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| julho de 2016 |
pi primeira impressĂŁo
PRAZER E DOR
E ditorial
P
O prazer é nosso
razer e dor são dois sentimentos que andam muito próximos um do outro. Para ter o prazer da vitória, o atleta precisa enfrentar o sofrimento do treino intenso. Algumas pessoas conseguem aguentar com firmeza a dor da agulha só para ter o prazer de ver seu corpo tatuado ou modificado. Mas é possível sentir só dor ou só prazer? O luto parece ser uma dor eterna, assim como uma doença grave ou terminal. E há quem transforme um momento de puro prazer, como o sexo, em sofrimento, como o sadomasoquista. Também existem pessoas que sofrem para sobreviver dando prazer para os outros, como as atrizes de filmes pornográficos. E os que chegam a se pendurar em ganchos cravados na pele por acreditarem que só assim alcançarão um prazer extremo, inimaginável para a maioria das pessoas.
com todos esses detalhes prontos. Marcelo Garcia é diagramador e autor do projeto gráfico da PI. A dor do seu trabalho intenso é o que também possibilita o prazer de estarmos hoje com esta revista na mão. Nada mais justo que ele também viva o prazer do reconhecimento. Como jornalista, ele sabe da importância do nosso trabalho. Nosso maior prazer é acreditar que a dedicação que tivemos para contar essas histórias possa fazer você refletir sobre suas próprias dores e prazeres, e esperamos que isso lhe ajude de alguma forma. Agora, o momento é de comemorar. É a hora do prazer. Thaís Furtado Professora editora de texto
Flávio Dutra Professor editor de fotografia
BRUNA RIBEIRO
Além dos piercings e das tatuagens, Rodrigo aplicou dois implantes subcutâneos na testa, bifurcou a língua e pintou a parte branca do olho. “A dor é um momento muito pequeno, que praticamente deixa de ser notado. O prazer é maior”
Para contar histórias como essas, os alunos repórteres e fotógrafos da Primeira Impressão também tiveram que sofrer um pouco. Foram horas de pesquisa e de entrevistas, de textos escritos e reescritos, de busca pela melhor imagem. Mas não foram somente eles que suaram a camiseta. Muitas vezes, alguns profissionais se dedicam intensamente ao trabalho sem serem reconhecidos. Sofrem como os outros, mas, por trabalharem nos bastidores, quase não aparecem na hora da conquista. Só quem faz uma revista sabe o trabalho que dá para deixá-la pronta, com as fotos no lugar certo, as cores nos títulos, os textos divididos em colunas e a capa chamando a atenção do leitor. Desde que surgiu, a revista Primeira Impressão tem um profissional que é, em grande parte, responsável por ela chegar aos leitores
índice PRIMEIRA IMPRESSÃO | 4 | DEZEMBRO DE 2015
PRISCILA SERPA
6
Presídio feminino
78 Velhice
10 Maratonista
82 Triathlon
14 Tatuagem
86 Gênero fluido
18 Cuidador
90 Maternidade
22 Pornografia
94 Borderline
26 Boxe
98 Animais
30 Suspensão
102 Feederism
34 TOC
106 Budismo
38 Homossexualidade
110 Quiropraxia
42 Luto
114 Amor e fé
46 Carlos Araújo
118 Vida simples
50 Ocupação
122 Vivendo com HIV
54 Cuidados paliativos
126 Poliamor
58 Viajantes
130 Doação de órgãos
62 Balé
134 Câncer de mama
66 Microcefalia
138 Sex shops
70 Dor crônica
142 Aimoré
74 Sadomasoquismo
Aqui vai um texto
PRIMEIRA IMPRESSÃO | 5 | JULHO DE 2016
Diga a eles que a m Em dia de visita na Penitenciária Modulada de Montenegro, a rotina começa alegre. É hora de rever a família
mãe foi trabalhar Histórias de mulheres que, esquecidas atrás das grades pela família, vivem reféns de lembranças e mágoas Por Priscila Boeira Fotos VERÔNICA TORRES LUIZE
S
ábado, 5h da manhã. O vento assovia na janela basculante reforçada com barras de ferro, pintadas de amarelo claro. Os únicos sons ouvidos por Luana*, 36 anos, vem do lado de fora: o lado dos livres. A civilização está a 5 quilômetros, e os únicos a gozarem de liberdade por essa grande planície descampada são os quero-queros e o rebanho de gado. Cantam e mugem sem pedir autorização. É dia de visita na Penitenciária Modulada Estadual Agente Penitenciário Jair Fiorin, em Montenegro, a 60 quilômetros de Porto Alegre. Luana sempre perde o sono aos sábados. Enquanto o olhar vagueia por entre os veios das ripas da cama do beliche acima de si, tenta compreender algumas perguntas sem respostas. Gostaria de saber por que a irmã nunca traz as crianças para visitá-la. Será mesmo só por causa do problema no rim e das hemodiálises? Desde que entrou por aquele grande portão enferrujado, há mais de um ano, Luana nunca mais viu os três filhos: um menino de sete anos, outro de cinco e uma menina de 13. “Isso é o mais difícil. Ouvir a voz deles já me ajudaria bastante. Não sei por que minha irmã não manda recados. Somos muito unidas. Está quase tudo pronto para passar a guarda das crianças para ela. PRIMEIRA IMPRESSÃO | 7 | JULHO DE 2016
Luana (à esquerda) sofre por não ver os filhos há mais de um ano. Já Rita considera uma de suas filhas culpada por sua prisão
As notícias que recebo quem conta é a assistente social e a psicóloga.” São 6h. As mãos são levadas à boca entre um pensamento e outro. A ansiedade consome não só as unhas como também a paciência. É hora de Luana e as outras 83 apenadas levantarem e começarem a rotina. Algumas comemoram a alegria que compartilharão ao lado dos familiares. É dia de se vestir com as melhores roupas. É dia de fazer mousse de morango batido na mão e colocado na geladeira do presídio. Um mimo para as visitas. Luana observa a felicidade das colegas de cela, esboça um sorriso dissimulado e volta os olhos para as ripas do beliche. Dói não ser lembrada. Foi justamente o medo do abandono que a fez postergar sua entrega à Justiça. Em 2013, seu ex-namorado foi preso por assaltar a lanchonete onde ela trabalhava, em São Leopoldo. Luana continuou a vida normalmente, trabalhando como diarista, de segunda a sexta-feira, e na lanchonete aos finais de semana. “A polícia foi duas vezes na minha casa para me prender, e eu estava trabalhando. Em 2014, fiquei sabendo que eu era considerada uma foragida. PRIMEIRA IMPRESSÃO | 8 | JULHO DE 2016
Só tive coragem para me entregar em março de 2015. Eu tenho amigas que estão presas no Madre [Penitenciária Feminina Madre Pelletier, em Porto Alegre] e em Charqueadas [Penitenciária Estadual de Charqueadas]. Elas me falavam que é horrível, que as presas obrigam a dormir no ‘bracinho’ [formar casal] e que, se você não aceitar, apanha. Ainda bem que aqui não é assim. Nunca me forçaram a nada. Só sinto falta dos meus filhos. Fico pensando se estão indo bem na escola, se são bem tratados, se estão com as vacinas em dia.” Luana cumpre pena de 20 anos. “EU BUSCAVA AJUDA E NUNCA ME DERAM” Rita*, 41 anos, só transita fora da cela se estiver algemada e sob o olhar atento dos agentes. Há nove meses no presídio sendo protagonista de algumas crises de agressividade, ela ainda não ganhou a confiança para circular com as mãos livres. Em seus olhos verdes pode ser vista mágoa e tristeza. Os sábados sempre trazem as lembranças daquele dia que mudaria tudo, para sempre.
Rita é natural de Campo Bom, mãe de cinco filhos com idades entre dois e 20 anos. É a penúltima, hoje com 18 anos, a quem ela culpa por estar presa. “Eu estava em casa tomando chimarrão quando a polícia invadiu e revirou tudo a procura de armas. Eu disse que não tinha arma alguma. Foi aí que encontraram maconha e ecstasy, que a minha filha e o namorado haviam escondido para vender numa rave. Eu não sabia de nada.” Rita alega ter sido presa pelo fato de a filha ser menor de idade e a droga estar escondida em sua residência. As horas passam devagar na cela dividida com outras cinco mulheres, por isso ela decidiu trabalhar como paneleira, servindo as outras internas durante as refeições. Essa, aliás, é uma maneira que as presidiárias encontram para reduzir a pena. A cada três dias trabalhados, um é abatido no tempo de permanência. Rita escolhe usar o esmalte que ganhou da filha. Não quer que os filhos a vejam relaxada. Por alguns instantes, prende os olhos no frasco. Na coleção 2015 da Colorama, o rosa foi batizado de “cochilo na rede”. Após
IMPRESSÕES DE REPÓRTER Levei 20 dias até conseguir a autorização para entrar na penitenciária. Eu queria muito viver a experiência. Conforme a data se aproximava, fui sentindo no corpo os efeitos da ansiedade: roí unhas, comi bastante e perdi horas de sono. Eu estava impregnada de preconceitos estereotipados sobre as pessoas que vivem atrás das grades. Assim que cheguei, me surpreendi com a aparente calmaria. Os agentes foram simpáticos e prestativos. As entrevistadas se abriram e mostraram as dores e alegrias de suas almas. Sinto que saí diferente por aqueles portões. É reconfortante saber que nem todas as prisões são depósitos de humanos. Por outro lado, dói ouvir histórias de mulheres abandonadas por quem mais amam.
nove meses enclausurada entre os grandes muros e portões, a mágoa tem diminuído, mas não totalmente. “Agora estou mais tranquila, mas ainda sinto raiva da Justiça. Essa minha filha começou a dar trabalho aos 12 anos. Pedi ajuda para o Conselho Tutelar e só sabiam dizer que não podiam fazer nada. Mais tarde, ela não queria trabalhar e nem estudar. Eu buscava ajuda e nunca me deram. Estou aqui por culpa deles.” Os primeiros dias foram um terror. O Conselho Tutelar levou os quatro filhos menores de idade para um abrigo. Eles permaneceram no local por 28 dias até que a filha mais velha conseguisse a guarda. Rita aquece a água para o chimarrão colocando-a dentro de uma garrafa pet. Não há fogão. Tudo o que precisa ser consumido quente é esquentado no aquecedor, mesmo no verão. De dentro de uma sacola térmica guardada embaixo da cama, ela retira um pacote de biscoitos recheados. Não são para si, são para as crianças. Foram comprados com o dinheiro do pecúlio – R$ 22,00, pagos a cada três meses de trabalho. Só os mais crescidos virão
vê-la. Os mais novos não sabem que a mãe está presa. “Pensam que eu estou trabalhando. Sinto muita saudade, mas não posso contar a verdade. Eles são muito novos para entender. Meu filho de quatro anos odeia a polícia. Dói ficar longe deles. Tento não pensar muito para ver se o tempo passa mais rápido”, diz. Depois fecha os olhos por alguns segundos, suspira e deixa o olhar se perder pelo chão. O som da campainha anuncia que está na hora de visitação. Rita e Luana, cada uma em sua cela, preparam-se para ir ao pátio. Enquanto caminham, pensam em quem pode ter vindo. Assim que ultrapassam o portão e veem a luz do sol, buscam, em vão, algum rosto conhecido. Ninguém veio. Rita passa pelas famílias e senta em um banco distante de todos; então tira da carteira o cigarro e o acende. “Me vende um?”, pergunta Luana. Rita pensa por uns segundos e responde: “Pega. Não precisa pagar. Senta, vamos fumando enquanto não chega ninguém”. (*) Os nomes foram trocados para preservar a identidade das entrevistadas.
Carceragem feminina no RS n População carcerária feminina brasileira: 37.380
Total (homens e mulheres): 579.781 n
Entre 2000 a 2014 houve aumento de 567,4% no universo feminino, e 220,20% no masculino.
n
O Rio Grande do Sul possui 1.614 apenadas. A faixa etária de maior número é entre 35 a 45 anos (28%). Destas, 65% são brancas e 33% são negras; 48% declara-se solteiras, 35% em união estável e 10% casadas; 56% tem o Ensino Fundamental Incompleto e 3% são analfabetas; 81% respondem pelo crime de tráfico de drogas. n
Fonte: Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), junho de 2014.
PRIMEIRA IMPRESSÃO | 9 | JULHO DE 2016
Correndo pela vida
Deficiente visual desde os 33 anos, Vladmi encontrou no esporte uma nova forma de realização pessoal Por Gustavo Schenkel Fotos RAQUEL QUEIROZ
D
epois de oito horas de trabalho na madrugada fria no Porto de Rio Grande, no sul do Estado, Vladmi dos Santos, como de costume, retornava para casa correndo. São 25 quilômetros entre o cais e o conforto do lar para o merecido descanso. O ano era 2004. A visão, a essa altura, já andava turva. “Eu acreditava que ela estava falhando porque eu trabalhava à noite”, conta. Por medo de ouvir o que não gostaria, adiou o encontro com o médico. O choque abrupto com a carroceria de um caminhão deu o diagnóstico: aos 33 anos, Vladmi deixaria de ver o rosto da esposa e da filha. A perda da visão, de forma definitiva, devido a uma degeneração na mácula (uma área da retina), foi um baque – especialmente para a família e para os amigos próximos. Mas não para Vladmi. “Não tive tempo de me vitimizar. Precisava seguir como exemplo para a minha filha”, relata. Quando começou a perceber o que estava ocorrendo, tratou logo de tentar, dentro do possível, adaptar-se à situação futura. “Comecei a escovar os dentes de olhos fechados, a andar pela casa com as luzes apagadas. E principalmente fiz questão de olhar muito para minha esposa e minha filha. Queria ter a imagem delas na minha mente”, lembra. Vladmi sempre gostou de esportes - especialmente de corridas. Adorava as aulas de educação física no colégio. Após ser aposentado por invalidez, encontrou na sua nova condição a chance de trazer um novo sentido à vida. Começou então, aos poucos, a se adaptar aos treinamentos. O primeiro foi com sua filha Marcela, na época com nove anos. Por meio de uma guia acoplada ao volante de uma bicicleta, a dupla percorria, diariamente, cerca de 12 quilômetros, nas ruas de Rio Grande, onde sempre moraram. Ela em cima da bicicleta e ele acompanhando, intercalando corridas e caminhadas. Com o passar do tempo e com a ajuda de amigos, Vladmi foi para a pista de corrida. Depois de centenas de voltas guiadas, estava pronto para treinar sozinho. Era o começo do futuro. PRIMEIRA IMPRESSÃO | 12 | JULHO DE 2016
Em 2016, ao correr na Antártida, Vladmi será o primeiro deficiente visual do mundo a atravessar os quatro grandes desertos
ção: os dois carregarão a Tocha Olímpica. Ele escolheu sua pequena como guia no trajeto que fará, em Rio Grande, conduzindo o símbolo máximo das Olimpíadas do Rio de Janeiro.
Desde 2005, quando começou a participar de maratonas (42 quilômetros), Vladmi coleciona mais de 50 vitórias em provas no Brasil e no exterior, com destaque para o bicampeonato na Maratona de Lisboa e para os títulos em Genebra, na Suíça, e em Trieste, na Itália. Aos 44 anos, Vladmi é um dos principais maratonistas do mundo em sua categoria, a T11, para pessoas sem nenhum grau de visão. Vladmi é casado e tem duas filhas: Marcela dos Santos, 20 anos, e Fernanda dos Santos, de cinco. A menor conhece apenas pelo cheiro, pelo carinho e pela fala mansa e doce com que o trata. “Minha maior frustração é não ver o rosto da ‘Nanda’”, lamenta. E completa cheio de emoção: “Minha filha é uma gota de felicidade, que vou guardar para o resto da vida.” Inclusive, em 2016, Vladmi viverá mais uma grande emo-
A SUPERAÇÃO COMO COMBUSTÍVEL A independência de Vladmi chama atenção de quem não o conhece. Faz todas as tarefas da casa sozinho. Lava roupa, varre o chão, passa pano nos móveis. “Adoro lavar louça, me tira o estresse”, conta cheio de orgulho. Outra válvula de escape para aflições do dia a dia é o canto. Não raramente ele está cantarolando pelas ruas e corredores por onde passa. “Quando estou aflito, costumo cantar para me acalmar. O pessoal reclama um pouquinho, mas faz parte do jogo”, diverte-se. Mas foi há quatro anos que Vladmi decidiu ir além. Movido por desafios e pela quase que constante necessidade de autossuperação, se inscreveu pela primeira vez em uma ultramaratona. Os 250 quilômetros percor-
ridos em pleno deserto do Atacama, um dos mais quentes do mundo, no Chile, mudaram sua realidade. Já em 2014, novamente no Atacama, a 2,4 mil metros de altitude, viveu uma das experiências mais impressionantes de sua vida. Foram mais de 200 quilômetros ao lado da guia norte-americana Erin Leight. Eles se conheceram momentos antes da prova. A dupla enfrentou um clima seco e uma grande oscilação de temperaturas: à noite, 5°C; durante o dia os termômetros chegaram a marcar 42°C. O Atacama, inclusive, é utilizado pela NASA - Agência Espacial Americana – para pesquisas sobre a vida em Marte. “Quando estou nos desertos me sinto livre, vivo e desafiado. Sou igual a todos. Penso nas minhas filhas e na minha esposa e crio coragem para seguir em frente”, conta. E a presença delas é, inclusive, física. Ele carrega três alianças interligadas na mão direita. Cada uma representa uma das “mulheres da sua vida”, como gosta de definir. Nas viagens pelo mundo, que inclui provas na África, China, Turquia
e em diversos países europeus, Vladmi quase sempre tem a solidão como companhia. “É muito caro levar dois atletas para essas provas. Então quase sempre conheço meu guia pouco antes das provas. Fui obrigado a aprender a ter independência”, lamenta. Foi no início do mês de novembro de 2015, no entanto, que Vladmi surpreendeu o mundo ao fazer, sem atleta-guia, a Cassino Ultra Race, na divisa entre Brasil e Uruguai. Foram mais de 120 quilômetros na maior praia do mundo, guiado apenas pelo som do mar. A prova foi interrompida, na metade, pela formação de um ciclone extratropical, com ventos que chegaram até 142 quilômetros/h, que levou os competidores a abandonarem a prova com risco de hipotermia e de morte. Um fato curioso impressionou os organizadores e competidores: com a chegada da madrugada e das adversidades climáticas, muitos atletas se viram desnorteados sobre qual o caminho correto. Vladmi, que treinou alguns dias na praia, acabou orientando os competidores – que enxergavam sobre o trajeto adequado. Tudo isso com base no pé que estava tocando a água. “Era muito simples. Se estivéssemos com o pé direito no mar, estávamos continuando no percurso certo. O pessoal não acreditava que eu pudesse guiá-los”, brincou. A vida de Vladmi, porém, ainda têm muitos tons em preto e branco. As dificuldades quase que diárias contra o preconceito, contra a indiferença e contra o afastamento social, ainda machucam: “Perdi muitos ‘amigos’ desde que fiquei cego. Fui deletado da sociedade”. Mas foi no esporte que ele encontrou a maneira de se tornar inteiro de novo. Melhor ultramaratonista do mundo entre os deficientes, Vladmi está preparado para novas emoções: agora sonha em completar o roteiro dos quatro grandes desertos do mundo. Na rota para 2016 estão o frio e a neve da Antártida, uma maratona em plena floresta Amazônica, além de uma prova em Portugal, em que pretende bater o recorde mun-
dial entre os deficientes visuais. Como ingredientes, temperaturas negativas, onças, rios com piranhas e treinamentos específicos em câmaras frias que podem chegar a -40°C: tudo isso para se tornar o único deficiente visual do mundo a cumprir essa façanha. Mas Vladmi não correrá sozinho. Ao seu lado estarão todos que enxergam nele um exemplo de vida e de superação. O homem que aprendeu a ver a vida com o coração, sem rótulos e preconceitos, está disposto a mais uma vez encantar o mundo, assim como encanta quem passa pelo seu caminho.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER Quando o tema desta revista foi escolhido, não tive dúvidas: precisava contar a história do Vladmi. Não por ele ser meu amigo, não por ele ser um exemplo, não por ele fazer a diferença na vida de quem o conhece. Mas porque ele merece. E os leitores da Primeira Impressão também mereciam descobrir um pouco sobre ele. Dizem que quando perdemos algum sentido – visão, audição ou até mesmo o olfato – os outros acabam se aguçando. Vladmi não enxerga, mas sabe ouvir como poucos. Vladmi não enxerga, mas fala recheado de uma doçura incomum. À primeira vista pode parecer fácil, e cômodo, eu ter escolhido contar essa história. Porém, foi um grande desafio conseguir retratar, em tão pouco espaço, toda a trajetória desse herói da vida real. É impressionante a naturalidade com que Vladmi lida com a deficiência visual e como faz dela o combustível para vencer barreiras. Foi um grande aprendizado para mim e para a fotógrafa Raquel Queiroz passar alguns momentos com Vladmi e aprender um pouco mais sobre o verdadeiro significado da palavra superação.
PRIMEIRA IMPRESSÃO | 13 | JULHO DE 2016
Marisa e Rodrigo são apaixonados pela arte da tatuagem e da modificação corporal Por Caroline Paiva Fotos BRUNA RIBEIRO
O
típico som da máquina de tatuagem, anestesias caseiras e perfurações em nada amedrontam o jovem de 24 anos que, curiosamente, detesta agulhas e injeções. A explicação é plausível. A aparente dor das modificações corporais trará mais adiante algo que ele almeja: a marca e o registro permanentes. “Tem uma recompensa, né?!”, comenta. Rodrigo dos Santos, conhecido por “Snoopy”, desde pequeno gostava de fazer desenhos e tudo o mais que pudesse exercitar e estimular sua criatividade. Hoje trabalha como tatuador e está montando o estúdio próprio na cidade onde mora, Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul. Snoopy começou a tatuar aos 16 anos utilizando máquinas caseiras. Aprendeu o ofício na prática, nos estúdios de tatuagem. As modificações mais extremas começaram em maio de 2015, primeiramente com a bifurcação da língua. A técnica, chamada de tongue splitting, ou bissecção lingual, consiste em “partir” a ponta da língua em dois. É aplicada uma anestesia local e são feitos pontos. Foram duas semanas de dieta forçada, sem comer praticamente nada, fazendo uso de analgésicos e anti-inflamatórios. O processo de cicatrização é semelhante ao do piercing: a língua incha e é preciso ter muito cuidado com a higiene bucal. Já em novembro, Rodrigo viajou a São Paulo para fazer o eyeball com um profissional especializado. O método do eyeball, ou tatuagem da esclera, é aquele em que o branco do olho é pintado. A aplicação, que leva cerca de oito minutos, é feita com seringas de insulina e uma tinta especial, importada. Diferentemente do que se imagina, o olho não é perfurado e o processo, indolor. Por ser um procedimento novo, quase que experimental, o eyeball ainda pode trazer riscos e até mesmo cegueira, se não aplicado e cuidado corretamente. De acordo com Snoopy, esse tipo de tatuagem foi criado por presidiários no corredor da morte, há cerca de 15 anos, nos Estados Unidos.
O corpo é meu
O SUSTO Durante o período entre os procedimentos de tongue splitting e eyeball, Rodrigo resolveu aplicar dois implantes PRIMEIRA IMPRESSÃO | 14 | JULHO DE 2016
Mesmo após o susto e a quase rejeição do implante na testa, Rodrigo não desistiu da modificação
Com mais de 85% do corpo tatuado, Marisa, a “mulher gibi”, fez sua primeira tatuagem aos 39 anos
subcutâneos na testa, chamados de horns. Para que os horns (objetos feitos de silicone um pouco mais duro que o convencional) sejam introduzidos, é feita uma raspagem no local e descolada parte da pele. Porém, após a colocação dos implantes, o tatuador precisou recorrer, pela primeira vez, ao hospital. Por não ter feito o procedimento de forma gradual e utilizado um implante de 16mm (considerado um tamanho grande), quase sofreu rejeição. Motivado pela preocupação e pela dor, procurou atendimento, mas chegando lá teve de responder a uma série de questionamentos. “Resolvi tomar um remédio para dor e ir para casa. Fiquei com medo de que resolvessem tirar o implante ou até mesmo incriminar quem o aplicou”, explica. Em razão das anestesias para alguns procedimentos não serem feitas por profissionais, a prática pode ser considerada medicina ilegal. O procedimento foi feito por uma amiga, em Porto Alegre, e o tratamento pós depende de ancoragem (uma espécie de fita para manter o implante no lugar) e drenagem (para retirada de qualquer líquido ou inflamação que possa criar). Felizmente foi só um susto, embora a cicatrização, que levou cerca de um mês, tenha sido a mais demorada até então. “A pele está rosada, pois ainda está se adaptando ao novo objeto. Hoje já faz parte do meu corpo”, relata. O PRAZER DE SER DIFERENTE O jovem comenta que se vê quase como um desenho, um personagem. “Eu era ‘normal’, agora é como se todo dia estivesse fantasiado. Sempre quis ser diferente, não ser parecido com ninguém. Gosto de acompanhar a mudança e, da noite para o dia, ser uma pessoa diferente. A dor é um momento muito pequeno, que praticamente deixa de ser notado. O prazer é maior”, comenta. A mãe apoia as modificações, mas tem medo. Já o pai dizia, brincando, que o filho não podia colocar brinco. E foi justamente com um brinco que ele começou a incursão pelos prazeres da modificação corporal. “As pessoas têm receio do diferente, mas acostumam quando te veem várias vezes na rua. Já aconPRIMEIRA IMPRESSÃO | 16 | JULHO DE 2016
teceu de ouvir xingamentos e perceber muitos olhares e não sei decifrar se é por interesse, curiosidade, ou preconceito”, fala. Rodrigo pensa em continuar as modificações, e já pensou, até mesmo, em tirar uma parte do dedo, como ocorre em alguns rituais de tribos indígenas, sendo uma forma de relembrar a memória de alguém que já se foi. “Mas ela não quer”, acrescenta, apontando para Geisi Quadros, 19 anos, sua namorada. A MULHER MAIS TATUADA DO BRASIL Mulher Gibi. Na verdade, é assim que gosta que a chamem. O apelido, que serviria para fazer chacota, acabou agradando Marisa de Fátima dos Santos, 52 anos, que é atualmente a mulher mais tatuada do país. A moradora de Esteio, na grande Porto Alegre, tem cerca de 85% do seu corpo tatuado. Os desenhos são tantos que não é possível contabilizá-los – mas é possível se perder “lendo” as tantas imagens que ela carrega consigo. De fato, um gibi. O troféu e título foram recebidos em 2010 pelo Rank Brasil. Na época, Marisa trabalhava em uma casa de família e recebeu apoio dos patrões para buscar o troféu, também folgas para participar de programas de televisão. Hoje, já aposentada, ela vem preenchendo os poucos espaços que sobraram e guarda “cantinhos” especiais para mais tarde tatuar o nome do neto, que espera receber do filho mais novo. Os nomes dos dois netos já nascidos já estão marcados no corpo e no coração da avó. A ideia de se tatuar surgiu após uma brincadeira. Uma amiga apostou que se Marisa tivesse a coragem de fazer uma tatuagem íntima, ganharia uma caixa de cerveja. Ela topou o desafio e, aos 39 anos, este foi o seu primeiro “rabisco”. Desde
então não parou mais. E esse desenho íntimo, onde fica? Ela mantém o enigma e não revela exatamente onde ele está. Observando o gosto pela arte e a tolerância de Marisa para a dor, o próprio tatuador sugeriu que ela cobrisse o corpo. “Ele falou que poderíamos participar de eventos, convenções, até mesmo ganhar um dinheirinho com isso”, brinca. Segundo ela, os lugares mais incômodos para tatuar foram as axilas e a virilha. QUAL É A DOR? Seis anos e meio. Foi o tempo que Marisa levou para “fechar o corpo”. Muitas das tatuagens – na verdade a maioria – foram de graça. Preocupada com a saúde, ela só faz desenhos com a máquina, agulhas e tintas que são usadas somente por ela. Além disso, Marisa usa protetor solar todos os dias e preocupa-se em comprar apenas tintas importadas, tanto que nunca precisou retocar nenhuma das tatuagens. A única rejeição que teve foi com a tinta marrom. Mas se engana quem pensa que a dor das tatuagens a incomoda. A dor que a incomoda mesmo é a da perda da mãe. Foi preciso muito apoio da família para enfrentar a depressão. Após o falecimento, saiu da cidade onde mora para passar um tempo em Fontoura Xavier, sua cidade natal. Quando voltou à Esteio, sentiu novamente que os olhares e julgamentos preconceituosos não acabaram. Mas esses ela tira de letra. O desconforto vem mesmo da falta. Casada há 35 anos, revela que o esposo não gosta e não possui nenhuma tatuagem. “Ele viajava muito e, toda vez que voltava, eu estava com mais e mais tatuagens. Um dia ele chegou e me disse: ‘Mulher, o que tu estás fazendo com teu corpo?’ Eu respondi: ‘Ué. O corpo é o meu’”.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER A fala calma e educada do menino, que tem a esclera (ou o chamado “branco dos olhos”) pintada de preto, implantes de silicone na testa, piercings e tatuagens pelo rosto, pode surpreender àqueles que julgam pela aparência. Surpreende também que a mulher mais tatuada do país já completou meio século de experiência, é mãe, avó e, ainda, possui uma disposição de dar inveja a muita gente. Quando escolhi a pauta, não sabia se encontraria fontes que tivessem os atributos e as histórias que procurava. Fiquei um tanto apreensiva, mas, por meio de amigos e amigas do Facebook, acabei chegando até a Marisa e o Rodrigo. Ambos foram receptivos com a proposta e disponíveis para as entrevistas. Que surpresa boa. As histórias foram tão legais que nem cogitei entrevistar outras pessoas. Elas me fizeram afirmar ainda mais a convicção de que o preconceito é algo primitivo e cafona, ou, como diz uma das músicas da banda O Teatro Mágico: “Onde sobra intolerância, falta inteligência”. Gostei muito de conhecê-los e agradeço a solicitude e generosidade com a qual me atenderam.
PRIMEIRA IMPRESSÃO | 17 | JULHO DE 2016
Dedicação sem reservas Pessoas que cuidam das dores dos outros, por profissão ou necessidade, doam um pouco de si
PRIMEIRA IMPRESSÃO | 18 | JULHO DE 2016
Se Deusa perde o estímulo para cuidar do marido, que está acamado por causa de um AVC, ela encontra na fé a força para continuar
Por Pâmela Oliveira Fotos Andrieli Magedanz
S
e o café derramado não a sobressaltasse, a sucessão imediata de baques certamente o faria. A xícara de porcelana, primeira a chocar-se contra o assoalho, foi logo seguida pelo homem que a segurava, os lábios já retorcidos e azulados ao encontrarem o chão. Perto dali, a mulher registrava a cena sem compreendê-la. Percebia apenas que havia no marido um quê de desajuste e estranheza. Não sabia, ainda, que a feição seria a menos perceptível das afetações quando comparada à mudança de rotina que
ambos teriam dali para frente. Duas décadas depois, Deusa Terezinha da Luz Pereira, 67 anos, recorda daquele dia sem desviar a atenção do cônjuge, Ivan Pereira, 77, acamado, desde então, por conta do acidente vascular cerebral que lhe paralisou o lado esquerdo do corpo. Do quarto de onde acompanha os ponteiros do relógio em voltas consecutivas, ele chama; ela, imediatamente, vai a seu encontro. “Está com sede, quer um copo d´água”, informa a esposa ao retornar à sala, justificando, com uma nota de embaraço na voz, a interrupção da entrevista. Esse pronto atendimento da companheira diz mais sobre a relação
dos dois do que se poderia supor. “Quando sofreu o acidente, ele parou de caminhar e ficou dependente de mim”, relata. À época, estavam casados havia quase vinte anos e residiam em Alvorada. Após o ocorrido, mudaram-se para Canoas, região metropolitana de Porto Alegre, e refizeram a vida. Com dois filhos para criar, um cônjuge debilitado e receosa de sair às ruas, Deusa encontrou em si forças até então desconhecidas. Sem emprego formal – “ele nunca quis que eu trabalhasse” –, decidiu vender pasteis para complementar a renda da família, na ocasião resumida à aposentadoria de Ivan, membro da Brigada Militar em tempos passados. Com os anos, foram-se os filhos, cada qual para seu lado, e os pasteis. Ficou o casal, morando mais no quarto adaptado do que no restante da casa. No lugar da cama alta, uma perto do chão e toda para ele, para diminuir o risco de quedas. Ela dorme em uma cama de solteiro comprada depois, que fica logo à frente da do companheiro. O guarda-roupa do tamanho da parede foi substituído por outro, de canto. E ainda há planos para trocar a porta do cômodo. “É para facilitar a passagem da cadeira de rodas”, explica a senhora. A rotina começa cedo. Assim que acorda, Deusa troca as roupas de Ivan e confere o estado dos lençóis. No banheiro contíguo ao quarto, escova diligentemente a dentadura do marido e enche de água uma vasilha para ele se lavar. Depois, põe o café da manhã em uma mesinha móvel sobre a cama, onde, mais tarde, serve também o almoço e o lanche. Não costumam jantar. No restante do tempo, fica por perto para o que for preciso. Tudo o que sabe aprendeu PRIMEIRA IMPRESSÃO | 19 | JULHO DE 2016
na prática e diante da necessidade. Não estudou medicina, tampouco enfermagem ou cuidados com pacientes acamados. Contou, sim, com o apoio da família e com os conselhos da equipe de um posto de saúde, que ainda aparece quando é necessário colher material para exames. Tendo passado por cirurgias, ela mesma não consegue levantálo sozinha. De uns tempos para cá, paga uma senhora para ajudá-la com a higiene pessoal do marido três ou quatro vezes por semana. De vez em quando, lamenta vêlo no quarto, assistindo televisão ou ouvindo rádio. “Nessas horas, queria poder fazer mais por ele, mas a idade já me impõe restrições.” Há dias também em que sente pelas privações estendidas a si própria. “Se eu saio, fico com o pensamento aqui, sei que não posso me ausentar”, comenta, como que sussurrando, só para aumentar o PRIMEIRA IMPRESSÃO | 20 | JULHO DE 2016
tom em seguida e arrematar: “Não estou reclamando, viu?”. Consideração pelo desconhecido Ao contrário de Deusa, a quem foi imposta a convivência com a dor, Roberto Tyska realmente escolheu lidar com o sofrimento alheio. Enfermeiro, coordenador do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência da base de São Leopoldo, ganha a vida prestando socorro a vítimas de acidentes ou agravos de saúde com risco ou iminência de morte. Quando toca a sirene, sua corrida é contra o relógio. Ligeiro, pega um instrumento aqui e outro ali, mede sinais vitais, administra medicações, conversa com o paciente e tenta controlar a situação. Nesse processo, lança mão de todos os recursos à disposição para amenizar a dor física ou emocional daquela pessoa.
Enquanto Roberto escolheu conviver com o sofrimento alheio, Deusa foi escolhida para a tarefa
“Sinto a necessidade de fazer mais, de fazer melhor, principalmente se a intercorrência envolve crianças ou é motivada por maus tratos”, diz. Nem sempre isso é possível. Quem convive com o sofrimento por profissão sabe que a perda definitiva, aquela para a qual não há medicação com efeito imediato, está logo ali. “O que a gente pode fazer, nesse caso, é confortar os familiares que ficam e trabalhar para que haja um entendimento sobre a morte”, informa o enfermeiro. Sentimento (ir)real O diretor científico da Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor, Paulo
Renato da Fonseca, esclarece que a dor é um fenômeno não necessariamente relacionado à lesão. Segundo ele, tratase de sensação subjetiva que pode ser, inclusive, imaginada e compartilhada por quem não a sente de fato. Diante do sofrimento alheio, não há padrão de comportamento; cada um reage a seu modo. O que existe é o treinamento das emoções. Agentes de saúde, particularmente, dependem dessa preparação psicológica, pois estão sempre expostos às dores dos outros. A maturidade profissional, de acordo com Paulo, possibilita a criação de mecanismos de defesa que permitem manter a distância necessária da situação, sem que, para isso, seja preciso recorrer à insensibilidade. “Sentir a dor do outro nos faz crescer como seres humanos, pois nos leva a refletir sobre a existência de problemas mais graves do que aqueles que julgamos tão relevantes. É como se nos trouxesse sempre à realidade”, constata o médico. Válvula de escape O derrame que paralisou Ivan chegou perto de causar o mesmo efeito em Deusa. Não fosse pela fé que ela tem, sabe-se lá onde estariam os dois. “Dá
medo de ficar doente, de ter depressão”, admite a esposa. “Tem horas que fico perturbada, daí faço uma oração e peço ajuda para não fraquejar.” Quando precisa espairecer, lê a Bíblia, de páginas já amareladas pelo tempo, reza o terço ou sintoniza o rádio em uma estação religiosa. A música acalma, dá novas perspectivas. Aos sábados, atua como ministra em uma igreja católica do bairro onde mora, estudando ou dedicandose a outras pessoas doentes ou em necessidade. Faz isso e sentese um pouquinho mais completa. Volta sorrindo para casa. “Hoje eu aceito [cuidar do marido] com tranquilidade, porque fui fazendo cursinhos na igreja e percebendo o propósito da minha missão”, conta. “Sem estudar, entender as coisas, parece que a mente da gente fica fechada.” De tudo, o que mais dá forças a Deusa e Roberto para que continuem olhando pelas pessoas que deles dependem é a família. Se, porventura, perdem o estímulo, sabem exatamente onde recuperá-lo: no colo acolhedor dos entes queridos. Ainda que trabalhe há tempo na área e tenha estabelecido uma distância saudável entre as vidas profissional e pessoal, é em casa que Roberto encontra
conforto quando a dor de alguém vira a sua própria. O mesmo vale para Deusa, que volta e meia se vê rodeada pelos filhotes em retorno ao ninho. Por extenuante que seja, a tarefa de cuidar do outro apequena-se perto da grandeza da recompensa. Pessoas que se dedicam assim relevam o fardo, doam-se sem comedimentos e satisfazem-se mesmo nas privações. Chega a ser paradoxal: por abrirem mão, completam-se; por transferirem o que são e o que têm, sentem-se inteiros. Eles podem até não curar, mas, convenhamos, fazem tanto ou mais efeito do que qualquer remédio tradicional.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER A dor que sinto nem sempre nasce dentro de mim. De vez em quando, ela vem pelo lado de fora e, sorrateira, vai fazendo casa. É uma dor estendida, compartilhada, que se desprende do outro e me alcança por reverberação. Nem por isso dói menos. Saber como as pessoas lidam com essa sensação que não é sua, mas é, foi o que motivou a escolha da pauta. Tenho mãe enfermeira, percebo como ela se compadece com a dor alheia e como, ainda assim, conserva o espírito sereno diante das circunstâncias – o que muito me impressiona, aliás. Quis, então, conhecer a realidade para além dos nossos domínios e encontrei dona Deusa pelo caminho. Qual foi minha surpresa ao descobrir a força que cabia naquela senhora, tão empenhada em cuidar do marido! E quando fui atrás de quem assim se dedicasse por profissão, o que encontrei não foi senão a confirmação de uma suspeita: o ânimo de zelar pelo outro não vem da carteira assinada, vem de dentro.
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O preço do pornô
suas cenas do que seus companheiros homens. Mas engana-se quem pensa que elas são tratadas bem.
Indústria pornográfica oferece prazer fácil, mas afeta a vida de milhares Por PEDRO KOBIELSKI Fotos Alexandre Moreno
U
ma mulher chega com seu carro estragado em uma mecânica e se depara com um homem sem camisa trabalhando por lá. Um carteiro vai entregar uma encomenda para uma moradora, que abre a porta de roupão e o convida para entrar. O jardineiro da mansão é chamado pela esposa do dono da residência, que está fora, para passar protetor solar nela. Você, muito provavelmente, já viu alguma dessas cenas. Estudos indicam que nove entre cada 10 pessoas no planeta já tenham assistido a filmes pornográficos alguma vez na vida. Gênero que começou tímido, nos já longínquos anos 1970, com o lançamento do seminal Garganta profunda, o pornô cresceu e hoje é um dos principais movimentadores de dinheiro em todo o planeta. De acordo com pesquisas do site ExtremeTech, mais de 30% da internet é constituída de conteúdo sexual explícito. Os Estados Unidos, principal expoente do gênero no planeta, apresenta dados assustadores: são U$$ 97 bilhões movimentados por ano, tendo rendimentos semelhantes ao das indústrias armamentistas e de fast-foods. Em suma, o pornô é uma máquina de fazer dinheiro. Jon Millward, jornalista de dados norte-americano, que se engajou em fazer uma vasta pesquisa entre 10 mil atores pornográficos, traz alguns números surpreendentes em seu website (jonmillward.com): cerca de 70% dos profissionais da área são mulheres, e elas recebem cerca de 90% a mais por
Abusos contra atrizes são comuNS Em 2014, o mundo se chocou com o documentário Hot Girls Wanted, dirigido por Jill Bauer e Ronna Gradus. Após fazer sucesso no renomado festival de Sundance, a produção campeã de acessos no Netflix trouxe um relato cru e visceral de garotas que, sem perspectiva de obter grande sucesso na vida, acabam apelando para o dinheiro fácil e rápido proporcionado pela gravação de cenas explícitas no paraíso do pornô mundial – a Califórnia. O documentário desconstruiu o glamour e a romantização para com as chamadas pornstars, demonstrando que por debaixo da minoria de atrizes bemsucedidas e superexpostas na mídia, como a celebridade Sasha Grey, existe um universo gigantesco de abusos, estupros e desrespeito aos direitos mais básicos do ser humano. A apresentação do documentário acendeu novamente a discussão dos limites do pornô e fez com que alguns casos fossem abordados. O primeiro deles foi a quase total falta de proteção contra doenças sexualmente transmissíveis, que faz com que dezenas de atores contraiam doenças de maior ou menor intensidade durante as gravações. O caso mais notório foi a da atriz estadunidense Cameron Adams, conhecida pelo pseudônimo Cameron Bay, que divulgou um chocante relato nas suas redes sociais em 2013. A atriz contraiu o vírus HIV. De acordo com o depoimento, não existe uma política séria para prevenção de doenças sexualmente transmissíveis. Ela chegou a dizer, em determinado momento, que quando descobriu que havia contraído o vírus, o resultado do exame anterior lhe dava permissão para trabalhar por mais alguns dias – ou seja, se ela não tivesse antecipado os exames por contra própria, poderia ter contaminado mais atores. Hoje, a atriz é militante dos direitos dos profissioPRIMEIRA IMPRESSÃO | 23 | JULHO DE 2016
nais da indústria pornográfica. Mas não é apenas na frente das câmeras que os problemas de abusos ocorrem. Embora muitas cenas de sexo não-consensual (leia-se estupro) sejam gravadas e comercializadas sem que nenhum órgão fiscalizador se importe, o que acontece fora da tela é também um grande problema para os profissionais. Em 2015, a famosa atriz Stoya não aguentou a hipervalorização de James Deen, ator e ex-namorado da pornstar na mídia. Em um desabafo na rede social Twitter, a atriz disse que Deen segurou-a pelo pescoço e a obrigou a transar, mesmo com repetidas negativas e avisos por parte da vítima. Deen se prontificou a negar publicamente as declarações em algumas horas. Porém, nos dias conseguintes, uma rede de solidariedade se formou em torno da atriz. Outras colegas de profissão reiteraram as denúncias de Stoya, relatando casos semelhantes de abusos por parte do ator. Cerca de dez profissionais divulgaram publicamente os casos, constrangendo Deen e obrigando-o a se retirar das redes sociais. Jenna Jameson, outra famosa atriz pornô e amiga de Stoya, disse em 2013 em uma entrevista ao jornal britânico Telegraph que se insurgir contra abusos tem más consequências para as atrizes, que sofrem retaliações e têm dificuldades de encontrar novos trabalhos depois de fazê-lo. Mas ela acredita que, com a ampla divulgação que o caso James Deen teve, as coisas podem estar mudando. Todos esses fatores, somados aos altos índices de depressão e consumo excessivo de drogas pesadas, acabam por colocar o ofício de ator e atriz pornô como um dos mais perigosos e humilhantes do mundo.
financeiras. “Acho que, em seis anos de carreira, nunca usei uma camisinha. Minha primeira cena, inclusive, foi um anal forçado em que eu não sabia antes que seria daquele jeito”, afirma Joice. A atriz teve de lidar com três diferentes tipos de DST’s durante o período em que atuou. Devido às péssimas condições de saúde física e mental, abandonou a indústria em 2009 e resolveu achar outros meios de renda para sustentar a filha pequena, de apenas oito anos. “Foi difícil encontrar um emprego. Assim que eu era ‘reconhecida’, era questão de um mês até ser demitida.” Joice, que chegou a trabalhar como prostituta nas ruas por um período, hoje se declara feliz em seu emprego em uma loja de roupas. Quando questionada sobre a possibilidade de um dia voltar à indústria, é bem-humorada, mas responde negativamente. Diversas instituições, religiosas ou não, têm se dedicado a dar suporte para as vítimas e a combater os abusos e negligências dos grandes produtores. Entre elas, está a AntiPornography. com, que tem como membro mais famoso a ex-atriz Cameron Bay.
que os produtores pagam bem e poucas meninas têm coragem de fazer. Eduardo*, produtor de filmes pornográficos, contrata atores e atrizes para gravar cenas e enviar a grandes distribuidoras credenciadas. “A verdade é que quanto mais extremo for o filme, mas eles pagam por ele”, admite. “Se um produtor faz o superanal, pra você ganhar mais dinheiro deve fazer o supermega-anal, e o seu concorrente tem que fazer um mais extremo ainda para ganhar mais que você.” Eduardo fala que a instabilidade econômica é grande, mas, quando as quantias são generosas, o trabalho acaba valendo a pena. “Tem meses em que você não consegue nem mil reais. Mas aí no outro mês você faz um filme com uma atriz famosa, ganha R$ 6 mil e se segura pro resto do ano. O retorno é bom”, conta. Eduardo diz que a melhor maneira de tratar com as atrizes é ser honesto e falar exatamente o que quer para seus filmes a elas. Diz saber que por vezes possam ocorrer abusos, mas acha que isso deve ser encarado como normalidade por quem “quer ser do ramo”.
No Brasil
conteúdo extremo
O outro lado
Joice*, ex-atriz pornográfica de 32 anos, relata que no Brasil (e no Rio Grande do Sul) a vida para as mulheres que querem viver de pornô é ainda pior. Como o mercado é mais estrito e menos vigiado, ocorrem toda sorte de abusos profissionais e humanos com as atrizes, que se sujeitam devido às más condições
Facial Abuse. Esse é nome de uma das principais modalidades de pornô encontradas na internet. As cenas consistem basicamente de sexo oral forçado, explorando os limites da garganta, seguidos de tapas, socos e até cuspes no rosto. Dentre as atrizes que iniciam sua carreira, esta é uma das alternativas, já
Outro problema praticamente invisível que é trazido à tona pelo pornô, e que não atinge diretamente atores ou produtores, é o do consumo em excesso por parte de quem assiste, que pode levar a um vício. Vício esse que, assim como todos os outros, atrapalha o andamento da vida das pessoas.
PRIMEIRA IMPRESSÃO | 24 | JULHO DE 2016
Atualmente, não há diagnóstico de vício em pornografia no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – DSM). Porém, diversas entidades e pesquisadores apontam para exatamente o contrário, devido, principalmente, ao advento da internet. O Instituto de Psicologia Aplicada do Brasil (INPA) atualmente possui vários profissionais focados na área. O vício em pornografia traz uma série de problemas comportamentais e sexuais, causando perda de libido e dificuldade de interação social. Carlos*, estudante de engenharia, 23 anos, não sabia dessas consequências. Pelo menos até reparar que sua vida desmoronou. Ele se declara um ex-viciado em pornografia. “Minha ex-namorada foi a primeira a reparar. Depois disso, minha família notou que eu me excluía, que não interagia nem com eles e nem com amigos. Eles viram que havia algo de errado”, diz Carlos, que demorou até perceber que o até então inocente ato de assistir conteúdo erótico causava problemas a ele. “Foi apenas quando os que estão na minha volta passaram a se machucar que eu pude perceber”. Com a ajuda de amigos, Carlos resolveu buscar apoio especializado. Con-
sultou com médicos psiquiatras e com o pastor de sua igreja. De início, não aceitou que aquele pudesse ser o seu problema. Até entender o fato de que o consumo excessivo de pornô o tornou distante da realidade, tentando recriar em sua vida um mundo impossível. “O pornô nos dá uma ilusão de que as pessoas são objetos sexuais”, conta. “Isso faz com que criemos expectativas impossíveis. A frustração é inevitável.” Carlos hoje possui uma vida estável, tendo um bom relacionamento com a família e com a nova namorada. Porém, é impossível medir quantas pessoas têm o mesmo nível de consciência que ele, reconhecendo o vício e aceitando-o como um problema. Aquilo que para alguns parece uma fonte de prazer inocente e praticamente orgânica na sociedade, é motivo de problemas e de aflição para os milhares de pessoas que precisam fazer sexo para pagar suas contas. Enquanto homens brancos adolescentes ou adultos (maiores consumidores deste tipo de conteúdo) se divertem anonimamente às custas de alguns minutos de vídeos de sexo, pessoas morrem por complicações de saúde e são humilhadas para que tudo continue como está e para que o lucro continue
chegando para as grandes empresas desse tipo de entretenimento. O título de um texto do site Papo de Homem, escrito pela jornalista Gabriella Feolla, define bem o sentimento dessas pessoas: “Precisamos falar sobre o pornô”. (*) Os nomes foram alterados para preservar a identidade dos entrevistados.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER Desenvolver essa pauta foi esclarecedor para mim. Eu tinha o pornô como um entretenimento como qualquer outro, mas pesquisar e conhecer esse submundo da indústria despertou o meu olhar crítico sobre esse conteúdo. Olhar para o vazio dos olhos das pessoas que tiveram suas vidas abaladas por isso despertou meu lado humano. O pornô faz mal, em diferentes níveis, para quase todo mundo. E essa é uma realidade da qual não falamos. Enquanto fazia a matéria, tinha cada vez mais certeza de que é urgente que se faça uma discussão mais profunda sobre o assunto. Não de maneira moralista e preconceituosa, como alguns veículos de comunicação fazem, mas tendo empatia e respeitando os seres que acabaram chegando lá – seja qual for o motivo. O meu pensamento inicial ainda perdura: o pornô pode, sim, ser um entretenimento como qualquer outro e pode até mesmo ser útil, na medida em que ajuda as pessoas a conhecerem os próprios corpos e a se libertarem de tabus. Mas para que algum dia alcancemos isso, devemos promover uma profunda reforma cultural na indústria pornográfica, atingindo um novo patamar, no qual as pessoas sejam respeitadas e tenham a sua humanidade garantida. Lá existem pais, mães, filhas, irmãs, colegas de trabalho, de escola, faculdade, enfim, seres humanos que existem e querem o melhor para suas vidas. Assim como todos nós. Não nos cabe julgá-los e muito menos usar estes sonhos para desrespeitá-los e diminuí-los enquanto seres humanos.
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O treinador Abílio dá esperança de um futuro melhor para jovens lutadores
Golpe certeiro
E
mbaixo de um viaduto na cidade de Esteio, na Região Metropolitana de Porto Alegre, existe um ginásio de esportes. Visto de fora, o ginásio parece um pouco abandonado, com algumas janelas quebradas e paredes sujas e pichadas. Dentro, a ideia de abandono desaparece. Embora as janelas quebradas ainda estejam lá e a iluminação seja fraca, devido a algumas lâmpadas estarem queimadas, o clima é de alegria. No meio da quadra, onde deveria estar o círculo central, há algo maior: um ringue. Mais uma olhada, e em volta do ringue existem pessoas socando sacos de pancadas, marretando um pneu grande, pulando corda e amarrando bandagens à mão. Todas fazem parte do Programa Integrado de Inclusão Social (PIIS). Esse é um projeto da prefeitura que tem como objetivo dar uma ocupação para os jovens moradores da cidade. Mas a simples ocupação de tempo virou algo muito maior, rendendo
Lutadores fazem história em Esteio, município da Grande Porto Alegre Por MATHEUS ALVES Fotos ÉMERSON DA COSTA títulos históricos para a cidade. Abílio Mendes, este é o nome do professor que conseguiu extrair o potencial de garotos, até então, desacreditados. Para contar a história desses vencedores é necessário conhecer um pouco mais do técnico. Abílio hoje tem 35 anos, e sua vida no boxe começou há quase 20 anos, quando ele tinha 17. “Nunca tive regra. Era um atleta que não tinha disciplina, bebia, fumava. Não estava nem aí”, relembra Abílio, que encontrou no trabalho de técnico uma oportunidade única
de utilizar suas habilidades. A prática de treinar outros atletas está presente desde o começo da caminhada de Abílio. Ainda aos 17, ele treinava em uma acadêmica em Esteio. Quando o técnico não podia comparecer, era ele que realizava os treinamentos dos colegas. Aos 19 anos, se mudou para o litoral. Vivendo em Torres e trabalhando na cidade de Rondinha, o jovem Abílio não aguentou ficar parado e pediu permissão para a Federação Gaúcha de Boxe para abrir uma academia na cidade onde trabalhava. Seu pedido foi aceito e lá ele começou a lecionar boxe para cerca de 15 alunos. No entanto, o destino queria mesmo que ele se fixasse na cidade de Esteio. Então, após anos lecionando boxe no litoral, voltou para o município, onde abriu uma academia com amigos. No mesmo ano que fundou o espaço, Abílio realizou um curso de técnico de boxe, oferecido pela Federação. Com mais experiência e conhecimento para guiar seus alunos, o PRIMEIRA IMPRESSÃO | 27 | JULHO DE 2016
Gabriel Moro (à esquerda) perdeu 45 quilos em um ano e hoje é campeão brasileiro
treinador deu apoio para seus atletas e começou a levá-los para competições. Em 2005, Abílio formou seu primeiro campeão estadual. Paulo Eduardo Teixeira foi campeão invicto. Com o sucesso no treinamento de jovens boxeadores, o treinador foi chamado para integrar o grupo do PIIS e dar aulas para crianças carentes de regiões desfavorecidas de Esteio. “Foi uma decisão difícil. Meus colegas me julgavam, diziam que não era uma boa ideia ensinar um esporte violento para pessoas que já eram violentas”, relembra com tristeza. Mesmo com os contras, aceitou o desafio e não se arrependeu. Eram 25 alunos do bairro Primavera, um dos mais violentos de Esteio na época. Os resultados foram os melhores possíveis. Os alunos conseguiram transformar a violência em um combustível sadio para o esporte. “Houve evasões, claro, mas conseguimos trabalhar bem com diversos jovens.” Depois do sucesso no bairro primavera, Abílio foi convidado a estender suas oficinas a outras comunidades da cidade. “Na Casa de Cultura foi ótimo, pois conseguimos pegar alunos de diversas bairros de Esteio, já que fica numa região mais central.” A partir do crescimento do projeto, Abílio foi noPRIMEIRA IMPRESSÃO | 28 | JULHO DE 2016
tando um potencial grande nos jovens. “Não tinha porque não levar eles a competições. Às vezes, quando tu treina e aprende o boxe, e não tem como colocar em prática o que tu aprendeu, tu vai testar nas ruas.” E, pensando nisto, foi montada, em 2013, uma espécie de seleção, com os dez melhores lutadores das oficinas. Logo na primeira competição, a recompensa por todo o trabalho duro veio. Foram oito competidores de Esteio e sete medalhas conquistadas pelos jovens. Ali ficou claro que Esteio tinha potencial de ir mais longe. E foi. O hobby que virou profissão No ginásio de treinamento, um rapaz alto, branco, de cabeça raspada chama a atenção. Apesar de corpulento, o garoto é rápido. Um “Ah!” é escutado toda vez que ele soca a mão do treinador. Ele é Gabriel Moro, de 18 anos, atual campeão brasileiro em sua categoria, a partir de 96Kg. Gabriel conta que começou a praticar esportes para perder peso. “Tentei de tudo, futebol, basquete e até remo”, conta. Mas quando chegou no boxe, como ele mesmo diz, foi amor à primeira vista. No final de um ano de treinamento, Gabriel perdeu 45Kg. Mas
não foram só esses os resultados obtidos pelo jovem lutador. “Antes eu era muito agressivo. Não era brigão de rua, mas meu temperamento era muito forte. Hoje tenho disciplina, consigo reverter essa raiva para dentro do ringue.” O relacionamento com sua mãe também teve uma mudança significativa. “Eu brigava muito com minha coroa, chegava em casa e só discutia com ela. Hoje eu consigo chegar em casa e conversar, dar carinho pra ela”, conta. A vida de lutador de Gabriel não foi fácil. Depois de treinar muito para um campeonato, não pode participar porque quebrou a clavícula. Mas isso não desanimou o jovem. Voltou a treinar duro. Quando foi participar, então, do seu primeiro campeonato, mais uma vez teve problema na clavícula e ficou fora. Em momento nenhum Gabriel pensou em parar ou desistir da vida de lutador. Continuou se dedicando aos treinos e, quando finalmente conseguiu estrear em um campeonato, foi à final. Enfrentou um oponente que não conseguiu vencer, ficando com o segundo lugar no Campeonato Brasileiro de 2014. A subida ao pódio lhe rendeu um incentivo a mais para continuar na estrada do esporte. Gabriel recebeu a Bolsa Atleta. Um
O Programa Integrado de Inclusão Social (PIIS), da prefeitura de Esteio, tem como objetivo dar uma ocupação para os jovens da cidade
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valor mensal dado aos três primeiros colocados. A única exigência para continuar com a bolsa durante o ano é se dedicar exclusivamente para o esporte. E, assim, Gabriel o fez. Continuou treinando ainda mais para, no ano seguinte, conseguir a bolsa novamente. E no Campeonato de 2015, com mais experiência, conseguiu subir ao lugar mais alto do pódio, garantindo a bolsa por mais um ano. Quando fala de seu treinador, Gabriel é direto. “Tudo que sei do boxe hoje em dia aprendi com ele. Ele é um cara que está sempre ali para te apoiar nas tuas decisões”, afirma. No ginásio, outro Gabriel se destaca, tanto pela altura, quanto pela técnica. É Gabriel Oliveira, conhecido como Gigante. Apesar do tamanho, Gigante tem apenas 16 anos. Com uma voz forte e um sorriso envergonhado, Gigante conta que começou a lutar por influência de um amigo. “Ele nem participa mais das oficinas. Mas eu não penso em outro caminho se não o boxe.” Nem teria outro caminho a seguir. Hoje Gabriel também é campeão estadual e recebe a bolsa atleta. O jeito envergonhado entra em conflito com seu tamanho, mas, quando sobe no ringue, a confusão desaparece junto com a vergonha. Gabriel é um
verdadeiro Gigante, usando a envergadura e rapidez a seu favor. Assim como Gabriel Moro, Gigante tem um laço forte com seu treinador. Quando Gigante tinha apenas oito anos, seu pai faleceu. “Minha mãe criou a mim e a meus irmãos fazendo o papel de mãe e de pai ao mesmo tempo”, desabafa. Desde que começou a treinar, viu em Abílio uma figura paterna, que até então não tinha. “Considero ele como um pai pra mim.” Como o PIIS é um projeto social criado e mantido pela prefeitura, Abílio conta a preocupação dos alunos com a manutenção do projeto, já que com as eleições a administração pode mudar. “Eles me perguntam sempre como vai ser no ano de 2017, se vai mudar alguma coisa.” A dúvida e a preocupação dos alunos ainda seguem. Mas uma coisa é certa, o projeto fez história no município. Quando perguntado sobre as conquistas e medalhas que o projeto já trouxe à Esteio, Abílio fica em dúvida. “Não vou te dar certeza, mas em torno de 200 medalhas”, conta orgulhoso. Depois de tantos empecilhos, o treinador pode afirmar com todas as letras o que fala sempre. “É um projeto que tinha tudo pra dar errado, mas agora prova o contrário.”
Logo quando entrei para o curso de Jornalismo, eu me sentia um pouco deslocado. Era o único dos alunos a não ter o sonho de ser jornalista desde pequeno, ou nunca ter tido um blog, ou coisa parecida. Entrei no curso por, na hora de escolher, achar que seria algo interessante a fazer para ganhar a vida. Mesmo assim, eu soube, desde a primeira aula, que era isso que eu queria para mim. Hoje, na reta final, já conheci bastante gente e tive a oportunidade de contar a história dessas pessoas. Histórias como a desses boxeadores que, saindo de lugar nenhum, foram à luta e conseguiram seu lugar. Eu já conhecia, um pouco por cima, o trabalho realizado pelo Abílio com os guris. Mas poder entrevistá-lo e ver de perto o empenho de todos eles foi algo muito gratificante. Mesmo com algumas condições precárias, dá pra ver nos olhos deles que o esforço é real. No meio da conversa com o Gabriel Moro, eu perguntei como era gostar de um esporte que se toma porrada o tempo todo. Ele respondeu, com um brilho nos olhos, que essa era a paixão dele. Ele não liga para dor. No final das contas, a dor é só mais um, dos inúmeros obstáculos que eles enfrentam.
PRIMEIRA IMPRESSÃO | 29 | JULHO DE 2016
Para Deise, a suspensĂŁo ĂŠ uma forma de se sentir leve e relaxada
Elevação da alma
D
eitada de bruços em uma cama dura, ela se prepara para mais uma experiência única e pessoal. Sente o sol da tarde aquecer mais um dia frio na Serra Gaúcha. Sua pele aguarda uma quentura desconhecida, antecipando o frio afiado de ganchos virgens e profanadores. Deise está prestes a passar por uma tentativa intrigante, intensa, complexa e, de alguma forma, misteriosa. Em breve, ela sentirá a agulha lhe morder a carne e um fio quente escorrer por suas costas; depois sentirá sua pele puxar, puxar. A tensão aumentará muito. Daí para frente, ninguém sabe o que acontecerá. Suas sensações e sentimentos lhe pertencem. Só a ela. Ganchos, cordas, agulhas, pele. Essas quatro palavras unidas em uma única frase podem deixar qualquer leitor receoso. Mas, para os praticantes da suspensão corporal, esses quatro substantivos representam liberdade, satisfação e leveza. Significam, acima de tudo, renovação. “Além da parte espiritual, todas as vezes que me suspendi, eu transcendi.” Essas são palavras de Deise Bianchi, 25 anos, suspender - pessoa responsável pelos estudos - do grupo Corpo Suspenso, de São Marcos, na Serra Gaúcha. Segundo ela, a suspensão faz com que se sinta leve e relaxada. “Não existem palavras para dizer o que a gente sente.
Apesar da dor, a suspensão corporal é vista, pelos praticantes, como renovação e liberdade Por Michelle Oliveira Fotos PRISCILA SERPA
Só sentindo na pele mesmo.” Deise é casada com Junior Bertola, conhecido como Sideral, 30 anos, seu parceiro na formação do grupo. Ele se suspende há quatro anos e também é suspender da equipe. Segundo ele, a atividade lhe traz superação física e psicológica, renovação de energias e um sentimento indescritível. “Eu faço pela sensação que me dá. Não me importo se tem alguém olhando. Tô nem aí”, conta ele. O suspender também é responsável pela ancoragem, no caso, a montagem do equipamento. Conhecendo algo novo Andiane Sandi, 25 anos, é vendedora e se suspende com a equipe há
dois anos e meio. A praticante conta que conheceu a suspensão corporal através de Deise. “Eu sempre tive problemas em beber demais, essas coisas. Sempre quis experimentar algo novo, que me desse mais adrenalina. Eu queria provar que conseguia fazer algo sozinha.” Andiane conta, ainda, que 2015 foi um ano muito delicado para ela e que ficou um ano e meio sem suspender. “Eu tinha decidido dar um tempo de tudo. Me suspender depois de tanto tempo parada teve um gosto especial. É mais importante que a primeira.” A data escolhida por Andiane para reingressar no mundo da suspensão foi 1 de maio de 2016. Era um domingo frio, em que a temperatura teimava em fugir dos 10oC. O local era um parque municipal, o qual o grupo tem autorização da Prefeitura para utilizar. A vendedora chegou à tarde e logo foi deitando na maca estéril. O nervosismo era claro em sua face. Andiane deitouse de bruços para que os ganchos lhe penetrassem as costas. Ela havia topado fazer o que chamam de “totem” – posição onde dois ou mais praticantes ficam emendados. Suas costas estariam conectadas com os joelhos do colega William. O nervosismo da dupla não cessou até que ambos estavam flutuando. Alguns minutos após o totem, Andiane suspendeu-se sozinha, pelas costas, para, então, em
Andiane (acima), que se suspende há dois anos e meio, gosta da adrenalina que a prática proporciona. William é o único brasileiro autorizado a fazer suspensão pelo rosto
sua concepção, deliciar-se com as sensações provindas da atividade. A vendedora explica que, depois que iniciou a suspensão, sua vida mudou da água para o vinho. “Comecei a confiar mais no meu potencial. Mesmo com medo, aprendi a encarar o novo. Acredito que quem quer, consegue. ” O grupo Corpo Suspenso é o primeiro no Brasil a realizar uma susPRIMEIRA IMPRESSÃO | 32 | JULHO DE 2016
pensão pelo rosto. A ideia partiu de William Galimberti, membro da equipe desde 2014. Deise conta que chegou a perguntar para vários profissionais da área no Brasil se já haviam feito algum procedimento semelhante e todos responderam que não. “Conhecemos os maiores nomes de suspensão no Brasil. Todos disseram a mesma coisa. Então fomos os primeiros. Só publicamos o ocorrido na nossa página no Facebook.
Não fizemos para aparecer, nem para sermos os primeiros”, afirma. Após meses de estudo, o desejo se concretizou em dezembro de 2014. “A sensação é bem estranha. Eu concentro só na cabeça, parece que não tenho o resto do corpo. É engraçado o som da pele descolando e estalando. Bem semelhante a uma camiseta se rasgando. Quando volto ao chão, parece que eu saí de uma cama elástica. E o corpo inteiro fica com formigamento”, explica William. Da dor ao transe Fisicamente, uma suspensão representa uma sensação de ardor, de pele esticando e dor de uma só vez. A
suspensão representa para os praticantes, basicamente, sensações de euforia e liberdade. De um lado, há pessoas que entram em estado de transe, sem dor alguma. Em outros casos, há pessoas que sentem dor extrema, náuseas e ataques de pânico durante uma suspensão. Em geral, a maioria das pessoas entra em um estado de choque induzido e desorientação enriquecida com momentos de dor e euforia. Em termos leigos, o ato da suspensão faz com que o corpo e a mente entrem em um estado de choque ao ser fisicamente posicionado e contido. Segundo Daniel Lírio, psicólogo e autor do livro Suspensão corporal: novas facetas da alteridade na cultura contemporânea, uma das perguntas que causa mais incômodo aos praticantes sobre a suspensão, está relacionada à dor. “Normalmente quem se dirige a essas pessoas já se dirige com algum preconceito. A linha entre prazer e dor é extremamente tênue. É como ficar entre o céu e o inferno”, afirma. A suspensão corporal através das épocas Historicamente, as suspensões foram realizadas como rituais de passagem, cura, de penitência, rituais de devoção ou como meio de obter visões, deixando corpo e mente em comuni-
cação com o mundo espiritual. Um exemplo de ritual é a “Dança do Sol”, feita por nativos norte-americanos, em que a pessoa é perfurada no peito ou nas costas, presa a uma árvore sagrada, e então puxam as cordas até as perfurações se romperem. Esses rituais foram construídos sobre os alicerces de suas culturas e, para compreendê-los, é preciso entender a cultura em primeiro lugar. Em geral, esses rituais eram um poderoso elemento espiritual. Mais sobre o Corpo Suspenso Formada há três anos, a equipe de São Marcos é constituída por 12 membros e participa de festivais, apresentações em convenções, eventos e shows. Caracterizado pela organização, o grupo utiliza equipamento de rapel para a realização das suspensões. A equipe, patrocinada fortemente pela empresa especialista em itens para tatuagem e piercings Painful Pleasure, também faz seções privadas, objetivando a superação pessoal, autoconhecimento e renovação de energias positivas. Para se suspender com a equipe, é necessário ter no mínimo 18 anos e preencher um questionário sobre a saúde – como tipo de sangue e problemas cardíacos.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER “Isso é um ritual satânico. É coisa do demônio”, foi a primeira coisa que minha mãe disse quando contei qual seria minha pauta. A suspensão corporal nunca foi uma atividade bem vista a olhos não treinados, mas, para os praticantes, é tida como sinônimo de libertação e renovação. Nossa viagem até São Marcos foi de muita neblina. O termômetro do carro bateu os 3oC. O parque escolhido pelo grupo era aberto, o que fez com que nossos queixos batessem ainda mais freneticamente. Com o Sol chegando, e a adrenalina subindo, o corpo foi, finalmente, esquentando. Passamos o dia em São Marcos, conhecendo e admirando cada vez mais o trabalho feito pela equipe. Saímos de lá tendo a certeza de que suspensão corporal pode ser de tudo, menos coisa do diabo.
Experiência na pele Eu também pensava, assim como muitas pessoas, que suspensão corporal era coisa de maluco. Chegando na pauta, vi que não era bem assim. Quem faz suspensão tem um motivo próprio para realizar esta atividade. A experiência desta sensação é muito particular. Eu fiz a perfuração com o gancho para poder sentir um pouco desta experiência. Não me suspendi, mas a perfuração já foi o suficiente para entender parte deste universo. Seu corpo, suas regras. Cada um eleva seu espírito como se sente melhor, contanto que não faça mal aos outros. PRISCILA SERPA, fotógrafa
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Marjorie, 42 anos, foi diagnosticada com TOC hรก apenas onze anos. Assim como ela, a maioria dos portadores da doenรงa demora a descobrir que sofre do transtorno
Sofrimento involuntário
I
magine que um determinado pensamento aprisionado em sua mente seja reproduzido milhares de vezes, repetidamente e que, independente do que você faça, a reprodução continue involuntariamente. E se, acompanhado a esse pensamento, você sentisse uma intensa sensação de ansiedade que lhe causasse impressão de que algo ruim vai acontecer. É mais ou menos essa sensação que as pessoas diagnosticadas com Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC) vivem diariamente. Uma ansiedade paralisante e sem fim. A ansiedade é um sistema de alerta dentro do nosso cérebro que nos pede para responder, reagir ou nos proteger. Ela nos causa impressão de que o medo é real e intenso. Por isso indivíduos diagnosticados com TOC necessitam reagir sistematicamente para que essa sensação de angústia lhes cause menos incômodo. Essa é a realidade dos Joãos, Josés, Marias, Franciscos e de tantos outros que convivem com compulsões e obsessões, como Marjorie. Marjorie Aline Bernardes da Silva, 42 anos, convive desde criança com a necessidade de manter tudo no lugar.
O Transtorno Obsessivo Compulsivo afeta 140 milhões de pessoas no mundo. A maioria delas nem sabe que pode estar sendo vítima de uma doença grave, devastadora e limitante Por Liege Pereira Barcelos Fotos VICTÓRIA FREIRE No entanto, escutou pela primeira vez a expressão Transtorno Obsessivo Compulsivo há pouco mais de onze anos. O chefe do escritório de contabilidade onde trabalhava lhe chamou a atenção para seu comportamento demasiado organizado. Após observar suas atitudes durante um período, o então gestor, casado na época com uma psiquiatra, sugeriu que ela pro-
curasse um profissional especializado no assunto. Não deu outra, Marjorie foi diagnosticada com TOC. Mas o que é o TOC? É um transtorno mental classificado pela American Psychiatric Association dentre os chamados transtornos de ansiedade. O psiquiatra Luiz Felipe Borba Vieira, considera o TOC uma das doenças mentais com maior sofrimento ao indivíduo. São considerados sintomas as variações comportamentais (rituais ou compulsões, repetições, evitações), alterações de pensamentos (preocupações excessivas, dúvidas, pensamentos de conteúdo impróprio ou ruim e obsessões) e das emoções (medo, desconforto, aflição, culpa, depressão). Associação Gaúcha dos Portadores de TOC (Agatoc), estima que 200 mil gaúchos sejam portadores do transtorno. No Brasil, cerca de sete milhões. A maioria dessas pessoas desconhece que tais sintomas estejam relacionados a uma doença que é considerada o segundo problema mais recorrente na psiquiatria, atrás apenas da depressão. A Organização Mundial de Saúde (OMS) considera o transtorno como uma das dez disfunções mais extenuantes ao ser humaPRIMEIRA IMPRESSÃO | 35 | JULHO DE 2016
no, causadora de impactos diretos na vida das pessoas e familiares. Esse transtorno se manifesta normalmente em jovens ao final da adolescência. Se não tratado, seus sintomas perduram por toda a vida, aumentando e diminuindo de intensidade. Podem incapacitar os portadores ao trabalho, limitar a convivência com amigos e familiares e, em casos extremos, levar ao suicídio. “O paciente com TOC vive uma dor psíquica intensa que afeta todos ao seu redor”, acrescenta Luiz Felipe. Mesmo com uma extensa lista de malefícios, o TOC ainda é tratado com descaso. A omissão de informação a respeito da patologia e a abordagem inapropriada por parte dos programas de televisão contribuem para um entendimento errado do problema, o que favorece a criação do estereótipo de que o transtorno está relacionado a insanidade mental do sujeito. Esses fatores cooperam para a ausência de consciência coletiva sobre o tema, prejudicando aqueles que sofrem com o distúrbio. Marjorie sente os efeitos da falta de informação das pessoas presentes em seu dia a dia. Apesar de se aceitar com o TOC, ela gostaria que as pessoas tivessem mais informações sobre o assunto. “Aprendi a conviver com a maneira engraçada com que os amigos próximos e familiares tratam o TOC.” O comportamento organizado é sua marca registrada. Quando criança, mantinha os brinquedos sempre em seus devidos lugares. Na escola, objetos dispostos simetricamente sobre a mesa denunciavam o espaço da menina. A obsessão e a compulsão a privam de alguns compromissos com amigos e com a família. A necessidade em manter o ambiente limpo e organizado desagradava o ex-marido e foi um dos fatores que contribuíram para a separação do casal. Ela admite que por inúmeras vezes recusou os programas sugeridos por ele para ficar limpando a casa. O ex nunca aceitou a condição de privação que o TOC causava sobre ela. Preferia crer que a PRIMEIRA IMPRESSÃO | 36 | JULHO DE 2016
opção de ficar limpando a casa era desculpa para não o acompanhar. A relação com o filho de 20 anos melhorou depois que eles deixaram de morar juntos: “Eu vivia recolhendo as coisas que ficavam espalhadas pela casa”. Qualquer objeto fora do lugar lhe causa aflição: o potinho sujo na pia
Preocupação excessiva com organização e limpeza é uma das manifestações mais comuns de quem tem TOC
ou objetos espalhados já eram motivo de discussões. Marjorie divide o pátio da residência com a mãe e a avó, mas moram em casas separadas. A mãe não lida muito bem com aquilo que ela trata de “frescuras” da filha. As obsessões de quem têm TOC tendem a ser um problema incapacitante, pois tomam um tempo significativo do indivíduo, causando redução de produtividade no trabalho, o que pode levar a demissão. A aflição por manter as coisas em seus lugares causou desconfortos para Marjorie no ambiente profissional. A “mania” pela sistematização organizacional começou a afetar o relacionamento com os colegas e interferir em sua produção diária. “Perdia tempo útil reorganizando os arquivos no escritório e me indispunha com os colegas por causa disso”, comenta. Atualmente, Marjorie, que trocou de ramo, possui uma petshop, mas realiza as atividades sozinha. O que possibilita seguir com sua rotina sem perturbar ninguém, pelo menos no trabalho. ONDE E COMO PROCURAR AJUDA PROFISSIONAL O tratamento para o TOC é realizado através de medicamentos e psicoterapia. Alguns medicamentos com função antidepressiva possuem ação antiobsessiva. Indicada em dosagem superior ao recomendado para tratar a depressão, a medicação costuma fazer efeito a partir da décima segunda semana de tratamento. Devido aos efeitos colaterais, que são mais intensos nas primeiras semanas de ingestão dos remédios, 25% dos pacientes abandonam o tratamento. Assim que foi diagnosticada, Marjorie iniciou o tratamento com Cloridrato de Setralina, que age regulando os níveis de seretonina do cérebro. A seretonina é uma substância neurotransmissora que, dentre suas funções orgânicas, regula os níveis de ansiedade e controla o comportamento compulsivo. Nos primeiros dias de ingestão do remédio, ela sentiu os efeitos
colaterais. “Fiquei literalmente fora da casinha”, completa. Com o passar do tempo, o organismo se adaptou, e ela passou a ter o controle da situação. Devido ao custo, na época, não conseguiu manter o tratamento. A Terapia Cognitiva Comportamental (TCC) aliada ao uso de medicamentos é o que se tem de mais eficiente no tratamento para o TOC. O princípio da terapia consiste em desafiar os pacientes a viver esses medos, tratando as repostas a essa exposição. Em pouco tempo, a ansiedade e o desconforto por não estarem respondendo ao TOC desaparecem espontaneamente. A TCC foi indicada a Marjorie como tratamento paralelo à medicação, entretanto 11 anos atrás, ela encontrou apenas dois profissionais especializados e nenhum deles atendia pelo plano saúde. Como na época cada uma dessas sessões custava em torno de R$ 200,00, desistiu do método. Com o passar dos anos e os avanços da medicina, o transtorno passou a ser mais conhecido, o que facilitou o acesso a terapia. Mesmo assim, para algumas pessoas se torna inviável, já que são necessárias sessões semanais. O Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) em parceria com a UFRGS oferece tratamento ao TOC gratuito à comunidade. O SUS, através dos Centros de Atendimentos Psicossociais (CAP’s), também disponibilizam tratamento. O paciente dirige-se ao CAP’s da sua cidade, agenda uma consulta de triagem e depois é encaminhado para o atendimento com o profissional especializado. Independentemente do local e tipo de tratamento, o apoio da família e dos amigos é fundamental para evolução do paciente. Todos precisam estar comprometidos e cientes da importância que cada um tem na continuidade do tratamento do indivíduo. É necessário criar consciência e se falar com responsabilidade sobre o TOC. Uma patologia que atinge 2,5% da população mundial não pode ser tratada com descaso. Cuidar da saúde mental é preciso. Vamos falar sobre TOC?
IMPRESSÕES DE REPÓRTER A vontade de elaborar um produto jornalístico sobre o Transtorno Obsessivo Compulsivo surgiu a partir de um comentário preconceituoso da minha mãe, que desmereceu o personagem com TOC de um filme que assistíamos. Aquela manifestação mexeu comigo e me pôs a pensar quantas pessoas tratavam um problema tão sério com o mesmo descaso. A definição da temática da PI foi o estopim para tirar a vontade de falar sobre o TOC da cabeça e por nas páginas da 45° edição da revista. A partir daquele momento, comecei a busca por pacientes dispostos a contar sua história de convívio com o TOC. Semanas de procura, apelos nas redes sociais, conversa com amigos e colegas e nenhuma manifestação interessada em contribuir com o projeto. A essas alturas, eu pensava em um plano B. Em uma terça-feira, uma notificação reacendeu as esperanças. Dois ou três diálogos no aplicativo colocaram um sorriso no rosto da repórter. Vai ter reportagem de TOC na PI, sim! Ao mesmo tempo em que fiquei feliz por alguém ter comprado a ideia, tive receio e medo de não conseguir atender as expectativas da Marjorie, que confiou sua história a mim. Dar voz a uma pessoa através do jornalismo é uma responsabilidade enorme, por isso eu mergulhei fundo no assunto: apropriei-me de literatura, assisti a filmes e séries e falei com profissionais. Não posso me dar ao luxo de decepcionar os milhares de pessoas que vivem o TOC silenciosamente, com medo de que os outros relacionem o transtorno com a sua sanidade mental.
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Felipe (Ă esquerda) esconde sua homossexualidade da famĂlia, enquanto Israel, seu namorado, a vive plenamente
O medo de amar Para algumas pessoas, temer o diferente dentro de si e o diferente que vem do outro transforma viver a sexualidade em um ato dolorido Por JULIA VIANA Fotos DIOGO TRESCASTRO
O
amor entre pessoas do mesmo sexo, por mais que seja retratado na televisão e conte hoje com muito mais simpatizantes do que no passado, ainda sofre com a dor do preconceito. Porém, mesmo enfrentando situações doloridas, o amor permanece e auxilia na aceitação de si mesmo. Encontrar alguém para compartilhar a vida, os momentos bons e principalmente o amor é o desejo da maioria das pessoas. Bons relacionamentos contribuem para a boa saúde, tanto física quanto mental. Mas quando esse amor é “diferente” aos olhos alheios, mantê-lo e vivê-lo não é simples. Esse é o caso de Felipe*. Com 22 anos, o jovem estudante de Relações Públicas da Unisinos descobriu sua sexualidade aos 14 anos. A atração por outro menino o pegou de surpresa. E os dois tiveram um “momento” de descobertas. Porém, mesmo passando por uma experiência prazerosa, o jovem relutava com seus sentimentos. Se relacionou com outras meninas e pensou que o “momento” não passava disso. Resolveu seguir com uma vida heterossexual, mas aquela lembrança e o sentimento por pessoas do mesmo gênero continuavam presentes. DESCOBERTA E REVELAÇÃO Aos 19 anos, Felipe foi a uma festa com os amigos, e, depois de alguns copos a mais, foi impossível controlar aquele sentimento que veio à tona de uma forma “desagradável”, como ele recorda. Felipe teria tentado se aproximar de um jeito mais íntimo de um de seus amigos, que é heterossexual. O desconforto se instaurou na hora, e junto veio a pergunta: “Felipe, você é gay?” A pergunta do amigo e a situação que acontecera durante a festa agora pulsavam em seus pensamentos. A saída foi contar o que estava acontecendo aos amigos. “Eu me sentia seguro PRIMEIRA IMPRESSÃO | 40 | JULHO DE 2016
que não ia deixar de me para falar com eles, pois Segundo o professor Reckziegel, a amar por isso, e sim gossabia que iriam entender representação da tar ainda mais pela mie me ajudar. Meu gruidentidade gay nha coragem de mostrar po de amigos naquele potencializou tanto o preconceito quem eu realmente era.” período me ajudou a quanto a aceitação Ele conta que a reação me libertar e assumir o da homossexualidade da mãe à revelação foi que eu sentia pra mim muito ruim. “Ela entrou mesmo”, contou o estuem choque e disse que isso era uma dante, que lembra ter tido medo do vergonha. Depois de muitas conversas, preconceito e da reação das pessodurante uma semana, ela realmente as próximas. O segredo permaneceu entendeu que ser gay não era escolha entre os amigos mais próximos, Fee sim uma condição, do mesmo jeito lipe resolveu viver sua sexualidade, que ser branco ou negro, alto ou baixo, porém sem contar à família. aceitamos pois não tivemos a escolha. Israel* já assumiu sua homosse“O que mais motivou Israel foi que, na xualidade. “Foi no dia 12 de janeiro época, ele estava namorando. “Eu prede 2015. A princípio minha irmã já cisava libertar aquele grito guardado. sabia. Ela me apoiou sempre, afirmando
Foi um alívio poder deitar no travesseiro e sentir a calmaria. A decisão foi minha, ninguém me ‘empurrou’ pra berlinda, eu tive apoio de amigos e, o principal, de minha irmã e meu ex-namorado”, revela Israel. Mesmo vivendo sua sexualidade em segredo, Felipe começou a namorar Israel há cerca de três meses. “No relacionamento entre eu e meu namorado, respeito e amor tem que haver sempre. Entre nós sempre teve conversas abertas e diálogos sinceros. Brigamos sim, e acho que sempre que se diz a verdade é muito melhor”, explica Israel. A dor do preconceito Israel conta que, na escola, sofria com o preconceito, mas que, com o passar dos anos, os colegas passaram a respeitá-lo mais, e, aos 16 anos, revelou a eles sua homossexualidade. Contudo, para muitos, a situação é diferente. Mesmo com o passar do tempo, o preconceito se torna mais forte e frequente. O tema homossexualidade é pesquisado pelo professor, doutor em Ciências da Comunicação e publicitário José Luís Reckziegel, da Unisinos. Ele conta que o principal causador do preconceito com – e inclusive entre – os homossexuais é o mesmo sentimento que faz Felipe esconder sua sexualidade: o medo. Aliada a ele, a própria representação da “identidade gay”, principalmente na mídia, mesmo que favorecendo a naturalização dessa identidade e o crescimento de simpatizantes e apoiadores, fez com que o preconceito aumentasse. O professor conta que, desde os movimentos contra culturais, a homossexualidade passou por um processo de transformação positiva quanto a sua visibilidade. “Essa liberdade de expressão da identidade gay se tornou alvo de interesse da mídia de modo geral. E isso ajudou muito, tanto em termos de visibilidade, quanto de preconceito”,
explica. “O preconceito reside exatamente no medo que as pessoas têm de enfrentar o diferente, porque não conseguem lidar com sua própria diferença”, acrescenta Reckziegel. amor e representação Mesmo em um relacionamento, o medo mantém Felipe escondendo sua identidade. “Tenho medo de contar para a minha família, pois sinto que será uma decepção para minha mãe. Eu queria contar, mas não consigo”, confessa o estudante. Para enfrentar o medo, a compreensão do namorado está sempre presente para amenizar a dor. “Ele ainda não é assumido por escolha dele. Acho que cada um de nós tem o direito de saber quando, como e onde vai acontecer esse diálogo. Alguns passam por situações complicadas, outros por situações tranquilas. Todos temos medo de rejeições familiares. Estarei sempre do lado dele. Não importa onde, como e quando, o importante é estarmos juntos”, conta o jovem Israel, com lágrimas nos olhos, relembrando as dificuldades desse conflito. Além do sentimento, a representação da identidade homossexual é o que mais influencia na aceitação e combate ao preconceito. Segundo o professor Reckziegel, apesar de ter potencializado o preconceito em parte da população, o reconhecimento da identidade gay também foi auxiliado pela representação e aparição de homossexuais na mídia e de sua utilização em peças publicitárias. Ele conta que hoje, contrariando estereótipos fabricados pela televisão e por conceitos populares, os gays estão em todas as áreas, fazendo, inclusive, grandes e significantes mudanças. “Antes o gay era aquele que seria cabeleireiro, o modelo, ou quem trabalharia com moda. Hoje os gays são médicos, políticos e inclusive cientistas. Ou seja, eles estão fugindo aos estereótipos, mostrando sua identidade e desfazendo uma cultura popular”, pontua o pesquisador. Ele acrescen-
ta que existe uma cultura gay e uma cultura hétero, ambas segmentadas dentro de si, o que é, na verdade, um processo natural. As novas gerações já estão se posicionando, e a adesão e simpatia com a identidade gay vêm aumentando. A representação desses relacionamentos na mídia provoca a conscientização e o combate a dor que o preconceito impõe àqueles que buscam sua liberdade sexual. (*) Os nomes foram trocados para preservar a identidade dos entrevistados.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER Qualquer pessoa pode falar sobre preconceito. Mas é muito mais fácil falar sobre isso quando se está do lado de fora da situação. Conversei com o casal Israel e Felipe, duas pessoas que eu já conhecia, mas cuja dor de manter em segredo os seus sentimentos eu desconhecia. A dor que eles sentem, tanto pelo preconceito quanto pelo medo de sofrê-lo, permanece desconhecida por muitos. Foi essa dor que senti quando ouvi suas histórias, quando entrei em seus mundos e me imaginei negando a minha própria identidade. A conversa com o professor José Reckziegel foi o que me trouxe alívio ao desfazer os nós que tinha em minha cabeça quando tentava entender o porquê de tanto medo de se revelar, e o porquê de tanto medo de aceitar o que é diferente. O que aprendi ouvindo os relatos e as respostas, com certeza, me ajudou a reconhecer melhor a dor do outro.
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GLENDA OTERO
Luto Como lidar com esse sentimento? Por FERNANDA FORNER Fotos ALINE SANTOS E GLENDA OTERO
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ó quem já perdeu um amor, um amigo ou alguém muito importante da família sabe que a dor do luto é um sentimento inexplicável. Porém, necessário. Saber que você nunca mais vai ver aquela pessoa com a qual estava acostumada no seu dia a dia não é algo fácil. Contudo, não dá para se entregar ao sofrimento ruim, afinal, a vida de quem fica tem que seguir. “O luto é um processo que emerge em decorrência da perda de algo ou de alguém. Ele faz parte da vida humana e deve ser naturalizado, no sentido de não se tornar um tabu”, destaca a psicóloga Isadora Machado. O início do luto é marcado por um misto de emoções: choro, choque, raiva, tristeza, solidão e angústia. Cada um domina seus sentimentos de uma forma diferente, porém, a maioria não consegue evitar o vazio e a “dor no peito”. Conforme o tempo passa, o choro e a solidão vão diminuindo, e aos poucos a pessoa volta a se organizar e a enxergar o mundo exterior. Apesar das recaídas serem comuns, Isadora ressalta que é importante falar sobre o luto com quem perdeu alguém, pois falar sobre a morte pode ajudar a aliviar a tristeza.
“Quando ocorre uma perda, é comum ouvirmos as pessoas dizerem para não falar sobre o assunto próximo da pessoa enlutada, para que assim ela não fique remexendo naquilo que já é profundamente doloroso. No entanto, é necessário que haja um espaço para que ela fale sobre o seu sofrimento e viva efetivamente a sua perda, elaborando o seu luto. Esse é um processo natural e precisa ser respeitado, considerando sempre a subjetividade humana”, diz Isadora. Ainda segundo a psicóloga, não há um tempo exato para a aceitação, pois cada um irá responder de uma maneira diferente. Isadora explica que o luto pode durar cerca de dois anos. “O primeiro ano, especialmente, é o mais difícil, pois tudo é vivido pela primeira vez sem a presença da pessoa que morreu: o primeiro aniversário, o primeiro Natal. Nesse caso, é imprescindível o apoio afetivo daqueles que a cercam, permitindo que ela sofra e externalize os seus sentimentos.” A PERDA “Lembro-me exatamente de tudo que aconteceu naquela noite”, recorda
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FOTOS ALINE SANTOS
Vitória Santos, 25 anos, pedagoga. Ela perdeu a mãe, Urana Irene dos Santos Brito, aos 52 anos, no dia 1º de outubro de 2010. Era uma sexta-feira de inverno quando a mãe de Vitória teve uma parada cardiorrespiratória e morreu na presença da filha, na época com 19 anos. Ao chegar da escola técnica, Vitória conversou com a mãe como fazia todas as noites antes de dormir. No entanto, Urana não estava sentindo-se bem. “Naquela noite, fui dormir com ela. Logo após deitarmos, ela sentiu-se mal e fomos para a sala. Ela desfaleceu na minha frente, me ajoelhei e coloquei a cabeça dela sobre as minhas pernas”, relata Vitória. Enquanto Urana estava desacordada, Vitória ligou três vezes para os bombeiros, pegou um casaco para a mãe, que estava de camisola comprida, e separou os documentos e os papéis do convênio. “Fiquei segurando sua mão até a ajuda chegar”, lembra. Os bombeiros levaram Vitória e Urana para o hospital, que ficava perto da casa delas. Como moravam em São Francisco de Paula, uma pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul, todos conheciam as duas. Aos poucos, alguns amigos que moravam perto começaram a chegar. Foi quando o pai de uma amiga disse: “Vitória, há coisas na vida que não conseguimos controlar. A mãezinha morreu”. Naquele momento, a sensação de abandono tomou conta de Vitória. “Fui no banheiro e fiquei sentada por alguns minutos.” Como Vitória era a única familiar que estava no hospital, ela ligou para a avó e para o irmão, cuidou de todos os documentos, liberou corpo e escolheu o caixão. O pai de Vitória sofre de transtorno bipolar e estava internado no momento do acontecido. O enterro de Urana foi no sábado. Vitória lembra que estava chovendo e havia muita neblina. Somente no Ano Novo de 2010 que Vitória conseguiu mexer nas coisas da mãe.
Vitória tinha 19 anos quando sua mãe morreu em seus braços
Urana, a mãe de Vitória, morreu de parada cardiorrespiratória em outubro de 2010, aos 52 anos
“Fiquei com os brincos e com os livros. Meu irmão, Ramon, ficou com o Evangelho Segundo o Espiritismo. O restante das coisas, como roupas e sapatos, nós doamos”, lembra. A saudade maior é das pequenas coisas. “Como contar como foi o dia, dar um abraço ou até mesmo telefonar para contar uma novidade”, destaca Vitória. Ela também relata que não evitou a dor. Nos primeiros anos, como explicou a psicóloga Isadora, foi difícil, mas viver aquele momento foi importante para torná-la mais forte. “Fique desesperada. Viva o luto”, aconselha. A RELEVÂNCIA DO APOIO DOS AMIGOS Assim como Vitória, Fernanda Fauth, 22 anos, também perdeu alguém muito próximo. A estudante de jornalismo tinha 12 anos quando o pai, Luiz Augusto Fauth, morreu aos 51 anos devido a uma metástase causada pelo câncer de testículo. “Meu pai ia realizar a quimioterapia pela primeira vez numa segundafeira, mas no sábado teve uma parada cardiorrespiratória e morreu”, relata Fernanda. Apesar de ter o irmão Rodrigo, 30 anos, como uma referência masculina em casa, Fernanda teve que aprender a lidar com a situação
de não ter mais o pai presente em sua vida. “Eu era uma pré-adolescente que precisava aprender a lidar com a ideia de não ter mais um pai.” Além da dor que estava sentindo, Fernanda teve que apoiar sua mãe. O apoio dos familiares e amigos foi essencial. “Lembro que, após o enterro, no domingo, vários colegas de colégio me trouxeram buquês de flores e perguntaram se eu precisava de algo. Nunca esqueci disso.” Apesar da significativa perda que sofreu, Fernanda jamais deixou de estudar. “Na segunda-feira, eu tinha uma prova de inglês e resolvi que eu ia realizá-la. E estudei. Porque eu sabia e sei que meu pai não queria que eu ficasse de luto. Logo após ele falecer, tive um sonho com ele. Ele me abraçava e dizia que eu passaria por muita coisa ainda, mas que iria ficar tudo bem e que estaria sempre comigo. Eu acredito nisso, que ele está comigo em outro plano”, conta. Para Fernanda, superação é uma palavra muito forte. Na realidade, se aprende a conviver com a perda, mas a saudade é eterna. Não se pode, no entanto, deixar de viver a vida. Depois do período de luto, vem o de superação e o de recomeço. A vida é feita desses momentos, e o importante é seguir em frente.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER Escrever sobre o luto foi algo desafiador. Primeiro, por ser um tema que mexe com os sentimentos dos entrevistados. Eu estava extremamente cuidadosa na maneira de como perguntar sobre algo tão íntimo. Segundo, porque tive que escrever e reescrever várias vezes o texto para que ele não ficasse tão triste. Queria que, ao ler minha reportagem, os leitores percebessem que o luto é uma fase triste da vida pela qual, infelizmente, todos nós vamos passar. Como disse Vitória, temos que viver essa dor, nos permitir chorar. Acredito que só assim se consiga seguir em frente. Afinal, a vida de quem fica tem que seguir.
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O conhecime que nĂŁo pode ser
ento preso
Encarcerado durante a ditadura militar, Carlos Araújo descobriu na Ilha do Presídio um dos maiores prazeres de sua vida Por Vinícius Bühler da Rosa Fotos KARINE DALLA VALLE
S
ão muitos os caminhos que tomamos durante a vida. Alguns podemos escolher. Outros nos são impostos. Os caminhos que o advogado trabalhista Carlos Araújo foi obrigado a tomar o ensinaram o significado da palavra dor, mas também lhe fizeram aprender a transformar essa dor em prazer. O exmarido de Dilma Rousseff transformou
Para fugir da tortura, Carlos Araújo tentou o suicídio
a vida clandestina, prisões, torturas e uma tentativa de suicídio em uma incessante busca por conhecimento, o que, para ele, é o segundo maior prazer da vida de qualquer pessoa. Natural de São Francisco de Paula, Araújo veio para Porto Alegre aos 14 anos. A militância começou cedo. Aos 15, na cidade de Pelotas, foi preso pela primeira vez. A dor o acom-
panha desde então, mas não uma dor física, que viria a conhecer mais tarde. Era a dor da luta. “Mesmo a dor que não é física, às vezes, é tão dolorida quanto a dor física pela angústia que traz”, diz. Essa dor era compensada pela realização pessoal em participar com energia das lutas propostas. “A dor acompanha a gente permanentemente, mas ela é sempre suplantada pela alegria de estar lutando”, conclui. No dicionário de dores de Carlos Araújo, a dor física entrou apenas no ano de 1970. Preso em São Paulo, foi encaminhado ao presídio Tiradentes, onde era torturado todos os dias. Os militares queriam saber onde ele morava e qual o ponto de encontro com os companheiros. Araújo viu que não resistiria à dor continuada e tomou a única decisão que via como uma saída honrada: tentaria o suicídio. O então preso político mentiu aos seus carcereiros que os levaria até Carlos Lamarca, um dos líderes da oposição à ditadura militar. O encontro falso aconteceria em uma rua onde veículos passavam em alta velocidade. “Era só fazer ‘assim’ com o corpo. Pá! Morreria.” Sabendo que, caso sobrevivesse, a tortura quando voltasse ao presídio seria pior, Araújo foi levado ao ponto de encontro. Os militares deram cinco minutos para que ele encontrasse Lamarca. O tempo foi usado para decidir na frente de qual carro se atiraria. “Veio uma Kombi com uma pessoa dentro. Me atirei. Foi uma confusão desgraçada, mas eu não morri. Eu só queria estar bastante ferido para ser levado a um hospital. A dor era bem-vinda naquele momento, porque ela ia me salvar”, conta. Ferido, foi levado para o Hospital das Clínicas de São Paulo. Do Hospital das Clínicas, Araújo foi transferido para o Hospital do Exército e depois voltou para a prisão. A tortura diminuiu. Apanhava a cada três dias. Do Presídio Tiradentes, foi enviado para uma prisão no Rio de Janeiro. Araújo voltou para São Paulo, onde ficou preso por mais um ano e meio até, enfim, ser transferido para a Ilha do Presídio, em Porto Alegre.
A Ilha do Presídio A casa onde, hoje, vive Carlos Araújo, no bairro Assunção, em Porto Alegre, fica à beira do rio Guaíba. Antes dele, seus pais viveram na mesma casa. Das janelas, pode-se ver, ao longe, um pequeno amontoado de árvores em meio ao rio. Na ilha, conhecida como Ilha do Presídio, foi construída uma prisão em 1950 que, durante o regime totalitário, serviu como cárcere de presos políticos. Foi para lá que os militares enviaram Araújo depois das passagens por prisões de São Paulo e Rio de Janeiro. De volta à capital gaúcha, encarcerado a poucos quilômetros da casa dos pais, Araújo já não era mais torturado, pois não havia mais nenhuma informação que os torturadores poderiam tirar-lhe. Entre as paredes com mais de um metro de espessura, pouco restava, a não ser tentar transformar a dor do cárcere em prazer. E foi o que ele fez. Carlos Araújo pensa que a vida é muito complexa. Para ele, as amizades são complexas, os amores são complexos, as relações familiares são complexas. Estar preso, naquela época, também era. “Ninguém gosta de estar preso, obviamente, mas depende muito de como a pessoa se sente. Teve companheiros que ficaram desesperados, era uma tortura para eles. Para mim não foi. Na verdade, foi um período muito interessante da minha vida”, lembra. Desde os 14 anos, Araújo trazia consigo uma formação ideológica esquerdista. Era a favor do socialismo, pois queria igualdade, fraternidade e justiça, mas reconhece que não tinha nenhum conhecimento da realidade. Para conhecer essa realidade, era preciso estudar, e a Ilha do Presídio foi sua escola. “Na cadeia, a primeira pergunta que me fiz foi: qual é o dever de uma pessoa que se julga revolucionária e socialista quando está presa?”, a resposta que deu para si mesmo foi: “O principal dever é se preparar para a luta para quando sair daqui. É estudar”. Preso, Araújo passou a estudar muito, de forma metódica. Por dia, os estudos improvisados em qualquer canto
da cadeia chegavam a durar 15 horas. Nos livros, obtidos por suborno aos agentes penitenciários ou trazidos por visitas, ele descobriu o segundo maior prazer da sua vida. “A única coisa que se aproxima de um orgasmo sexual é o orgasmo do conhecimento”, afirma. Hoje, ele vê que o cárcere na Ilha do Presídio acabou sendo um período de desenvolvimento intelectual. “Isso tornou a cadeia leve. Cada dia eu estudava mais e achava aquilo fascinante. Eu era um ignorante absurdo, um imbecil, eu não sabia nada”, conta. O orgulho de Carlos Araújo Depois de ter conhecido a dor e, mais tarde, conseguido transformá-la em um orgasmo, Carlos Araújo se sente tranquilo em falar sobre o que passou durante o período da ditadura militar. Mesmo convivendo com problemas respiratórios atualmente, das torturas a única marca física é o problema de surdez. Por conta do método conhecido por telefone, em que o torturador surra os ouvidos do torturado, Araújo precisa do auxílio de aparelhos auditivos. Fora isso, a marca que traz consigo é o orgulho. Com todo o conhecimento adquirido ao longo dos anos, ele avalia que participou da luta de um lado que estava politicamente equivocado, mas sente muito orgulho de tudo que fez. O equívoco ao qual Araújo se refere era a atitude de enfrentar o Exército Brasileiro no “peito e na raça”. “Nós fomos pro pau, fomos desprendidos, largamos tudo e fomos lá pra morrer. Sabíamos que era uma parada dura e que a morte era a coisa mais provável. Mesmo assim fomos”, relata. Hoje, ele vê que a política correta não era aquela, mas se sente feliz por ter participado da luta. Os caminhos de Carlos Araújo, os que ele tomou e também os que foi obrigado a tomar, construíram uma história e o ensinaram a complexidade da dor. Da angústia da vida clandestina à barbárie da tortura, as dores de Araújo foram muitas, mas não fortes o suficiente para fazê-lo parar sua luta. E o que quase
terminou em suicídio desencadeou uma série de acontecimentos que acabaram trazendo um dos maiores prazeres de sua vida, o conhecimento. Das peculiaridades da dor e das ironias do prazer, Carlos Araújo sabe bem, pois ele é prova de que um não existe sem o outro e que ambos, juntos, são os responsáveis pela construção de quem nós somos, indiferente dos caminhos que tomamos ou somos obrigados a tomar.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER Era uma responsabilidade e tanto: entrevistar Carlos Araújo. A pauta, que surgiu de uma conversa pós-aula com a professora, me fisgou na hora, pois eu sabia que teria uma história incrível para contar. E tive essa certeza quando, junto com a fotógrafa Karine, desci do ônibus na Vila Assunção e vi a proximidade entre a casa dele e a Ilha do Presídio, no Guaíba. Eu ficava imaginando qual seria a dor de Araújo ao acordar, todos os dias, abrir a janela e ver a ilha onde ficou preso durante a Ditadura Militar. Era essa a minha principal pergunta para ele, e a resposta foi a maior das surpresas da entrevista. Na ilha, Araújo não sentiu dor, mas sim prazer, como a reportagem conta. Foi uma honra e um aprendizado imensos conversar com uma pessoa com o conhecimento e a vivência de Araújo, ainda mais em um cenário político como o que se apresentava no momento da entrevista. Não só pude contar essa história tão bacana como pude aprender muito com a experiência do entrevistado. Tenho certeza de que o sentimento entre os meus colegas da PI é o mesmo. Contar grandes histórias nos estimula, e essa satisfação é um atestado de que escolhemos a profissão certa. Sigamos atrás das grandes histórias, jornalistas.
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Ocupar para mudar Famílias buscam na Ocupação Lanceiros Negros uma moradia digna e uma sociedade mais justa para todos Por RAFAELA AMARAL Fotos RITA GARRIDO
O
domingo começou com um calor de 36 graus, temperatura atípica para o outono na Capital Gaúcha. Os acontecimentos que marcariam o dia também não eram dos mais comuns. Na esquina das ruas General Câmara e General Andrade Neves, no Centro de Porto Alegre, fica a Ocupação Lanceiros Negros. Duas ruas acima, a Praça da Matriz estava tomada por manifestantes e moviNo antigo mentos sociais que prédio do Governo do acompanhavam a Estado, no votação da CâmaCentro de ra dos Deputados Porto Alegre, moram hoje para a abertura cerca de 70 do Processo de famílias Impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Poderia até ser um cenário fictício, mas não é. Em meio a esse caos político, no antigo prédio do Governo do Estado, moram cerca de 70 famílias em busca de moradia digna e condições básicas para viver, mais um retrato da nossa sociedade. Ao chegar na Rua da Ladeira, como
é conhecida a General Câmara, enxergamos alguns moradores sentados em frente ao prédio, outros em pé conversavam e analisavam a movimentação nas ruas acima. A calmaria do local denunciava que estávamos em um ambiente residencial. No hall de entrada do prédio, mais uma moradora sentada em um sofá, falando ao telefone, nos fez perceber que o local é a sala de estar de sua casa. Em sua frente, na parede logo atrás do balcão de recepção, um mosaico retrata uma Monalisa Lanceira, criação do grupo Mosaico Intervenção Urbana que têm feito diversas variações da Monalisa como intervenções nas paredes da cidade. O grupo apoia a ocupação e por isso criou o objeto de decoração para o local. Antes de a ocupação acontecer de fato, o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) trabalhou durante nove meses na organização e acompanhamento das famílias que buscavam locais para morar. Foi por meio de núcleos formados nos bairros que as atividades que cada um desempenharia foram decididas, como conta uma das participantes da organização
e também moradora do local Priscila Voigt. “Em assembleias e com a participação dos moradores, criamos diferentes comissões, como de segurança, de alimentação e de educação infantil. Trabalhamos com as famílias o conceito de moradia digna, que envolve todos os serviços que temos direito morando em uma cidade, como saúde, educação e saneamento.” A diferença entre invasão e ocupação está justamente aí, na organização e finalidade de cada uma das ações. Uma ocupação tem objetivos, como busca por direitos e a conscientização da população. A cada porta que cruzávamos, encontrávamos mais moradores aproveitando o domingo. Alguns faziam churrasco e preparavam o almoço, que é coletivo. Na ocupação, todas as refeições são coletivas. Moradores se revezam em dias e horários como cozinheiros, e assim todos ajudam e todos recebem ajuda. Os banheiros e espaços coletivos possuem uma tabela de horários que responsabiliza diferentes moradores pela limpeza e organização dos locais. Ao entrar em uma das salas, sentimos um alívio PRIMEIRA IMPRESSÃO | 51 | JULHO DE 2016
A moradora Priscila explica que, em assembleias, foram decididas quais atividades que cada um desempenharia na Lanceiros Negros
instantâneo causado pelo, pasme, ar condicionado. Trata-se da biblioteca do prédio, bem organizada, com estantes e cheia de livros. “Quando chegamos no prédio levantamos a chave da luz e pronto, tudo ligado. O ar condicionado já estava aqui e funcionando, os móveis já estavam aqui também, apenas restauramos os que precisaram”, diz Priscila ainda surpresa com a situação. A água do prédio, que estava abandonado há mais de 10 anos, também nunca foi desligada. Antes da montagem da biblioteca começar a ser feita e de os livros começarem a ser emprestados, a organização da ocupação teve o cuidado de levar as crianças em uma visita a uma biblioteca pública. “Achamos importante que as crianças entendam o sentido dos trabalhos que organizamos aqui na ocupação, porque não é comum ter uma biblioteca assim em casa, por exemplo. Contamos com um grupo de companheiras estudantes que cuidam da organização dos livros”, explica. A ocupação conta com cerca de 30 crianças, que têm idade entre quatro meses e 13 anos. A maioria das crianças está em situação escolar regular, incluindo alguns bebês que frequentam uma creche bem próxima à ocupação. Buscando moradia e estabilidade Entre os moradores da ocupação, não é difícil encontrar quem trabalhou a vida inteira e ainda assim não conseguiu adquirir uma casa própria. Em assembleias se discute sobre as desigualdades sociais, sobre os impostos e a dificuldade que as pessoas mais pobres têm para conseguir conquistar qualquer coisa que seja.
Famílias com mais de um filho são o perfil da Lanceiros. Patricia Freitas Muller, 24 anos, é mãe de uma dessas famílias. “Tenho quatro filhos, mas só três moram aqui comigo. Minha filha mais velha mora com minha mãe”, conta. Marlon, Manoela e Manuel são os filhos que vieram da Lomba do Pinheiro para morar na Lanceiros Negros junto com Patrícia e seu esposo. Na época em que o MLB começou a conversar com quem tinha necessidade de um novo local para viver, Patricia estava grávida do filho mais novo, Manuel, e, como a gravidez era de risco, precisou adiar a ida para a ocupação. Assim que ele nasceu e me recuperei, viemos para cá. Já faz três meses que chegamos, estamos muito melhor vivendo aqui”, alegra-se. A antiga casa da família era de aluguel e estava localizada em uma área invadida. Sem condições de pagar o aluguel e passando cada vez mais dificuldades, Patricia conta que vir para a ocupação pareceu a oportunidade mais próxima para que a família pudesse começar a mudar sua realidade. “Nós passamos por muitas dificuldades lá. Apesar de a casa ser de uma pessoa conhecida, nós não dávamos conta de pagar, e a situação foi ficando cada vez mais chata. Estamos muito melhor aqui, porque todos da casa se ajudam”, explica. Ela ainda conta que morar no Centro facilita na busca de emprego, além de ser um lugar melhor para as crianças morarem. “Minha filha de quatro anos já está matriculada na creche aqui pertinho, e já estamos organizando tudo pro Marlon ir pro colégio também.” O risco de ter que sair do local é o que tem assustado a moradora. “Quando saiu o pedido de reintegração de
posse do prédio, eu quase morri. Fiquei apavorada, porque não tenho pra onde ir, não tem casa de parente, de mãe, não tenho. Tenho medo de como as coisas podem acontecer, fico preocupada por causa das crianças e tudo mais, mas nós decidimos que vamos resistir e ficar aqui até o fim”, avisa. Essa é a posição de todos os moradores da ocupação. Mulheres grávidas, crianças, adolescentes, idosos, famílias inteiras estão prontas para resistir. “O Governo do Estado não nos recebe, não quer saber de negociar conosco, quer que todas essas famílias acabem na rua, porque é isso que vai acontecer aqui”, lamenta Priscila, que, como moradora, também está pronta para lutar por sua moradia. A reintegração de posse marcada para o dia 24 de maio começou a ser organizada de forma irregular, pela Brigada Militar, ainda na noite do dia 23, com o isolamento das ruas que cercam o prédio. Após momentos tensos ao longo da madrugada, o plantão do Tribunal de Justiça concedeu liminar para uma ação da assessoria jurídica dos moradores que pediu a suspensão da operação de reintegração de posse. O direito à moradia está previsto na Constituição Federal de 1988, tratando-se de um direito social, considerando que para cada indivíduo desenvolver suas capacidades e até se integrar socialmente é fundamental possuir moradia, já que se trata de questão relacionada a própria sobrevivência. O Brasil possui cerca de 33 milhões de pessoas sem moradia, segundo o relatório lançado pelo Programa das Nações Unidas para Assentamentos Humanos. Deste número, cerca de 24 milhões de pessoas que não possuem habitação adequada ou não têm onde morar vivem nos grandes centros urbanos.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER Camas, quartos, salas e cozinha. Esses são cômodos da casa onde vivo com minha família, há 24 anos, desde que nasci. O aconchego de morar em um lugar seguro e digno me deixou alheia ao que ainda é realidade para muitos brasileiros: não ter onde morar. Realidade essa que nunca passei. Por isso, não consigo ter dimensão do que realmente é sentir-se sem abrigo, sem rumo, sem um local para voltar ao fim do dia. Foram quase dois meses acompanhando a Ocupação Lanceiros Negros, entrevistando diversas pessoas que me davam uma lição de vida a cada palavra dita. A organização, a capacidade que elas possuem de se ajudar e a vontade de todas elas de mudar suas histórias me mostraram que a luta e a mudança sempre vão acontecer do povo para o povo, e que é assim que deverá ser. Acabo o trabalho com mais esperança do que comecei, especialmente em meio a esse caos político. Nessas famílias encontrei a mudança, que, para quem tanto só sabe pedir, já está acontecendo ali, ao nosso lado. Seguimos!
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Caixão não tem gaveta
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ra Sábado de Aleluia, numa manhã amena e com ocasionais pancadas de chuva, quando fui pela primeira vez no Hospital Nossa Senhora da Conceição, em Porto Alegre. Chegando lá, subi ao terceiro andar, onde se encontra o setor de Serviço de Dor e Cuidados Paliativos do Grupo Hospitalar Conceição. Foi naquele cenário que encontrei personagens de histórias que me surpreenderam por não falarem só de dor, mas de esperança e de superação. Elbert Jagnow tem 49 anos, cabelos claros, barba bem aparada e olhos pequenos. É ele quem me recebe. Pastor luterano, trabalha na assistência espiritual dos pacientes e explica o trabalho realizado por ele e por seus colegas: “Os cuidados paliativos são os cuidados necessários quando não se tem mais uma perspectiva de cura. É um trabalho para dar qualidade de vida enquanto ainda há vida”. Segundo Jagnow, a dor que pode ser encontrada nesse setor é a “dor total”, em que o ser humano está em um ponto alto de seu sofrimento, tanto biologicamente, quanto espiritual, psicológica e socialmente. A equipe, que é composta por diversos profissionais, tem o papel de absorver essa dor, ouvir e prestar atenção no que os pacientes estão sentindo e precisam. É mais que receitar remédios, é dar atenção. PRIMEIRA IMPRESSÃO | 54 | JULHO DE 2016
Nada se leva dessa vida. Nos cuidados paliativos isso fica ainda mais evidente Por Natália Scholz Fotos Marco Prass
Iraci Jagnow é meu guia no setor. É ele quem fala com os pacientes, pergunta se querem ou se têm condições de falar comigo. Na segunda visita ao hospital, conheci Iraci Hoerlle, de 82 anos, que recém havia descoberto um câncer no intestino. Ela vestia o avental do hospital, exibia sobrancelhas desenhadas, batom nos lábios, cabelos presos e um sorriso doce. Ainda não sabia se poderia ser operada ou não, mas encarava a situação com tranquilidade. Ela já estava ali fazia oito dias. A descoberta da doença começou depois do processo de mudança de apartamento. “O excesso de trabalho me derrubou”, lembra. Durante a entrevista, em muitos momentos, ela sentia dor e, mostrando a finura da perna, contou que perdeu 15 quilos. “Eu não era assim magrinha”, confidencia baixinho. Iraci gosta do serviço do hospital, mas não nega: “A minha cama é melhor, né?!”. Ficar parada é um desafio para ela, que sempre teve uma vida
ativa. Durante 25 anos trabalhou em um cargo de chefia da Porcelana Renner e se aposentou aos 40 anos. Depois trabalhou mais 10 em outra empresa. “Vou fazer o quê? Ficar em casa? Eu não sirvo para isso!”, declara. Com 50 anos, Iraci resolveu viver uma aventura internacional. Por dominar três idiomas (inglês, alemão e português), trabalhou como recepcionista em um restaurante chique nos Estados Unidos. Só voltou ao Brasil depois de viver uma cena digna de Hollywood: ela e alguns colegas de trabalho estavam em um carro e nevava. O veículo perdeu o controle e ficou com a traseira presa em um trilho de trem. A traseira foi arrancada, mas todos ficaram bem. Iraci, no entanto, tomou uma decisão. “O país mais lindo do mundo é o Brasil, não importa o governo. Eu vou é pra casa”, lembra. Iraci também conta que foi casada com um homem viciado em jogar cartas, o que a levou a pedir divórcio depois de acumular tantas dívidas do marido. Na época, a separação era chamada de “desquite”, e ela lembra como o juiz a questionou por não ter filhos. “Eu não ia botar um filho no mundo para passar trabalho. Com o dinheiro que eu ganhava, não dava para pagar uma babá – porque creches não eram comum naquela época –, sustentar minha sogra e o vício do meu marido.” No processo
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Iraci (à esquerda) e Ana têm histórias muito distintas. Em comum, a dor de uma doença incurável e o prazer de lutar pela vida
de separação, ela herdou as dívidas dele e, algum tempo depois, ainda teve que pagar pelo enterro do ex. Como lição de vida, Iraci aconselha fazer o bem sem olhar a quem e que só o amor constrói. “Caixão não tem gaveta. Tu não leva nada junto”, afirma. Falei que a visitaria de novo na semana seguinte. “Espero que eu não esteja mais aqui”, respondeu rindo. Ana Naquele mesmo dia, vi a Ana Carolina Carvalho pela primeira vez. Depois de muitas idas e vindas, aquela era a sua 11ª internação. Não consegui falar com ela, pois ela estava sob efeito de remédios para a sua dor. Acompanhei sua conversa com o pastor Jagnow e logo soube que eu precisaria voltar outro dia para falar com ela. Ana tem algo de diferente em relação aos outros pacientes. Com cabelos pintados de loiro, brincos alargadores na orelha e um espírito positivo, Ana ainda é muito jovem. Ela tem só 27 anos. Duas semanas depois, voltei ao hospital. Iraci já não estava mais lá, havia ido para casa. Fui, então, falar com Ana. Ela estava melhor, sentada e falante, comemorando que já não precisava da máscara de oxigênio fazia dois dias. Então ela me contou sua história antes do câncer no reto, que descoPRIMEIRA IMPRESSÃO | 56 | JULHO DE 2016
briu em setembro de 2015. Seu relato é muito relacionado com a fé. Seu testemunho é constante e, mesmo em um momento tão crítico, ela se alegra por ter encontrado a paz de Deus. A vida de Ana tem muitos altos e baixos. O tumulto, segundo ela, começou quando deixou de participar da Igreja. Com 19 anos, engravidou e, aos 20, teve seu filho Vitor. “Andei nos piores lugares do mundo. Drogas, bebida, cigarro. Tudo. O mundo só sabe nos proporcionar isso”, relata. Ela chegou ao fundo do poço e, assim que conseguiu mudar de vida, descobriu sua doença. O câncer de Ana é genético. Enquanto ela luta contra a sua doença, sua mãe enfrenta a mesma situação. Ela se preocupa e reza que essa corrente genética seja quebrada por seu filho de sete anos, que também é uma das maiores
fontes de sua força. “Meu pequeno é incrível. Eu vejo Deus nele”, conta. “Ele diz para mim: ‘Mãe, eu era um anjo. Aí Deus olhou para a Terra e viu como tu estava sozinha, triste, e Deus foi lá e me botou na tua barriguinha para te trazer felicidade!’”, relata emocionada. Ana é um exemplo de perseverança e diz que sua atitude positiva surpreende. “As pessoas não conseguem acreditar que eu consiga lidar com a minha doença e ainda ajudar ao próximo”, fala. “Uma pessoa veio me visitar na minha primeira internação e disse: ‘Poxa, eu pensei que ia chegar e ver uma pessoa zumbi, doente, em cima de uma cama e tudo. E tu está sentada, dando risada. Vim aqui para te confortar e eu que saio confortada’. E eu disse: ‘Essa é a diferença que Deus faz na minha vida’”, lembra. Ela também não poupa elogios para
IMPRESSÕES DE REPÓRTER No momento em que escolhi essa pauta, eu ainda não tinha noção da complexidade do assunto. Quando finalmente entendi, fiquei nervosa. Não sabia o que iria encontrar lá, que histórias eu iria ouvir. É sempre difícil ouvir a dor dos outros, ainda mais em situações de dor total e em hospitais. O processo, no entanto, foi de descoberta, de familiarização em um ambiente que ninguém gosta de frequentar. Descobri- ainda mais - a importância de saber escutar e realmente ouvir, do carinho que é absorver o que as pessoas precisam falar. Conheci histórias incríveis; não só de dor, mas de esperança e força. Vou carregar sempre em meu coração esses exemplos de verdadeiros guerreiros, nem um pouco dispostos a desistirem, ansiosos por muitas outras aventuras. A pauta foi um desafio e tanto, mas como resultado trago gratidão por esse imenso aprendizado- tanto no jornalismo, quanto na vida.
a equipe do Serviço de Dor e Cuidados Paliativos que cuida dela. “São pessoas que estão sempre te ajudando, se não dá de uma forma, dá de outra. Eles estão sempre tentando me dar força quando eu fraquejo. Eles já vêm sorrindo para ti, que já te dá uma alegria”, comenta. Sobre o futuro, Ana tem esperança e diz que não vai desistir: “Creio na minha cura, nas bênçãos que ainda estão por vir na minha vida. Pela minha família, pelo meu filho, por todas as pessoas que eu amo, eu luto. E para poder testemunhar o amor de Deus na minha vida eu luto todos os dias,
cada segundo, cada minuto. Eu preciso lutar, ir adiante. Deus me deu essa missão e eu vou até o final”. Dentre seus sonhos, ela tem como objetivo estudar enfermagem para poder ajudar as pessoas que vivem situações como a dela. Quando perguntei que mensagem ela gostaria de deixar para as pessoas que estão em dor, Ana disse que sempre depois de uma tempestade vem um lindo dia de sol. “E eu estou nesse lindo dia de sol”, diz. “Por mais que eu ainda esteja nessa luta contra a doença, eu estou no meu dia de sol. Assim como todos vamos estar, basta confiar em Deus”.
As viagens de William nĂŁo sĂŁo planejadas. Ele tem dificuldade de organizar roteiros
Coceira nos pés Viajar é preciso e viver experiências incríveis também. Paulo e William sabem disso. Por Júlia Bondan Fotos ANDRESSA DORNELLES
W
anderlust é uma palavra em alemão formada pela junção do verbo wandern, que significa andar sem rumo específico, explorar um lugar sem direção específica, e lust, que poderia ser traduzido como uma vontade, mais que um desejo, uma ânsia profunda. Essa palavra define a vida de Paulo e William. Dois jeitos de conhecer o mundo, um mesmo vício: viajar. Um passaporte cheio de carimbos, uma memória repleta de bons momentos e um punhado de histórias para contar. E não há perrengues que diminuam a vontade de viajar. Para muitos, esse é o significado de felicidade: conhecer o mundo e tudo o que ele tem
a oferecer, mesmo que para isso seja preciso passar por poucas e boas. Para os mais céticos, a ciência explica que talvez seja melhor você gastar o seu dinheiro com viagens e experiências, ao invés de comprar bens materiais. Um estudo mostra que o dinheiro pode, sim, comprar a felicidade, mas somente até certo ponto, pois o que nos traz felicidade é o sentimento de excitação com algo novo. Logo, um bem material, como um carro, é novo somente até entrar para a nossa normalidade. O responsável por esse estudo é Thomas Gilovich, professor de psicologia da Universidade de Cornell (EUA), que tem tentado entender a velha relação entre o dinheiro e a felicidade. É fácil de entender essa equação quando conhecemos William Figuei-
redo. Nos encontramos na rodoviária de Porto Alegre, em meio às chegadas e despedidas. Aos rumos tomados, às tristes voltas. O vai e vem de ônibus lotados soavam como música para os ouvidos dos mochileiros que ali esperavam para colocar o pé na estrada. Com seus dreads emoldurando um sorriso sempre presente e sincero, William é um cidadão do mundo. Estudou jornalismo, formou-se e foi para a estrada. Pretende morar no Uruguai, em Montevidéu, e fazer um mestrado. “Estava passando uma temporada no país vizinho, buscando um lugar para morar e vendo a possibilidade de estudar por lá.” Ele contou mais sobre essa sede de viajar, sem pensar muito nas consequências, e disse que os perrengues fazem parte de uma boa trip. PRIMEIRA IMPRESSÃO | 59 | JULHO DE 2016
O fotógrafo Paulo adora conhecer lugares pouco visitados por turistas
“Minhas viagens não costumam ser muito planejadas, tenho dificuldade de organizar roteiro e coisas assim.” William viaja para adquirir experiências. Com seu violão, gosta de tocar no transporte público e garimpar alguns trocados, conhecer pessoas interessantes, e isso é tudo o que ele precisa. Carona, um sofá e boas histórias. Segundo o mochileiro, é assim que se viaja. “Das vezes que caí na estrada, sempre foi meio que de última hora, sem conseguir juntar muita grana, sem pensar direito onde iria dormir.” Se ele se arrepende de alguma dessas loucuras? Jamais. “Viajo pelas oportunidades de conhecer culturas distintas, paisagens, pessoas, comidas diferentes. Para mim, não teria tanta graça viajar de uma forma convencional. Perderia metade da emoção. Eu gosto de gente e dos aprendizados que as pessoas me passam.” Ele conta suas histórias e quase é possível sentir a coceira no pé, que pede o calor da estrada, que pede movimento. “Não nascemos para ficar em um único lugar.” Viajar é a melhor forma de nos conhecermos e descobrirmos do que somos capazes. É o que William defende depois de ter passado por poucas e boas. “Já fiquei sem dinheiro e tive que tocar meu violão PRIMEIRA IMPRESSÃO | 60 | JULHO DE 2016
na rua pra descolar grana pra comer. Mas também já passei alguns dias sem ter o que comer. Já tive que caminhar pela madrugada, sozinho, na beira da estrada, torcendo pra conseguir carona.” Nem sempre a carona chegou, mas a recompensa sempre estava lá: o simples prazer de viajar. Planejamento pode ajudar Mesmo com planejamento e com um bom orçamento, os problemas podem aparecer. Paulo Capiotti, um fotógrafo viciado em conhecer lugares pouco explorados, guarda boa parte do seu dinheiro pensando no próximo destino e está sempre pesquisando um bom roteiro, que satisfaça suas vontades de explorar o local. Para ele, o planejamento é o início da viagem. “Às vezes eu chego aos lugares e é como se eu já conhecesse tudo aquilo.” Ao entrar no apartamento do fotógrafo, percebemos as lembranças trazidas de cada destino para decorar o local: máscaras da Indonésia, uma luminária do Vietnã, um Buda deitado de Myanmar... E fotos. Muitas fotos. Histórias para contar não faltam. Ele gosta de lembrar do dia em que conheceu a maior cachoeira do
mundo, na Venezuela, a bordo de um teco-teco. A cena é de filme: o piloto extrovertido, que solta as mãos do comanche enquanto faz um voo rasante próximo a queda d’água. Com um globo na mão, Paulo aponta os quilômetros percorridos. Somente em sua última viagem foram dez países, incluindo lugares pouco conhecidos, como o Butão e pequenos vilarejos de minorias étnicas no sul da China. Conversando com Paulo em frente ao seu mapa-múndi, que ocupa a parede inteira do quarto, perguntei para ele qual a maior aventura que já teve. Como todo mochileiro, ele não consegue apontar somente uma e acaba ressaltando a graça das surpresas. “Cada viagem é planejada do zero, montando roteiro, fuçando vilarejos que ninguém visitou, sempre procurando as dificuldades e nunca as evitando. Eu quero tê-las e vencê-las, ao invés de evitá-las. Acho que, para mim, a maior aventura é ter conseguido montar uma jornada cheia dessas características, em cada uma das minhas viagens.” Ainda com o mundo inteiro como testemunha, conversamos próximos aos diversos guias da Lonely Planet, e assim Paulo contou algumas desventuras que, segundo ele, acontecem em todas as via-
gens. “No Marrocos, me perdi diversas vezes no labirinto que são as medinas (aglomerados urbanos) por lá. Além disso, precisei ir ao médico e acabei no consultório de um obstetra, que só falava francês e árabe. Acabei sozinho no meio de uma floresta colombiana, sem nenhum modo de comunicação ou esperança de voltar para o hotel. Conheci pessoas em um bar em Longyerbyen, no ‘Polo Norte’, que me levaram para uma boate russa. A festa acabou às 3h30min da manhã e o Sol estava a
pino. Caminhei 4 quilômetros na neve para voltar para o hotel.” Mas os perrengues continuam e sempre estarão presentes nas viagens de Paulo. Enquanto houver chão pela frente, a palavra wanderlust sempre será a estrela guia desses viajantes. A sede de conhecer é maior do que a vontade de permanecer na zona de conforto. Aliás, enquanto para alguns o maior conforto está na expressão home sweet home, para esses mochileiros, o mundo é o melhor lar.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER É um privilégio escrever sobre o que se gosta. Quando surgiu o tema da Primeira Impressão pensei que seria difícil encontrar um assunto que unisse prazer e dor e que não fosse pesado – que é justamente o contrário dessa matéria. Todos gostam de viajar, mas quando pensamos em percorrer o mundo afora, sempre idealizamos uma viagem tranquila. Pensar fora da caixa é o que motiva esses mochileiros e é o que me dá a tal coceira no pé. Escrever essa matéria me mostrou que os perrengues transformam as experiências em algo ainda mais maravilhoso. Ouvir a história de William e Paulo, ver fotos e sorrisos ao falar de contratempos, fez toda a diferença e me motivou a buscar um mochilão para evoluir como pessoa. Crescer, superar desafios e me conhecer. O William, com seu jeito desapegado e sonhador, me fez perceber que as coisas ruins podem acontecer por bons motivos: além de tudo já falado, ele mostra o quão recompensador é fazer amigos em momentos difíceis. O Paulo, com seu portfólio cheio de retratos e paisagens, me fez querer ver o mundo com os mesmos olhos que ele: não fugir quando o problema aparece (e nem evitá-lo), pois isso traz mais graça à vida.
Disposição e violão são os companheiros de viagem de William PRIMEIRA IMPRESSÃO | 61 | JULHO DE 2016
Amor à arte No balé, a busca pela satisfação pessoal está entre o prazer e a dor Por JÚLIA KLAUS BOZZETTO Fotos GABRIEL MACHADO E JÚLIA KLAUS BOZZETTO
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ma boa história merece contextualização. Talvez poucos saibam, mas o balé não surgiu na França e sim na Itália. O balé clássico nasceu nas cortes italianas renascentistas do século XVI. Já a origem dos seus primeiros passos e coreografias não se sabe ao certo. O termo italiano “balletto”, que significa “dancinha”, “bailinho’’, originou a palavra francesa ballet. Este estilo elegante de dança era uma diversão muito apreciada pela nobreza italiana. A adoração era tanta que a princesa italiana Catarina de Médici, ao se casar com o rei francês Henrique II, introduziu o balé em uma nova corte. E foi na França que ele ganhou o mundo, pois os franceses fizeram questão de espalhar seu sotaque em tudo que envolva esta arte. Duas personagens distintas. Uma com 22 anos. A outra, 58. O que elas têm em comum? Paloma e Aguima tem a paixão pelo balé. Sabe quando você tem um dom? Paloma Neubert sempre soube qual era o seu, a dança. Desde pequena demostrava gosto pela arte. Os primeiros sinais percebidos pela mãe Elma Neubert já apareceram nos primeiros meses de vida da menina. Todavia as coisas aconteceriam aos poucos, pois outras experiências artísticas ainda viriam antes do balé. Paloma e a família moravam em Esteio, na Grande Porto Alegre, e lá era muito caro fazer aulas de dança. O primeiro contato com a arte foi aos cinco anos através da patinação artística na escola onde estudava. Mas novidades estavam a caminho. Em PRIMEIRA IMPRESSÃO | 62 | JULHO DE 2016
Aguima começou a estudar balé aos 22 anos. Hoje, aos 58, tem uma lesão no joelho esquerdo que só permite que ela faça alguns alongamentos
GABRIEL MACHADO
JÚLIA KLAUS BOZZETTO
Paloma se considera uma pessoa muito ansiosa, mas no balé se liberta, como se estivesse numa terapia
2001, Paloma mudou-se com a família para Capão da Canoa. Na cidade litorânea não existia pista de patinação, tampouco aulas de patinação artística. Não teve outra saída, parou de patinar. Decidiu partir para a dança. Fez aulas de dança de salão, mas ainda faltava aquele clique. Sentia que a dança lhe fazia bem, porém não havia encontrado a modalidade certa. Até o dia em que conheceu o balé. O primeiro contato com o balé foi através de uma prima que dançava na época. Com 14 anos, Paloma iniciou o curso de balé em Capão da Canoa, depois fez aulas em Osório até encontrar na Escola Balé Conserto, de Porto Alegre, PRIMEIRA IMPRESSÃO | 64 | JULHO DE 2016
os aprendizados que faltavam. “Sempre gostei de dançar e, quando conheci o balé, me encontrei. O balé me liberta do medo, do ciúme, da raiva, da tensão. Sou uma pessoa muito ansiosa e, em uma aula de balé, me sinto livre. O balé é uma terapia”, revela a bailarina. O prazer pela dança só foi aumentando com o passar dos anos, tanto que Paloma nunca parou de dançar e escolheu se profissionalizar na área. Em dezembro deste ano, ela se forma em Dança pela Ulbra. “Existe aquele ditado: escolha uma profissão que ame e não terá que trabalhar nenhum dia. Eu escolhi a dança. Acredito que minha vocação antes mesmo de dan-
çar seja ensinar”, conta Paloma. Há um ano, Paloma montou seu próprio local de trabalho, o Studio de Dança Grand Jeté. O studio leva sugestivamente o nome de um passo do balé muito apreciado pela bailarina, que significa salto. “Não consigo encarar o balé como meu ganha pão, por mais que seja dele que sai minha renda, para mim é um prazer dar aula e estar presente naquele ambiente com os alunos, ouvindo música, sentindo a dança. Me realizo através dos meus alunos”, destaca a bailarina. O balé, assim como outras danças, proporciona aos seus adeptos duas sensações contraditórias, o prazer e a dor.
Paloma revela que, por não ter o corpo ideal de uma bailarina, não ser extremamente magra, sente dores nos joelhos, na articulação do quadril e nos dedos. “A dor nos pés, nos alongamentos e no excesso de repetições, é superada pelo prazer que sinto dançando. Acredito que todos os bailarinos aguentam a dor que a prática acarreta por amor. Dói, mas traz tanta satisfação corporal que passamos a conviver com a dor e não focar nela, e sim no que o balé realmente representa pra nós: tudo!”, frisa a bailarina. Toda arte tem suas consequências De acordo com a fisioterapeuta Milene Riehert Klaus, pós-graduada em fisioterapia neurofuncional, as lesões mais comuns relatadas pelas bailarinas são nos joelhos. Ele sustenta toda a pressão dos movimentos e acaba ficando mais suscetível a fraturas. Aguima Machado, 58 anos, conhece este drama. Ex-bailarina, professora e atualmente estudante de Psicologia, ela nasceu em uma família humilde de cinco irmãos em Esteio e foi criada pela mãe que enviuvou cedo. Aguima relembra que na infância adorava dar cambalhota, brincar de bonecas e tinha paixão por enfeites. Costumava admirar as meninas da vizinhança que faziam aulas de balé. Achava as roupas e os adereços que elas usavam fascinantes. O gosto pela dança já dava os primeiros sinais nessa época, mas sabia que a mãe não tinha condições financeiras, por isso guardou seus desejos intimamente e seguiu a vida. Já na idade adulta, fez um curso de magistério e iniciou seu estágio na Escola La Salle de Esteio. Lá foi convidada a dar aulas de coreografia para a turma de pequenos cantores, e foi neste ambiente escolar que o balé voltou à cena. Aguima comentou com os alunos que gostava de dançar, e imediatamente recebeu um convite para fazer o curso. Na época com 22 anos, já casada, conversou com seu marido a respeito, revelando sua paixão pelo balé. Ele prontamente a incentivou a fazer o curso. Ela fez os cursos preparatórios e
começou a dançar balé clássico. Aos 26 anos, Aguima engravidou e, por recomendação médica, parou de dançar durante a gestação. Um ano depois, voltou a dançar ainda mais motivada. Afinal, tinha um incentivo a mais, o filho Gabriel. “Eu não queria parar de dançar, então levava o Gabriel nas aulas comigo. Nos intervalos, recebia ajuda de algumas colegas que ficavam de olho no bebê enquanto eu dançava”, conta. Foram mais de nove anos dedicados ao balé até o desejado dia da formatura. Com 34 anos, ela realizou seu sonho de infância, se formou pela Escola de Ballet Erenita, em Canoas. “Fiz outras danças também nesse período, mas eu amava música clássica, e meu foco era o balé. Meu maior desejo era me formar no curso de balé. A formatura foi a realização de um sonho”, relembra com saudosismo. Durante toda sua trajetória, Aguima enfrentou alguns desconfortos no quadril, dores nos joelhos e bolhas nos pés. Chegou a fazer fisioterapia com gelo, mas nada que a fizesse desistir de dançar. E lá se foram 25 anos desde a última vez que Aguima calçou uma sapatilha. Atualmente, faz apenas alguns alongamentos e mantém um álbum atualizado sobre balé, além de ter voltado à faculdade, dessa vez, cursando Psicologia. Por conta de uma doença nos joelhos – constatada como uma lesão degenerativa condral através da ruptura do menisco medical do joelho esquerdo –, ela procura não forçar mais o corpo. A causa da doença pode ter sido acelerada pelo balé, todavia essa hipótese nunca foi investigada a fundo. Segundo a fisioterapeuta Milene, essa doença pode sim ter sido desencadeada pelo balé, devido a constante pressão que o joelho sofria ao longo dos anos que Aguima dançou. Na prática, existe uma diminuição da base do pé devido ao uso das sapatilhas de meia ponta e de ponta, repassando para o joelho toda a estabilização e peso articular que normalmente cabem aos tornozelos e pés. Isso gera uma carga excedente
na articulação por longas horas a fio. Resultado: desgaste muscular. Apesar das dores, Aguima trata com naturalidade sua doença e acredita que ela seja comum na idade avançada. “Parei de dançar por opção, precisava exercer plenamente o meu papel de mãe”. Mas nunca me arrependi do balé. Se hoje sinto dores não o culpo. Faria tudo novamente. Sinto saudades da época que dançava, guardo boas lembranças”, finaliza a eterna bailarina. Existe aquele provérbio: ‘’o amor supera tudo’’. Ele se encaixa perfeitamente na vida das duas personagens desta história. Em nome de um sonho, Paloma e Aguima superaram suas adversidades e se tornaram bailarinas.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER Tudo começou com a definição do tema da revista Primeira Impressão, n° 45. Prazer e Dor. Por um milésimo de segundos pensei em qual pauta fazer. E foi a partir de uma ideia instantânea, como se alguém tivesse sussurrado ao meu ouvido, que a pauta surgiu. Balé! Encaixava perfeitamente na proposta da revista. No mesmo momento comecei a elaborar a pauta mentalmente, relacionando as sensações que a pessoa sente ao dançar, e concluí que no balé prazer e dor se interligam diretamente. Tive a confirmação da minha aposta ao fazer uma aula experimental no dia da reportagem. O balé é uma arte que te cobra perfeição e leveza, os movimentos são complexos e todo o peso do corpo é sustentado pelos joelhos. A dança nos traz sentimento de liberdade, a música clássica nos conduz, e a delicadeza dos passos nos cativa. Prazer. Pressão nos joelhos, estalos no quadril. Dor. Eis o prazer e a dor em cada ato. Senti na pele.
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Superação real no mundo virtual
Pais de Sophia, portadora de microcefalia, promovem página em rede social para mostrar os cuidados com a filha Por Karina Gonçalves de Freitas Fotos Dyessica Abadi
A
s redes sociais estão tomando conta do cotidiano da população. A s mensagens e postagens que circulam nas páginas viralizam e começam a fazer parte da vida de praticamente todas as pessoas. Pensando nessa ferramenta gratuita e de grande acesso, a família Costa criou uma fanpage no Facebook para falar da vida da filha Sophia, 5 anos, portadora de microcefalia. O incentivo para a criação da página “Somos Todos Sophia” veio dos diversos casos de microcefalia que estão ocorrendo no Brasil em virtude do zika vírus. O Ministério da Saúde informou que na primeira semana de abril deste ano foram mais de 1.100 casos da doença no país. “Sabemos que muitas mães querem abandonar os filhos. Nunca pensamos nisso, tratamos a Sophia como uma filha normal, e o amor é incondicional. Não é difícil cuidar de uma criança com microcefalia, é preciso ter dedicação”, conta a mãe. A página tem cerca de 1.800 curtidas, ou seja, esse é o número de pessoas que acompanha os passos de Sophia. Vídeos, fotos e depoimentos são os recursos utilizados por Jéssica Nunes Wolff Costa, 25 anos, e Maicon Costa, 30 anos, os pais da menina, para contarem a rotina de tratamentos, a interação com a família e como é de fato a vida de uma criança com microcefalia. “A
Sophia tem uma vida normal dentro das suas limitações. Levamos ela em todos os lugares para aproveitar com as duas irmãs e viver momentos de alegrias. É emocionante ver o sorriso no rosto e a felicidade dela nos nossos passeios”, fala a mãe. Jéssica, desde que soube da doença da filha passou a ser dona de casa, e Maicon, analista de sistemas em provedor de internet, é o responsável pelo sustento da casa e dos tratamentos da filha. A vida de Sophia é contada no mundo virtual, mas a sua história é de encantar no mundo real. A atenção de sua mãe é dividida com as duas irmãs, Sara, 8 anos, e a desconfiada Antônia, de um ano e três meses. A caçula sente ciúmes de Sophia e ainda não entende a razão dos cuidados especiais da irmã. Quando Sophia não tem atendimento médico, passa as manhãs em casa, assistindo televisão na sala, deitada no sofá. Ela esboça alguns sorrisos durante as brincadeiras das personagens no desenho. Devido à microcefalia, não caminha, não fala e a sua alimentação é por sonda. Por esses motivos, Jéssica dedica toda sua energia e amor para cuidar das filhas. A descoberta da doença Aos cincos meses de gestação da segunda filha, Jéssica decidiu largar
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os estudos e o estágio em uma agênma pode estar associado a síndromes cia bancária quando descobriu que genéticas ou a infecção da gestante o bebê iria nascer com microcefalia por rubéola, catapora ou citomegaloem decorrência do citomegalovírus, vírus, como o caso de Sophia. um vírus contraído pelo ar que pode Com o avanço do quadro gestaciocausar transtornos durante o primeinal, Jéssica precisou manter repouso ro trimestre de gravidez. De acordo pela saúde da filha. “Tivemos muito com a fisioterapeuta Nathalie Artigas, medo no início de como seria cuidar de mestre em Ciências da Reabilitação, um bebê especial.” Emocionada, a mãe doutoranda em Ciências Médicas pela conta que ela venceu as dificuldades de Universidade Federal do Rio Grande do um parto normal, enquanto havia sido Sul (UFRGS) e membro da Associação programada uma cesariana. “Quando Brasileira de Fisioterapia Neurofunciocheguei no hospital, a equipe médica nal (ABRAFIN), a microcefalia é uma não era a mesma que me acompanhou condição médica que se caracteriza por no pré-natal. Por insistência desses méum crânio menor do dicos, o parto da Sophia que o tamanho méfoi realizado pelo proceas irmãs Sara (à esquerda) e Antônia, dio, geralmente por dimento normal. Ela veio (à direita) precisam causa de uma falha ao mundo desacordada, compreender que Sophia no desenvolvimento com os batimentos fracos necessita de cuidados do cérebro. O problee precisou ser reanimada especiais da mãe, Jéssica
às pressas”, relembra Jéssica. Sophia nasceu com 41 cm e 1.860 kg, ficou 45 dias na incubadora após o parto. Depois desse período, as internações foram constantes. “No primeiro ano de vida, passamos muito tempo no hospital. Sophia ficava alguns dias em casa e logo voltávamos para longos períodos hospitalares”, conta a mãe. Esses episódios ocorriam em virtude de sua condição de saúde mais suscetível a infecções. Mesmo com todas as dificuldades enfrentadas pela família, o sentimento de mãe sempre falou mais alto, e o amor prevaleceu frente a qualquer problema. Assistindo televisão ao lado das irmãs, Sophia fica atenta a todos os movimentos a sua volta. Parece querer falar e mostrar que está prestando atenção. A mãe olha orgulhosa para
cada sinal que a filha expressa. “As dificuldades apareceram, mas decidimos enfrentar todas elas”, destaca. Atendimento multiprofissional Sophia tem uma equipe multiprofissional que acompanha o seu caso desde os primeiros anos de vida, composta por médicos neurologistas, pediatras, fisioterapeuta, fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional, psicopedagoga, entre outros. As crianças que nascem com microcefalia podem apresentar atraso no desenvolvimento neuropsicomotor. Esse atendimento é fundamental para o processo de desenvolvimento. A fisioterapia é extremamente importante para a correção da postura e firmeza nas articulações. “O acompanhamento de crianças microcefálicas depende do quadro de evolução da doença. O paciente é avaliado para verificar os prejuízos do desenvolvimento neuropsicomotor. Depois são definidas as condutas realizadas no Programa de Estimulação Precoce (PEP), que tem o intuito de estimular o desenvolvimento motor e cognitivo”, explica Nathalie. No PEP são adotadas medidas de acordo com a faixa etária para que seja possível o desenvolvimento infantil condizente com crianças saudáveis. As atividades devem ser realizadas em ambiente enriquecido de estímulos visuais e auditivos, como bolas, rolos, balanços, brinquedos e equipamentos, preferencialmente coloridos para chamar a atenção. Uma das etapas do tratamento de Sophia são as consultas na Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD). A pequena usa órteses nas mãos e pés doadas pela entidade. Esses equipamentos ortopédicos têm a finalidade de alinhar, prevenir ou corrigir deformidades, ou ainda, melhorar as funções dos locais que são usadas.
Thiago Calgaganotto Farina, gerente médico da unidade Porto Alegre da AACD, explica que a entidade é uma clínica específica para o atendimento de pacientes com paralisia cerebral. “Dispomos do Grupo de Estimulação Precoce (GEP) para recém-nascidos que apresentem atraso no desenvolvimento neuropsicomotor”, explica. O especialista destaca que a entidade está trabalhando por um protocolo de atendimento às crianças com microcefalia devido aos correntes casos da doença. A fisioterapeuta Nathalie afirma que é preciso cuidado e acompanhamento constantes com os pacientes portadores de microcefalia. “É importante ressaltar que não existe um tratamento definitivo para a doença. A fisioterapia tem por objetivo a redução dos impactos que a criança sofre com atraso motor e cognitivo. É imprescindível o envolvimento dos familiares nessa etapa. Os estímulos domiciliares são importantes como uma extensão do tratamento em clínicas, que pode melhorar a funcionalidade e qualidade de vida dos pacientes”, conclui. A história da família Costa mostra que o laço de afeto e amor é capaz de superar qualquer dificuldade. Para conhecer mais do dia a dia de Sophia, basta acessar a fanpage no Facebook “Somos Todos Sophia”.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER Um dos maiores prazeres do jornalismo é o ato de contar histórias. É gratificante ter nas mãos a possibilidade de relatar um fato, compartilhar conhecimentos e novidades, e principalmente, contar as histórias de superação de vida. A menina Sophia se enquadra nesse cenário. Aos 5 anos, é portadora de uma doença que não tem cura, a microcefalia. Desde o início das aulas na faculdade me identifiquei com o relato de histórias de vida. Ao pensar na pauta para a reportagem, conheci a página da Sophia no Facebook e tive interesse de contar mais sobre a microcefalia, uma doença que foi muito noticiada no início do ano em decorrência do zika vírus. Passei uma manhã na casa da menina, conversei com a mãe dela e pude sentir todo o cuidado, amor e dedicação que aquela mulher da minha idade tem com as três filhas. Buscar mais informações sobre a doença e conseguir construir o texto expressando todo o amor e zelo que Jéssica tem pelas filhas, de modo especial por Sophia, foi um grande desafio. Posso adjetivar muito bem o tema dessa edição, prazer e dor. O prazer de contar histórias e a dor de não poder ajudar nessas histórias contadas.
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Companheira diária A história de Alexandre, que, após uma noite de sono, aprendeu a conviver com uma dor crônica Por Luana Cunha Fotos Marcelli Pedroso PRIMEIRA IMPRESSÃO | 70 | JULHO DE 2016
Há oito anos, Alexandre convive com uma dor no ombro esquerdo
“C
erto dia, após dormir de mau jeito, acordei com um pouco de dor no ombro esquerdo. No momento, achei que era uma dor normal, algum cansaço, nada demais. Tomei algumas precauções, mas nada adiantou. Após oito anos, ela continua presente.” É assim que o estudante de Psicologia Alexandre Foppa se apresenta ao falar de sua doença. Com uma tipoia imobilizando o braço esquerdo e com um sorriso no rosto, ele conta sua história. Até os 18 anos, o estudante mantinha uma rotina um tanto movimentada. Fazia exercícios físicos todos os dias na academia. Até que, naquela manhã, tudo mudou. O que para uns é
somente uma dor muscular, um “dormir de mal jeito”, para Alexandre se tornou um sofrimento sem fim. “Como achei que era uma dor normal, tentei descansar o braço e não fui na academia uns dois dias. Parecia que estava recuperado. Porém, a dor voltou com mais intensidade. Então repousei, fiz compressas quentes e frias e tomei analgésicos, mas a dor nunca passou.” Segundo o médico Adivânio Cardoso Américo, anestesiologista do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e responsável pela área de dor oncológica, do serviço de dor e cuidados paliativos da unidade, a dor é um sofrimento, tanto físico quanto psíquico, que nasce na região periférica do corpo (pele, ossos, músculos, órgãos),
funcionando como um sinal de alerta de que algo está errado. Quando isso ocorre, o sistema nervoso manda um estímulo para o cérebro para que esse libere alguma reação. “O que acontece nos casos de dores crônicas é que há uma disfunção persistente no sistema que conduz dor, e o paciente continua tendo dor mesmo com a doença curada. O grande exemplo de patologia no qual o paciente sensibiliza o processo de dor é a fibromialgia. Apesar de ser um diagnóstico recente, ela não é uma doença do tecido periférico, não existe inflamação clássica, lesão ou disfunção, o que existe é uma percepção alterada do cérebro frente aos sintomas”, explica. Entretanto, a fibromialgia não se enquadra no caso de Alexandre. PRIMEIRA IMPRESSÃO | 71 | JULHO DE 2016
Foram anos consultando vários especialistas e obtendo diversos diagnósticos, mas a dor continuava presente, se tornando um desafio para ele e para os profissionais. “De bursite para ombro congelado, um monte de patologias que eu nem lembro. Durante dois ou três anos eu consultei vários médicos, contando e recontando a minha experiência. Chegou um ponto que eu não sabia nem dizer o que era hipótese e o que era especulação, porque foram várias teorias, mas nada adiantou”, explica. Por um determinado momento, acreditou-se em uma dor psicossomática, mas os tratamentos específicos neurológicos também não deram resultado. Para o anestesiologista, toda dor é psicossomática, às vezes mais psíquico, às vezes mais somática. “O que deve ser feito, antes de apontar um diagnóstico preciso, é avaliar o paciente para ver o que lhe afeta mais. Cada paciente é tratado individualmente, porque a dor é uma sensação subjetiva, individual. Além disso, devemos avaliar quais fatores estão envolvidos, pois é modificando esses fatores que ganhamos na melhora da dor, na melhora da função e na melhora da qualidade de vida”, ressalta. Enfim, depois de tanta investigação, o estudante foi diagnosticado com síndrome dolorosa complexa regional (SDCR). Geralmente, a SDCR ocorre após uma lesão ou trauma, gerando uma dor desproporcional. Porém, ainda existem diversos estudos sobre as causas específicas da doença. “O que se acredita, depois de toda esta peregrinação, é que eu tenho um problema neuroquímico, ou seja, uma raiz inflamada na medula que amplifica tudo que eu sinto na região do ombro esquerdo”, afirma Alexandre. Em busca de melhor qualidade de vida A pessoa com síndrome dolorosa complexa regional desenvolve uma hipersensibilidade ao toque. Qualquer contato com o local afetado gera uma PRIMEIRA IMPRESSÃO | 72 | JULHO DE 2016
dor insuportável ao paciente, e é isso que faz a rotina mudar e não necessariamente a dor. No caso de Alexandre, ações como tomar banho, devido ao toque da água; andar de carro ou coletivo, por causa dos movimentos bruscos; e ir a festas são atividades extremamente dolorosas. Além do toque, o movimento do ombro afetado também aumenta a dor. Sendo assim, cozinhar, dirigir, vestir uma roupa, entre outras atividades diárias, também se tornaram um pesadelo para o estudante. Durante esses oito anos com a doença, Alexandre tentou diversas medicações e tratamentos que, segundo ele, estavam sendo piores que a própria doença. “Além de não resolver o problema, os efeitos colaterais eram horríveis. Eu não conseguia trabalhar e nem estudar. Teve uma vez que minha mãe me deu a ideia de fazer acupuntura. Foi a pior experiência da minha vida. Foram três minutos para parar de tremer e três horas para voltar a movimentar o braço”, explica o estudante. Assim como esse, diversos tratamentos eram realizados por meio de toque, como fisioterapias e massagens. Seguindo a lógica de que ele possui hipersensibilidade ao toque na região afetada, esses tratamentos eram verdadeiras seções de tortura. “Por isso, junto com meu médico, resolvi tentar o método de adaptação, obtendo um melhor resultado.” A primeira decisão tomada pelo estudante foi utilizar a tipoia, imobilizando o braço e se mantendo funcional por mais tempo. Toda e qualquer ação tinha como foco voltar a trabalhar e estudar, com ou sem dor. Porém, o fato de ele sentir dor durante todo o tempo, sentado ou em pé, dificultou a sua inserção no mercado de trabalho. “Em 2011, eu consegui um laudo com o qual passei a ser considerado PCD (Pessoa com Deficiência). Depois que eu consegui esse enquadramento, pude voltar a trabalhar, e minha vida mudou muito. Hoje eu estudo e trabalho em dois lugares diferentes, mas em termos de qualidade de vida estou muito melhor do que na época em que ficava o dia todo deitado com
dor”, diz. Atualmente, Alexandre trabalha na Unisinos, como auxiliar administrativo, e faz estágio na GVdasa Sistemas, na área de psicologia. Hoje, aos 26 anos, Alexandre aprendeu a conviver com a dor. Devido a algumas questões de rotinas de casa, ainda segue morando com mãe. Os exercícios em academia foram substituídos pela caminhada, já que andar de ônibus ou carro é algo inviável. Como não pode carregar mochila, leva consigo apenas o necessário: documentos no bolso, um tablet dentro de um livro e as canetas fixadas na alça da tipoia. Assim, prestativo e com um sorriso no rosto, ele vai tentando traçar o melhor plano possível, objetivando sempre uma melhora na qualidade de vida, mas nunca considerando a hipótese da ausência da dor que lhe acompanha há quase uma década.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER Quando eu conheci a história de Alexandre pensei: “Por que ele não procura outros tratamentos? Como pode alguém suportar uma dor durante todo o tempo?”. Nos encontramos em uma tarde de sol e ele, prontamente, respondeu a todas os meus questionamentos. Fui para casa tentando entender como aquele rapaz, de 26 anos, sorridente, havia se acostumado com o sofrimento. Escutei a entrevista diversas vezes, tentando achar a essência daquele relato, tentando entender o fato de que para ele conviver com a dor era menos doloroso que tentar acabar com ela, pois os tratamentos lhe causavam mais sofrimento. O desafio veio na hora de escrever a história. Eu não queria que algo se perdesse. O meu maior objetivo foi provocar o leitor a se colocar no lugar de Alexandre. Quero que as pessoas compreendam suas dificuldades diárias. Mostrar que pequenos gestos do cotidiano devem ser valorizados. Normalmente as dores passam, mas quando elas não cessam é porque algo está errado.
Por nĂŁo poder carregar peso, Alexandre substituiu a mochila por um livro, onde carrega seu tablet
Fetiche levado a sério O termo BDSM refere-se a relações entre pessoas que buscam prazer sexual na dor e significa bondage, disciplina, dominação, submissão, sadismo e masoquismo Por MAILSOM PORTALETE Fotos ALINE SANTOS
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iver uma fantasia sexual é entregar muito mais do que o corpo, mas revelar desejos, às vezes, proibidos. Tão profundos e intensos, talvez desconhecidos por você mesmo. A entrega inclui, também, estar exposto às vontades do parceiro. A vivência dessas práticas pode proporcionar prazeres além, ou diferentes, do ato sexual tradicional. Klara Luhmen, 34 anos, e Matís d’Arc, 35, são sócios fundadores da Luhmen D’arc, empresa que promove cursos, palestras e apresentações com a temática BDSM, além de vender acesPRIMEIRA IMPRESSÃO | 74 | JULHO DE 2016
sórios necessários para as práticas. Para eles, falar em BDSM apenas como fetiche seria redutivo, pois é algo que permite inúmeros aprendizados, promove o autoconhecimento, trabalha com questões psicológicas, emocionais e pode ser divertido e terapêutico. Matís é natural de Munique, na Alemanha, estudou literatura, foi produtor cultural e, hoje, dedica-se em tempo integral ao BDSM, do qual é adepto há cinco anos. Klara – praticante há nove – é paulistana, mora na Europa há 15 anos, se formou em dança e atualmente trabalha na Luhmen D’arc e com massagens tântricas. Para Klara, o BDSM proporciona
níveis altos de satisfação, mas há tantos outros fatores envolvidos que o prazer se torna mais um dos elementos e, às vezes, nem é o principal. “Tudo começa com a confiança. É preciso uma intimidade muito grande, pois o sadomasoquismo gera encontros intensos. Momentos de entrega. Tanto para o Top quanto para o bottom”, declara. Top e bottom são nomenclaturas internacionais que se referem ao dominador e ao submisso, respectivamente. No Brasil, quem domina é conhecido como Dom, se for homem, ou como Domme, se for mulher. Já as pessoas que se submetem são chamadas de submissos, ou
escravos. Para Klara, é essencial não se deixar limitar pelas terminologias “O mais importante é achar uma maneira de comunicar as preferências individuais de cada um sem necessariamente se ater a rótulos”, exclama. Paula Fernanda Andreazza, terapeuta sexual, salienta que o BDSM é mais que um fetiche. “Nessas práticas existe um profundo respeito e um código de conduta muito rígido. Todos os jogos de sadomasoquismo ou dominação/submissão devem ser, em primeiro lugar, consensuais, saudáveis e seguros, física e emocionalmente, para ambos”, declara. A sexóloga conta, ainda, que o BDSM leva os praticantes a conhecerem e respeitarem seus próprios limites, podendo ser usado como uma ferramenta de cura emocional e autoconhecimento. Klara salienta que as práticas são delicadas e permitem um crescimento compartilhado. “Para mim, o principal é conhecer os próprios limites, brincar com eles, e fazer certas coisas que sozinha eu nunca faria. Mas isso só é possível com um parceiro no qual confiamos muito”, ressalta. De acordo com Paula, o que leva alguém a ser top ou bottom, geralmente, tem relação com a infância ou com as experiências de vida. Klara e Matís se definem como switcher – pessoa que desempenha tanto o papel de dominador quanto o de submisso. “O que me fascina (no BDSM) é ele ser tão intenso, arriscaPRIMEIRA IMPRESSÃO | 76 | JULHO DE 2016
do, divertido e prazeroso. As práticas nos abrem uma série de possibilidades de aprendizado, autoconhecimento e compreensão do parceiro. São momentos que devem ser construídos com carinho”, destaca Klara. Mas como é a sensação de, por exemplo, ser chicoteado? Segundo Klara, é como se fosse uma massagem em que você sente a energia se mover no corpo, se transformar. “Numa das minhas sessões de chicote mais intensas, senti ter chegado a um ponto em que nada mais era necessário. Senti um fluxo de energia na coluna, o maxilar vibrando, e, na boca, era como se estivesse em chamas”, relata. Para Matís, os dois lados do BDSM proporcionam sensações diferentes. “São interesses distintos. Na submissão você é guiado, está exposto e é desafiado”, afirma. Quando submetido às vontades de um top, Matís fica mais emotivo. “A dor permite conectar-me com a minha tristeza. É bom deixar isso fluir. Para muitas pessoas, a submissão está intrínseca ao sexual, para mim não. Sentimentos que, no dia a dia, acabo deixando de lado, pensamentos que eu reprimo ou ignoro, nessa hora, afloram”, completa. Matís acrescenta dizendo que é na dominação que ele mostra seu lado agressivo (e o sexual). Desse modo, é importante ter um parceiro que esteja disposto a lidar com isso. “Assim como eu, gosto que a pessoa que esteja co-
migo fique excitada com esse jogo. A brincadeira é andar nessa linha tênue que é ser o mais agressivo que eu puder, ao passo que essa agressão permaneça no limite que o outro aguenta”, confidencia. Entretanto, ele deixa claro que agressão em excesso pode ser perigosa a ponto de machucar alguém de verdade. “A ideia é tentar levar ao extremo, mas sem ultrapassar o limite, e a outra pessoa também precisa estar apta para se permitir chegar ao máximo da excitação. Esse jogo, no entanto, precisa ser sempre consensual”, adverte. Matís completa explicando que o fato de estar no controle lhe traz uma sensação de liberdade. O BDSM E O SEXO De acordo com Matís, o BDSM associado ao sexo é muito prazeroso e a experiência pode ser transformadora, mas uma coisa não está, obrigatoriamente, ligada a outra. “São prazeres diferentes. Além do prazer sexual, vem a adrenalina. Assim como na psicoterapia, uma sessão de BDSM lhe permite estar em contato com seu subconsciente. Talvez faça aflorar traumas de infância, pode levar a descobrir desejos e sentimentos desconhecidos”, conclui. Segundo a sexóloga Paula Fernanda, em relação à sexualidade ainda há muito o que se compreender e muitos tabus a serem rompidos até que a sexualidade possa ser vista como natural e humanizada.
“Todas as manifestações sexuais que fogem do procriativo e recreativo suave (conhecido como baunilha) ainda são vistas com muitas reservas, pois fetiches e fantasias sexuais, na maior parte das vezes, carregam consigo muita vergonha”, relata. Segundo a pesquisadora norte-americana Brené Brown, autora do livro A arte da imperfeição: “a vergonha necessita de segredo e silêncio para se perpetuar”. Isso talvez explique muito sobre porque o BDSM ainda é um tema muito pouco discutido abertamente. As fantasias sexuais possuem um repertório imenso no mundo do erotismo e da sexualidade. Todos os seres humanos, em todas as culturas estudadas, possuem esses desejos. Existe um enorme potencial de cura emocional na abordagem clara e honesta sobre o assunto. “Segundo minhas pesquisas e experiências pessoais e profissionais, as fantasias nos ajudam a transformar a dor física ou emocional, sofrida na infância, em prazer sexual. Ajuda a sentirmo-nos menos impotentes frente aos desafios e às necessidades que não são apropriadamente supridas”, enfatiza Paula. Para a sexóloga, quando compreendemos e aceitamos nosso desejo mais íntimo, conseguimos integrar nosso maior medo. O efeito gerado é libertador e abre um espaço de autocompaixão. De acordo com ela, aceitar-se na totalidade (o que inclui nosso lado mais sombrio), nos torna pessoas mais autênticas e criativas.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER Sou movido pela ânsia da descoberta. Há algum tempo peguei a mania de optar por pautas do underground. Gosto de falar de assuntos tabu, polêmicos. A estranheza que certos temas despertam aguçam a curiosidade. O BDSM é um desses. Pouquíssimo abordado pela mídia, esse assunto, quando tratado, é de modo estereotipado e sensacionalista. Minha intenção com esta reportagem foi fugir do óbvio. Claro que precisei ser um pouco didático, afinal, é um mundo novo, cheio de práticas e nomenclaturas desconhecidas pela maioria. A reação que vejo nas pessoas, ao falar de sadomasoquismo, é de deboche. O tema, que para os praticantes é uma filosofia de vida, para a maioria é apenas mais um motivo para a chacota. E isso me incomoda. Não escrevi sobre praticantes de BDSM. Escrevi sobre seres humanos e seus desejos. Espero que você goste desse pequeno recorte, ainda que superficial dada a complexidade da pauta. Porém, se ela servir para quebrar alguns preconceitos, já me darei por satisfeito.
PRIMEIRA IMPRESSÃO | 77 | JULHO DE 2016
Viver o envelhecimento Do nascimento à velhice, a vida é composta por acontecimentos que nos proporcionam prazer e dor Por José Francisco Ribeiro Júnior Fotos Dyessica Abadi
C
omo você se vê daqui a três décadas? Para você, o que é ser idoso? Quando jovem, a maioria preocupa-se pouco com saúde, relações sociais e economia, projetando a velhice como um futuro distante. A maneira como se vive o presente pode definir os prazeres e as dores das marcas do tempo. O professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Johannes Doll é uma das maiores referências em gerontologia no Brasil. Para Doll, é difícil estabelecer uma relação entre envelhecimento e ser idoso. Existem sim, fases da vida que variam de pessoa para pessoa. A saída do mercado de trabalho pode representar satisfação e alegria para alguns profissionais. Para outros, pode representar a falta de perspectiva. “Existem homens que jamais vão parar de trabalhar. Para eles, o trabalho é o grande significado de suas vidas”, cita. PRIMEIRA IMPRESSÃO | 78 | JULHO DE 2016
Não ter que trabalhar, no entanto, pode representar uma libertação. “Existe uma fase da vida, entre 60 e 75 anos, que as pessoas passam a fazer coisas que nunca fizeram antes. Aqui mesmo na Faculdade de Educação, existem mulheres que não têm escolaridade e, quando ficam mais velhas, procuram a escola. O prazer delas é vincular-se à escola”, revela. Contudo, o envelhecimento deve ser visto sobre duas faces. “Atualmente os idosos estão mais jovens que em outros tempos. Por outro lado, com o aumento da expectativa de vida, a velhice acima dos 75 anos é marcada por doenças crônicas degenerativas, por dependência e por demências”, afirma. No Brasil, os primeiros registros de políticas para idosos aparecem nos anos 60. Somente em 1994, surgiu a Lei da Política Nacional do Idoso. Em 2003, foi criado o Estatuto do Idoso, que discute, por exemplo, a violência contra idosos.
No século XXI, nasceram os grupos de convivências, proporcionando uma maior qualidade de vida aos seus integrantes. Outro aspecto positivo é a garantia dos vencimentos do aposentado ser de, pelo menos, um salário mínimo, sendo que o poder de compra desse vencimento aumentou nos últimos anos. Em contrapartida, idosos aposentam-se com um ganho real bem superior e isso vai diminuindo ao longo dos anos. Para Eduardo Schmitz, coordenador do Programa Sesc Maturidade Ativa no Rio Grande do Sul, os prazeres e as dores de envelhecer têm relação com uma série de fatores como gênero, condição financeira e a região onde se vive. “Por muito tempo a vida após os 60 anos foi vista como um tempo de decadência, hoje, o envelhecimento se mostra para muitas pessoas como uma oportunidade de desenvolvimento”, afirma. Schmitz observa que o ciclo de vida
Aos 77 anos, Wilmar atua como juiz conciliador e contribui com trabalho voluntรกrio em diversas parรณquias de Porto Alegre
PRIMEIRA IMPRESSร O | 79 | JULHO DE 2016
Izabel sofre um drama: o esposo Gilberto é portador de parkinson
humano está mudando. Antes, as pessoas viviam em média cerca de 10 anos após a aposentadoria, agora vivem muito mais. Com isso, surgem oportunidades para outras experiências. No passado, a vida era bem demarcada em três fases: estudo, trabalho e aposentadoria. Como o tempo da aposentadoria está aumentando, o ciclo da vida está mudando. O especialista traz dados recentes sobre a população de idosos no Brasil: representam 13% da população; são os principais provedores financeiros em 62,5% dos lares onde moram; os octogenários já representam 13,8% dos idosos; as doenças crônicas, como hipertensão e diabetes, são os principais vilões da velhice. Entre as maiores dificuldades, estão as preocupações com a saúde e a carência de relações sociais. Segundo Schmitz, essa geração gosta de olho no olho e uma boa conversa. “Eles desejam aprender coisas novas. Estão abrindo caminho para as futuras gerações e, se observarmos a história, já fizeram isso em todas as fases da sua vida”, conclui. PRIMEIRA IMPRESSÃO | 80 | JULHO DE 2016
O prazer de malas prontas e a dor da ausência Wilmar Silva, 77 anos, serviu ao Exército aos 18 anos e, em 1964, foi dispensado por ser brizolista. “Fiquei mais de 50 dias preso e fui expurgado do Quartel. Tive que ir à Brasília para reaver meus documentos”, relembra. Depois, trabalhou na Brigada Militar, como policial rodoviário estadual, até 1987. Com três filhas, netos e bisnetos, o aposentado vive de malas prontas e, ao lado da companheira Erena, viaja pelo Brasil e pelo mundo. “Já conheci 37 países e também muitos lugares do Brasil. Até arrisco umas palavras em polonês”, conta. A paixão pelas viagens divide espaço com o prazer pelas atividades físicas. Na juventude, foi maratonista, e o hábito das corridas de rua permanece na rotina do aposentado. Inclusive, ganhou uma prova na sua categoria no ano passado. Há dez anos, integra a Maturidade Ativa Sesc Centro, em Porto Alegre,
onde realiza diversas atividades. “Todos os anos, participo da Convenção Estadual da Maturidade Ativa, em Torres. Há uns cinco anos, sou responsável pela oficina de pesca”, afirma. Há dois anos, enfrentou um câncer de próstata. O idoso garante que se sente bem e que a doença nunca o amedrontou. O que mais entristece são as injustiças no País, a falta de educação das pessoas e o abandono aos idosos. “Os idosos perdem valor porque as pessoas pensam que eles não são produtivos. A falta de educação nas filas dos bancos, nos estacionamentos, no trem e no ônibus é uma realidade. Sem contar o que acontece em Brasília. É uma roubalheira. Isso tem que acabar”, critica. Wilmar também sente prazer nas coisas simples. “O meu maior prazer é viver, deitar a cabeça no travesseiro e dormir sem preocupação”, diz. Por fim, o avô fala sobre a dor da ausência dos netos: “Nenhum dos meus netos vem me visitar. Quando precisam de auxílio, eles me procuram pedindo
dinheiro. Eu não empresto, eu dou, para não correr o risco de não me pagarem. Queria mesmo que dedicassem um tempo para vir na minha casa, não só quando precisam”, desabafa. A saudade, a dor e o prazer da superação Muitas pessoas passam por dificuldades da infância à velhice. Izabel do Amaral, 78 anos, massoterapeuta, viveu provações, muitas dificuldades, mas nunca abandonou seus prazeres, como a dança, a profissão e a prática esportiva. Na infância, Izabel mudou-se do interior para Novo Hamburgo, na Grande Porto Alegre, em busca de oportunidades. Aos seis anos, perdeu o pai em um acidente de trabalho. Sua mãe, ela e suas irmãs passaram a trabalhar em casas de família, enquanto os irmãos aprendiam um ofício. “Naquela época, era comum criança trabalhar”, lembra. Até os 14 anos, Izabel trabalhou em casas de família. Depois, aprendeu a costurar calçados e empregou-se em uma fábrica. Nesse trabalho, conheceu o seu primeiro marido, com quem se casou aos 17 anos. Depois, mudou-se para São Leopoldo, pois o esposo ingressava no serviço militar. A partir desse momento, Izabel passou a dedicar-se a educação dos dois filhos. Nesse período, o marido passou a envolver-se com outra mulher e a traição foi o ponto final do relacionamento. “Fiquei três meses sem receber um centavo. Aprendi um ofício, fiz supletivo e realizei um curso de massoterapia”, relembra. Alguns anos depois, a grande dor da sua vida: a filha mais velha, Clea Regina, faleceu, aos 28 anos, com lúpus. “Fiquei um mês sem conseguir trabalhar. Depois, acho que a minha filha me iluminou e encontrei significado para seguir adiante”, comenta. Os bailes tornaram-se o seu grande prazer. Em um deles, Izabel conheceu seu marido Gilberto, com quem vive há quase 20 anos. Depois, encontrou nos grupos de convivência uma nova realidade. “Quando ingressei nos grupos, me senti plena. As danças, as viagens, as corridas. Nesses grupos somos valoriza-
dos”, relata. Izabel exibe, na parede de sua casa, uma coleção de medalhas das provas de corrida de rua que participou. Atualmente, sua maior dor é aceitar a doença do marido. Ele foi diagnosticado com Mal de Parkinson. “É horrível, às vezes não sai voz, tem dificuldade para comer. Isso me chateia, porque não posso mais sair, viajar. Nunca vou abandoná-lo. Peço à Deus que me dê forças e que não me tire a vontade de viver. O que fortalece são os grupos. Lá, me divirto, dou umas risadas”, revela. Wilmar e Izabel revelam as delícias e as frustrações que são vivenciadas ao longo de suas existências. Para eles, é muito bom estar vivo, e ser idoso é uma experiência única, especial. A velhice não é plena devido às agruras do destino, às dificuldades físicas e sociais, mas é digna e serve como lição às futuras gerações. Talvez, se todos os jovens soubessem o seu destino, pensariam na importância cultural que as pessoas mais experientes têm para a sociedade. Até nas sociedades mais primitivas os mais velhos são reconhecidos como líderes morais e intelectuais. Isso não acontece ao acaso. Pense nisso.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER Como eu cheguei até aqui? Quantos sentimentos, expectativas. Escrever sobre o envelhecimento é projetar-se ao futuro. Realizar um exercício de pura empatia. Ao entrevistar Johannes, Eduardo, Wilmar e Izabel, pensei na minha velhice. Quais serão os meus prazeres e minhas dores? Quantas alegrias e tristezas o envelhecimento pode me acarretar? É difícil pensar em “ser idoso” aos trinta e poucos anos, mas as atitudes no presente podem representar um futuro saudável, feliz e de novos aprendizados, ou, também, de solidão, dependência e inércia. A matéria quer revelar, através do conhecimento, e de dois personagens, as dores e prazeres de viver o envelhecimento. Ouvir e sentir me fez refletir. O que eu tenho feito para ter uma sobrevida de felicidade plena? Para mim, isso é utopia. Na verdade, somos feitos de prazeres e dores, tristezas e alegrias, amor e ódio, ensinamentos e aprendizados. Como você se vê daqui a 30 anos?
Wilmar sente falta da presença dos netos
PRIMEIRA IMPRESSÃO | 81 | JULHO DE 2016
Dedicação integral Os verdadeiros homens de ferro do triathlon aprendem a suportar as dores das provas mais difíceis para desfrutar com mais prazer do pódio Por JÉSSICA BELTRAME Fotos DYLAN ROMERO
PRIMEIRA IMPRESSÃO | 82 | JULHO DE 2016
A
corrida contra o tempo não para. Dor, pressão, cansaço físico e mental são sensações comuns para quem se dispõe a ser um “homem de ferro”. A explosão de endorfina liberada junto com o tiro de largada faz o tempo ficar curto para quem percorre metros em frações de segundo. Há uma linha tênue entre o prazer e a dor. Por mais que a ligação entre ambos seja biológica, no triathlon não se pode chegar a um sem passar pelo outro. No esporte, e especialmente no triathlon, não é diferente, primeiro todo esforço e intensidade de anos de treinamento, depois a emoção da vitória. “A relação com a dor dentro do esporte é muito pessoal. No triathlon tu te apresenta num nível muito forte, alta intensidade e preparação.
Há provas em que é preciso tolerar muita dor, porque o desgaste físico é maior, mas essa também é a relação com o prazer. Chegar ao final, ganhar, atingir os teus objetivos e metas. É por isso que tu aguenta toda a dor, é isso que faz valer a pena”, relata Diego Schardosim. Praticante de esportes desde criança, Diego encontrou no triathlon sua verdadeira paixão. Triathlon é três vezes mais esporte: natação, ciclismo e corrida. Sem fugir da ordem, a luta contra o tempo começa a contar assim que se entra no mar e só para quando se cruza a linha de chegada após a corrida. Triatletas são pessoas que têm em comum o esporte e a superação. Mais que esportistas de alto rendimento, são três vezes vencedores, por isso são chamados de homens de ferro.
Superando a rotina O dia começa corrido, para dar conta da intensa rotina de treinos, em média dez por semana, entre natação, ciclismo e corrida. Para um amante do esporte, a formação acadêmica não poderia ser outra: educador físico. Além de dar aulas no Colégio Estadual Heitor Vila Lobos, Diego também é personal trainer do Grupo de Corrida Natural Fit, que hoje conta com mais de 40 participantes. “O foco hoje é maior, apesar de fazer mais de dez anos que pratico esporte”, conta o professor, que vive a fase mais intensa de sua carreira como atleta. Dificilmente há um final de semana no qual não tenha uma competição marcada, mais difícil ainda é voltar pra casa sem premiações. Na parede de
casa, falta espaço para tantas medalhas e troféus, adquiridos não só no triathlon, mas também nas três modalidades separadamente. Diego não vê problema em ter que abrir mão de alguns momentos, feriados e finais de semana para se dedicar à rotina de treinos e competições. “Eu não vejo como ter que deixar de fazer as coisas para treinar. Eu não saio mais pra balada, embora não seja uma coisa que eu precise deixar de fazer. Não tem sofrimento nenhum, a competição é uma coisa que me dá muito prazer.” Aos 36 anos, o atleta é pai de duas meninas, Mariana, de quatro anos, e Ana Clara, de um. O único incômodo na dura rotina é a falta do convívio familiar. “Sempre que dá, elas vão assistir às provas, é bom ter minhas filhas na linha de chegada.” O que é preciso para se tornar um campeão? Nem só de pódios e vitórias um campeão é feito. Atitude, trabalho duro, habilidade natural e o equilíbrio entre o corpo e a mente são vitais. Muitas vezes a maior vitória é se superar, conseguir um
Com treinamentos de natação e corrida quatro vezes na semana, mais ciclismo três vezes na semana, Rafael ainda encontra tempo para o Grupo RN Runners de esporte amador, do qual é treinador, e para cuidar da academia Aquasul Escola, da qual é sócio proprietário. “Para mim, essas competições servem como motivação no meu trabalho e também são momentos de extrema superação, quando passamos por muita dor e cansaço. Mas, ao final de cada prova, o sentimento é de dever cumprido”, conta Rafael. Competidor nato, no auge dos seus 34 anos, Rafael já participou de etapas de campeonatos estaduais, sempre chegando no pódio, mas considera como principais competições as do Ironman BraAtitude sil 2010, 2011 e 2015 e o Ironman 70.3, de Miami, em 2014. “Sempre haverá uma desculpa Ironman é uma modalidade de para não sair da zona de conforto. triathlon de longas distâncias, comTodo dia é dia para treinar, indepreendendo aproximadamente 3,8 pendentemente do tempo”, afirma quilômetros de natação, 180 quilôo triatleta Rafael Nunes. É com metros de ciclismo e esse pensamento que o 42,195 quilômetros de também educador físiCiclismo é uma das corrida. O tempo de co encontra motivação modalidades dentro duração de uma prova para os treinos puxado triathlon, esporte de Ironman pode variar dos durante a semana. praticado por Diego melhor resultado, um tempo menor e uma boa colocação. O fator psicológico é muito forte: “Eu consigo suportar na prova o que não consigo sofrer no treino”, afirma Diego. Há quem diga que um campeão já nasce campeão, é um fator prédeterminado, por assim dizer. “Um campeão olímpico nasce pronto, ele já nasce com as características físicas pra ser um campeão, resta saber se ele vai ser lapidado ou não. O primeiro ponto é ter aptidão, o segundo é treinamento intenso”, explica Diego. No mundo do esporte, os resultados podem demorar a aparecer. “Há pessoas que passam por quase dez anos de treinamento e preparação física para chegar num bom resultado.”
entre oito e 17 horas, dependendo da condição física e preparo do atleta. Os atletas profissionais competem por prêmios em dinheiro, e a chance de disputar o campeonato mundial no Havaí. “Porém, nessas competições, para nós amadores, o principal objetivo é completar e tentar superar a dor durante a prova”, explica o esportista sobre a competição de triathlon que é considerada a mais difícil, exigente e intensa. “O triathlon é um esporte que exige muito dos praticantes, principalmente de nós amadores, pois o treinamento é muito árduo e exaustivo”, ressalta Rafael. “Se você quer realmente ser um atleta, apenas querer não é o suficiente.” O educador garante que muita dedicação, treinamento, disposição e atitude são necessários para a formação de um verdadeiro atleta, de qualquer esporte e modalidade.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER Cada entrevista, cada pesquisa sobre a modalidade, cada linha escrita me dava mais vontade de calçar os tênis, colocar os fones de ouvido e ir correr ou pedalar por aí. Eu, que não era muito fã de esportes, hoje sou uma viciada em corrida. A entrevista com os atletas Diego e Rafael me mostrou que é possível levar uma vida mais saudável, só precisa de força de vontade e organização. Não há desculpas para não fazer, e o tempo, definitivamente, não é empecilho. Praticar um esporte exige muito empenho e dedicação, mas praticar uma modalidade que reúne três estilos de atividade física diferentes é só para verdadeiros homens de ferro. Se eu pudesse resumi-los em uma palavra, esta, com certeza, seria superação. Praticar triathlon é superação antes de tudo. A vontade de fazer mais e melhor é o que move esses atletas. Não há dor forte o suficiente para superar o prazer de bater um recorde pessoal. Não existe sofrimento depois da emoção da linha de chegada. Todo esforço vale a pena.
Independentemente do tempo ou das condições climáticas, Diego percorre em torno de 25 quilômetros em corridas semanais
História do triathlon Esta modalidade esportiva surgiu em meados de 1970, em San Diego, na Califórnia (Estados Unidos). Tudo começou com o ex-nadador universitário Jack Johnstone. Jack e um amigo elaboraram uma competição de 18,06 quilômetros de extensão: 460 metros de natação, 8 quilômetros de ciclismo e uma corrida de 9,6 quilômetros. Logo o esporte ganhou projeção dentro da Marinha Americana. O triathlon era então praticado como um exercício de aperfeiçoa-
mento militar. Foi um integrante da Marinha que sugeriu transformar o exercício em uma prova. O triathlon passou a ser esporte olímpico em 2000, em Sydney (Austrália), após sofrer algumas modificações estabelecidas pela União Internacional de Triathlon. As provas, que envolvem natação, ciclismo e corrida são todas de muita intensidade, sendo uma das modalidades mais difíceis para os competidores por exigir muito preparo físico e psicológico.
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E
les cresceram tentando se encaixar em uma forma. Não por vontade própria, mas porque os outros diziam que era o que deveria ser. Todo mundo era uma coisa ou outra: preto ou branco, bom ou mau, direita ou esquerda, homem PRIMEIRA IMPRESSÃO | 86 | JULHO DE 2016
ou mulher. Era? Bem, talvez não. Entre um lado e o outro tem sempre um caminho. E se eles estivessem no meio desse percurso? E se eles quisessem ter liberdade de se locomover por ali. Por que não? “É ruim ser colocado em uma caixinha que não queria estar. Não que-
ro tampas nessas caixas. Não quero caixas. Desmontem essas caixas para que todos possam transitar como se sentem melhor”, suplica o estudante Gunnar Kaiper Duarte, 21 anos, morador de Taquara, no Rio Grande do Sul. Ele se identifica como gênero fluido não-binário. Ou seja, não se en-
Caixas sem tampas Pessoas que não se identificam com a binaridade de gênero lutam por representatividade Por JONARA CORDOVA Fotos RAFAEL MELLO caixa somente no gênero feminino ou no masculino. Flui entre eles. A falta de reconhecimento com o gênero binário também fez com que Rodrigo Mattos Rocha, 19 anos, procurasse uma identificação alternativa. Mas, para o estudante de Jornalismo da Unisinos, esse pro-
cesso não ocorreu de imediato. Inicialmente, Rodrigo se via como homem cisgênero gay. Ao longo dos anos, não se sentindo mais totalmente pertencente ao gênero masculino, chegou a crer que se encaixava na travestilidade ou androgenia, porém, ainda não se via representado por
inteiro. “Percebi que o meu gênero fluía entre o masculino e feminino, mas ainda não tinha informações suficientes ou representatividade que me proporcionasse uma identificação. Ao conhecer o meio não-binárie e o termo ‘gênero fluido’, me senti acolhide e sobretudo parte dele.” PRIMEIRA IMPRESSÃO | 87 | JULHO DE 2016
Fluidez da imagem Culturalmente, são esperados comportamentos específicos e distintos, para homens e mulheres. Até mesmo em relação à aparência, há uma normatividade social. No entanto, para quem é gênero fluido não-binário, não existe “coisa de mulher” e “coisa de homem”. Gunnar se sente livre para vestir-se conforme sente vontade. “Não sei por que as pessoas se incomodam tanto! Sempre amei moda, androginia e diversidade. Sempre gostei de misturar. É insano pensar que homem geralmente usa bermuda, mas não usa saia, só tem uma costura separando ali”, explica o que deveria ser óbvio, aos risos. Rodrigo também gosta de intercalar adereços, usando saias, brincos grandes, esmaltes, maquiagem nos
olhos e batom quando sente vontade. Quanto aos julgamentos, ele explica que não se incomoda mais. “É sempre estranho alguém te olhando com cara de desaprovação, mas já estou tão acostumade a ser olhado desde sempre, mesmo quando identificado como homem gay cis, que já não dou muita bola. Até dou uma piscadinha se a pessoa insiste em ficar olhando”, diverte-se. Olhares preconceituosos “Ou eu me empoderava ou deixava de existir”, declara Gunnar. Para sua família, aceitar a homossexualidade já foi um desafio com o qual até hoje não lidam bem. Portanto, ele prefere não abordar a temática do gênero fluido com seus parentes. Sobre a discrimi-
nação, o jovem diz ser algo que ocorre diariamente. “O preconceito começa a partir do momento que ponho o pé na rua e, muitas vezes, não termina dentro de casa. As pessoas trocam o ‘oi’ por olhares atravessados, o ‘bom dia’ por ‘veado’, o ‘boa tarde’ por ‘cruzes’ e por aí vai”, desabafa. Já Rodrigo acredita que o maior preconceito que sofre é velado. “Existe uma descrença de algumas pessoas sobre o gênero fluido. Também há uma parte de uma vertente do feminismo que desacredita na autoidentificação de gênero e, seguidamente, eu tenho que ouvir comentários infelizes dessas pessoas”, conta. Meio LGBT Na teoria, a sigla LGBT contempla lésbicas, gays, bissexuais e travestis.
Sem definir gênero, Rodrigo passa por cima dos padrões heteronormativos
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Porém, dentro do movimento, Rodrigo não se sente nem um pouco representado. Ele explica que tem acompanhando vlogs e artigos na internet de pessoas que também se acham apagadas e que decidiram tomar a frente na luta para ter maior poder de voz no meio. “O meio LGBT, além de dar voz praticamente só ao L e ao G da sigla, ainda se mostra desunido e opressor em outros fatores. Os não-bináries são completamente apagades de toda a informação que se tem sobre a luta LGBT. Até mesmo na luta trans, só se fala do designado homem que fez a transição (cirúrgica ou não) para mulher, e vice-versa”, denuncia Rodrigo. Gunnar acredita que a militância existe e é válida. No entanto, concorda que, dentro da causa, as demais identificações sexuais e de gênero são colocadas de lado, en-
fatizando somente a luta gay. Mesmo no meio das minorias, o gênero não-binário ainda está sendo aprisionado em uma caixa da qual não pertence. Isso faz com que Gunnar, Rodrigo e tantas outras pessoas não se identifiquem e não se sintam representadas na sociedade. (*) Rodrigo e Gunnar foram questionados sobre o uso do pronome que preferiam ser tratados na reportagem e disseram que poderia haver variações entre o feminino, masculino e neutro. Foi escolhido o gênero masculino, para que a linguagem ficasse mais clara, com exceção das falas dos dois, nas quais preferimos ser fiel ao termo escolhido por eles.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER Queria abordar um tema pouco discutido, dar visibilidade para pautas que costumam ser tratadas com superficialidade. Em um grupo que participo, onde se debatem assuntos sobre questões LGBT, descobri o gênero não binário. Pensei que não encontraria fontes que não se identificassem com a binaridade. Acabei achando Rodrigo dentro da própria Unisinos. Depois, cheguei em Gunnar por amigos em comum. Com as experiências deles, compreendi a fluidez de gênero. Percebi que há muito mais para se discutir sobre a não-binaridade. Concluí que essas pessoas, que não se sentem representadas dentro das caixas, merecem ser ouvidas. E fiquei muito feliz por ouvi-las.
Sobre a não-binaridade Eric Seger de Camargo, bolsista do Núcleo de Pesquisa sobre Sexualidade e Relações de Gênero (Nupsex) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, esclareceu alguns pontos a respeito da não-binaridade de gênero. Confira: Por que a sociedade tem tanta dificuldade em aceitar e compreender o gênero não-binário? A sociedade atribui o gênero a partir de um modelo binário, ser homem/ser mulher, masculino/feminino. Logo, se esse é o procedimento padrão de compreensão do gênero, seria incompreensível pensar que existe outra opção, já que essa é a compreensão automática que se dá aos indivíduos, assim como se pune socialmente quem não corresponde às expectativas de gênero. Quando um
bebê nasce já se tem uma expectativa de futura masculinidade ou feminilidade. Esse conjunto de expectativas mais as punições sociais são parte do mecanismo que mantém o sistema binário de gênero coercitivo funcionando. A questão não é tanto a dificuldade em aceitar algo que não faz parte de um binário de gênero, mas sim como que socialmente constituímos uma “verdade” do binarismo de gênero, que não é algo “natural” e sim algo socialmente atribuído. O que faz alguém ser não-binário? O que faz uma pessoa não ser binária é a mesma coisa que faz uma pessoa ser binária: o resultado da negociação entre a norma e a construção subjetiva de si. Existem roupas, corpos e características comportamentais ditas “de
mulher” e “de homem”. Portanto, tudo isso faz parte do binarismo de gênero. O sistema que produz binaridade e não-binaridade é o mesmo. Como mudar essa falta de representatividade do gênero nãobinário? Para modificar isso, é preciso modificar a compreensão social que se dá para essas questões de gênero. Ou seja, não podemos continuar a produzir gênero como se fosse algo estável, obrigatório e limitado. Precisamos ter maneiras diferentes desta binária de representação e compreensão das pessoas. Assim, será possível que elas sejam respeitadas e possam se expressar da maneira que melhor lhes convém, sem punições sociais por não corresponder a esta norma específica de binário de gênero.
PRIMEIRA IMPRESSÃO | 89 | JULHO DE 2016
Casamento, carreira e três vidas
PRIMEIRA IMPRESSÃO | 90 | JULHO DE 2016
Uma gravidez de risco trouxe à vida do casal Luciane e Ronaldo a filha Natália, uma criança esperada Por GUILHERME ROSSINI Fotos Natália Mingotti
À
s 8h17 do dia 22 de janeiro de 2016 vinha ao mundo Natália Delai Miorelli, uma menina de olhos verdes, com pouco mais de 2.7 kg, com a saúde que todos esperavam. E como esperavam. Esse é o final de uma história que começou há muito tempo. Desde que Ronaldo Miorelli e Luciane Delai se conheceram. O ano era 1998, e os dois jovens de 23 e 17 anos, respectivamente, se conheceram em Carlos Barbosa, cidade de descendência italiana, no pé da Serra Gaúcha. Os dois barbosenses casaram-se quatro anos depois, em 2002, com a intenção de levar uma vida bem planejada e estruturada. Aos 21 anos, Luciane era técnica em enfermagem, mas como parte desse planejamento, cursava a faculdade de Enfermagem para garantir uma estabilidade financeira melhor. Com o trabalho de Luciane e de Ronaldo, como motorista, os dois foram se estabelecendo e, como consequência, construíram uma casa. Com o passar dos anos, os dois levaram uma vida tranquila, até Luciane se formar. O título de bacharel em enfermagem trouxe a ela um salário melhor. Já com 27 anos, a enfermeira, no entanto, passou a trocar de emprego constantemente, uma coisa comum da profissão, diante da oscilação do mercado. Com a casa pronta e Luciane formada, os dois adicionaram um tópico aos planos de suas vidas: ter filhos. Como tudo o que o casal fazia era programado e calculado, o primeiro passo foi procurar um ginecologista, com o objetivo de obter as informações necessárias para uma gravidez tranquila. Para surpresa deles, nos exames pedidos pelo profissional, algumas anomalias foram encontradas no útero de Luciane. Os exames continuaram, houve a troca de ginecologista para uma segunda opinião, mas havia o problema: miomas, que são tumores PRIMEIRA IMPRESSÃO | 91 | JULHO DE 2016
após sete anos de espera, nasceu natália e realizou-se o sonho do casal
benignos, formados no útero. Além disso, havia um descontrole na menstruação, o que também era apontado como problema pelos médicos. Segundo a ginecologista e obstetra Paula Pertile, os miomas, como os de Luciane, podem trazer vários problemas durante a gestação. “Miomas submucosos e intramurais podem causas diversas complicações na gestação, como abortos, sangramentos e problemas no parto”, explica a médica. Diante dessas complicações, os dois médicos diziam que seria muito complicado para Luciane engravidar, tanto para ela, quanto para a criança que fosse gerada. Durante os cincos anos seguintes, a enfermeira passou a fazer diversos tratamentos para tentar amenizar seus problemas no útero e com a menstruação, sem obter sucesso. Aos 32 anos, PRIMEIRA IMPRESSÃO | 92 | JULHO DE 2016
Luciane decidiu desistir. O sonho da gravidez era algo muito difícil de concretizar. Ela estava preocupada que a criança nascesse com diversas complicações e que então não tivesse uma vida normal. Além disso, a cada ano ficava a dúvida se ela conseguiria trabalho ou não. Ano após ano, essa foi uma das principais preocupações do seu dia a dia. No entanto, em 2014, ela conseguiu um trabalho que mudaria sua vida, e mudou. Luciane foi contratada para trabalhar na Unidade Básica de Saúde (UBS) de São Vendelino, município vizinho a Carlos Barbosa. Durante o primeiro ano de emprego, ela encontrou amigas em suas colegas de trabalho. Amigas que souberam de seu drama. Muito tranquila, Luciane dizia que não pensava mais em ter filhos, pois, com 34 anos, aquele já era um sonho
distante. Passou um ano trabalhando na UBS em São Vendelino, cidade que tem apenas dois mil habitantes. Todos já conheciam a enfermeira e seu bom trabalho, que lhe rendeu uma renovação de contrato. Nesse período, qualquer sensação diferente que sentisse era chamada, em tom de brincadeira, como gravidez pelas amigas da UBS. A enfermeira só sorria e negava, com seu jeito sempre calmo e tranquilo. Para todas elas, essa é uma brincadeira recorrente – diziam que o ambiente era fértil, que todas que trabalhassem na UBS engravidariam. E realmente estavam certas. O inesperado aconteceu. Na primeira semana do mês dos namorados, em junho de 2015, Luciane chegou ao trabalho se sentido “estranha”, segundo ela mesma. Contou às amigas do trabalho que
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nos últimos dias tivera enjoo, atraso da menstruação, e, entre outros sintomas, dor de dente, algo que nunca havia tido. A mais empolgada das gurias, Solange, exclamou: “Lu, tu estás grávida!”. A enfermeira procurou um médico para ver o que eram essas sensações estranhas. O médico lhe recomendou um teste de gravidez e, também, outros exames de rotina que pudessem identificar algum problema. No dia 12 de junho, Dia dos Namorados, ela recebeu os exames, e, ao abrir, não acreditou no que viu. O teste mostrava positivo para gravidez. “Não sei se foi algum tipo de milagre, se foi sorte, não sei. Mas acho que toda a pressão de ter filhos e a troca de trabalho constante não me davam a tranquilidade necessária para poder gerar uma criança. Eu realmente não esperava essa gravidez, como tam-
bém não esperava estar tão feliz”, conta Luciane emocionada. Foi uma mistura de alegria e preocupação, pois ela ainda tinha os miomas no útero. Quando contou a Ronaldo, a emoção invadiu o pai da criança. Para ele, era inacreditável. Ao mesmo tempo, Ronaldo também ficou preocupado com a situação da esposa, que imediatamente procurou um profissional para avaliar seu caso. O ginecologista pediu diversos exames e, os analisando, disse que não haveria nenhum problema com sua gestação, mas que a enfermeira só tivesse cuidado para não fazer esforço físico e que controlasse a alimentação, coisas comuns e de rotina a qualquer gestante. Com uma gestação tranquila, sem percalços, nasceu Natália Delai Miorelli, mais uma pequenina barbosense na família, tranquila, tanto quanto São Vendelino.
A principal impressão que eu tinha antes de procurar saber um pouco mais da história de Luciane era que seria somente mais uma das comuns histórias de dificuldades na gravidez. No entanto, descobri que, apesar de haver semelhança entre o que as famílias passam, muitas peculiaridades trazem verdade àquilo que está sendo contado. Como repórter, tive a oportunidade de abordar detalhes que poderiam passar despercebidos a quem não fosse a fundo na história. A dor de dente nunca antes sentida por Luciane, antecedendo a gravidez. Ou o fato de a notícia ter chegado a ela justamente no dia dos namorados. Algumas dessas descobertas- que eu provavelmente só tive a oportunidade de descobrir fazendo essa matéria – me “pescaram” para dentro da história e me fizeram acreditar que tudo isso merece mesmo ser contado e mostrado às pessoas. A história por trás da história, é o que eu levo de principal lição de todas essas descobertas.
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Karoliny trava uma batalha diรกria para superar a doenรงa
No limite das
emoções
“M
inha vida está nos pincéis, minha vida está na criação, em todo sentimento e calor humano, movida por essa esperança, enfrento amarga tristeza, para enfim poder existir, para enfim poder resistir.” Esse trecho que demonstra grande angústia perante a vida foi extraído de um poema de Karoliny Tanski, 20 anos, que desde pequena vive uma luta constante contra os seus sentimentos e tenta aprender a lidar e conviver com a sociedade. Durante a infância, os pais foram muito presentes, e a caçula de três irmãos se relacionava bem com a família e sempre teve o carinho de todos. Porém, os problemas surgiram quando entrou na escola e a timidez era uma grande inimiga no momento de construir relações interpessoais. “Eu percebi que havia algo diferente quando se aproximava a hora de ir para escola e ela começava a chorar, não era um choro normal, era um pânico mesmo”, relata a mãe da jovem, Maria Aparecida Tanski, que, a partir disso, procurou tratamento psicológico para a filha a fim de curar a timidez excessiva. Não interagir com outras pessoas em sala de aula, ter vergonha até mesmo de responder a chamada, ou levantar para colocar um papel no lixo foram situações que deixaram evidente que Karoliny realmen-
Conflito de sentimentos é a característica mais marcante na vida de quem sofre com o Transtorno de Personalidade de Borderline Por Franciélen Severo Fotos Nicole Cavallin
te precisava de tratamento, não mais para timidez. Seu problema foi diagnosticado como fobia social, que é um transtorno ansioso que deixa a pessoa tensa quando exposta ou avaliada pela sociedade. Aos 14 anos, devido a problemas financeiros familiares, teve que interromper o tratamento, sem acompanhamento psicológico, sem remédios e sem acesso à internet, que era uma válvula de escape para ela. Naquele momento, a adolescente perdeu a briga contra a fobia e abandonou a escola. “Ainda lembro, era semana da pátria e estávamos em fila para cantar o hino e eu estava com muita vergonha, daí eu comecei a ficar nervosa, perdi a noção e desmaiei”, lembra ela, que, por não gostar das sensações que tinha mental e fisicamente, por um período interrompeu os estudos.
A DESCOBERTA DO TRANSTORNO Palpitação, ansiedade excessiva e suor frio eram características presentes na vida de Karoliny quando necessitava entrar em contato com outras pessoas. Logo novas características surgiram e, aos 15 anos, com a situação financeira mais estável, retornou aos tratamentos. Sua curiosidade e inconformismo com as sensações que tinha a fizeram pesquisar na internet, entre páginas e grupos, os sintomas, e se encontrou com as mesmas características do Transtorno de Borderline. A baixa tolerância à frustração, sensação de vazio intenso, de abandono, ambivalência em relação a metas, situações e pessoas, impulsividade e tendência a ter relações instáveis que promovem sofrimento, são características que, segundo a médica psiquiatra especialista em Terapia Comportamental Dialética (DBT) Cláudia Muñoz estão presentes nas pessoas que sofrem com o Transtorno de Personalidade de Borderline. Diante de mudanças de humor repentinos, brigas sem motivos, a mãe de Karoliny levou um susto quando descobriu uma das piores crises. Maria relata que comprou uma calça e apressadamente pediu para a filha provar para que pudesse trocá-la, caso não servisse. Porém, a jovem se recusou, a mãe insistiu e, ao tirar a peça, Maria percebeu centePRIMEIRA IMPRESSÃO | 95 | JULHO DE 2016
nas de cicatrizes nas pernas de Karoliny, que, a partir disso, resolveu contar para a mãe que, quando estava no limite de suas emoções, se automutilava. De acordo com a médica Cláudia, o uso de drogas, automutilação e tentativas de suicídio são consequências decorrentes do transtorno, devido à vulnerabilidade emocional que se encontra quem possui o transtorno. “A pessoa não tem essas condutas propositalmente, mas acredita que a forma de alívio do sofrimento seja atentar contra si, elegendo essas maneiras de interromper o desconforto”, explica a profissional. A INTERNAÇÃO Após milhares de brigas aparentemente sem motivos e automutilações, Karoliny chegou ao ápice das crises. Foi levada às pressas à médica que já a acompanhava e, após ouvir os relatos da adolescente sobre os planos de cometer suicídio, concluiu que seria
importante interná-la. O diagnóstico do Transtorno de Personalidade de Borderline foi confirmado a partir disto, no ano de 2015. “Eu fiquei sem chão, não sei como eu consegui ficar no hospital tentando interná-la. E, firme e forte lá com ela, sem chorar, tentando ser forte pra ela, tentando parecer que era tudo normal, que aquilo ia ser muito bom”, relembra a mãe. Após entrar em contato com a psiquiatra da filha, ouviu da médica: “Confia em mim que vai ser bom para ela.” Karoliny podia receber visitas três vezes na semana e, na primeira visita, Maria se surpreendeu ao vê-la melhor, “Claro que eu sentia
aquela dor de ver a minha filha lá dentro, cheio de estranhos, mas ela sorria e estava melhor”, conta. Para a garota, essa experiência, mesmo que aparentemente assustadora, teve um ponto positivo. Ela saiu do conforto do lar, teve acesso a uma realidade que, até então, não conhecia, ouviu relatos dolorosos de companheiros de quarto e que auxiliaram a entender que devemos sempre tirar um ponto positivo das experiências que vivemos. A mãe, que tanto medo tinha de ver a sua filha internada para sempre, viu suas esperanças se reerguerem após a internação. Quando Karoliny voltou para casa, teve uma melhora. Durante dois meses tudo ia bem, porém, o pesadelo na vida de mãe e filha retornou, juntamente com as crises. Atualmente, a mãe, para ser capaz de auxiliar a filha, também precisa de acompanhamento médico. A psiquiatra Cláudia confirma que, em determinados casos, a família também pode adoecer, pois acaba por
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Entre canetas e pincéis, a jovem expressa a sua realidade por vezes escondida
vivenciar este padrão de sofrimento por ter contato com situações de risco, crises emocionais e instabilidade por parte da pessoa com Transtorno de Personalidade Borderline. O estado de alerta é constante para a mãe, que sabe quando algo está errado e uma crise se aproxima apenas de olhar nos olhos de Karoliny. Segundo Maria, ela se isola, fica irritada, briga afirmando que está sem privacidade. “Muitas vezes ela briga comigo, me xinga, quer que eu saia de perto, mas mesmo assim eu não me afasto dela, porque sei que, se eu me afastar, ela fará alguma bobagem. Eu deixo ela brigando comigo, me sento em um cantinho e digo que não estou incomodando, que só quero ficar com ela, e fico até passar a crise”, relata. Maria tem ciência de que no fundo as pessoas sabem que Karoliny tem a doença, mas acreditam que grande parte do tempo é pra chamar a atenção. Para ela, eles não enxergam que quem sofre da doença quer reagir, só que não consegue, precisa de apoio, precisa de uma pessoa por perto. “Tentar incentivá-la
Estar diante de uma menina tão jovem, mais nova do que eu inclusive, e que já enfrenta tantos problemas que nem mesmo ela entende os motivos, foi triste, ainda mais se tratando de uma doença tão grave, que leva a mutilações e até mesmo ao suicídio. Ouvir os relatos detalhadamente e se sentir impotente perante a uma realidade que desconhecemos, me fez refletir o quanto a sociedade faz julgamentos sem se preocupar com os reais motivos. Quando concluí a entrevista com Maria, passávamos no corredor da casa e alguns barulhos vinham do quarto de Karoliny. Neste momento, a mãe parou em frente porta do quarto, encostou a cabeça e, após alguns segundos, me olhou e disse: “É apenas risada”. Presenciar essa cena e me aprofundar nesta experiência de vida me fez crer que realmente anjos existem, e neste caso específico, o anjo se chama mãe.
pra fazer algo que gosta, pra ver o sorriso dela é algo que eu insisto. As outras pessoas não têm essa paciência, mas graças a Deus que eu tenho”, conclui a mãe com lágrimas nos olhos. Para driblar as crises e ocupar a cabeça, Karoliny busca na arte uma forma de se expressar. Através de poemas e desenhos que retratam seu estado de espírito, a jovem consegue esquecer os sentimentos que a assombram. Roupas pretas, cabelos com cortes e cores diferentes, piercings, tatuagens e maquiagem forte são outras maneiras que ela encontra para se sentir melhor. Essa é uma forma com a qual ela se expressa, uma vez que, de outra maneira, ela não consegue. Atualmente, Karoliny toma três tipos de medicamentos diferentes e não se sente feliz e segura com o futuro, pois tem medo de sair, tem medo de trabalhar, tem medo de fazer muitas coisas. “Eu sempre me pergunto por que eu tenho essa doença. Eu tive uma vida boa, tenho pais que me amam, tenho tudo nas mãos, e
eu sou desse jeito”, desabafa. Para a psiquiatra Cláudia, devido à complexidade do transtorno, estudos revelam que a Terapia Comportamental Dialética (DBT) é a forma mais efetiva de tratá-lo. Há necessidade de ser realizado um tratamento completo, o qual inclui psicoterapia individual, participação em grupos de treinamento de habilidades (para aprender a tolerar o mal-estar, dentre outras capacidades) e acompanhamento com o psiquiatra em virtude do uso de medicamentos. A médica afirma ainda que o principal objetivo é o aprendizado para ter uma boa qualidade de vida. “Tudo que eu peço a Deus é que a minha filha tenha uma vida normal, que ela consiga trabalhar, que consiga adquirir as coisinhas dela, ter um futuro que não dependa de mim, porque eu tenho medo que aconteça alguma coisa comigo e ela não tenha amparo”, espera a mãe, que é capaz de abdicar até mesmo da própria saúde para proteger a filha, movida por este amor incondicional que não a deixa fraquejar. PRIMEIRA IMPRESSÃO | 97 | JULHO DE 2016
Ela era tão mimosa
F
oram quase 14 anos de uma impressionante cumplicidade e intenso companheirismo. O convívio durante esse tempo entre Cerise Pahl e sua poodle foi de aprendizado e crescimento. Mesmo sabendo que, pela ordem natural das coisas, a vida de Mimosa um dia teria fim, nunca pensou muito nisso até o diagnóstico da doença crônica. Foram mais de dois anos de luta, sabendo como iria terminar. “A decisão pela eutanásia foi um dos momentos mais difíceis que já passei, mas depois trouxe tranquilidade”, conta Cerise com lágrimas nos olhos. Um dia, uma amiga pediu sua companhia para ir buscar a filhote de poodle, de quatro meses, que iria manter como companhia. A surpresa era pelo fato da amiga morar numa irmandade evangélica em São Leopoldo com outras religiosas e sujeita às regras rígidas do local. Em poucos dias, as superioras descobriram e pediram que desse outro destino para a filhote. Cerise morava sozinha. Solteira e sem filhos, resolveu adotar a cachorrinha, na época com o nome de Suzy. Só que esse era o nome de uma amiga, e a pequena poodle ainda não atendia pelo nome. Ao conversar com uma vizinha sobre a recém chegada,
Cerise e sua poodle aprenderam a conviver e a superar dificuldades, mas também tiveram muitos momentos felizes Texto Elizangela MEERT Basile Fotos Kamila Karolczak
disse: “Mas ela é tão mimosa!”, assim Suzy ganhou um novo nome. A chegada de Mimosa na casa da nova dona foi um momento de aprendizado e adaptação para ambas. Embora sempre gostasse de animais, pela primeira vez Cerise tinha um sob seus cuidados. Mimosa teria que aprender a
reconhecer no ambiente os locais adequados para a sua alimentação e para as necessidades fisiológicas. No início, houve alguns transtornos, acidentes envolvendo tapetes e móveis. Algumas alterações foram feitas no apartamento. A primeira foi a troca da cama de solteiro por uma de casal, onde passaram a dormir juntas, demonstrando o quanto Cerise se envolveu com a nova companheira. Também foi necessária a substituição do carpete por piso e o reposicionamento da mobília. Cerise agora tinha a quem cuidar. “Foi a melhor coisa que me aconteceu.” Os animais acabam facilitando a interação entre as pessoas, e dessa forma a poodle ajudou Cerise a superar uma certa timidez, permitindo a criação de novas amizades e novos vínculos. Ao chegar em casa, depois de um dia de trabalho, Cerise tinha alguém lhe esperando. Mimosa pulava e festejava seu retorno. Mesmo que com um pouco mais de trabalho, sua vida estava menos solitária. A vida de ambas seguiu assim, com um carinho crescente, uma ajudando e cuidando da outra. Uma relação de afeto semelhante à relação maternal, de responsabilidade, de ter alguém a quem cuidar e proteger. Mimosa já era adulta quando Cerise enfrentou um PRIMEIRA IMPRESSÃO | 99 | JULHO DE 2016
desafio sério. A sobrecarga de trabalho levou Cerise a um quadro de depressão. A superação desse processo foi baseada na psicanálise e na presença de Mimosa em sua vida. Já havia passado 11 anos quando, em uma visita de rotina ao veterinário, foi percebida uma alteração no coração da cachorrinha. Em pouco tempo o problema evoluiu e precisou de exames e tratamento. Cerise percebeu que ela não viveria por muito tempo. No início do tratamento, Mimosa teve uma grande melhora, mas a evolução da doença foi progressiva. Ela passava bem por longos períodos, mas às vezes piorava e precisava de ajustes na medicação. Exames, como radiografias e eletrocardiogramas, passaram a ser feitos rotineiramente. Mimosa conviveu com a doença por quase três anos, e o último foi o mais complicado. As crises de falta de ar e desmaios começaram a ficar mais frequentes. Cerise estava fazendo o possível para retardar e ganhar tempo, mas co-
meçava a se preparar, emocionalmente, para o que teria que enfrentar. A DOENÇA A insuficiência valvular é uma doença crônica que afeta uma ou mais das quatro válvulas do coração, como explica o médico veterinário Leandro Basile. Em um coração saudável, essas válvulas servem para a manutenção da direção do fluxo do sangue dentro das veias e artérias. O fechamento delas gera o som que o coração faz ao bater, que é ouvido através do estetoscópio. Quando uma dessas válvulas fica doente, não fecha de forma correta, e o sangue retorna, gerando o som de sopro. Por isso o nome comum de sopro cardíaco.
Após a morte de Mimosa, Cerise decidiu que queria ter animais novamente. Então adotou Amora e Jasmin
“É uma doença muito comum em cães de pequeno porte em idade avançada. No caso de Mimosa, a evolução inicial foi rápida, o que me levou a alertar a proprietária para os riscos e para a necessidade de um tratamento durante a vida toda”, explica o veterinário. Os últimos meses foram de mais cuidados e restrições. Os passeios foram ficando mais curtos. Cerise conta que era comum acordar à noite e procurar Mimosa para certificar-se que estava viva e respirando. Além do trabalho e dedicação por causa da doença, a carga emocional começou a ficar muito forte. Cerise decidiu pela eutanásia, mas uma pequena melhora nas condições de Mimosa fez com que o veterinário Leandro optasse por tentar ganhar mais algum tempo. Esse adiamento deixou Cerise mais tranquila para, na próxima crise grave, ter certeza de sua escolha. Em janeiro de 2016, Mimosa descansou. O veterinário Leandro enfatiza que alguns critérios devem ser respeitados para a realização da euta-
Cerise fez um álbum de fotos de Mimosa para guardar de recordação
násia. O animal deve ser portador de doença grave, em quadro avançado que não responde à medicação, com perda de qualidade de vida. Também deve haver concordância entre o tutor e o veterinário, para que o procedimento seja executado. “Todos devem estar de consciência tranquila”, ressalta. A dor da perda veio junto com a sensação de alívio para Cerise. O sofrimento de Mimosa a angustiava muito, mas ficou a certeza de que havia feito tudo o que estava a seu alcance. Os primeiros dias foram passados na casa do irmão em Nova Petrópolis, na Serra gaúcha. Ao retornar a São Leopoldo, sabia que precisava cumprir algumas etapas. “Não seria justo comigo não chorar essa perda.” Para guardar como lembrança, Cerise fez um álbum com fotos de Mimosa desde seus primeiros dias e uma almofada que teve como enchimento os pelos que, surpreendentemente, guardava toda vez que Mimosa era tosada. Conforme o psicólogo Marcello Berg, a intensidade do vínculo afetivo entre as pessoas e seus animais pode ser grande. Dessa forma, o luto pela morte é muito forte, pois as pessoas sentem falta da companhia, dos momentos agradáveis que a presença do animal proporcionava, da afetividade criada com esse convívio. É comum as pessoas somarem a dor da perda a sentimentos mal resolvidos de outras ocasiões. Marcello ressalta que uma característica do brasileiro é ser um povo
com alta afetividade, e com os animais há uma espécie de transferência. “A pessoa projeta no animal as características de um filho.” Com Mimosa, não era diferente. Cerise tinha a quem dar amor, e Mimosa facilitava sua interação com outras pessoas. UMA NOVA FASE Além da saudade de Mimosa, o que mais Cerise sentia falta eram os passeios diários, que proporcionavam encontros e conversas agradáveis com os vizinhos. Já havia decidido, há bastante tempo, que, depois da poodle, iria ter animais novamente. Queria duas fêmeas, para que uma fizesse companhia para a outra. Cerca de um mês depois da perda de Mimosa, levada por uma amiga, Cerise visitou uma casa em Dois Irmãos. Lá estavam mãe e filha, em um pequeno canil, em condições precárias. Cerise encantou-se por elas e as levou para casa. A mãe foi batizada de Jasmin, tem cerca de quatro anos. É de temperamento forte, no início até um pouco agressiva. Custou a confiar e permitir carinhos. A filha, com cerca de dois anos, recebeu o nome de Amora e é mais tímida que sua mãe. Uma nova adaptação está acontecendo, e novos vínculos afetivos estão sendo formados. Aos poucos vão se conhecendo e criando sua maneira de conviver. É impossível substituir, mas a presença de Amora e Jasmin tornam mais fácil superar a perda de Mimosa.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER Quando o tema da revista Primeira Impressão foi definido, comecei a buscar opções de pautas relacionadas com animais. Tenho uma clínica veterinária junto com o meu marido e, por isso, contato com animais e seus tutores. O tema dessa edição da revista é sobre dor e prazer, e essa dualidade tem muito a ver com as relações afetivas entre pessoas e animais. Os sentimentos envolvidos estão cada vez mais intensos, e as pessoas cada vez mais amam e sofrem a perda de seus animais, pois eles são considerados como membros da família. Acompanhei a história de Mimosa desde o início e os cuidados que Cerise teve com ela, bem como o envolvimento emocional. Após a morte da poodle, Cerise optou por adotar Amora e Jasmim, ao invés de comprar outro bichinho. Isso mostra a sua preocupação com o abandono de animais. Queria agradecer às fontes, em especial à Cerise, por compartilhar essa linda história que nos ensina muito sobre dar e receber amor.
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Érika Ferraz
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A sensualização da comida
Q
ue todo mundo precisa e gosta de comer é verdade. E se pudermos aliar o prazer de se alimentar com algum desejo? Sexual, por exemplo? Essa união é uma prática ou um fetiche, chamado de feederism. Com a expansão da internet, as pessoas passaram a “desabafar” nas redes sociais seus anseios e suas fantasias e uniram-se em comunidades afins. Através de trocas de experiências via web, entre pessoas com o apetite sexual semelhante, consolidou-se o feederism. O termo não é tão aprovado entre os fetichistas, por originar-se da palavra feeder (alimentador). Dessa maneira, coloca o feeder como figura central, posicionando como secundários todos os outros grupos existentes. “O mais correto seria feedism, na minha opinião, provindo da palavra alimentação em inglês”, conta a blogueira Vênus Willendorf, dona do blog Feederism Brasil, que usa esse nome fictício em homenagem a Vénus de Willendorf, estatueta paleolítica representando uma figura feminina imitando traços de uma mulher obesa.
Para os praticantes do feederism, se alimentar pode ser algo muito prazeroso Por Érika Ferraz Fotos Márcia souza E Érika Ferraz Os fetichistas compartilham suas experiências em vídeos, comunidades e em redes sociais pela internet. Alguns procuram usar o anonimato para preservar sua identidade, já que alegam que muitos não compreendem suas predileções. “Amigos me zoaram, hackearam meu Facebook, ficavam escrevendo um monte de besteira. Já tive que fazer uns três perfis, esse até agora não me acharam”, revela Pedro Rodrigues, que não expõe fotos pessoais e utiliza um nome fictício, já que sofreu represálias por ser feeder e um fat appreciotor. Fat appreciotor são homens ou mulheres que têm preferência ou admiração por pessoas acima do peso.
“Me lembro que via uma mulher gorda e ficava babando”, afirma Augusto Oehlmeyer, que desde criança tem essa preferência. Ele se autodefine como um gainer, que é a pessoa que tem o desejo de engordar e ver seu corpo mudando e tomando novas formas. Esse desejo não está ligado a um alimentador, não há a fantasia erótica de ser alimentado, mas de engordar. “Eu não tenho limites, engodaria até morrer”, garante. O alimentador é denominado como feeder, e o alimentado é o feedee. Geralmente, o feeder e o feedee são casais, em que o primeiro é um homem e o segundo é uma mulher. Mas isso não é obrigatório, os papeis podem ser invertidos e há relatos de casais homoafetivos ou apenas simpatizantes do feederism que se unem para a prática. O feeder é um apreciador dos corpos grandes ou em expansão. Ele sente muito prazer em ver sua parceira se alimentando ou sendo alimentada por ele. E a feedee é geralmente uma mulher que se sente realizada ao comer em grandes proporções e por estar acima do peso, sente muito prazer em ser alimentada ou fazendo dietas PRIMEIRA IMPRESSÃO | 103 | JULHO DE 2016
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tempo de permanência que o usuário fica online interagindo. O que para algumas pessoas é considerado nojento ou mórbido, para outras, é simplesmente o ápice de sua excitação. OS RISCOS À SAÚDE Para a nutricionista Raquel Eccel, mestre e doutoranda em endocrinologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o feederism pode ser considerado um transtorno alimentar de Márcia souza
especiais com o objetivo de engordar. Orgulham-se de serem fora dos padrões considerados ideais. Dentro desse limiar, individualmente, existe o foodee, o indivíduo que simplesmente tem paixão por comida. Esse sujeito tem o prazer apenas no ato de se alimentar em grandes quantidades. Ele não tem, necessariamente, o objetivo de engordar ou obter prazer sexual com a comida. Um foodee pode ser comparado com personagens como a Magali e o Salsicha, que pensam em comida o tempo todo e fazem de tudo para estar sempre bem alimentados. Em resumo, segundo a blogueira Vênus, é “o indivíduo que tem o prazer de comer ocasionalmente até atingir seu limite, mas não tem fetiche em engordar a níveis elevados”. No feederism, algumas práticas foram nomeadas. O bloating, por exemplo, é a ingestão de líquidos até atingir o limite do corpo, para sentir o efeito do estufamento abdominal e as sensações de prazer e estimulação da libido. Alguns fazem o uso de um funil ligado a uma mangueira onde passa o líquido até a boca. Já o stuffing é a ingestão de alimentos variados ou não, podendo ser junto a uma bebida, para alcançar o mesmo efeito do bloating. “Algumas pessoas são centradas apenas nisso, porque sentem uma excitação sexual com o ato de comer até não aguentar e com sensações visuais; como a barriga aumentando de tamanho, ou sensoriais; de peso e pressão”, explica a blogueira. A principal forma para reconhecer um fetichista do feederism é o ato do exibicionismo de seus corpos, em especial a barriga. Por isso, nas redes sociais é fácil de identificá-los. Alguns sites são utilizados para encontro de pessoas praticantes e outros possuem fotos de mulheres oferecendo-se como feedee. Também é possível encontrar salas de bate-papo, onde, via webcam, mulheres se exibem deliciando-se e lambuzando-se com fast-foods ou com outras comidas gordurosas. Elas ganham dinheiro por acesso ou por
uma forma um pouco diferente dos demais transtornos. “Neste caso, o feederism envolve duas pessoas e também a sexualidade. Quando se trata de transtornos, o tratamento tem que ser multidisciplinar, ou seja, com atuação de psicólogo, médico e nutricionista. Não existe um método de cura específico, e sim um tratamento aliando esses profissionais.” A nutricionista explica que os transtornos que envolvem alimentar-se de maneira excessiva geralmente estão relacionados com áreas de prazer, bem-estar e recom-
Érika Ferraz
pensa no cérebro. “Da mesma maneira que algumas drogas, a comida desperta nesses receptores o ciclo do vício por açúcar, gorduras e carboidratos. Mesmo em estado de plena saciedade, a busca pela sensação de prazer é maior do que a noção que já deveria ter parado de comer.” A compulsão pode originar-se de sentimentos como depressão e ansiedade. Não existe obeso saudável. A longo prazo, o excesso de peso causa doenças como hipertensão, diabetes, câncer e disfunções renais ou cardíacas. A superalimentação gera um desequilíbrio hormonal. O excesso de alimento sobrecarrega a produção de insulina do pâncreas, fazendo com que este aos poucos comece a não desempenhar seu papel como deveria. Raquel indica para as pessoas que querem manter o fetiche, alimentos pobres em gorduras e açúcares e a prática de atividade física, a fim de amenizar possíveis danos à saúde. MOTIVAÇÕES “Embora o termo tenha surgido nos Estados Unidos, a natureza do que se nomeou lá como feederism é um comportamento humano existente em todos
os países e culturas”, afirma a blogueira Vênus. Ela acredita que existe em todo mundo um pouco do comportamento feeder ou feedee. “Está na natureza humana, mais ou menos aflorado, dependendo de sua cultura, relação com a comida e estética corporal. Algumas pessoas simplesmente nascem com uma relação única com a comida e o ato de alimentar o outro e a si.” Mas por que o desejo pela comida pode ser tão intenso? “Segundo a Teoria Psicanalítica, o objeto eleito para a realização de um fetiche carrega a representação de uma falta impossível de ser concebida pelo sujeito”, afirma Marllon Leal, psicoterapeuta formado pelo Instituto de Terapias Integradas de Porto Alegre (ITIPOA). No caso do feederism, o objeto eleito é a comida. “O que configura um fetiche é a sua necessidade para a realização do gozo”, complementa. Ou seja, a comida se torna imprescindível para o ato do feederism e sua realização como um todo. Para algumas pessoas, o feederism é mais que um fetiche, é um estilo de vida. Para elas, ouvir: “Nossa! Como você engordou!”, é um elogio bom e gratificante.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER O tema da minha reportagem surgiu de um termo que ouvi falar durante um jantar de confraternização entre os colegas do curso. Estávamos em uma pizzaria. Quando fomos servidos, dois colegas se puseram a tirar fotos de suas pizzas no prato para postar no Instagram. Alguém disse que iria usar “#pornfood”. Achei engraçada a expressão e pesquisei superficialmente sobre o assunto na época, não sabendo muito bem do que se tratava. Quando surgiu o tema dessa edição da Primeira Impressão, desde o início decidi que eu iria escrever sobre algo prazeroso, até porque de dolorosas já bastam algumas situações da vida, não é mesmo? Então, para desopilar, me lembrei dessa expressão porn food. Para minha surpresa, ao pesquisar sobre o assunto novamente, encontrei essa outra vertente que foi o feederism, e, curiosa como sou, me pus a pesquisar tudo sobre o assunto. E fiquei tão impressionada com o tema, quanto você que acabou de ler minha reportagem.
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Na visão do budismo, a dor só é sentida quando não se controla a insatisfação Por Eduarda Rocha Fotos Priscila Serpa
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T
udo é dor, e toda a dor vem do desejo de não sentirmos dor. Há 27 anos Renato Russo trazia à tona a frase budista que mais ilustra o pensamento da religião. A canção Quando o Sol bater na janela do teu quarto é um compilado de frases retiradas de livros religiosos da cabeceira de um dos quartos de hotéis em que o compositor se hospedava, entre eles A doutrina de Buda. O budismo é conhecido por ampliar o conhecimento e a busca por uma vida de elevação espiritual, entre eles a sabedoria de compreender
qual a origem do sofrimento e como ele afeta nossa capacidade de encontrar a tão desejada felicidade. Em seus ensinamentos, Buda apresenta às Quatro Nobres Verdades, preceitos que demonstram como nós, seres humanos, podemos superar o ciclo das causas e efeitos, libertando-nos para expandir a consciência e chegar à iluminação. Para os budistas, todas as experiências são condicionadas, tudo possui começo, meio e fim, e esse fim poderá não ser satisfatório. Além disso, esta insatisfação decorre de que geramos sempre uma expectativa a respeito de
Sabedoria com origem no sofrimento
tudo. Perseguimos incansavelmente a visão de que existe uma solução para o que desejamos e que esta resolução será definitiva. Depois de cessar as expectativas errôneas, aprendemos a enxergar a perfeição naquilo que é, na realidade que se apresenta sem artifícios gloriosos. Com o sotaque carregado e um português duvidoso, o suíço Michael Frey tem nos olhos uma tranquilidade combinada com alegria e entusiasmo. Aos 52 anos, Michael traz na bagagem visões de um mundo que ainda não aprendeu onde está a paz. Morador do Chagdud Gonpa Khadro Ling, em
Três Coroas, no Rio Grande do Sul, há 14 anos, o ex-engenheiro de informática, hoje instrutor de práticas budistas, traz consigo a alegria e humildade de quem contempla diariamente o trabalho deixado por Chagdud Tulku Rinpoche, lama budista e fundador do Centro Budista em solo gaúcho. Cansado de trabalhar com computadores, abandonou tudo e iniciou como voluntário na Cruz Vermelha Internacional, esteve em países em conflito, entre eles África, Sérvia, Afeganistão e Iugoslávia. Nesses lugares, viu de perto as dores de refugiados, civis em meio às guerras sem nada mais a perder, e dese-
jou algo maior dentro de si: a paz. Depois de sete anos, trabalhava na cidade de Belgrado quando avistou de sua janela uma bomba cair próximo a seu escritório. “Foi então que me dei conta de que era especialista em conflitos e guerras, mas não sabia nada sobre a paz”, conta. Na Suíça, encontrou um professor tibetano que lhe ensinou os primeiros passos. Durante esse período, encontrou-se com Chagdud Rinpoche e pediu para ficar cinco anos em retiro. “É um erro acreditar que a felicidade vem de uma coisa externa. Todo o caminho no budismo é só para isso, mas para isso PRIMEIRA IMPRESSÃO | 107 | JULHO DE 2016
é preciso achar um professor que leve as ferramentas necessárias para que você consiga uma sabedoria atrás do intelecto. É preciso tocar o ego da pessoa para fazê-la entender. O ego não gosta de ser machucado, então este trabalho precisa de coragem para abrir o coração, ter esta determinação”, comenta. Em cada palavra dita, Michael traz nos olhos uma seriedade profunda que nos faz pensar. Suas palavras chegam até nós de uma maneira agridoce: é impossível entender como sorri quando fala de nossa dificuldade de parar de desejar, desta necessidade que temos em ser feliz a todo o custo. “Perceba, Buda falava disso há 2.500 anos. No momento que temos algo que queremos, nos fechamos para o resto do mundo. Quando temos apego ou desejo, tudo bem, faz parte do nosso hábito, mas é importante observar que nos separamos do resto das coisas. A mente comum é uma pequena gaiola de pensamentos, julgamentos, de sofrimento, até sufocar, até a depressão.” A aprendizagem budista nos apresenta uma nova realidade a respeito do sofrimento, a partir dela abrimos uma nova dimensão de nossa mente e por consequência acabamos vivenciando menos sofrimento, criando menos expectativas, menos insatisfação e menos apego. É normal o estranhamento para com essa contemplação do sofrimento. Quem não percebe o real objetivo dos praticantes budistas não entende por que todos falam sobre o assunto de uma forma quase banal. Michael explica que é normal as pessoas acharem que a religião é sombria. “Estamos falando de uma realidade. As pessoas têm um hábito geral de querer escapar disso. Em relação a doenças, morte, velhice, as pessoas querem fugir disso. Buda ensinou que precisamos saber mais sobre o sofrimento para receber uma nova imagem de nossa realidade e usar este conhecimenPRIMEIRA IMPRESSÃO | 108 | JULHO DE 2016
to para fazer uma prática espiritual, para saber quem somos realmente. Quando contemplamos o sofrimento, percebemos que não entendemos como as pessoas são”, resume. Ao analisar religiosamente o sofrimento, torna-se simples o entendimento do surgimento das dores e sofrimentos que nos perseguem durante toda a vida. “Quando você planta uma semente de banana, nasce uma bananeira. Tudo é causa e consequência de nossas ações”, diz. Música leva budismo a outros públicos No início dos anos 2000, o Brasil se deparou com um dos mais diferentes projetos musicais já vistos por estas bandas. Criado por Nenung e Irínia Taborda (na época ainda usando o codinome de “Yam Zang”) Os The Darma Lóvers apareceram com canções folk carregadas
da doutrina budista. Uma novidade no mundo artístico, se propondo a tocar em questões humanas sensíveis, sem oferecer verdades absolutas. Aos 50 anos, Nenung vive num vai e vem entre o Centro Budista e Porto Alegre. Praticante da religião há 20 anos, Nenung acredita que os The Darma Lóvers tenham conseguido levar até o grande público os principais pontos da importância de se questionar quanto a dor e sofrimento. Uma das músicas que mais trata sobre o tema é Canção para minha morte, composição que exemplifica as ideias de impermanência. Os versos encaram o medo da morte de frente: “Quando então a minha morte chegar/Me abraçar como uma mãe abraça um filho/ Quero poder só sorrir e dizer/ Foi tudo bem eu também vou tranquilo”. “Em várias situações eu recebo um retorno de pessoas dizendo o quanto ouvir essa música dá um novo sentido pra experiência de ter perdido alguém. E aponta um significado pra isso, que dentro de nossa cultura de vitrines distorcidas deve ser esquecido. Já ouvi de um pensador que a sociedade de consumo é pautada na ideia de nos distrair pro fato da morte até o último instante. Ou seja, consuma, se atole de distrações inúteis e esqueça do que é fundamental”, diz Nenung. O budismo ensina a contemplar, lidar com a morte e treinar a mente para estar atenta e confiante na hora do grande encontro com o sofrimento. As experiências e ensinamentos dessa religião procuram simplificar as formas de se fazer um bom proveito de nossa vida, pois a impermanência é, de fato, a clareza que nos guia até o fim desta vida.
O suíço Michael Frey encontrou em terras tropicais um pedaço do Tibete
O templo Khadro Ling personifica ensinamentos e a filosofia budistas por meio de imagens e representações
IMPRESSÕES DE REPÓRTER Pra mim o budismo sempre foi a religião com a qual eu mais me identifiquei. Ao meu ver, o cristianismo e as demais religiões não se encaixam na visão realista disso que nós chamamos de “vida”. Vestida de repórter e com a visão da pauta em mente, eu e a fotógrafa Priscila Serpa, fomos recebidas por alguém muito especial. Michael chegou sereno e sorridente, absolutamente disponível para qualquer pergunta. Mesmo familiarizada, todas as
vezes em que converso com um professor ou praticante budista, me sinto completamente ignorante em relação ao mundo, aos seres. Ele foi totalmente receptivo, nos abriu locais que normalmente não são abertos ao público e outros que somente os moradores têm acesso. Por ser de origem estrangeira, Michael se esforçava para que entendêssemos tudo que falava com o sotaque carregadíssimo. “Vai ser difícil transcrever esta entrevista”, pensei.
Quando parei para digitar, foi como se estivesse de volta lá. Então compreendi. As informações recebidas não estavam mais na cabeça, na razão, no pensamento: elas acharam uma casinha no coração, no sentimento. Quando terminamos a entrevista, Michael se despediu num abraço caloroso. Em sua mão, estava um inseto encontrado quando chegamos. Ele olhou com carinho, largou suavemente no chão e o deixou livre.
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Estralar de ossos A quiropraxia estimula a qualidade de vida Por Denise Morato Fotos Laura Gallas
A
os 20 anos, um incômodo nas costas alertava para uma situação até então desconhecida. De mansinho, quase que imperceptível, o desconforto foi aumentando, e o que antes era um simples “mau jeito” nas costas foi dificultando a qualidade de vida do encarregado de produção e manutenção Josué Guterres Borba, hoje com 44 anos. Diagnosticado com escoliose severa na coluna, Borba passou a ter dores constantes e viu seu corpo mudar. Na verdade, todos percebiam que algo não estava bem. Literalmente o corpo de Borba se entortou, como se houvesse uma desconexão entre a parte superior e inferior. “Era como se a parte de cima puxasse para um lado e a de baixo para outro. Foi muito complicado, além de doloroso”, conta. Borba precisou lidar com a situação e com o diagnóstico médico que à época era se conformar com PRIMEIRA IMPRESSÃO | 110 | JULHO DE 2016
o problema. Consultou um ortopedista, fez raio-x, e a avaliação era de que essa seria sua condição, teria que se acostumar tanto com a dor como com o reflexo dela em seu corpo. “O médico disse que não havia nada o que fazer para a cura, já que a escoliose foi desenvolvida durante meu crescimento e formação óssea”, lembra. Para tentar amenizar as dores que ficavam cada vez mais latentes, o indicado foram as sessões de fisioterapia, a natação e a musculação. “Aliviava, mas não resolvia. Foram várias sessões, mas o desconforto continuava.” As crises só foram diminuindo após começar um tratamento, ainda desconhecido do grande público na década de 1990, a quiropraxia. Orientado a fazer parte de um grupo de tratamento diferenciado na Feevale, que fazia uso do “estralar de ossos” para resolver problemas na coluna, Borba viu sua condição física melhorar já na primeira sessão.
Marília é adepta aos ajustes feitos pela quiropraxista Maria Laura
“Deu um alívio. Aquela dor que parecia forçar a coluna foi cessando. Me disseram que tinha esperança para o meu caso, e realmente minha condição melhorou muito”, enfatiza. Porém, com o passar do tempo e achando que seu problema de saúde estaria resolvido, Borba deixou de frequentar as sessões de quiropraxia e sentiu, novamente, que o problema estava retornando. “A gente acaba descuidando quando não se tem dor, mas, quando ela volta, é hora de repensar.” E foi justamente em busca de qualidade de vida que Borba retomou o tratamento este ano, desta vez em uma clínica de quiropraxia especializada em subluxação vertebral em Esteio, na Grande Borba retornou à quiropraxia este ano em busca da qualidade de vida
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Porto Alegre. Orientado pela quiropraxista Maria Laura Dornelles, 31 anos, Borba passou a entender que não é no momento da crise aguda de dor que o tratamento deve iniciar e sim quando ela ainda não está instalada. “É a prevenção que faz a diferença”, afirma Maria Laura, que há seis anos exerce a profissão. Desde que retomou as sessões, Borba não tem nenhuma crise de dor. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a quiropraxia é uma profissão que lida com o diagnóstico, o tratamento e a prevenção das desordens do sistema neuro-músculo-esquelético, ou seja, trabalha com dores relativas ao sistema nervoso, sistema muscular e ossos que acometem crianças, jovens, adultos e idosos. Utilizando técnica de ajustes, também conhecidas popularmente como “estralar da coluna”, os quiropráticos conseguem dar alívio aos desconfortos sentidos
no corpo. Ao longo das sessões, que variam conforme orientação do especialista, as dores podem diminuir ou até mesmo cessar. A quiropraxia não é uma terapia alternativa, ou seja, ela não tem o objetivo de substituir o tratamento médico para doenças. PREVENÇÃO COMO ALIADA Apostando na melhora da qualidade de vida, não só Borba, mas toda sua família também aderiu às sessões de quiropraxia. Sua esposa, a empresária Marília Silveira Borba, 38 anos, e a filha Luísa Silveira Borba, 12 anos, fazem os ajustes com a especialista em Esteio. “No dia do ajuste a gente já percebe a diferença. O corpo fica melhor, menos pesado, menos cansado. É como se tudo funcionasse bem. Por isso toda a família está fazendo quiropraxia. Re-
comendamos”, destaca Marília, que lembra que as cólicas menstruais, que normalmente acometem as mulheres, também são aliviadas pela quiropraxia. “Ajuda bastante”, afirma. Além disso, no caso da filha Luísa, a quiropraxia ajuda em seu bem-estar nos estudos. “Ela é muito dedicada e sentia dores nas costas, talvez pelo uso do celular e computador diariamente. Até chegamos a achar que era problema no colchão, mas na verdade era a tensão do 7.º ano. Com a quiro, ela melhorou muito e tem melhor aproveitamento na escola”, conta Marília. A sensação do corpo funcionando como um relógio bem ajustado não é à toa. Conforme Maria Laura, a quiropraxia faz com que o organismo trabalhe de forma plena. “A quiropraxia otimiza as funções corporais por capacitar os mecanismos inatos do seu organismo a funcionarem plenamente através da correção da interferência no sistema nervoso causado pela subluxação vertebral. Desta forma, se reduz ou elimina os sintomas decorrentes de tal subluxação, corrige-se o dano acumulado à coluna vertebral e trabalha-se o bem-estar do indivíduo”, explica. TÉCNICA ALIVIA DORES Assim como Borba, a administradora de empresa Débora Frizon da Cunha, 37 anos, viu sua vida virar de cabeça para baixo aos 28 anos quando teve os movimentos comprometidos e precisou ser afastada do trabalho e para realizar uma cirurgia de emergência. Débora nunca imaginou que suas dores nas costas, aquelas que todos têm uma vez ou outra, poderia levá-la, até mesmo, a perder os movimentos das pernas. “A dor era insuportável. Procurei um especialista que constatou que, se eu não fizesse uma cirurgia de emergência, ia perder o movimento da perna direita. Tinha uma hérnia muito grande e ela estava comprimindo a medula. Até hoje encontro médicos que participaram da minha cirurgia e eles não acreditam que eu recuperei 100% do movimento de minha perna, ou seja,
eles tinham certeza que eu iria ficar com uma deficiência”, conta Débora. A hérnia discal entre as vértebras L4 e L5 comprimiu a medula de Débora e ocasionou toda a situação vivida por ela. Foi na quiropraxia que a administradora encontrou alívio para as fortes dores, que, mesmo após a cirurgia, continuavam a fazer parte de sua vida. “Não aguentava mais tomar remédios, eles já não faziam o efeito esperado, e a dor era muito forte. A quiropraxia me livrou dessa situação. A quiropraxia é uma forma de viver em paz comigo e com meu corpo. Maria Laura é um anjo que Deus colocou em meu caminho, me fez voltar a acreditar que posso ter uma vida normal, sem limitações causadas pelas dores”, afirma. Segundo a quiropraxista Maria Laura, o corpo tem capacidade de cura, e a quiropraxia liga essa capacidade. CUIDADOS QUE INICIAM AINDA NA INFÂNCIA Maria Laura, que é quiropraxista com certificação em atendimento pediátrico, recomenda a quiropraxia a todas as pessoas desde o seu nascimento. “É no parto que sofremos nossa primeira subluxação, por isso a quiropraxia deve ser incorporada desde a infância. Não há necessidade de sentirmos dor para procurarmos o tratamento quiroprático. Este deve ser incorporado com regularidade, sendo parte de um estilo de vida para se manter saudável e prevenir problemas de saúde”, esclarece. E foi pensado no desenvolvimento do filho, Danilo Machado, 11 meses, que a gerente administrativa Micheli Machado, 26 anos, resolveu começar a quiropraxia quando ele ainda tinha 9 meses. “Depois de uma explicação da Maria Laura, eu e meu marido achamos interessante para a saúde dele. Ele acha graça, pois são movimentos leves, no nosso ver ele acha que é brincadeira”, conta Micheli. A quiropraxia em bebês também é feita por ajustes, mas esses não ocorrem como nos adultos. “Às vezes é só um toque ou uma leve pressão com a ponta dos dedos, que contribui para que o sistema funcione 100%. Isso significa
menos doenças, menos cólicas, menos dores de ouvido. Pesquisas revelam que 95% das subluxações vertebrais ocorrem até os cinco anos de vida, e isso pode ser corrigido com a quiropraxia”, exemplifica Maria Laura. Na infância, na adolescência ou na vida adulta. Independente da faixa etária em que se encontra o indivíduo, ter a possibilidade de agregar uma técnica que contribui para um corpo saudável é primordial para ter uma vida longa e sem dores. A quiropraxia é uma aliada da longevidade com saúde.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER Um click aqui, um ajuste ali e muito aprendizado. Assim eu e a repórter fotográfica Laura Gallas começamos a pauta sobre quiropraxia para a PI 45. Tanto eu quanto a fotógrafa já conhecíamos os benefícios da quiropraxia, já que ambas já procuraram, em ocasiões diferentes, os serviços de um quiroprático. Porém, ao conversarmos com a quiropraxista Maria Laura Dornelles, que nos recebeu em seu consultório em Esteio, pudemos conhecer mais sobre o tema, tirar dúvidas e levar conhecimentos para a vida. A pauta foi enriquecedora tanto do ponto de vista jornalístico – uma vez que desenvolvemos as técnicas de entrevista, observação e fotografia – quanto no que diz respeito ao lado pessoal. Ao entendermos que a quiropraxia é uma ferramenta para a promoção da saúde e serve para tratar e prevenir diversas doenças, compreendemos que apenas um ajuste em momentos de dor não é suficiente. É preciso fazer uso da quiropraxia como instrumento de prevenção. É por isso mesmo que os ajustes devem iniciar ainda na infância, informação essa até então desconhecida por nós.
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Na saúde e na doença Em meio à dificuldade, Rosherie e Filipe encontraram no amor e na fé o impulso para seguir em frente Por BRUNA MATTANA Fotos CLÁUDIA COSTA DE OLIVEIRA E NEI MATEOS BERNARDES
CLÁUDIA COSTA DE OLIVEIRA
U
m casamento marcado. Tudo pensado. Cada detalhe, cada momento, conforme o planejado. Existia algo, no entanto, que não estava nos planos de Rosherie Metzger Peres e Filipe Peres. A descoberta de um tumor alguns meses antes do casamento. A surpresa. A dor. O sofrimento. Tudo isso, porém, não foi suficiente para estragar o sonho desse casal. O terço no bolso de Filipe e o escapulário no pescoço de ambos não deixa dúvidas: trata-se de um casal religioso. Desse modo, o local onde começou a história dos dois, em meados de 2013, é um tanto sugestivo. “Já nos conhecíamos de encontros dos grupos de jovens da Igreja Católica. Um dia, eu estava rezando na capela da Unisinos, e ela foi até lá para rezar também, e nos reencontramos”, recorda Filipe. Rosherie tem certeza de que, desde então, o caminho de ambos havia sido traçado. “Eu nunca ia à capela naquele horário, antes da aula, mas aquele dia não conseguiria ir depois, conforme era habituada. Por isso, resolvi ir até lá mais cedo”, comenta. Na ocasião, ele rezava o terço com um grupo de rapazes, que se reunia semanalmente com essa finalidade. Foi um encontro rápido, que rendeu algumas palavras e, posteriormente, uma conversa no Facebook. “Quando cheguei em casa, tinha um recado do Filipe dizendo que tinha gostado de me ver. Voltamos a conversar e tudo foi fluindo naturalmente”, conta. No dia 30 de junho de 2013, veio o pedido de namoro. Nesse momento, eles começaram a escrever sua história juntos. “Sempre tivemos os mesmos princípios de fé e de namoro. Viver a castidade, esperar o momento em que seríamos um perante Deus”, relata Rosherie, que há dois anos fazia acompanhamento espiritual com o irmão gêmeo de Filipe, Lucas, que é padre. “Conversávamos sobre vocação, mas nunca falávamos sobre o Filipe. Por fim, o meu
orientador acabou se tornando meu cunhado”, sublinha entre risos. Quando tudo começou O casal ainda não havia completado um ano de namoro, mas já tinha a certeza de que desejava viver junto para sempre. Por isso, no dia 6 de julho de 2014, Rosherie e Filipe noivaram. Ele, com 31 anos, estudante de Engenharia Elétrica e funcionário de uma petroquímica e ela, com 26 anos, estudante de Serviço Social. No início de 2015, porém, Filipe começou a sentir algumas dores no testículo direito. No ano anterior, ele já havia sido operado para a retirada de um tumor benigno no órgão, mas no lado esquerdo. Na ocasião, a recuperação foi rápida. O histórico de câncer na família, que vitimou sua mãe, avó e avô, insistia em afligi-lo. Era fevereiro de 2015. “Estávamos há poucos meses do casamento e eu recomecei a rotina de exames. Então, recebi a notícia de que estava com um novo tumor”, conta Filipe. Quando o médico soube do casamento, sugeriu que adiantassem a cerimônia ou que fizessem uma coleta para futura fecundação in vitro. “O médico não queria adiar a cirurgia, mas nós não aceitamos a ideia da inseminação artificial, pois vai contra nossa fé”, explica. Segundo a Igreja Católica, nesse tipo de fertilização, em geral, diversos óvulos são fecundados, alguns são usados e o restante congelados, sendo que os óvulos fecundados já são considerados seres humanos. De acordo com o Catecismo da Igreja Católica, esse ato “remete a vida e a identidade do embrião para o poder dos médicos e biólogos, e instaura um domínio da técnica sobre a origem e a destinação da pessoa humana” (CIC 2377). Tendo em vista que o casal não queria submeter-se ao procedimento, tampouco adiantar a data do enlace, optaram por deixar a cirurgia para depois do casamento, ainda que contra
a vontade médica e com a possibilidade de a situação agravar-se. A cirurgia, porém, tornou-se inevitável, pois o tumor aumentou, e no dia 1º de julho de 2015, ele acabou sofrendo a retirada do testículo direito. Foram dias intensos. “Eu estava fazendo estágio obrigatório e não tinha como levar o Filipe a todas as sessões. Ao longo dos procedimentos, optamos por deixá-lo na casa dos meus pais, que conseguiriam dar uma assistência maior. Hoje, vemos como a doença nos uniu ainda mais. Pessoas nos ajudaram a cada instante. Todos os padrinhos queriam levá-lo para as sessões de quimioterapia. Nos sentimos muito amados”, recorda Rosherie. Desde pequeno, Filipe foi criado, juntamente com seu irmão, por sua mãe e sua avó. Com o falecimento delas, primeiro a avó, em 2010, e depois a mãe, no ano seguinte, os irmãos precisaram seguir seu caminho praticamente sozinhos, sobretudo pelo fato de que Lucas logo ingressou no seminário e mudou-se para São Paulo, onde iniciou os estudos. “Foi muito difícil para mim. No dia em que eu estava embarcando, a vó recebeu a notícia de que estava com câncer. Enquanto eu chorava, ela dizia: ‘Para de chorar, eu vou ficar bem, eu confio em Deus‘, conta o padre, ressaltando que essa sempre foi a grande semelhança entre ela e o irmão: ambos sempre tiveram confiança e segurança de que tudo daria certo. Para Desirée Barbosa de Souza, 27 anos, uma das madrinhas, a serenidade com que o casal encarou tudo foi um ensinamento para muitas pessoas. “O Filipe teria tudo para pensar que não conseguiria casar ou realizar o seu grande sonho de ser pai, mas eu nunca ouvi ele dizer um ‘ai’ para nada. A Rosherie também, sempre preocupada com cada detalhe, se manteve firme a cada instante. Eles nos ensinam muito todos os dias”, enfatiza. PRIMEIRA IMPRESSÃO | 115 | JULHO DE 2016
Rosherie e Filipe na capela da Unisinos, local onde começou sua história juntos
CLÁUDIA COSTA DE OLIVEIRA
Véspera do casamento e a recaída Conforme previsto, dia 10 de agosto aconteceu a última sessão de quimioterapia. Tudo corria bem. A recuperação foi rápida e, no dia 13 de agosto, os noivos foram para o Carmelo de São Leopoldo, onde ficariam em retiro até a data do casamento, no dia 15 de agosto. “Naquela noite, todos os padrinhos combinaram de raspar a cabeça comigo, pois eu já estava quase sem cabelo. Não foi algo triste, mas engraçado. Meu cunhado levou a máquina e um cortou o cabelo do outro. Eu cortei o do mano e ele cortou o meu”, lembra Filipe. Quando todos haviam ido embora, Filipe percebeu uma febre alta. “A febre não baixava, então saímos do carmelo e fomos ao Hospital Regina, em Novo Hamburgo. Estávamos na sala de espera, Filipe, eu e o padre Lucas. Depois, chegaPRIMEIRA IMPRESSÃO | 116 | JULHO DE 2016
ram nossos padrinhos, Desirée e Lautierre”, lembra Rosherie. Filipe estava com 38 graus de febre, efeito das quimioterapias. Faltando menos de quinze horas para o casamento, estavam os noivos, no corredor de um hospital, aguardando leito. “O Filipe dizia que era para irmos embora, não fazia sentido ficarmos lá, que eu precisava descansar, que no dia seguinte tinha salão de beleza. Mas eu não pensava em nada disso. Por incrível que pareça, entretanto, nós nunca pensamos que não teria casamento”, comenta Rosherie. Todos voltaram para casa, e Filipe permaneceu lá, sem saber o que aconteceria. “As enfermeiras comentavam que, se eu fosse internado, não sairia de lá para o horário do casamento. Foi então que uma delas sugeriu que eu tomasse os antibióticos para que minha imunidade aumentasse, via oral, pois o injetável somente era possível internado. E foi o que eu fiz. Não me
importava que ficasse em uma maca na emergência. Eu só queria sair de lá o quanto antes”, recorda. Nesse momento, todos os padrinhos começaram uma corrente de oração. “Eu busquei a Rosherie em casa, levei para o salão. A vida tinha que seguir”, conta Lautierre. Às 10h chegou a notícia de que a imunidade dele não tinha aumentado e que provavelmente poderia demorar. “Pela primeira vez, desde que soubemos do tumor de Filipe, chorei, desanimei”, conta Rosherie, como se voltasse àquele dia. Ao meio-dia, no entanto, Filipe recebeu a notícia de que sua imunidade havia aumentado. “Eu quase não pude acreditar. Em duas horas minha imunidade tinha aumentado mais do que o suficiente para eu ser liberado. Faltava pouco mais de duas horas para estar pronto, na Igreja. Antes disso, encontrei a Rosherie e recebi o abraço mais
expressivo da minha vida, com os dedos apertados em minhas costas. Nele, continha muito amor.” O casamento ocorreu às 15 hs, no dia 15 de agosto de 2015, na Paróquia Santa Catarina, em São Leopoldo. Nesse dia, celebra-se na Igreja Católica a Assunção da Virgem Maria. Hoje, o casal mora na mesma cidade e sonha em ter filhos. Se não conseguirem, já têm a decisão tomada: irão adotar. Depois do episódio ocorrido na véspera do casamento, Filipe não teve novas recaídas e, atualmente, segue somente com acompanhamento médico e exames de rotina.
Felipe encontrou a noiva logo após sair do hospital, horas antes do casamento
IMPRESSÕES DE REPÓRTER Conheci a história da Rosherie e do Filipe em uma palestra dada por eles em um Recolhimento de Namorados. Quando nos foi sugerido o tema prazer e dor, demorei até encontrar algo que rendesse uma boa matéria. Foi então que, enquanto pensava, lembrei da fala desse casal. De sua história de confiança e, acima de tudo, de como conseguiram transformar a dor em alegria, através do amor. Quanto mais conhecia os meandros dessa narrativa, mais me encantava por ela e, sobretudo, por seus protagonistas que, no início, ficaram um pouco receosos em expor a sua vida. Um casal reservado, que nunca fez de suas dificuldades um motivo para vitimar-se. Ao contrário, abraçou essa cruz com alegria. Com eles sorri, chorei, me emocionei, aprendi. E não somente com os dois, mas com todos que permeiam essa bonita história, feita de muitos amigos que, infelizmente, não puderam estar retratados aqui, mas que, certamente, se encontram nas entrelinhas. Que “Rô e Fil” possam continuar encantando e inspirando a muitos com seu exemplo e testemunho.
NEI MATEOS BERNARDES
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Quando rasgar o diploma tornou um homem feliz Para encontrar os acordes certos e tocar o coração de muitos, Gênesis se doou por completo Por Priscilla Mella Fotos Carolina Teixeira Lima
J
á passam das 22h. No bar requintado, destoante parece ser quem não sente o tom. Ambiente pequeno, mesas redondas iluminadas por velas e, na carta, cervejas com nomes difíceis. As paredes têm tijolos à vista e, no canto direito, debaixo de uma iluminação de tom alaranjado, entre um piano pouco usado e alguns instrumentos jogados, estava Gênesis David Silva Millermeiter de Araújo. Enrolado por um lenço carmim, estava um artista inebriado pela própria canção. Ele fecha os olhos para soltar um grave. Quem assiste não se contrai e faz coro. A música invade e não existe nada além daquele instante. A música acaba, outra começa, e os problemas só aparecem quando o microfone cessa. Naquele ambiente regado a boas conversas e pessoas com uma intimida-
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de momentânea, ninguém imagina que por trás do sorriso metálico e dos óculos quadrados está um homem que abdicou de tudo para viver de música. Ele acorda quando o sol bate no rosto, dorme quando o galo resolve acordar, se alimenta de fast-food e faz sua higiene em postos de gasolina. Gênesis consegue levar seus pertences em três caixas e sua casa para onde for. O músico, compositor e instrumentista doou todos seus móveis após romper seu último relacionamento e foi morar dentro do seu carro, uma Eco-Sport. Para descrevê-lo, Luciana Lopes Stein, 41 anos, sua amiga há três, aponta que seu ponto marcante é o seu senso de justiça. “O que muitas vezes o leva a ser incompreendido.”
UMA CASA SOBRE RODAS No início de 2016, Gênesis postou em sua rede social uma declaração de que desejava livrar-se de todos seus móveis, uma doação. Na publicação, imagens das mobílias, e, no texto, uma única condição: que tudo fosse levado até o final do dia. Não havia caído a noite e sua casa estava limpa. Com o coração esperançoso pela vida e pelo desapego, mudou-se para dentro do seu carro só com aquilo que lhe fazia bem: seus instrumentos, algumas mudas de roupa e as visitas quase diárias de sua filha Sofia, de cinco anos. Para a amiga bancária, Luciana, a reação inicial foi de descrença. “A primeira coisa que falei para ele foi o clássico: ‘fala sério!’”. Quando compreendeu que era verdade e que nada o faria mudar de opinião, seu senso de amizade falou alto e se pôs à disposição para o que necessitasse. “Como entendi que ele realmente queria, e precisava mesmo fazer isto, na verdade não me espantei muito. Claro que fiquei preocupada e discutindo outras alternativas com ele, mas, como ele é muito dono de si mesmo, só apoiei.” Por trás de uma longa cabeleira existe 31 anos de história. O homem que canta quase todas as noites em bares e pubs da Capital gaúcha ao litoral nem sempre teve o prazer de viver da música.
O menino que tocava desde os quatro anos, e que já era profissional aos 14, teve seu primeiro emprego formal aos 16 em um escritório de contabilidade. O contato inicial com o mercado de trabalho o fez cursar Ciências Contábeis e se especializar tecnicamente no ramo. A música era algo que nunca morria, era o canal de fuga, era um caminho que corria sempre em paralelo. Trabalhar em um escritório, ser promovido, ter uma vida na qual passaria sentado em uma cadeira confortável de rodinhas não parecia ser suficiente. “Mesmo quando trabalhava nesse escritório, eu continuava tocando na noite, muitas vezes chegava exausto e minha chefe, na época, ia me ver tocando e dizia: ‘Por que você não vai tocar e sai de vez daqui?’”, conta Gênesis com sorriso largo ao lembrar que todos os caminhos sempre o levaram a chegar onde está. Em um episódio particular, decidiu que já não havia mais como tocar as duas frentes profissionais e – de forma literal – rasgou seu diploma ao pedir demissão. O divisor de águas fez com que sua rotina mudasse e sua vida direcionasse totalmente para música. “100% DESSA ATITUDE FOI PELA MINHA FILHA” O artista de barba comprida, tão escura quanto seu cabelo, pensa em futuro sempre que devaneia. Mais que
músico, Gênesis é empreendedor. Músico com CNPJ, diz saber que carreira é difícil. “Você é seu trabalho, se você não sair para tocar, não ganha, logo não tem dinheiro.” Após lidar tantos anos com os números, seu maior cuidado hoje é com eles. “Quando rasguei meu diploma e fui viver de música, todos me julgaram dizendo que eu não estava pensando na minha filha. Na verdade, 100% dessa atitude foi pela minha filha.” Na época, Sofia tinha 10 meses. “Sou músico que pago meus encargos, porque quero deixar um suporte para minha filha, porque quero que ela tenha um futuro. É muito fácil para um músico que pega o dinheiro à vista todas as noites não guardar ou se perder nos gastos. Mas eu uso os aplicativos a meu favor, deposito sempre que posso; é difícil, mas o ‘cara’ tem que ter objetivo”, arremata. Gênesis é reincidente na arte de morar sobre rodas. Há oito anos, enquanto trabalhava em uma contabilidade de médio porte, passou cinco meses e 27 dias habitando dentro de um gol bolinha. Na época, devido ao fato de a empresa de Novo Hamburgo ter uma estrutura com vestiário e armários individuais, sua higiene era feita antes de trabalhar e depois ali mesmo. Ao recordar o espaço de tempo, Gênesis olha para cima, pensativo, suspira com a surpresa e revela. “Naquela época eu ia trabalhar de traje, bonitinho, todos os dias. Todos sabiam que eu ficava daqui para lá, e tal, tocava. Mas ninguém sabia que eu dormia dentro do meu carro. Ninguém me perguntava”, enfatiza. LIBERDADE É PONTO DE VISTA No porta-malas da sua EcoSport prata, três caixas. Uma para os instrumentos, outra para as roupas e a terceira para os sapatos. Sua rotina é atípica. O fim de tarde é o que lhe dá energia para viver, produzir, criar e compor. Normalmente vai dormir às 3h, reclinando seu banco na horizontal até o máximo, colocando de dois a três travesseiros no banco traseiro para ficar da altura do banco frontal
Gênesis consegue guardar seus pertences em três caixas e levar sua casa para onde for
inclinado. Só volta a abrir os olhos na manhã seguinte. Segurança é um problema, por isso procura estacionar seu lar em frente a farmácias 24h (devido ao fato de elas terem segurança), em postos de gasolina que recebem caminhoneiros, em estacionamentos de parques com guardas ou em locais que tenham iluminação e segurança. Seu dia inicia, comumente, às 10h, quando passa no posto para fazer seu desjejum e sua higiene. Cerca de três vezes na semana, o almoço é com Sofia e é quando, segundo o próprio, tem uma alimentação saudável. Nos demais, fast-foods, buffets e pratos feitos. Suas tardes são dedicadas à manutenção de instrumentos e, duas vezes na semana, leva suas roupas à lavanderia, ou a casa de amigos. Para Gênesis, essa concepção de liberdade que todos têm ao vê-lo por aí, não é real. Segundo o mesmo, isso é uma falsa liberdade. “A liberdade te limita. A liberdade é algo tão injusto, na real, porque as pessoas não sabem usar de fato a liberdade. Liberdade para mim é respeitar o outro como ser humano, ter meu canto e viver a minha vida sem atrapalhar ninguém. Mente quem diz que é
uma vida superlegal. Eu estou fazendo isso por necessidade, mais psicológica que qualquer outra coisa”, surpreende. Pensando em sua filha e em como sua escolha pode afetá-la, Gênesis já busca por um local fixo e pretende desvencilhar-se do lar sobre rodas. A amiga Luciana conhece Sofia e enfatiza que a menina tem uma personalidade forte. “Ele é um ótimo pai, e este fato não mudou nada na relação dos dois, e nem na percepção dela de mundo.” UM SONHO DE FUTURO Entre 2007 e 2010, o artista iniciou sua segunda formação, em Filosofia na Unisinos. Por questões pessoais, trancou o curso. Em seus planos estão a retomada da graduação para que possa fazer o mestrado e dar aulas. Quem vê aquele sujeito de camisa, que se assemelha ao breu da noite, e calça bege, empunhando um violão que parece estar em chamas, dedilhando sons contagiantes e interrompendo sua cantoria apenas para umedecer a garganta com a vodka do cantil de bolso prata, não imagina que é “o palco que faz valer a pena”, que “a música entra e o resto vai”.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER Encontrar histórias desconhecidas, entender o sentimento e as escolhas de pessoas que talvez você nunca olharia, reconhecer estímulos e identificar-se (ou não) com eles são sensações indescritíveis. Isso é o que faz do jornalismo uma vocação e não apenas uma profissão. A história de Gênesis Araújo foi impressionante para mim por todos esses itens apontados. Nos palcos e nos bares, ninguém imagina que por trás do largo sorriso há uma história incrível, um amadurecimento de personalidade que levou anos, um profissional da música talhado por crenças. Poder mostrar que aquela voz, que toca inúmeros corações com tons fortes, tem outros gritos para despejar ao mundo é estimulante. Poder ser a portadora daqueles gritos, aos olhos e ouvidos dos demais, é recompensador em uma escala não mensurável. Acompanhar a história e a vida de Gênesis foi maravilhoso, espero que para todos que por aqui passarem, também.
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Duas histórias, duas formas de amar, dois destinos que têm em comum a convivência com uma doença ainda sem cura Texto e fotos TATIANA OLIVEIRA DA SILVA
A
manda* tem 12 anos, é franzina, de pernas longas e cabelos cacheados que emolduram um olhar aparentemente triste e distante, como quem busca algo novo no horizonte. Quem a vê ali parada a espiar pela janela de sua casa na pacata cidade de Glorinha, no Rio Grande do Sul, não consegue sequer imaginar o caminho que os pais adotivos, José* e Cristina*, percorreram para formar a família que são hoje. Após inúmeras tentativas de serem pais pela forma tradicional sem sucesso, o destino do casal uniu-se ao da menina pela dor de uma doença que ainda não possui cura, mas os mantêm juntos pelo prazer do amor. Aos 15 anos, o adolescente Pedro*, que cuidava da mãe com HIV/AIDS, descobriu que também possuía o vírus. Ele é o segundo de uma turma de nove irmãos dos quais sete não possuem HIV. Perdeu o pai aos seis anos e a mãe, neste ano. O jovem se vê como responsável pela família e com o compromisso de educar e encaminhar os irmãos “para o caminho do bem”. A dor lhe ensina a crescer. Amanda e Pedro têm histórias semelhantes, com algum PRIMEIRA IMPRESSÃO | 122 | JULHO DE 2016
sofrimento e muito amor. Amada Amanda Casada havia dez anos, Cristina não conseguia engravidar. Chegou a começar um tratamento de
fertilização in vidro, mas não deu certo. O casal, que este ano completou 22 anos de casados, inscreveu-se para a adoção de crianças no fórum de Porto Alegre. Cristina conta que, depois de três meses, ligaram do fórum informando que
Quando o amor fala mais alto
Amanda foi adotada por uma família que lhe acolheu mesmo tendo HIV
havia uma menina com dois anos e 11 meses disponível para adoção. Ela era portadora de HIV. Em um primeiro momento, a mulher que via o sonho de ser mãe muito próximo ficou um pouco assustada. “Não conhecia muito bem sobre o
assunto e achava que o pior poderia acontecer”, explica. Antes de decidir se adotaria ou não com a menina, resolveu fazer uma pesquisa. “Na época eu estava estudando pedagogia, fingi que estava fazendo um trabalho da faculdade e busquei informações
sobre HIV/AIDS com especialistas no posto de saúde, daí descobri que era tudo diferente do que eu pensava e que portadores de HIV podem viver bem com o vírus.” Depois do primeiro passo, começaram as visitas à Amanda no abrigo PRIMEIRA IMPRESSÃO | 123 | JULHO DE 2016
para os três se adaptarem com a convivência. Em pouco tempo, a menina foi morar com o casal. Eram finalmente uma família: pai, mãe e filha. A hora certa de dar o diagnóstico Amanda não sabe que é portadora de HIV. A mãe, que foi orientada pela psicóloga que acompanha a menina a não relatar ainda devido à imaturidade da filha, aguarda o momento certo. Quando ela começar a questionar por que toma tantos remédios, talvez seja a hora. “Amanda está com 12 anos, mas mentalmente é como se tivesse nove, pois além do HIV, tem uma leve deficiência. Temos receio que divulgue que é soropositiva para os colegas e isso atrapalhe seu desenvolvimento na escola”, diz. “Tenho muito medo do sofrimento que ela possa ter se começar a discriminação e o preconceito, que ainda é algo muito forte no Brasil”, explica Cristina. Diferente de Amanda, o adolescente Pedro, que reside com seis irmãos na casa da tia em Gravataí, hoje com 19 anos, já sabe que possui o vírus desde os 15, quando começou a ficar doente. Através de exames,
descobriu que era soropositivo. Ele diz que não se surpreendeu com o diagnóstico, pois o HIV já estava presente em sua família. “Minha mãe faleceu no início de 2016 de AIDS, e tenho uma irmã de 17 anos que nasceu com o vírus. Eu sempre cuidei das duas e conheço bem a doença”, explica. A psicóloga Caroline Albuquerque Bettat, que atua no Serviço de Assistência Especializada (SAE) em DST/HIV-AIDS e Tuberculose em Gravataí, diz que orienta sempre os pais a contar sobre a soropositividade entre os nove e dez anos. “Eu prefiro nessa idade para que na adolescência já esteja acostumado com a responsabilidade de tomar a medicação”, explica. Dias de dor e dias de saúde Amanda contaminou-se com o vírus HIV por transmissão vertical, isso é, foi infectada no ventre. A mãe biológica era dependente química, usava crack. Aos noves meses, a menina foi parar no abrigo onde permaneceu até ser adotada por José e Cristina. Durante esse período, a bebê adoeceu muitas vezes, teve
pneumonias e tuberculose. Já Pedro, que mora em Gravataí, esteve internado em vários hospitais na Capital nos últimos três anos. Teve pneumonias, tuberculose e doenças estomacais, mas hoje, segundo a assistente social Aglaé Gama, que trabalha no SAE de Gravataí, onde o jovem se trata, está bem. “Acompanho o Pedro desde que ele foi diagnosticado. Ele já sofreu muito, quase que nos deixou, mas hoje ele está ótimo, toma apenas uma medicação para o HIV, faz os exames e se cuida direitinho”, explica. Aglaé conta que a equipe que acompanha o jovem se preocupou quando a mãe faleceu, mas então Pedro e seis dos seus irmãos foram morar com uma tia. “Ela é ótima, uma mãezona, e Pedro nos surpreende a cada dia, deu conta da doença, é um líder na família, sempre à frente protegendo e motivando a todos”, ressalta a assistente social. Prestes a completar 13 anos, Amada toma diariamente cinco comprimidos para o controle do HIV. A exposição a entorpecentes quando vivia com a mãe foi responsável por seus problemas neurológicos, por isso precisa tomar mais dois remédios. Amanda está no 5º ano do Ensino Fundamental. Ela faz acompanhamento no Hospital de Clínicas em Porto Alegre com pediatra infectologista, psiquiatra, neologista e psicopedagoga. Está se desenvolvendo muito bem dentro das limitações que tem. Pensando no futuro Os pais de Amanda acreditam que o futuro da filha será promissor. “Procuramos sempre orientá-la de todas as maneiras possíveis, e acredi-
Amanda consome diariamente sete medicações PRIMEIRA IMPRESSÃO | 124 | JULHO DE 2016
HIV no Brasil Casos de gestantes infectadas entre 2000 e 2015 2000 - 1881 2005 - 6119 2010 - 6116 2015 - 3713 Fonte: www.aids.gov.br
to que ela vai conseguir ter um bom futuro, se casará e terá filhos, como qualquer pessoa, porque tudo isso é possível hoje”, comenta a mãe. Sobre sexualidade, casamento e filhos, Pedro diz que, apesar de já ter beijado muitas vezes, está aguardando para ter sua primeira relação sexual depois de casado. Pedro é cristão e todo domingo leva os irmãos para a igreja. “Cuido deles para que não façam besteiras por aí, é importante ter sempre Deus presente na vida da gente”, aconselha. Segundo a psicóloga Caroline, é muito comum os adolescentes soropositivos quererem saber se poderão ou não ter filhos e se surpreendem quando descobrem que é possível, pois, em geral, eles acreditam que vão precisar ter relações sexuais com camisinha sempre. “É simples: quem tem o vírus deve estar com a carga viral indetectável, e quem não tem, deve fazer o tratamento medicamentoso em acompanhamento com o infectologista”, explica. “O médico receita a medicação para os dois, para que quem tem HIV fique com a carga indetectável e quem não tem não possa vir a se contaminar. Daí o casal soro discordante transa nos dias férteis”, completa. “Sempre sonhei em casar e ter filhos, adoro crianças, mas achava que, devido a minha doença, teria que casar com uma moça soropositiva também, e que filhos saudáveis era impossível. Agora, ao saber disso estou muito feliz e com esperanças, quero muito construir uma família”, fala Pedro sorridente.
Prontos para lidar com o preconceito Cristina e José se dizem preparados para o que der e vier. “O preconceito existe, existe muito. As pessoas acham que beijar no rosto pode pegar, aperto de mão pode pegar. Sentar na cadeira pode pegar. É muito triste isso, é bastante complicado. Isso a gente vai ter que trabalhar muito com nossa filha, porque, infelizmente, ela vai sofrer muito preconceito”, ressalta Cristina. Já o jovem Pedro afirma que não possui nenhum amigo de confiança para conversar sobre a doença. “Se as pessoas soubessem como é a nossa realidade, não existiria preconceito. É uma doença como outra qualquer, na qual tu tem dois caminhos: se cuidar, tomar a medicação e viver como uma pessoa normal por muitos anos, ou fazer o contrário e sofrer muito e morrer cedo”, explica. “Andar junto, abraçar, conversar, sentar no mesmo banco não passa doença”, complementa. Cristina diz que foge dos padrões. Em 2012 o casal adotou mais uma criança, uma menina negra com oito meses de vida. Hiperativa e muito simpática, Aninha* encanta com seus cabelos encaracolados, pequenos olhos negros e um sorriso escancarado. “É uma casa cheia, uma espoleta, não para nunca”, brinca a mãe. “Eu quis dar uma oportunidade para essas meninas, queria fazer a diferença na vida delas”, relata Cristina. Se tivesse que voltar atrás, ela diz que faria tudo igual, não mudaria nada. “Aninha não possui HIV, mas se tivesse eu a adotaria da mesma forma. São crianças, independentemente de qualquer coisa. Mesmo não sendo o padrão, tem que encarar. O conselho que tenho é amar. Importante é amar, sendo padrão ou não.” (*) Os nomes foram trocados para preservar a identidade dos entrevistados.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER Escolhi esta pauta porque nos anos 1990 presenciei dezenas de crianças com vírus da AIDS sofrerem por anos e acabarem morrendo. A esperança de que a cura para a doença chegasse a tempo de salvar seus filhos e assim os libertasse do sofrimento eterno era o que via nos olhos exaustos daquelas mães nas enfermarias do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. De lá para cá, houve grandes avanços no tratamento da AIDS. Hoje é possível que bebês que nascem com HIV consigam crescer, se tornar adultos e serem pais de bebês sem o vírus. Também é possível viver bem com o vírus. E eu quis mostrar isso. O que mais me marcou na realização da reportagem foi quando, durante a entrevista, Pedro, que delegou para si a responsabilidade de cuidar de seus oitos irmãos e encaminhá-los na vida, descobriu que poderia casar-se e ter filhos saudáveis. Até aquele momento ele acreditava que só poderia casar-se com uma moça soropositiva, e ter filhos estava fora de cogitação, não queria trazer crianças com HIV ao mundo. Pedro esfregava uma mão na outra, movimentava-se agitado ao redor da cadeira, sorria, olhava confuso, gagueja emocionado. “Quero construir minha família, ter filhos, sempre gostei muito de crianças, adoro, nossa! Poderei ser pai! ” Pedro sorria ao falar. É isso que amo no jornalismo. Poder contar histórias que ajudem a modificar para melhor alguma coisa na vida das pessoas. Espero que esta reportagem possa atingir muitos Pedros e Amandas para que saibam que existe futuro sim, que a vida pode ser longa se a pessoa se cuidar e tomar a medicação direitinho. Sonhos são permitidos a todos, e correr atrás deles vale a pena.
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Quando o amor aceita mais uns O casal de mĂşsicos Bardo e Fada descobriu no poliamor uma outra maneira de viver seu relacionamento Por Roberto Caloni Fotos Elisa Ponciano
Fada mantĂŠm, hoje, um relacionamento com Bardo (Ă esquerda) e Leo
Cada música da banda representa uma fase do relacionamento do “trisal”, como os três se intitulam
O
coração batia acelerado, como se algo quisesse sair. Isso não poderia esperar mais. Ela precisava contar para seu parceiro o que sentia. O medo do que poderia acontecer após revelar seus sentimentos criava uma prisão que a estava enlouquecendo. Era noite, mas o sentimento queria nascer. Enquanto ele jogava despreocupadamente no computador, ela se aproximou e falou para seu companheiro: “Bardo, precisamos conversar. Eu também gosto de mulher, e preciso libertar esse sentimento”. A DESCOBERTA DA BISSEXUALIDADE Foi assim, depois de quatro anos de relacionamento, duas filhas e muitas mudanças, que o casal de músicos Bardo e Fada (Ricardo Killian e Vanessa Tiburski) começaram a conversar sobre abrir o relacionamento. Para Fada, se aceitar bissexual foi algo que levou muito tempo. “Contar isso para o Bardo era algo difícil. Fiquei com PRIMEIRA IMPRESSÃO | 128 | JULHO DE 2016
medo de perdê-lo, de perder nossas filhas, nossa família”, conta. Mas o músico conseguiu compreender o que ela estava sentindo, e juntos começaram a conversar sobre o assunto. Foram dois anos de conversa, pensando e usando a imaginação. O casal começou a fantasiar mais, a pensar como seria se houvesse uma terceira pessoa na relação. Primeiro eles idealizaram a mulher perfeita para se relacionarem. Mas a mulher perfeita é muito difícil de encontrar. Os dois começaram a ler mais na internet sobre relacionamentos abertos, sobre o poliamor e descobriram outras pessoas que também pensavam como eles. Assim conheceram os grupos de casais e o swing. CASAS DE SWING Bardo e Fada começaram a fazer parte do mundo do swing, porém não conseguiram acompanhar muito a vida de swingers. “As pessoas vivem uma vida dupla. Durante o dia são ‘normais’, o prefeito e a primeira dama, e à noite a coisa muda”, relata Bardo. Nos grupos
de swing, os nomes reais não são usados, só em casos raros. Muitos utilizam nicknames, apelidos para manter certa aparência ou não serem descobertos. Para Diana Dahre, que realizou mestrado em psicanálise na Argentina sobre o poliamor, os casais, principalmente por questões morais e éticas, acabam se escondendo. O preconceito e a falta de aceitação na sociedade forçam as pessoas a agirem assim. Bardo e Fada frequentavam os grupos e casas de swing, mas queriam poder viver uma relação aberta fora desses grupos. Queriam conhecer pessoas que não se importassem com o que o resto da sociedade pensa, que não sentissem vergonha do que são. “Nós sempre fomos Bardo e Fada, não usamos isso como codinomes”, conta Fada. Os sites de bate-papo eram usados por eles para conversar e conhecer pessoas. Durante essa época, algo interessante aconteceu. Os dois inventaram uma personagem e criaram um perfil em uma rede social: a Anie Marie. Esse alter ego do casal passou a ter tantos contatos que Anie virou a “promoter” da banda BardoeFada,
fundada pelo casal. Foi essa personagem que conseguiu o primeiro show da banda em uma casa de swing, e assim a banda começou a crescer. “Anie tinha vários contatos, e as pessoas queriam conhecê-la. Falamos até que ela havia se mudado para o Rio de Janeiro. Mas, no meio dessa loucura toda, como a Anie era uma grande fã da banda, as pessoas começaram a agendar shows da BardoeFada com ela”, conta Fada. A BANDA DE ROCK A paixão pela música foi algo que esteve presente desde o começo da relação do casal. Para Bardo, a música é a sua rainha. “Se Fada pedisse para eu escolher entre ela e a música, eu ficaria com a música”, conta sem esconder o sorriso. Como os dois têm mais essa paixão em comum, começaram a escrever e cantar músicas sobre o que eles estavam vivendo. Sobre suas experiências e descobertas. “Cada música é uma fase do nosso relacionamento, da nossa vida. Escrevemos sobre aquilo que sentimos, essa é nossa mensagem”, revela Fada. Assim, a BardoeFada passou a ser uma banda de rock que tem como missão divulgar a possibilidade de viver o poliamor. Graças a fama em uma rede social de swing e a ajuda de Anie Marie, a banda chegou a realizar 156 apresentações no ano de 2013 em casas de swing pelo Rio Grande do Sul e Santa Catarina. “A gente ficou bem famosinho nessa rede. No meio swing todo mundo conhece a gente”, acrescenta Bardo. Com o tempo, perceberam que não era só aquilo que queriam. Que poderiam ter algo mais. Principalmente porque nas trocas de casais rolava muito ciúmes. “Nós vimos muitas brigas e casais se separando durante as festas”, diz Bardo. Porém deixam bem claro que o problema não eram as festas de swing, mas sim o motivo que o casal buscava por esse tipo de experiência. “Muitas vezes os casais vão para reaquecer a relação, como uma esperança para o relacionamento, mas pode não dar certo”, acrescenta Bardo.
VIVER A TRÊS Antes de resolverem ter um relacionamento mais sério com alguém, eles tiveram uma época de solteiros. “Nós começamos a sair com outras pessoas, mas sempre saímos os dois juntos”, comenta Bardo. Quando o casal resolveu ir atrás de uma terceira pessoa, eles foram em busca da mulher que idealizaram. “Nós procurávamos por uma mulher, porque eu não queria outro homem”, explica Fada. Eles encontraram a Aline. Ela e Fada começaram a namorar, e depois os três tiveram um relacionamento. Esse foi o primeiro relacionamento a três deles. Hoje, Fada namora com Bardo e com Leonardo Maciel, o Leo. Para ela, os dois são seus maridos. “As pessoas me respeitam mais quando falo que tenho dois maridos do que dois namorados. Eu sinto isso”, comenta ela. O relacionamento entre Fada e Leo começou em abril de 2014. Primeiro Leo conheceu Bardo, e eles se tornaram amigos. Não que eles tenham se relacionado, até porque os dois não são bissexuais. Se conheceram por gostar de música e pela curiosidade por permacultura, uma maneira de ter ambientes humanos sustentáveis e produtivos em equilíbrio e harmonia com a natureza. “Como ficamos amigos, comecei a frequentar mais a casa deles e conhecer melhor a Fada”, relata Leo. Ele convidou a família de Bardo para um curso em Camboriú, e lá ele e Fada acabaram ficando mais próximos e o relacionamento começou. Leo acabou entrando para o relacionamento e também para a banda. “Descobrimos depois que o Leo tocava bateria. Precisávamos de um baterista e o convidamos para participar”, conta Fada. As duas filhas do casal, Mônica e Lavínia, de 7 e 11 anos, não veem problemas na configuração de sua família. Bardo conta que um dia Livínia chegou chorando em casa. O problema não era o relacionamento aberto de seus pais, mas a sepa-
ração dos pais de uma colega. “Ela perguntou por que os pais da amiga não podiam ter um relacionamento como o nosso, assim não precisavam se separar”, relata ele. CIÚMES NA RELAÇÃO Como todo começo de relacionamento, monogâmico ou poliamorista, o ciúme é algo presente. Fada deixa claro: “Do Bardo não tenho ciúmes, mas do Leo tenho um pouco”. Em seus estudos, Diana Dahre descobriu que existem vários tipos de ciúme, como o possessivo, o medroso, o competitivo, de Ego, e de tempo ou de compersão. Segundo ela, o ciúme de tempo é muito comum nas relações poliamoristas e diz respeito à atenção dedicada a apenas um dos parceiros. “Esse tipo de ciúme é mais intenso quando o relacionamento da terceira pessoa se encontra no início”, explica Diana. Agora, o “trisal”, como se intitulam, segue com a banda de rock, celebrando o poliamor e mostrando que não existe uma única forma de amar.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER Curiosidade é algo que me move. Algo que faz meu sangue correr mais rápido e me impulsiona. Por ter essa vontade de ver, ouvir, conhecer, descobrir novas experiências, pessoas e histórias, propus fazer essa matéria. O poliamor era algo que eu pouco tinha contato ou conhecimento. Queria saber mais, entender e poder relatar outras formas de amar. Com a ajuda de minha amiga e companheira desta matéria, Elisa Ponciano (que fez as fotos), conhecemos a banda BardoeFada. Adorei escutar as histórias do “trisal” e poder entender um pouco mais sobre relacionamentos. Sobre pessoas. E, principalmente, sobre amar.
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Naara está na lista de transplante de pulmão desde 2013
Uma lista de
esperança No Brasil, a quantidade de doadores de órgãos não atende à demanda, porém há diversas formas de mudar essa situação Por Maria Eduarda de Lima Fotos DYLAN ROMERO
N
em o esforço, nem os metros da mangueira do oxigênio impediram aquele forte abraço de boas-vindas. Naara Nunes puxou uma cadeira, passou as mãos nos cabelos e, com um enorme sorriso, sentou em minha frente pronta para colocar toda sua história de vida para fora. Com 51 anos, Naara conta que é natural de Porto Alegre, mas durante 22 anos da sua vida morou em Rio PRIMEIRA IMPRESSÃO | 130 | JULHO DE 2016
Grande, no Rio Grande do Sul, com seu marido e filhos. “Muitas vezes o cigarro foi minha bengala”, relata. Fumou por 33 anos, época em que foi diagnosticada com doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) e decidiu que precisava largar o vício para que a doença não se agravasse. Desde criança lidou com a bronquite asmática, já estava acostumada a lidar com os sintomas da doença. Em 2013, viajou para Curitiba para comemorar o aniversário da neta e sentiu
que os sintomas da bronquite haviam aumentado: tosse mais intensa, desconforto no peito e corrimento nasal. Quando retornou para Rio Grande, foi correndo ao médico. “Você veio de avião e ainda está viva?”, perguntou o doutor. Essa frase mudou sua vida dali em diante. A radiografia mostrava que o seu pulmão esquerdo havia ido para trás do direito. Desde então, está na lista de transplante de pulmão. Por enquanto, depende do oxigênio para se locomover em distâncias muito grandes e conta
com a ajuda do filho, com quem mora, para realizar algumas atividades. A IMPORTÂNCIA DA DOAÇÃO DE ÓRGÃOS A doação de órgãos é um gesto de caridade, de amor ao próximo, porém, no Brasil, infelizmente ainda há uma carência de doadores. Assim como Naara, muitas outras pessoas estão na lista de transplantes. Um doador pode salvar ou mudar a vida de mais de 20 pessoas,
mas nem mesmo esse dado faz com que o número de doadores aumente. Apesar de ser um ato de enorme importância, a doação de órgãos ainda é um tabu para muitos brasileiros. São diversos motivos que fazem com que famílias se recusem a doar órgãos do parente recém perdido: medo da reação do resto da família, suspeitas de corrupção e do comércio ilegal de órgãos, entre outras. Segundo dados da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos
(ABTO), cerca de 47% das famílias se recusam a doar órgão de parente com morte cerebral. A educação a respeito da doação de órgãos no Brasil ainda não é uma prática corriqueira dentro de escolas, de universidades e na mídia. Com isso, a taxa de doadores ainda é baixa, fazendo com que a lista de transplantes não seja correspondida. Há dois tipos de doadores: doadores vivos e doadores com morte encefálica ou parada cardíaca. Os doadores vivos devem ser pessoas saudáPRIMEIRA IMPRESSÃO | 131 | JULHO DE 2016
veis e podem doar um dos rins, parte do fígado ou pulmão e medula óssea. Em relação aos doadores com morte encefálica ou parada cardíaca, cabe aos familiares até segundo grau ou conjugue decidir sobre a doação. Para ser um doador, não é necessário deixar nenhum documento por escrito. Basta informar a família a respeito da sua vontade. A maior parte da população brasileira não possui identificação de doador na sua carteira de identidade, logo, toda a decisão passa a ser responsabilidade da família, que geralmente não possui conhecimento do desejo do familiar de ser um doador. Naara faz parte hoje do grupo de parceiros da Coordenadores da Fundação Ecarta, que tem como como produtora Glaci Salusse Borges. O grupo que iniciou em 2005 é uma iniciativa da Fundação Ecarta, que tem como objetivo o aprofundamento teórico, a ampliação de conhecimentos, o debate sobre metodologias de trabalho em sala de aula e relatos de ex-
periências entre os parceiros. João Francisco Peres Campello, um dos parceiros, teve sua vida virada de cabeça para baixo quando se deparou com a necessidade de ser um receptor de órgãos. “Meus problemas de saúde começaram no ano em que deveria ser o mais feliz, ano em que me casei, que finalizei a construção da minha residência, ano em que meu filho nasceu. De repente, descobri a necessidade do transplante.” João Francisco descobriu que precisaria de um novo pulmão aos 30 anos. Hoje com 37, após sua cirurgia, conta que, na época, coisas tão simples como brincar com o filho foram deixadas aos poucos para trás. “Me sentia revoltado por não conseguir brincar ou pegar meu filho no colo, não podia levar na escola.” Tudo isso mudou com a cirurgia. Superação Nascida em Santa Maria, hoje aos 43 anos, Liége Gautério precisou se
adaptar à nova rotina. A educadora física, sempre praticou atividades físicas, ballet, ginástica, musculação, natação, dança e atletismo. Tinha uma vida ativa até o ano de 2003. Liége teve um pneumotórax espontâneo, realizou uma cirurgia e, a partir daí, começaram as investigações. O diagnóstico foi fibrose pulmonar por hipersensibilidade, uma doença progressiva e sem tratamento. Até 2009, conviveu com a doença sem sofrer com sintomas significativos, até que seu fôlego para correr e subir escadas começou a diminuir. Nessa época ficou sabendo que possuía hipertensão arterial pulmonar secundária à fibrose. Até o final de 2010, a doença evoluiu a ponto de Liége não conseguir escovar os dentes sozinha, tarefa que passou a ser cansativa. No ano de 2011, começou a reabilitação pulmonar na Santa Casa e iniciou o uso de oxigênio. Em abril do mesmo ano, entrou para a lista
Como ser um doador? Para a legislação brasileira, somos todos doadores de órgãos desde que familiares estejam cientes (até segundo-grau de parentesco). Não basta apenas querer ser um doador, é preciso informar família e amigos. Não é necessário nenhum registro em documento
Órgão / Tecido Córneas Coração Pulmão Rins Fígado Pâncreas Ossos (*) Parada cardíaca
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Tempo máximo para retirada
Tempo máximo de preservação extracorpórea
6h pós PC * Antes da PC Antes da PC Até 30min pós PC Antes da PC Antes da PC 6h pós PC
7 dias 4 a 6 horas 4 a 6 horas até 48 horas 12 a 24 horas 12 a 24 horas até 5 anos Fonte: Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos
de transplante e, cinco meses depois, realizou a cirurgia. “Em julho de 2011, me formei em Educação Física e fui de concentrador portátil para a cerimônia”, conta. Após sua reabilitação, ficou sabendo dos Jogos Mundiais para Transplantados (World Transplant Games). Liége conta que na época do colégio participava das olimpíadas escolares nas provas de 100m e 200m rasos. “Fiquei muito feliz em ter sido a primeira mulher brasileira a participar dos jogos em 20 edições e ter conseguido a primeira medalha de ouro para nosso país nos 100m rasos. Nos 200m consegui medalha de prata”, comemora. Hoje, após estar completamente recuperada do transplante, Liége tem o objetivo de difundir a pratica de esporte entre pessoas transplantadas. Atualmente está abrindo uma academia, onde pretende criar turmas específicas para alunos que realizaram cirurgias de transplantes de órgãos.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER A construção dessa matéria foi um desafio tanto pessoal quando profissional. A pauta escolhida me trouxe uma experiência de superação vista de outra forma. Ao contatar as fontes, por meio da Fundação Ecarta – que possui um grupo de parceiros transplantados e parceiros que ainda estão na lista de espera –, não imaginei que histórias de grande impacto pessoal cairiam em minha matéria. Em uma das entrevistas, conversei com Naara, que está na lista de transplante de pulmão. Uma chuva intensa caía, e o frio complementava o dia desagradável. Um céu nublado e trovoadas a todo
momento. Ao chegar lá, me deparei com uma mulher sorridente, que ao lado carregava um tubo de oxigênio e que não se abalou com o tempo ruim e com o trabalho de abrir a porta na chuva para que eu e o fotógrafo entrássemos. Nesse momento, notei a importância de ouvir uma história como a de Naara. Ela não se importou em momento algum em me dar uma hora da sua atenção. Como jornalista em formação, sei que pequenas experiências vão me desenvolver como profissional e ser humano. Heranças que valem mais do que qualquer teoria aprendida em aula.
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Cicatrizes da Alma O câncer pode ter deixado uma cicatriz no peito de Jaqueline, mas ela teve força para enfrentar a doença Texto e fotos Ana Carolina DE Oliveira DA SILVA
J
aqueline Oliveira, 37 anos, moradora da cidade de Alvorada, no Rio Grande do Sul, descobriu o câncer de mama enquanto amamentava seu filho de dois anos, em novembro de 2010. Ao realizar um autoexame das mamas, sentiu um nódulo no seio direito. Chegou a comentar com algumas pessoas que a aconselharam a não se preocupar, pois poderia ser leite empedrado. “Mas meu sexto sentido dizia que era para ir atrás e investigar”, conta Jaqueline. Em fevereiro de 2011, com 31 anos, Jaqueline foi sozinha ao consultório médico depois de realizar uma biópsia. Ela precisava saber qual era PRIMEIRA IMPRESSÃO | 134 | JULHO DE 2016
o resultado do exame e terminar com a angústia. Chegou confiante de que não seria um tumor. “Quando a médica informou o resultado positivo para câncer, meu chão se abriu e parecia que eu estava caindo. Achei que seria meu fim”, lembra Jaqueline. Jaqueline conhecia a doença apenas a partir de experiências de outras pessoas que não tiveram finais felizes. A única coisa que ela sabia é que o câncer matava e acometia principalmente pessoas mais velhas e com histórico familiar. Então foi pesquisar para saber mais, já que não se enquadrava em nenhum quesito. Era jovem e ninguém na sua família havia tido nenhum tipo de câncer. Ela
descobriu que, apesar dos índices do exame clínico das mamas apontarem porcentagens maiores para mulheres a partir de 40 anos, a doença pode atingir qualquer idade. Segundo o Instituto Nacional de Câncer de Mama (INCA), em torno de 71% das mulheres que têm câncer encontramse entre 40 e 49 anos. “O câncer não tem idade, cor, nem classe social”, diz Jaqueline. Jaqueline foi encaminhada para a Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre para dar início ao tratamento pelo SUS. O nódulo estava com cinco centímetros. Devido a procedimentos que tiveram que ser realizados durante quatro meses,
o nódulo dobrou de tamanho. O problema estava no fato de o tumor ser de um tipo agressivo. O TRATAMENTO Pelo caráter de urgência e a necessidade de tratamento, foram prescritas pelo médico oito sessões da chamada quimioterapia “neo”, quatro delas qualificadas como “brancas” e quatro, “vermelhas”, que lhe causaram muitas reações, como a perda de cabelos, sobrancelhas e cílios, unhas enfraquecidas, náuseas e vômitos. A “branca” lhe ocasionou muitas dores musculares especialmente no princípio, mas o resultado
esperado foi bom. A quimioterapia ajudou o organismo a combater parte do nódulo e eliminá-lo. A outra parte foi retirada em uma cirurgia em setembro de 2011, não sendo necessário retirar sua mama. O tratamento teve continuidade com sessões de radioterapia e com o remédio tamoxifeno, específico para câncer hormonal HER2 (tipo especial de tumor de mama com proteína hiperexpressa, tornando-o agressivo). “Aquilo seria só uma fase que iria passar, e eu tinha que deixar a quimioterapia agir para matar o câncer, sendo necessário superar para começar uma nova vida”, lembra Jaqueline.
O RECOMEÇO Por meio de informações médicas, Jaqueline soube que seu câncer poderia voltar. Algumas características normalmente se apresentam diante da denominada oncopsiquiatria de mama, quando os fatores psiquiátricos impactam a saúde mental, o que muda com frequência a imagem corporal e sem dúvida a autoestima e sexualidade, por exemplo, com consequências desastrosas na qualidade de vida. No caso específico de Jaqueline, a família abraçou sua causa e lhe ajudou a lutar e vencer. Ela havia se afastado do trabalho para o trataPRIMEIRA IMPRESSÃO | 135 | JULHO DE 2016
mento e para cuidar do seu pequeno filho, mas a superação fez com que ela lutasse e se agigantasse como ser humano e assim voltou a trabalhar e passou a frequentar um grupo no qual conheceu outras histórias parecidas ou até mesmo piores da que a sua. Isso a motivou a seguir em frente, mesmo sentindo na pele os olhares das pessoas ao verem uma mulher jovem, bonita, sem cabelo e usando lenços. Depois de ter enfrentado todo o processo do tratamento, Jaqueline não perdeu a feminilidade e não deixou de se sentir bonita e desejada, fator influente e decisivo na sua luta contra a doença. A VOLTA DO CÂNCER Em 2014, Jaqueline passou a fazer exames periódicos seguindo orientação médica. Depois de passar por um longo tratamento e com ajuda de amigos e parentes, conseguiu retomar o cotidiano de sua vida.
Ao efetuar uma biópsia de rotina, descobriu que havia outro nódulo na mesma mama operada. Apesar de ter passado por um tratamento longo e rigoroso em 2011 e 2012, a frustação abateu Jaqueline, e ela pensou que não sairia vencedora dessa vez. Recomeçar do zero foi difícil, seus cabelos haviam crescido e as unhas estavam fortes. Dessa vez, a cirurgia seria a única opção, e a retirada da mama foi total. Depois, foram necessárias quatro sessões de quimioterapia de forte intensidade. Na primeira, Jaqueline ficou hospitalizada durante quatro dias com imunidade baixa, e alto risco de infecções generalizadas. Teve uma infecção na garganta e o nível de plaquetas ficou baixo. O susto foi grande. Em função desse quadro, os médicos decidiram que, por causa das reações, ela deveria tomar injeções por sete dias para aumentar sua imunidade. Com a imunidade recuperada, Jaqueline passou por 18 aplica-
ções de quimioterapia inteligente Herceptin, visando reduzir o câncer e diminuir as chances de voltar. O tratamento preventivo começou em 2014 e continua até hoje, com o tamoxifeno, que deverá ser tomado por cinco anos. O NOVO RECOMEÇO Jaqueline perdeu seus cabelos duas vezes e, para ela, os cabelos são essenciais. Ela gosta de tê-los grandes e fortes. Quando começaram a crescer, ela voltou a se sentir feminina, e o uso de lenços já não era necessário. Foi então que outro fato ocorreu em sua vida. Um projeto foi determinante para que ela conseguisse voltar a ser sentir bonita e em plenitude, melhorando sua vida pessoal, familiar e social. “No começo eu fiquei com vergonha de me ver sem a mama, de me mostrar, mas foi então que surgiu a possibilidade de participar do
Projeto Cicatrizes, o trizes, conflitos, força e, Jaqueline: “Eu sou muito mais que um The Scar Project”, sobretudo, muito amor par de peitos” conta Jaqueline. e alegria. Esse amor David Jay, fotógraela divide com o filho fo norte-americano, viu uma amiga e seus cachorros de estimação, que de 29 anos passar por uma mastecsão como filhos para ela. “Por que tomia. A partir daí, resolveu não eu vou reclamar de ter tido câncer só retratar em sua lente mulheres na mama? Tem pessoas que têm magras, da alta moda, mas também câncer na perna e sobrevivem bem registrar o corpo e cicatrizes de musem ela diante de superação; tem lheres que lutam pela vida. O objeneoplasia na região do pescoço e tivo era mostrar como realmente nada pode fazer. Eu sou muito mais são as mulheres que lutam contra que um par de peitos”, diz. o câncer de mama, para que todas Jaqueline retornou sua rotina consigam enxergar a sua beleza. O apesar de continuar com o tratamenprojeto tem como objetivo divulgar to. Ela agora não quer mais relema importância da prevenção do cânbrar o passado e quer viver o presencer de mama, a autoaceitação, comte. Os lenços usados ela guarda com paixão, amor e humanidade. muito carinho. Ama se maquiar, é Jaqueline foi aceita para parvaidosa e transmite confiança para ticipar do projeto versão Brasil, outras mulheres e meninas mais representando as mulheres do Rio jovens que estão no começo de suas Grande do Sul, foi escolhida para lutas. “Quero poder ajudar outras ser a capa da revista. Essa experipessoas com a minha história. Não ência abriu os olhos de Jaqueline, querendo reviver, mas servindo como fez com que ela se sentisse mulher modelo para alertá-las que o câncer novamente, mesmo sem uma das tem cura se descoberto no começo. mamas. Ao ver outras mulheres Eu sou a prova disso”, relata. na mesma situação, ou até pior, Jaqueline pretende colocar prótese Jaqueline voltou das cinzas como na mama extirpada. Hoje, sente-se bem uma fênix, pronta para enfrentar do ponto de vista psicológico. “Se o requalquer problema e desafio. curso existe, por que não utilizar? Vou A nova Jaqueline que passou por tentar. Se não der, não existe problema inúmeros percalços na vida teve na algum em ficar sem a mama, eu me amo bagagem experiências, dores, cicaacima de tudo”, diz Jaqueline.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER Penso que é importante retratar uma situação que parece estar longe de acontecer comigo, mas que pode acontecer. Precisamos dar o devido valor para isso. O câncer, seja onde for, é uma doença perigosa, mas existem tratamentos avançados. Com a tecnologia em alta e crescendo, mais tratamentos serão descobertos, mas o assunto ainda assusta muitas mulheres. Falar sobre isso é dizer que cicatrizes todos nós temos, seja no coração ou fisicamente, mas é muito melhor possuir uma cicatriz do que não possuí-la e perder a vida, porque ela representa uma superação e uma vitória. Você lutou e acreditou em você mesma. Jaqueline, pessoa cativante, é um exemplo com toda a sua alegria, disposição e elegância. É uma mulher guerreira e corajosa, contou toda a sua história não deixando escapar nada. Abriu as portas da sua casa e do seu coração autorizando a gravar e fotografar os detalhes da sua linda história de vida e superação. Se mostrou pró-ativa e respondia às inúmeras mensagens online rapidamente. Para mim, que fui repórter e fotógrafa, foi um prazer poder escrever um pouco sobre a sua história e retratar por meio das fotos a nova Jaqueline com todo o seu charme.
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E se eu puder
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sentir prazer? A procura de mulheres por produtos eróticos aumenta gradativamente, mas o assunto ainda é tabu para os mais conservadores Por Tuanny Prado Fotos Milena Riboli
Q
uem olha aquela mulher decidida, de passos e gestos firmes e rosto sereno, não imagina os segredos que ela mantém. Maria*, 30 anos, empresária bemsucedida, dona de uma empresa em que a maioria dos funcionários é homem, poderia ser considerada um símbolo de empoderamento, se a sociedade ainda não reprimisse tanto a sexualidade feminina. Maria não tem namorado. Ela é muito bonita e sua segurança exala sensualidade. Maria é solteira por opção. Teve alguns relacionamentos anos atrás, mas é muito apaixonada por sua profissão e dedica-se inteiramente à sua empresa. Esse fato faz com que ela busque sanar seus desejos e necessidades em relacionamentos casuais e também com companhias artificiais: vibradores, géis, entre outros produtos vendidos em comércios eróticos. Tempos atrás, as roupas eram mais compridas. Sexo não era algo a ser debatido, e o prazer feminino era visto como inexistente. Os anos se passaram, a mente das pessoas foi abrindo, mas, ainda sim, discrição é a palavra-chave quando se trata de lojas especializadas em produtos eróticos. O Brasil conta com mais de 10 mil estabelecimentos, entre lojas de produtos eróticos, de lingerie e de venda online, segundo a Associação Brasileira das Empresas do Mercado Erótico e Sensual (Abeme). A Associação foi criada no ano de 2002, e tem o intuito de defender os interesses desses estabelecimentos que, quase sempre, PRIMEIRA IMPRESSÃO | 139 | JULHO DE 2016
As sex shops utilizam os mais variados artifícios para chamar a atenção e deixar o cliente à vontade
ficam em locais mais reservados. Em grandes cidades, alguns estabelecimentos já se mostram a vista de todos que passam. Algumas vezes, no entanto, ficam em andares superiores de prédios, ou nos fundos de alguma loja, ou ainda ao final de um longo corredor. Placas sutis indicam o caminho. Se você passar pela porta, deixe para trás todos os seus preconceitos e vergonhas. O que você encontrará em locais do gênero são produtos de, literalmente, todas as formas possíveis de encontrar prazer, independente do seu gênero e de sua orientação sexual. Pode ser em prateleiras, pendurados nas paredes, em potes, em camas, tudo o que for possível para atrair a atenção daquele que entra. Mas, antes de qualquer artifício decorativo, o essencial parte do atendimento. Carmen Luiz dos Santos Nunes é proprietária de um estabelecimento do ramo, localizado no Centro da cidade de São Leopoldo. Alegre e atenciosa, procura recepcionar bem aqueles que entram e, da melhor maneira possível, fazer com que se sintam à vontade. Segundo ela, os produtos direcionados ao prazer não possuem uma legislação específica que os regulamente, PRIMEIRA IMPRESSÃO | 140 | JULHO DE 2016
assim, ficam perdidos entre elementos cosméticos e farmacêuticos. Esse fator impede que existam instruções de uso nas embalagens, o que causa uma necessidade de preparo por parte dos funcionários que trabalham nesse setor para explicar como devem ser usados. Literatura impulsiona procura Muitas vezes, o cliente entra por curiosidade, para conhecer um pouco mais desse universo. Então, cabe ao atendente guiá-lo pelo ambiente, tirando suas dúvidas e explicando o funcionamento de cada item. Quem possui estabelecimento voltado para o ramo erótico garante que as pessoas que procuram as lojas de chegada ficam um pouco tímidas, mas aos poucos se mostram interessadas. E mesmo que a procura seja por um público variado, quem lidera as compras é o público feminino. Elas procuram as lojas para satisfazer parceiros, parceiras, ou a si mesmas. O site da Abeme informa que grande parte do crescimento da busca de mulheres em
sex shop ocorreu devido ao novo grande fenômeno de um gênero da literatura: o erótico. Com o pontapé inicial dado por E. L. James, em Cinquenta Tons de Cinza, e suas sequências, foi potencializado um caminho para um novo ramo literário, direcionado principalmente para o público feminino. Entre páginas e mais páginas de histórias que criam idealizações na mente das leitoras, procurar produtos que intensifiquem o prazer para si próprias e para quem as acompanha tornou-se peça fundamental para aproximar-se das sensações apresentadas nos livros. As obras foram parar no cinema e movimentaram milhões de espectadores. E aí você pensa: as pessoas já não veem mais problemas com o outro sentir prazer. Mulheres podem sentir prazer e serem respeitadas por isso. Seria incrível, se fosse real. Ainda existem, no entanto, muitos indivíduos por aí que condenam e julgam, principalmente mulheres, que se preocupam sem se satisfazer sexualmente. Não é o caso de Maria. Desde muito nova, ela entendia como o sexo funcionava, mesmo antes de praticá-lo. Interessada no assunto, pesquisa-
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va a respeito. Após o fim de seu último relacionamento, resolveu desbravar o mundo do mercado erótico e começou a frequentar uma sex shop em Novo Hamburgo, cidade onde mora. Como ela não possui um parceiro, os produtos que adquire são para seu uso pessoal, e, na maioria das vezes, usa sozinha. Ela considerava isso um grande passo e não se importava de conversar abertamente sobre o assunto. Até que um dia estava com um conhecido em um happy hour e, no meio da conversa, chegaram ao assunto relacionamentos. Maria não se importou em contar sobre suas aquisições e como ela conseguia sentir até mais prazer agora que estava sozinha do que quando tinha um namorado. Nitidamente, seu acompanhante ficou consternado e, ao levá-la até em casa, tentou ter relações sexuais a força, dentro do carro. “Ele queria me mostrar que eu não tinha tido um homem de verdade”, conta, em um misto de revolta e mágoa. Desde esse dia, ela mudou seu modo de agir. Mesmo acreditando que a sociedade tenha dado um grande passo e que não seja necessário esconder mais como antigamente, quando o assunto
for sexo, sua experiência lhe ensinou a manter suas ações “dentro de uma caixinha no quarto”, como ela diz. A sexóloga Janaina Barsazcz garante que a sexualidade é extremamente benéfica para a saúde das pessoas, apesar do preconceito que ainda gera. Ela conta que alguns ginecologistas inclusive recomendam a utilização de vibradores para o bom funcionamento dos órgãos femininos. Janaina escreve livros sobre sedução para os mais variados públicos que já possuem ou não um relacionamento. Além disso, ministra cursos de sedução em sex shops. As aulas, que começam com taças de champanhe sendo servidas com gotas de um líquido afrodisíaco, são direcionadas apenas para mulheres. Segundo ela, a presença de homens no mesmo ambiente poderia gerar constrangimentos e piadas não bem vistas aos olhos das participantes. Durante as duas horas de conversa, com muitas brincadeiras, exemplos de danças e massagens, sempre com muitas caras e bocas que arrancam risos, as mulheres que participam se sentem à vontade para tirar suas dúvidas sobre produtos oferecidos no estabeleci-
Eu nunca tinha estado em uma loja de produtos eróticos. Tinha uma curiosidade muito grande de conhecer um pouco mais desse mundo e vi na escolha do tema da revista Primeira Impressão, Prazer e Dor, uma oportunidade de poder falar um pouco sobre a questão da sexualidade feminina através de produtos artificiais. Assim como Maria, sempre fui muito aberta a conversas sobre sexo, independentemente de estar na presença de amigos ou amigas. Por essa razão, a história dela me consternou, pois, mesmo com uma sociedade até então considerada civilizada e com um acesso ilimitado na internet sobre qualquer assunto, ver que ainda existem pessoas que julgam as outras pela forma como elas escolhem se satisfazer é revoltante. Nós, mulheres, ainda temos um longo caminho pela frente para fazer com que nossa sociedade, ainda machista, nos veja como seres humanos com necessidades e desejos e deixe de nos enxergar como seres inferiores destinadas a servir os homens, sem direito de voz ou vontade.
mento e também sobre alguns problemas ocorridos na hora do sexo. A sexóloga enfatiza que uma sexualidade saudável está diretamente ligada à qualidade de vida. Antes de qualquer coisa, sexo é saúde. E saúde não deve ser considerada tabu nem gerar preconceito. Janaina ensina que mulheres podem sentir prazer sem medo do que os outros vão pensar, pois, antes de qualquer coisa, o importante é cada um cuidar de seu próprio corpo. (*) O nome foi trocado para preservar a identidade da entrevistada. PRIMEIRA IMPRESSÃO | 141 | JULHO DE 2016
Amor sem divisão Tradicional clube gaúcho vive mais uma vez o drama do rebaixamento Por THIAGO GRECO Fotos MATHEUS BECK
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Torcida do Novo Hamburgo faz alusão à queda do seu maior rival, o Aimoré
A
esperança de escapar do inevitável veio aos 48 minutos do segundo tempo. O árbitro da partida, Diego Almeida Real, apitou um tiro livre indireto a favor do Aimoré. Estava nos pés de Matheus, meio-campista do time de São Leopoldo, a última chance de tirar o Índio Capilé da UTI e fazê-lo dançar na calçada do hospital. Naquele momento, já havia dois goleiros na mesma área. Deivity, do São Paulo, para defender, e Rafael, do Aimoré, para tentar o milagre. Nada feito. A bola se perdeu pela linha de fundo e, enquanto todas as mãos da torcida alvi-azul apontavam aos céus pedindo que acordassem do pesadelo, a mão direita, solitária, do res-
ponsável pelo bom funcionamento do jogo apontou para o mesmo lugar, mas com outro objetivo: apitar o encerramento da peleia e, assim, decretar o rebaixamento do Clube Esportivo Aimoré para a segunda divisão do Campeonato Gaúcho. PROFISSIONALIZAÇÃO E INAUGURAÇÃO DO ESTÁDIO Fundado no dia 26 de março de 1936, o Clube Esportivo Aimoré, localizado na cidade de São Leopoldo, região metropolitana de Porto Alegre, tem esse nome em homenagem a uma etnia indígena brasileira que habitou o sul da Bahia e o norte do Espírito Santo nos séculos
XVI e XVII. “Chamam-se Aymorés, a língua deles é diferente dos outros índios, ninguém os entende, são eles tão altos e largos de corpos que quase parecem gigantes; são muito altos, não parecem com outros índios da Terra”, assim descreveu o escritor português Pero de Magalhães de Gândavo, em sua obra Tratado da terra do Brasil, de 1980. Apenas na década de 1950, o Índio Capilé, antes um clube amador, tornou-se profissional. Inclusive foi convidado pelo Internacional a se juntar à Divisão de Honra – hoje, primeira divisão gaúcha. Isso foi uma resposta ao Grêmio, que pouco antes havia convidado o clube Floriano, atual Esporte Clube Novo Hamburgo, maior rival do Aimoré. Graças a dupla Gre-Nal, no dia 19 de abril de 1953, foi realizado o primeiro Clássico do Rio dos Sinos entre Floriano e Aymoré – ainda com y – com vitória do Novo Hamburgo por 6 a 1. Em 1960, a seleção gaúcha representou a brasileira no Campeonato Pan-Americano e sagrou-se campeã com cinco atletas do Índio de São Leopoldo: Suli, Soligo, Marino, Gilberto Andrade e Mengálvio. O último transferiu-se para o Santos e, ao lado de Dorval, Coutinho, Pepe e Pelé, foi bicampeão Mundial no Chile pela seleção brasileira em 1962. Outro jogador que surgiu no Aimoré e conquistou o mundo, mas de uma forma diferente, foi Luiz Felipe Scolari, o Felipão. Ele foi zagueiro do Índio na década de 1970 e técnico da seleção brasileira pentacampeã do Mundo na Coréia do Sul e no Japão em 2002. Também comandou a esquadra canarinho em 2014, na Copa do Brasil, e foi eliminado para a Alemanha nas semifinais perdendo por 7 a 1. Seu estádio é conhecido como Cristo Rei, mas tem como nome oficial João Côrrea da Silveira. João nasceu em 8 de outubro de 1915 em Montenegro, no Rio Grande do Sul, e é torcedor desde os anos 1940. Acabou presidente do clube, conselheiro e patrono. Além de PRIMEIRA IMPRESSÃO | 143 | JULHO DE 2016
ser empresário, reabrindo a indústria de borracha Amapá do Sul, gerando quase mil empregos. Também foi presidente da IV Fenac - construindo o 3ª pavilhão da mesma – e o primeiro do Conselho Deliberativo da Associação Pró-Ensino Superior (ASPEUR), atual mantenedora da Universidade Feevale, em Novo Hamburgo. Construído com contribuições de cartolas da época e de seus torcedores, o estádio foi inaugurado no mesmo dia do clube, porém 25 anos depois. O Cristo Rei viu começar sua história com o Aimoré vencendo o Inter por 1 a 0, gol de Uga. TORCIDA E TIME LADO A LADO “Uma torcida não vale a pena pela sua expressão numérica. Ela vive e influi no destino das batalhas pela força do sentimento”, já dizia Nelson Rodrigues, um amante do futebol e torcedor do Fluminense. Por mais desleal que seja a briga
entre Inter e Grêmio contra os clubes do interior, o Aimoré sempre teve sua fiel torcida. Ainda nos anos 1950, mais precisamente em 1955, em sua primeira excursão para fora do Rio Grande do Sul, o clube viajou para Santa Catarina, onde realizou uma série de partidas no estado vizinho e voltou com apenas duas derrotas. Sua torcida estava lá. Já em 1959, no recém-inaugurado Estádio Olímpico Monumental, o Aimoré estava a um passo de se tornar o maior clube do estado – pois perdeu apenas três jogos em 62 disputados. O Grêmio marcou aos 47 minutos da etapa complementar e venceu por 1 a 0, deixando o Índio com o segundo lugar. Sua torcida estava lá. Mantendo-se forte por anos, na década de 1970, mais um vice, dessa vez na extinta Taça Governador do Estado. Sua torcida estava lá. Seguiu assim na década de 1980, sendo bicampeão do Campeonato Gaúcho de Juniores, em 1981 e 1987. No profissional,
já na Série B do Gauchão, conquistou o acesso de volta à A com mais um vice-campeonato, em 1988. Sua torcida estava lá. Anos 1990 chegaram junto com os insucessos dentro de campo. Eis que em 1997 o Aimoré decretou falência e interrompeu suas atividades profissionais, mantendo apenas as categorias de base e outros patrimônios do clube. Com a casa reorganizada e o clube em perfeitas condições novamente, graças ao apoio da Prefeitura de São Leopoldo, em 2006, o Índio voltou a participar de competições profissionais. Oscilando entre terceira e segunda divisão do Campeonato Gaúcho, em 2012 veio o momento mais glorioso da sua história: a conquista do primeiro título oficial do clube. E adivinhem, a torcida estava lá. Coube ao Cristo Rei ser palco desse momento. O Índio venceu o Sport Club Gaúcho de Passo Fundo por 2 a 0. Além do título veio a vaga para a Série B do Gauchão. Logo após o clube retomar às atividades profissionais, em
Sérgio Cunha, torcedor do Aimoré, leva seu amor na pele
2008, um grupo de torcedores que ia a todos os jogos do Aimoré, fundou a Barra Brava – nome dado ao estilo de torcida na Argentina – Los Reyes del Barrio. “A gente criou a torcida com o intuito de cantar os 90 minutos dentro e fora de casa”, conta Alef de Oliveira, 20 anos, mais conhecido como Boka. Ele está desde o início da Barra e, hoje, é o capo (líder). “Já acompanhamos o Aimoré em todos os cantos do estado”, ressalta. Em 2014, a tão sonhada volta à elite do futebol gaúcho veio e, de lá, não tinha saído até 2016. REBAIXAMENTO ANUNCIADO Era a 12ª rodada, a penúltima da fase de grupos do Gauchão Série A. O Aimoré recebeu o Sport Club São Paulo de Rio Grande precisando obrigatoriamente vencer para não ser rebaixando de volta para à Divisão de Acesso. Do outro lado, o Leão do Parque estava tranquilo na tabela de classificação e um empate o colocaria na próxima fase da competição. Para escapar da degola, o Índio, além de vencer o São Paulo, teria que torcer para que Lajeadense, Glória e Cruzeiro não pontuassem, e ainda, na última rodada, precisaria vencer seu maior rival, o Novo Hamburgo, no Vale, estádio do Noia. Antes da bola rolar, o clima era de tensão e de insegurança nos arredores do Cristo Rei. Um forte calor acompanhava todos os torcedores nas arquibancadas do estádio. Divididas apenas por um segurança, as torcidas de Aimoré e São Paulo conviviam pacificamente. Com
a bola rolando, o gol não saía. A cada chance desperdiçada dentro de campo, era um “uh” das tribunas. A promessa de Boka, de cantar os 90 minutos, se fez presente. “Temos que acreditar. Enquanto há chances, precisamos acreditar”, desabafava. Com o apito final e o decreto de que o Aimoré iria sim jogar a segunda divisão em 2017 não havia mais no que acreditar, apenas apoiar. “Ano que vem estaremos aqui. Na boa e na ruim. Amor sem divisão. Já vivemos todos os tipos de sentimentos, alegria, tristeza, dor, apreensão, e nunca abandonamos. Não vai ser dessa vez”, de cabeça erguida, preparado para próxima, afirmava Boka. Outro integrante da Los Reyes, Sérgio Cunha, 18 anos, apontava para suas costas onde tinha a palavra Aimoré tatuada e dizia: “Nada se compara. Aqui é Aimoré!”. No futebol, nada é pior do que ser rebaixado. É a maior dor que um torcedor pode sentir. É como uma despedida de alguém querido. Por mais que se saiba que um dia ele volta, não se sabe quando e nem se ele continuará do mesmo jeito que foi. Mas o torcedor nutre a certeza de que o amor pelo time não vai acabar, nem mudar, independentemente do que aconteça nesse meio tempo. Para piorar, mesmo rebaixado, o Índio teve que enfrentar o rival na última rodada. Acabou perdendo por 2 a 1, e o Novo Hamburgo carimbou a sua ida à segundona. Mesmo assim, a torcida estava lá. No maior título e na maior derrota, a torcida estava lá. Nos momentos de maior prazer e nos momentos de maior dor, a torcida também estava lá.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER Dor. Prazer. Extremos. Ninguém gosta de viver nos extremos. Trabalhar com sentimentos tão fortes ainda que de outras pessoas e entidades não é nada fácil. Contar histórias de vida sempre terá os dois. Por vezes, um traz o outro. Tu passas por um momento muito feliz após superar um muito triste. Ou, depois de ter tudo, tu acabas não tendo mais nada. No caso do Aimoré, não foi diferente. Um clube que viveu seu auge por anos, tendo certa relevância até mesmo no cenário nacional. Entrar de cabeça em toda sua jornada futebolística, conhecer torcedores, ver a sinceridade se esvaindo em cada frase cantada, ir a jogos, me fez sentir um pouco de tudo isso, me colocar no lugar de cada um que vive isso no dia a dia. Sem medo de afirmar, hoje, eu posso dizer que, conhecendo tudo que o Índio já viveu, ele ganhou mais um torcedor. Assim como a Los Reyes del Barrio ganhou mais um integrante. Desde já, ansioso para as peleias rumo à elite do Gauchão em 2017.
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Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) Endereço: avenida Unisinos, 950. São Leopoldo, RS. Cep: 93022-750. Telefone: (51) 3591.1122. Internet: www.unisinos.br. ADMINISTRAÇÃO REITOR: Marcelo Fernandes de Aquino VICE-REITOR: José Ivo Follmann PRÓ-REITOR ACADÊMICO: Pedro Gilberto Gomes PRÓ-REITOR DE ADMINISTRAÇÃO: João Zani DIRETOR DA UNIDADE DE GRADUAÇÃO: Gustavo Borba GERENTE DE BACHARELADOS: Vinicius Souza COORDENADOR DO CURSO DE JORNALISMO: Edelberto Behs
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REDAÇÃO
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Thaís Furtado (thaisf@unisinos.br) - Redação Flávio Dutra (flavdutra@unisinos.br) - Fotografia
Reportagem
Atividades Acadêmicas: Redação Experimental em Revista / Narrativas Jornalísticas e Planejamento Editorial Ana Carolina de Oliveira da Silva, Bruna Mattana, Caroline Paiva, Denise Morato, Eduarda Rocha, Elizangela Meert Basile, Érika Ferraz, Fernanda Forner, Franciélen Severo, Guilherme Rossini, Gustavo Schenkel, Jéssica Beltrame, Jonara Cordova, José Francisco Ribeiro Júnior, Júlia Bondan, Júlia Klaus Bozzetto, Julia Viana, Karina Gonçalves de Freitas, Liege Pereira Barcelos, Luana Cunha, Mailsom Portalete, Maria Eduarda de Lima, Matheus Alves, Michelle Oliveira, Natália Scholz, Pâmela Oliveira, Pedro Kobielski, Priscila Boeira, Priscilla Mella, Rafaela Amaral, Roberto Caloni, Tatiana Oliveira da Silva, Thiago Greco, Tuanny Prado e Vinícius Bühler da Rosa Monitor: Cristiano Vargas
Fotografia
Atividades Acadêmicas: Projeto Experimental em Fotografia Alexandre Moreno, Aline Santos, Andressa Dornelles, Andrieli Magedanz, Bruna Ribeiro, Carolina Teixeira Lima, Cláudia Costa de Oliveira, Diogo Trescastro, Dyessica Abadi, Dylan Romero, Elisa Ponciano, Émerson da Costa, Gabriel Machado, Kamila Karolczak, Karine Dalla Valle, Laura Gallas, Marcelli Pedroso, Márcia Souza, Marco Prass, Matheus Beck, Milena Riboli, Natália Mingotti, Nicole Cavallin, Priscila Serpa, Rafael Mello, Raquel Queiroz, Rita Garrido, Verônica Torres Luize e Victória Freire Monitor: Karine Dalla Valle Foto de capa: Aline Santos
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Agência Experimental de Comunicação (Agexcom) COORDENADORA-GERAL: Thaís Furtado
Editoração
ORIENTAÇÃO PEDAGÓGICA: Thaís Furtado SUPERVISÃO TÉCNICA E PROJETO GRÁFICO: Marcelo Garcia DIAGRAMAÇÃO: Mariana Matté e Marcelo Garcia
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ORIENTAÇÃO PEDAGÓGICA: Vanessa Cardoso SUPERVISÃO TÉCNICA: Robert Thieme ATENDIMENTO: Djover Bock Beta Redação (página 2) Arte-finalização: Pâmella Almeida Redação: Cibele Gomes Enfoque Vicentina (página 147) Direção de arte: Gabriel Frantz Redação: Fernando Fries Unisinos FM (contracapa) Arte-finalização: Sara Müller
PRIMEIRA IMPRESSÃO | 146 | JULHO DE 2016