5 minute read

A dor da humanidade

Aneblina porto-alegrense ainda umidificava o ar no sábado, dia 20 de maio, quando o Padre Vicente levou um grupo de alunos para dentro da casa que compartilha - e que pertence à comunidade da Paróquia Santíssima Trindade para mostrar o carrinho de supermercado que uma pessoa em situação de rua havia pedido para guardar enquanto realizava um tratamento hospitalar. Aquilo, para ele, era significativo da confiança que as pessoas vulnerabilizadas sentem com a equipe do Fé e Alegria, ao lhe confiar a única coisa que ainda possui. “Vocês têm que se perguntar o porquê disso? Perguntar se dói. Se dói é humano. E essa é a dor da humanidade”, disse o Padre.

O Padre trabalha na Fundação Fé e Alegria, instituição jesuíta no bairro Farrapos, onde também funciona o Centro Social de Educação e Cultura Farrapos, que entre inúmeras atividades, presta Serviço Especializado de Assistência Social. A Fundação funciona junto à paróquia e é uma organização que auxilia pessoas em situação de vulnerabilidade, mas não tem teor “evangelizador” sobre essas pessoas. A região ali é conhecida como Vila Farrapos, parte mais pobre do bairro fica ali no entorno da Arena, junto de outras vilas também pobres.

Advertisement

O Centro Social de Educação e Cultura surgiu em 2010, depois da Fundação perceber a demanda na região. No entanto, em 2016 surgiu o Serviço de Abordagem Social, voltado para a convivência e fortalecimento de vínculos pela Ação de Rua. O trabalho com essas pessoas invisibilizadas foi ampliado, e hoje atende todas as mediações da área central de Porto Alegre.

Essa Ação conta com Assistentes Sociais, pessoas da área da saúde e Educadores Sociais. No sábado de neblina, parte da equipe de Ação de Rua realiza um percurso para averiguar a situação no Centro Histórico da capital. O trajeto começa pela Avenida Farrapos e pela Avenida Voluntários da Pátria, onde o grupo mostra uma das unidades do Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua, conhecido como Centro Pop, onde, entre algumas coisas, as pessoas que estão na rua podem tomar banho. Além disso, ali perto, entre os prédios históricos que estão se degradando, tem os quarteirões onde há a venda e o uso concentrado de crack. Perto, há o contraditório Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) de Rua, que se esperava que fosse a céu aberto, mas, segundo a equipe do Fé e Alegria, o serviço que deveria estar ocupando a rua está fechado em um prédio.

MAPEAMENTO

O Serviço Ação na Rua faz uma busca pelas pessoas em situação de vulnerabilidade extrema, trabalha com redução de danos, articulação para facilitar o acesso aos serviços públicos de saúde, assistência, inclusive por meio da solicitação de documentos. Muitos, se não a maior parte, já são conhecidos pelo grupo da Fundação. “A gente faz o papel de ler a constituição e ir atrás desse direito”, diz o Educador Social Fernando.

Depois de passar pela rodoviária, fomos fazer um trajeto descrito como “mais aventureiro”, mas antes, no caminho, nos deparamos com “H.” (ocultamos os nomes) em uma esquina do Centro Histórico. H. é um senhor de 79 anos que traz consigo inúmeros livros - da Bíblia, passando por enciclopédias até livros da área do direito. Além deles, uma porção de sacolas, latas, potes, enfim. Ele estava com um exemplar da bíblia, que estava entre as pernas abertas, e lia com os óculos pretos quase na ponta do nariz.

H. conversou com o grupo e parecia ter um vigor alto para quem está na velhice e vive na rua. O grupo não sabe precisar, mas acredita que ele tenha algum transtorno mental. Talvez esquizofrenia. Ele conta muitas histórias. Uma delas é do medo que tem das kombis, já que quando ainda morava em Ijuí, segundo ele, uma delas passava pela rua e sumia com as pessoas. Várias das outras estão relacionadas a uma figura política emblemática: o presidente Lula. H. diz que conheceu o presidente quando ele ainda tinha o mindinho e já foram para Saturno juntos. Parte da equipe se agacha para conversar com ele e ver se está tudo bem. Ele fala dos livros, alcança alguns e resolve ler em voz alta algumas partes da Bíblia. Ele diz estar bem e não aceita mais muita ajuda.

H. é um exemplo de que nem todos que estão na rua são pessoas vinculadas às drogas. Muitos casos estão relacionados aos problemas familiares, como o abandono ou violência, à pobreza extrema, e em muitos casos à transtornos psiquiátricos e mentais.

Esconderijo

O próximo destino era o ponto “aventureiro”. Ali, há cerca de dois anos, vive T. A equipe disse que tem tido con- tato há algum tempo com ele, e que o próprio T. explicou o caminho mais fácil de chegar até ali. Em sua “casa”, T. usou alguns pedaços de madeiras para erguer o colchão do chão. Assim, ele fica protegido da chuva que cai e da água que escorre da descida. Ele também usou outros pedaços de madeira para criar uma espécie de caixa ao redor do colchão, assim sendo este o seu “quarto”. Ao lado, há uma poltrona de modelo antigo, com tecido rasgado e sujo, um vaso sanitário cheio de objetos, itens e caixas empilhadas e uma mesa de plástico com panela e algumas comidas - velhas- por cima.

Resto de ketchup, molho de tomate e pimenta, entre outros, foram usados para criar uma mistura na panela, que parecia estar exposta a alguns dias, contaminando-se com a fuligem que os automóveis levantam, a poeira e os próprios microrganismos do ar.

De todas as pessoas que tínhamos tido contato até então, esse parecia o mais consciente da situação e o que melhor conseguiu se organizar. A equipe da Fundação explica que os casos de internação compulsória só acontecem quando o indivíduo pode morrer ou seu estado representa risco para outros. Além disso, o nível de consciência da situação é uma “régua” importante.

T. começa a contar sua história. Diz que era casado e tem filhos, mas que a vida já era difícil, então ele bebia para amenizar o sofrimento. A situação gerava muitos desentendimentos familiares, e a esposa achou melhor a separação. Ele afirma já ter bebido, fumado maconha, cheirando cocaína até parar no crack. Sem dinheiro, foi parar nas ruas. Acabou conhecendo “a pedra” e diz saber que é o maior problema da vida dele. Já faz 20 anos que Vorlei está nessa situação.

Ele conta que a equipe do Fé e Alegria está ajudando-o a conseguir nova documentação e, assim, espera conseguir receber Bolsa Família. Ele tem esperança de conseguir alugar um quarto de pensão ou algo do gênero. Ele é catador e diz que tenta uns bicos. Antes do crack, ele era pintor. Acabou sendo preso por furto e roubo. Para ele, hoje é impossível conseguir um emprego formal depois da passagem pelo presídio. Os filhos o procuraram, mas ele diz que não consegue receber ajuda para largar o vício, e espera manter o distanciamento para poupá-los. T. tem 55 anos e é natural de São Gabriel. Junto do “acampamento” de T., sentado na poltrona, estava F. Os dois se dizem amigos e ele conta vir visitá-lo com frequência. F. também está em situação de rua. Pergunto onde ele fica, e ele responde: “Na Borges”, explicando ficar embaixo do famoso Viaduto da Borges de Medeiros. F. é mais quieto e retraído, mas não parecia desconfiado de nada. A equipe do Fé e Alegria conversou com ambos, ofereceram cobertores novos, comentaram dos serviços e explicaram como está o processo da documentação de F. O sábado segue. Subimos o viaduto de volta, atravessamos entre carros que passam voando, mas dessa vez a volta foi mais fácil. No entanto, não foi fácil digerir o soco do estômago que é ver pessoas em situações desumanizadoras, que estão perdendo toda a dignidade de vida, enquanto os carros seguem, os trabalhos não param, os políticos seguem suas campanhas de “recuperação” da cidade. A injusta distribuição de renda e falta de políticas públicas que de fato alcancem as pessoas seguem alimentando um buraco negro social. n

This article is from: