A Vila Tio Zeca resiste
Com as obras da nova ponte do Guaíba, moradores esperam pela realocação enquanto enfrentam problemas sanitários
Os planos para aquele sá bado, oito de outubro, já estavam traçados: conhecer uma das comuni dades impactadas pela nova ponte do Guaíba. Na sede da Fundação Fé e Alegria, na Vila Farrapos, encontramos Luis Antonio Farias, o Toco, que há seis anos é presidente da Associação de Moradores da Vila Tio Zeca (AMVTZ).
Após trabalhar durante à noite, Toco reservou sua manhã para nos apresentar a Vila Tio Zeca, onde nosso
grupo de quatro repórteres e duas fotógrafas iriam con versar com moradores para tentar relatar como é morar numa região e no entorno das obras de construção de uma nova ponte. Divididos em dois carros, viramos algumas esquinas até chegarmos na Rua Frederico Mentz.
A primeira parada na co munidade foi para observar algo que se tornaria rotina durante nossa visita. Todas as casas têm números nas pare des - são os cadastros do DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transpor tes). Em frente a casa TZA 224, Toco nos explica que os moradores receberam rótulos da prefeitura, com a promes sa de realocação das famílias
devido a construção da ponte. O cadastro foi realizado em 2014 e, até agora, segue sem previsão de finalização.
Os moradores esperam por isso há tanto tempo, que, hoje, já existem dois tipos de rótulos na vila: os primeiros - Tio Zeca-Areia (TZA) - e os DPU (Defensoria Pública). O último representa as famílias cujos filhos, que eram crian ças na época dos primeiros cadastros, cresceram, forma ram outras famílias e conti nuam morando na Vila Tio Zeca. Dessa forma, é papel da Defensoria Pública verificar se há, realmente, relação fa miliar entre aquelas pessoas e iniciar outro processo para que estas também tenham direito a realocação.
A VILA ACORDA
Percorremos três becos e diversas vielas estreitas, que em determinados trechos não passavam mais de uma pessoa - entre a rua Frederico Mentz e a Voluntários da Pá tria -, que constituem a Vila Tio Zeca. Quando entramos, a Vila estava começando a acordar. Toco conhecia todos os poucos moradores que já estavam na rua e os cumpri mentava, explicando o moti vo da nossa presença. O chão era uma mistura de terra, ma deira e pedra - usadas como ponte, para escapar dos bu racos e do esgoto que passava sob os nossos pés e, também, dos moradores que por ali tinham que circular. Andáva mos em fileira, desviando de
algumas sacolas de lixo - pen duradas nas portas e janelas das casas - e na companhia dos cachorros e gatos que co nhecem aqueles cantos me lhores que qualquer um.
De tempos em tempos, parávamos para ouvir o presidente da associação de moradores contextualizar a situação do local em que estávamos. “O número do cadastro iludiu muita gen te”, explica Toco. As famí lias estão há oito anos com a esperança de saírem dali e, por isso, vivem na insegu rança. Ainda assim, alguns moradores reformam suas casas, deixando paredes an tigas com o número do ca dastro à mostra, carregando a esperança de um futuro
sem tantas incertezas.
Entrando cada vez mais na comunidade, encontramos Rogério Rodrigues, que já nos recebe com uma pergunta: “Toco, cadê o lixeiro?”. O ser viço de coleta de lixo da pre feitura deveria entrar na Vila Tio Zeca para recolher o lixo dos moradores. Porém, não é o que acon tece. Assim, os moradores precisam levar o lixo até uma área presen te na rua Fre derico Mentz.
Rogério mora há 20 anos na vila e lem bra do tempo em que a pon te não existia. “Era bom, não trancava esgo to. Ficou enlea do. Quando chove, isso aqui é um terror, tem que levar as crianças para a escola no colo”, conta. No sábado em que conhecemos a Tio Zeca, fazia sol. Era um dia boni to. Porém, a vila enfrentava problemas e Rogério sabia disso. O morador terminou nosso encontro assim como iniciou, só que ao invés de uma pergunta, fez um pedi do: “Toco, leva elas lá.”
passagem. Em dias de chuva, a situação é pior: o esgoto entra nas casas dos mora dores - que levantam o piso para tentar solucionar o pro blema como podem.
“A inauguração foi a coisa mais linda, porque é para lá, é o que convém. Mas para cá não fazem, porque não tem ganho”
Janaina da Silveira MoradoraPara transitar no beco, madeiras e pedras servem como passagem, mas é quase impossível evitar a água, por que os materiais que os morado res usam para a sua ponte - di ferente da obra do Guaíba - já estão mergu lhados no barro e no esgoto. Ali, chegava ao fim a nossa visita à Vila Tio Zeca. Voltando para a rua principal, passamos por um dos becos mais estreitos até o momento, e era possível ouvir, vindo de alguma das casas ao redor, uma variedade de músicas no volume alto da programação de alguma rádio. Há alegria na vila, mes mo diante dos problemas e das falsas promessas.
A VILA LUTA
ainda com a xícara de café nas mãos, contando o mais recente descaso com a vila: os pneus que despencam dos caminhões que utilizam uma das alças prontas da Nova Ponte do Guaíba. Ao fazer a curva, os pneus se soltam dos veículos e caem muito próximos das casas.
Janaina fica parada em frente as casas diante da ponte e conta sobre como acorda e vai dormir todos os dias pensando em sair dali. “A inauguração (da ponte) foi a coisa mais linda, porque é para lá, é o que convém. Mas para cá não fazem, por que não tem ganho”, expli ca. Ela conta que observa a situação dos seus vizinhos e luta pelos moradores que não têm as mesmas condi ções que ela. Jana olha para cima e chama por um ca minhão, como se tivesse a necessidade de nos provar que o que falou era verda de, mas nenhum aparece. “Isso aqui vai longe.”
“Lá” era o terceiro e últi mo beco da Tio Zeca. Quanto mais andávamos, mais a terra ficava fofa. Era esgoto. Os canos, naquela região, não tinham mais para onde le var a sujeira e inundavam a
Do outro lado da Tio Zeca, próximo a Voluntários da Pá tria, encontramos Janaina da Silveira, próxima as alças incompletas da ponte. Jana, como é conhecida, mora na região desde 2013. Ela é a representante da vila nas reuniões com o governo. A líder comunitária sai da casa,
Chegando na Unisinos Porto Alegre, as instruções eram simples: “quem está com os pés molhados, vol ta para casa agora.” Não era apenas uma questão de hi giene, era pela segurança dos estudantes. Na Vila Tio Zeca, embora preocupados com as questões de saúde pública e saneamento básico, eles não têm esta opção. n
Quando estávamos lá, Janaina apontava para a ponte, para mostrar como os caminhões passam perto. Semanas depois, uma carga cai sobre a comunidade, atingindo um carro
A insegurança de não ter uma casa
Desde 2014, moradores da Vila Tio Zeca esperam uma decisão do poder público sobre suas próprias moradias
Casa é sinônimo de mora dia, habitação e residên cia. Também pode signi ficar um conjunto de pessoas que habitam o mesmo lugar ou reunião dos indivíduos que compõem uma família. Po pularmente, podemos dizer, ainda, que casa é sinônimo de porto-seguro. É ter para onde voltar, onde recarregar as energias e estar com quem se ama. Mas todas essas defi nições são quase utópicas para quem vive na insegurança, sem saber por quanto tem po terá a sua casa, se vai ter outra ou simplesmente per derá o pouco que tem.
Esse é o dilema dos mora dores da Vila Tio Zeca, uma das vilas do Bairro Farrapos,
em Porto Alegre: a insegu rança de não poder decidir sobre o que fazer com sua casa. Formado por três be cos, o local abriga centenas de famílias que estão sendo impactadas pela construção da nova ponte do Guaíba, que liga a capital a outras regiões do Estado. Em 2014, quando a obra começou, as residências das áreas afetadas pela cons trução da ponte chegaram a receber números, relativos ao cadastros no Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT).
Essa numeração perma nece nas portas e paredes até hoje, como se fosse um símbolo de esperança de que algo acontecerá. “Vieram até às nossas casas para nos ca dastrar, informando que sairia uma ponte aqui e nós seríamos realocados para outro lugar. Após várias reuniões, chega ram à conclusão de que a com
pra assistida seria uma solução mais rápida, já que eles tinham uma certa urgência”, afirma Doly Lima de Freitas, de 64 anos, vice-presidente da As sociação que representa as fa mílias que moram na Tio Zeca. Através da compra assistida, os moradores teriam direito a escolher uma casa já pronta, dentro de um determinado valor disponibilizado pela pre feitura, em algum outro lugar da cidade. “Eles mandaram até nós procurarmos por casas. Eu escolhi uma casa para mim. Só que, desde então, estamos do mesmo jeito ou pior do que quando tudo isso come çou”, complementa.
Nascido no município de Rio Pardo/RS, Doly veio para Porto Alegre no ano de 1985, com destino certo: a Vila Farrapos. Atualmente, ele é aposentado e dedica os seus dias para ajudar a comuni dade onde vive. “A maioria
da vila reclama muito. Eu ainda moro em uma parte mais ou menos. Mas, para quem mora mais no fundo, eu acredito que a situação seja desumana”, conta.
O DIREITO À MORADIA
Enquanto caminhávamos pelas áreas mais carentes da Vila Tio Zeca, onde não há saneamento básico e nem rede de energia elétrica regu lamentada, Doly falava sobre o descaso do poder público com a região. “Para alguém da prefeitura vir aqui às ve zes, para arrumar o esgoto ou qualquer outra coisa, é uma briga. O lixo é só na base da pressão para recolherem di reito”, relata. “Esse problema da urbanização e dos esgotos tem solução, se eles quiserem. Tem que ver o dia que chove aqui, ficamos com o coração na mão porque todo mundo anda dentro da água. Eles só
aparecem em época de elei ção, aí todo mundo quer voto, depois que se elegem a gente fica aqui, desassistidos”, de sabafa o representante.
Para os moradores da co munidade, a questão da mora dia é um direito fundamental. “O que todo mundo reivindica é uma moradia decente, é o que todos acham que têm di reito, eu também acho que todo mundo tem esse direito. Querendo ou não, nós con tribuímos todos os dias com impostos, na compra de ali mentos e tudo mais. Então, por que nós não podemos ter uma casa, se cumprimos com as nossas obrigações?”, questio na. Na legislação brasileira, a moradia foi reconhecida como um direito de todas as pessoas apenas no ano de 2000, a par tir da Emenda Constitucional nº 26. Com isso, atualmente, o artigo 6° da Constituição Federal assegura que: “São
direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o tra balho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência so cial, a proteção à maternida de e à infância, a assistência aos desamparados”.
Doly explica que, na Vila Tio Zeca, ninguém quer nada demais, apenas o básico para viver e ter dig nidade: “A gente não quer favo res. A gente quer que as pessoas tenham uma condição um pouco melhor. O lugar é difícil, é ruim, mas se for possível, melhorar é sempre bom”, analisa. “Sabemos que cada um tem que lutar pela sua vida, se quiser algo, tem que correr atrás. Mas eu, minha esposa e meus filhos lutamos a vida toda e cada vez piora mais”, conta. Antes de se apo sentar, ele trabalhou em diver sas funções, sendo a última delas, como porteiro.
UM FUTURO DE INCERTEZAS
A construção da nova pon te do Guaíba começou do outro lado da cidade, na localidade da Ilha Grande dos Marinhei ros. No início das obras, os moradores da região foram realocados, já que esta era a primeira etapa do projeto. Essa movimentação trouxe esperança para a Vila Tio Zeca. “Lá, as pessoas conseguiram comprar suas casas. Acredito que quem está lá agora [vi vendo nas margens da pon te], são os que voltaram para poder trabalhar com recicla gem. Já, aqui, ficou só na pro messa”, explica Doly.
Agora, para terminar a construção das quatro alças
faltantes da ponte, a prefeitu ra anunciou que será contra tada uma nova concessioná ria. Entretanto, os moradores da Vila Tio Zeca e de outras comunidades próximas, que também serão afetadas, con tinuam sem saber o que acon tecerá com as suas moradias.
“Enquanto não entrar a nova concessionária, não teremos previsão nenhu ma de quando o resto da ponte vai sair. Então, a única solu ção é esperar para ver qual é a proposta que essa construtora vai fazer para nós, porque a propos ta do DNIT não funcionou”, conta o representante.
Em meio ao barulho dos carros e caminhões, falta de segurança devido a ponte inacabada e inúmeros des casos, aos moradores da vila só resta a indignação. “O pessoal sempre questiona e coloca as suas demandas.
É um que a luz não chega em casa, o outro reclama que a água está muito fra ca. Tem gente que vive em meio ao esgoto a céu aberto. Isso sem falar da carência de alimentação”, relata Doly. As obras da nova ponte estão paradas e os moradores, sem saber o que lhes reserva o futuro. “Eu sou um que não arrumei nada na minha casa durante todos esses anos. Afinal de contas, quem é que está dormindo em cima do dinheiro
para investir em uma área que não tem fu turo?”, finaliza. n
“Para quem mora mais no fundo, acredito que a situação seja desumana”
Doly Lima de Freitas AposentadoMARIA PAULA FERNANDES
NICOLY REISMARIA PAULA FERNANDES MARIA PAULA FERNANDES MARIA PAULA FERNANDES
Paisagem de contrastes:
Para acessarmos Porto Alegre pela Rodo via do Parque ou pela BR-290, nos depa ramos com uma paisagem que escancara um forte contraste de construções, realidades e investimentos. No primeiro plano, desde o ano de 2012, é possível ver uma enorme arena multiuso com todas as facilidades que um grande empreendimento possui; ao lado, um condomínio privado com quatro torres resi denciais, e por trás disso, uma região que care ce de investimentos e cuidados públicos.
A atual situação da região do Bairro Far rapos não se mostra fácil, com inúmeros impasses entre a instituição Grêmio Foot -Ball Porto Alegrense e a OAS, construtora dos empreendimentos Arena do Grêmio e Condomínio Bella Vista. Essa mesma empreiteira, que após recuperação judicial em 2015 e envolvimento em escândalos de corrupção, passou a se chamar Metha.
As obras do entorno foram autoriza
das pela prefeitura de Porto Alegre em 2009, desde então, o chamado “Proje to Arena” praticamente não saiu do pa pel, projeto esse que visava a infra es trutura da região através da OAS.
Com essa situação, quem realmente acaba sofrendo é a população que reside no Bairro Farrapos. Sem ter nenhum aporte por parte das três vias que debatem quem fará o que, o bairro fica em último plano e é escanteado, enfrentando problemas que são visíveis ao caminhar pela região ou para quem passa pelas rodovias de acesso a cidade, como, por exemplo, esgoto a céu aberto, acúmulo de lixo, falta de segurança e demais consequências de um projeto que parece não levar em consideração as vidas afetadas pela má gestão do poder público que deveria gestar essa situação. n
Reféns da falta de higiene sanitária
Poderia ser um esgota mento físico, mental ou emocional, mas os mora dores da Vila Tio Zeca também vivem sem infraestrutura e à mercê de um sistema de esgo tamento sanitário instável e ausente. Localizada no bairro Farrapos, próxima às obras inacabadas da nova Ponte do Guaíba e vizinha da Arena do Grêmio, na Zona Norte de Porto Alegre, a Vila tem fezes, insetos, lixos e resíduos sanitá rios a céu aberto, que deveriam ser destinados adequadamen te pela prefeitura municipal. Quando os moradores saem de suas casas e circulam entre os corredores estreitos, pisar em uma poça de esgoto e se deparar com a falta de higiene é uma coisa cotidiana.
“O meu banheiro não dá
para usar. Só consigo tomar banho. No vaso, a água não desce. Então, quando preci so fazer outras necessidades, tenho que usar a privada da casa da minha guria”, relatou Santa Lopes, uma aposentada de 65 anos, que mora há mais de quatro décadas na Vila Tio Zeca. Em um sábado pela ma nhã, Preta, como Santa é co nhecida, não somente mostrou as fezes paradas há dias no seu vaso sanitário, como relatou que ela mesma passa tentando desentupir os esgotos da rua.
“Como sou uma das pessoas que limpa as caixas, já fui parar duas vezes no hospital. Mesmo que não tenha sido nada grave, peguei uma infecção urinária por precisar meter as mãos e os pés naquilo”, conta.
Já que o Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) não atende as chama das constantes de desobstru ção da rede de esgoto na área
da Tio Zeca, o funcionário pú blico Luis Antonio dos Santos Farias, 50 anos, confirma que as mulheres da Vila se unem e tentam executar o serviço. “As gurias daqui, são elas que limpam as caixas de esgoto quando percebem que o ba nheiro delas não dá mais para usar”, narra Farias, ao reforçar que o desleixo de certas comu nidades não é culpa dos mora dores, mas do poder público. Embora a situação do esgota mento sanitário fosse ainda pior quando o funcionário era mais jovem, ele lamenta nunca ter havido saneamento básico digno para as famílias.
Celebrado anualmente no dia 19 de novembro, o Dia Mundial do Banheiro foi es tabelecido para dar visibili dade às condições sanitárias precárias ao redor do mundo. Mas, segundo uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Geo grafia e Estatística (IBGE), de
2019, quase 6 milhões de bra sileiros não têm acesso a um banheiro exclusivo nas suas próprias casas. Somente na região Sul, o Instituto Trata Brasil e o Painel Saneamen to Brasil estimam que 25 mil moradias sequer têm acesso a banheiros. E esse dado é ain da mais alarmante quando se trata da parcela da população sem coleta de esgoto. Também na região Sul, o Painel indica que 52,6% das pessoas convi vem sem coleta e tratamento das tubulações de esgoto. Ou seja, sem a execução de um serviço que evita a proliferação de doenças e a poluição.
ESGOTO E OBRAS PARADOS
A poucos metros da mo radia de Santa Lopes, vive Rogério Nunes Rodrigues, de 63 anos, e sua esposa Al vina Ribeiro de Queiros, de 59. Assim como na casa de
Santa, que já perdeu muitos móveis e o seu piso apodre ceu, as paredes molhadas são igualmente visíveis dentro da residência do casal. “O nosso banheiro até que está bom, mas em dias de chuva, começa a sair água e esgoto pelo ralo do chuveiro”, menciona Rogé rio. Na oportunidade, Alvina disse ser comum tanto escor rer umidade e ter muito mofo nas paredes, quanto a água da chuva, misturada com o esgoto da rua, entrar na casa e ficar na altura das canelas.
“Há anos, começaram a fazer aquela nova ponte do Guaíba, que dificultou muita coisa. Nossa casa rachou toda, mas não podemos arrumar nada”, comenta Rodrigues. Enquanto isso, as famílias que vivem sob a promessa de serem reassentadas e realocadas, há quase uma década, convivem com obras paradas, lindeiras a uma rodovia completamente
inacabada, e com a incerteza sobre o reassentamento. Além disso, os moradores da Vila Tio Zeca têm que colocar a mão no esgoto e realizar um serviço que deveria ser do po der público, para não ficarem totalmente reféns da falta de higiene sanitária.
Atrás da Vila Tio Zeca, co lada à nova Ponte do Guaíba, estão a Vila Areia e Cobal. Jun tas, as comunidades somam mais de 450 familiares que vi vem na região que integra o 4º Dis trito. Enquanto a Vila Tio Zeca é contornada pelas avenidas Frederi co Mentz e Volun tários da Pátria, as famílias da Vila Areia e Cobal fi cam às margens da rodovia BR116/290 e do vai e vem incessante de veículos de to dos os modelos, tamanhos e di mensões. A fonte do problema do esgoto, que causa o descuido sanitário de boa parte das mo radias, tem a ver com a cons trução da ponte. De acordo com Janaína Gonçalves da Silveira, liderança na vila, as pessoas não têm muito o que fazer, porque, antes de tudo, a ação mais importante seria o comprometimento da exe cução de serviços responsá veis pelo poder público.
das inúmeras casas sujeitas aos constantes alagamentos na Areia, ela se mostra per sistente e esperançosa com uma mudança digna de vida, no mesmo local. Na opinião de Janaína, os moradores vi vem na altura do esgoto e uma das possíveis melhorias seria deixar a Vila mais alta para que o esgoto pudesse sim plesmente passar sem fazer tanto estrago e sujeira.
Luis Antonio dos Santos Farias Funcionário público
“O maior cano que tem na comunidade enche com frequência. Às vezes, a gente tenta erguer o cano, mas ele é muito pesado. Já pedimos para a prefeitura limpar, porque é um horror. Tem gente que vive sem água e sem banheiro em casa”, queixa-se Janaína. Por mais que a líder seja uma das moradoras que habita uma
Em agosto de 2011, o Es tudo de Impacto Ambiental (EPI) do projeto da nova Ponte do Guaíba, sob responsabili dade do Departa mento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), foi entre gue à Fundação Estadual de Pro teção Ambiental (Fepam). Esse estudo destaca va a melhoria da qualidade de vida, a realocação das famílias, um lo cal com infraestrutura básica, abastecimento de água e es gotamento sanitário. Desde 2014, porém, quando a obra iniciou, até 2022, ano em que a construção sequer foi con cluída, quase 10 anos já se passaram. Cabe lembrar, con tudo, que a ineficácia pública não atinge exclusivamente as Vilas Tio Zeca e Areia, mas também as comunidades Ilha Grande dos Marinheiros e Ilha das Flores, além de atravessar uma Unidade de Conservação Ambiental e o Parque Esta dual Delta do Jacuí. Juntas, todas as comunidades somam mais de mil famílias.
nNICOLY REIS
“As gurias daqui, são elas que limpam as caixas de esgoto quando percebem que o banheiro delas não dá mais para usar”MARIA PAULA FERNANDES MARIA PAULA FERNANDES NICOLY REIS NICOLY REIS Santa Lopes, moradora há mais de 40 anos da Vila, relatou a dificuldade da falta de saneamento
Mães solo em diferentes tempos
Amaternidade solo, ou seja, mães que criam seus filhos sozinhas sem o apoio de um compa nheiro ou companheira, é uma realidade dura que faz parte da vida de uma grande parcela das mulheres em nosso país. No Brasil, o número de mães solo é o maior observado nos últimos cinco anos, de acordo com os cartórios de registro civil, levando em conta os quatro primeiros meses de 2022. No entanto, o número de mulheres que assumem seus filhos sozinhas é ainda maior, já que muitos pais registram o nome nas certidões de nas cimento, mas não assumem as responsabilidades que se seguem e “somem no mapa”. Alguns, para sempre.
O termo “mãe solo” tem ganhado força para substi tuir “mãe solteira”, já que ser mãe não é um estado civil. Mãe solo é aquela que assu me sozinha todas as respon sabilidades pela criação de um filho, tanto financeiras quanto afetivas. E, em um país como o Brasil, essa mis são não é fácil, por causa de fatores como a desigualdade social e o machismo.
Embora o número de mães que assumem todas as fun ções sozinhas tenha aumen tado expressivamente nos últimos anos, essa realidade não é de hoje. As histórias que as mulheres relatam são de superação e de garra, mas a sociedade cobra delas o cuidado das crianças. Muitas são acolhidas pelas comuni dades onde moram, criam redes de suporte com outras mulheres, se apoiam umas às outras, revezando-se na dura
tarefa de cuidar e susten tar a casa e os filhos.
É sábado de manhã, dia oito de outubro, e Jéssica Rolim da Silva conversava com Camila no portão da sua casa, na Vila Tio Zeca. Jéssica tem 26 anos, traba lha em um restaurante da redondeza e é mãe solo. Per guntada sobre sua rotina, ela diz: “Bah”, como um suspi ro, e, depois de uma pausa, responde: “É complicada. Eu nem paro em casa, só de noite”. De repente, surge o João, seu filho de quatro anos, que estava inquieto para ir tomar as gotinhas contra a poliomielite. A Jés sica mostra em pouco tempo sua casa: uma sala, quarto, banheiro e cozinha. “Pra mim, que é só eu e meu fi lho, está ótimo”, disse.
Sua rotina é corrida: sai às seis horas da manhã para ir até a casa da mãe, um pou
co antes do serviço, e larga o João lá, porque às sete horas tem que estar no trabalho. O irmão da Jéssica, de ape nas 12 anos, leva o sobrinho para a creche, onde fica o dia todo. “Só que ele tem que estar às sete horas na creche, e às sete eu já tenho que estar no serviço”. Apesar de a realidade da Vila ser difícil, principalmente por causa da questão do sanea mento e do estado das ruas e moradias, ela afirma: “Eu gosto de morar aqui, eu me criei aqui, todo mundo se conhece e todo mundo res peita todo mundo”. Esse fato é comprovado facilmente, pois, apesar de os morado res ainda estarem acordando quando começamos as entre vistas, fomos acolhidos com cumprimentos de “bom dia!”, oferecimento de chimarrão e convites para conhecer as casas. Todo mundo se conhe
ce, se cumprimenta, conhe ce a rotina de todo mundo. Isso faz Jéssica se sentir afastada do perigo.
Quando perguntada sobre o pai do João, ela conta que apesar de ter registrado o filho, ele não paga pensão e, agora, o caso vai para a Justiça. “Conheci ele numa festa, aí fiquei com ele, en gravidei, ele foi pra casa dele e eu fui pra minha”, resume uma história que muitas mu lheres vivenciam. A Jéssica conta sua história facilmen te, talvez porque seu relato já está incorporado na rotina da vida, uma história que se tor na coletiva ao ser a mesma de muitas outras mulheres. São histórias semelhantes, com detalhes diferentes, mas com homens que rejeitam ou não cuidam dos filhos, deixando para as mães, que não têm outra opção, senão a de as sumir toda a responsabilida
de. E ainda há na sociedade quem se acha no direito de “julgar” as mulheres que são mães solo — como se todas tivessem escolha ou não ti vessem os mesmos direitos que os homens —, essas mães são motivo de orgulho por continuarem em frente, por elas e por seus filhos.
O filho da Jéssica queria pôr o tênis e ficar arruma do, pois tinham explicado para ele que ele tinha um compromisso importante: tomar a vacina. João queria estar arrumado para sair, mas essa vaidade não se re petiu na hora de tirar fotos. Nas vezes em que o nome “pai” aparecia na conversa, João parecia ficar apreensivo. Jéssica conta que ele chama o dindo de pai. “Apesar de tentar explicar a situação, João quer chamar o dindo de pai”, conta Jéssica. Nessa fa mília, o gesto de uma crian ça acaba por desconstruir o
que seria a ausência da pa ternidade, transformando o afeto no que se convencio nou chamar de “pai”.
É PRECISO BRINCAR PARA VIVERCaminhando mais alguns passos, foi possível encon trar a dona Maria Rodrigues, de 81 anos. Pergunto a ela quantos filhos ela tem. Ela para e conta nos dedos, en quanto ri: “Tenho seis, mas mora só um comigo”. Maria nunca casou. Teve o primeiro filho quando tinha cerca de 18 anos. Aos vinte e pou cos foi morar nas mediações da Vila Farrapos. “Foi difí cil, mas criei eles, sozinha. No meu tempo, não tinha essa coisa de pensão, não tinha nada. A gente apanha va pra viver”, conta.
Maria mora há cerca de 10 anos naquela casa, que comprou vendendo pequenos pedacinhos de terra e com os
salários que eventualmente recebia. Devido à construção da nova ponte do Guaiba, teve esperança de mudar de novo. "Nós estávamos com esperança de já ter ido mo rar, por causa dessa coisa da ponte. O DNIT tá noite e dia aqui: ‘já vamos, já vamos’. E não dá em nada”, recla ma. Para ela, é péssimo não poder consertar a casa por cau sa da incerteza da saída: “tem que estar ta pando uma go teira aqui um buraco ali”, diz.
O sustento da família veio das roupas que Maria lavava para fora e do valor de pequenos aluguéis. “Alugava pecinha também, a gente alugava, comprava uma barraquinha e conse guia alugar uma casinha. E vivia.” Depois, contou
com a ajuda dos filhos aos poucos — um vendia amen doim, outro era engraxa te, e assim foi indo.
Para Maria, a situação das mães solo hoje é muito mais complicada e dura. “Eu aconselho: não se encham de filho, quem vai passar traba lho são as crianças” — falou de forma firme. Perguntada se já foi desres peitada por ser mãe solo, ela diz: “Às vezes fico meio cha teada, mas tem que erguer a cabeça.”
Sobre o medo de estar sozinha, ela diz não ter: “Medo, não, tristeza, sim. Porque a gen te fica acostumado, aí não tem mais medo”. Pausada mente, com a voz calma e baixa, ela relata que sempre “contou a real” para os filhos
e “o que tá aí passou”. Per guntei sobre como os filhos lidam com a ausência pa terna e ela é breve: “O pai e a mãe deles sou eu, então, mais não interessa."
Apesar de receber uma aposentadoria, Maria ainda trabalha com o filho para ar recadar mais algum dinheiro. Às vezes, visita os filhos que moram em outras cidades, mas diz enfaticamente que não gosta de sair da Vila. “Eu sento aí, brinco, dou risada, me distraio”, conta. Para ela, o bom humor é essencial para continuar vivendo, além dos filhos — “Não gosto de gente braba, emburrada. Só eu pos so embrabecer” — brincou. Maria, aos 81 anos e com seis filhos, só quer brincar e se divertir. “Se tu ficar encerra da, morre em vida”. n
“O pai e a mãe deles sou eu, então, mais não interessa”
Maria Rodrigues AposentadaMARIA PAULA FERNANDES NICOLY REIS Maria Rodrigues, 81 anos, criou 6 filhos. Atualmente trabalha com um dos filhos para incrementar a renda familiar NICOLY REIS
Moradores
Zenaida Soares e Alexandro Brandão receberam o jornal da edição 3 enquanto tomavam seu chimarrão
invisibilizados na capital dos gaúchos
Acapital dos gaúchos tem cerca de um milhão e meio de habitantes, mas nem todos eles são vistos. A Vila Tio Zeca Resiste à invisibilidade do olhar do poder pú blico e dos demais porto-alegrenses. As vilas Tio Zeca, Areia e Cobal, localizadas no bairro Farrapos, são diretamente impactadas pela construção da nova ponte do Guaíba - que liga Porto Alegre às outras regiões do Estado - e pela Arena do Grêmio, que não concluiu as obras de infra-estrutura e faz a água da chuva não ter escoamento. Desde 2014, moradores estão em constante apreensão por causa da obra e
QUEM FAZ O JORNAL
O Enfoque Porto Alegre - Bairro Farrapos é um jornallaboratório dirigido ao bairro Farrapos, localizado em Porto Alegre (RS). A publicação tem tiragem de 1 mil exemplares, que são distribuídos gratuitamente na região. A produção jornalística é realizada por alunos do curso de Jornalismo da Unisinos (campi de Porto Alegre e São Leopoldo).
da insegurança de não ter uma casa - já que o DNIT (Departamento Nacional de Infraes trutura de Transporte), prometeu que essas famílias seriam realocadas. Além da incerteza e da invisibilidade, essas pessoas também são reféns da falta de higiene sanitária. Na Vila Tio Zeca, por exemplo, tem fezes, insetos, lixos e resíduos sanitários a céu aberto, que deveriam ser destinados adequadamente pela prefeitura municipal. Mas, como o descaso do poder público permanece escancarado na região, os morado res se responsabilizam pelo cuidado das ruas e caixas de esgoto. São mulheres que, além de
cuidarem da vila, algumas também são mães solo em diferentes tempos. Nesta edição do Enfoque, a última de 2022, além de distribuir a terceira edição do jornal, as repórteres e fotógra fas enxergaram, durante uma manhã, uma rea lidade que costuma ser esquecida por quem tem o dever de zelar pela população. Ao circular pela Vila Tio Zeca, conhecemos moradores e histórias que não podem mais ser invisibilizados. n
PAOLA DE BETTIO TÔRRES
NICOLY REIS
Monitora: Amanda Bormida.
| ARTE | Realização: Agência Experimental de Comunicação (Agexcom). Projeto gráfico, diagramação e arte-finalização: Marcelo Garcia. | IMPRESSÃO | Gráfica UMA / Grupo RBS.
Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. Campus de Porto Alegre (RS): Av. Dr. Nilo Peçanha, 1600, Boa Vista (CEP 91330 002). Campus de São Leopoldo (RS): Av. Unisinos, 950, Cristo Rei (CEP 93022 750). Telefone: (51) 3591 1122. E-mail: unisinos@unisinos.br. Reitor: Sergio Eduardo Mariucci. Vicereitor: Artur Eugênio Jacobus. Pró-Reitor Acadêmico e de Relações Internacionais: Guilherme Trez. Pró-reitor de Administração: Luiz Felipe Jostmeier Vallandro. Diretora da Unidade de Graduação: Paula Dal Bó Campagnolo. Coordenadores do Curso de Jornalismo: Débora Lapa Gadret (Porto Alegre) e Micael Vier Behs (São Leopoldo).
ERRATA Na edição 3 do Enfoque Bairro Farrapos, nas páginas 6 e 7, as fotografias creditadas à Nicoly Owicki são de autoria de Nicoly Reis.