primeiro contato com a rua, João começou a usar pedras de crack. Diariamente, essa é a principal droga que ele consome há oito anos.

Por mais que o relato rápido do jovem tenha recordado uma prisão por tentativa de homicídio, ele também mencionou que pensa em pedir ajuda para sair daquela vida e ser internado. Enquanto a equipe se aproximava e tentava dar um pouco de dignidade ao jovem, João comentou a tristeza que sente quando as pessoas passam por ele e sequer dão um bom dia. “Eu só queria ter a oportunidade de estudar, frequentar uma faculdade e ter uma câmera que nem essa que tá aí pendurada no pescoço de vocês”, disse.

Do ponto onde paramos, conseguíamos enxergar a porta principal da instituição. Era o horário de saída de adolescentes uniformizados que provavelmente finalizavam mais um sábado de atividades escolares. Naquele momento, reparei a moda do chinelo slide com meia entre os passos apressados que se somavam colégio afora. Mas em João, percebi que apenas um de seus pés estava calçado. O sapato do outro pé ficava agarrado em seus braços, aparentemente para que se sentisse dormindo abraçado em alguém.

Diante dessas cenas, Fernando comentou que João tinha trabalhado muitos anos como motorista de caminhão. Também, o cientista social recordou o tiro que o idoso levou no olho. Anos antes, ele reagiu a um assalto e foi baleado quando ainda trabalhava como motorista de caminhão. Conforme Fernando, isso justificava o fato de o aposentado ter um buraco fundo no lado esquerdo da face e, obviamente, a visão monocular.

A equipe tratou João de forma individualizada, de acordo com as necessidades dele (de pessoa em situação de rua e na terceira idade). Por conta disso, o recomendado foi que observássemos Camila e Maurício de longe. O pessoal da abordagem sabe que conversar com pessoas de qualquer faixa etária e ajudar nos trâmites da documentação já fortalece a humanização de quem está sendo atendido.

Porém, perante um problema social emergente, o poder público precisaria embarcar no mesmo tipo de serviço, com profissionais preparados. O propósito deveria ser diminuir a “rualização” e proporcionar qualidade de vida para quem carece nem que seja de uma última abordagem rumo à vida digna de ser vivida. n

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