Primeira Impressão 36

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pi primeira impressĂŁo

HĂĄ cores por todos os lados



O exercício do olhar

C

erta vez, a ex-aluna de Jornalismo da Unisinos Camila Nunes contou em aula que ela mesma escolhe as roupas que veste. Isso não teria nada de surpreendente não fosse

o fato de Camila ser cega e de ela conseguir combinar adequadamente as peças que utiliza. No armário de seu quarto, as roupas ficam sempre dispostas nos mesmos lugares. Sua mãe sabe disso e ajuda a manter a organização. As duas moram juntas, e é Suely que acompanha a filha na hora de comprar as roupas. A escolha, no entanto, é sempre de Camila. “Relaciono o verde com algo calmo, o vermelho com sangue, energia.” Dessa forma, transformando as cores em sentimentos, vai decidindo o que comprar e o que vestir a cada dia. É interessante pensar que quem tem a vantagem de enxergar faz raramente este exercício: ver as cores não exatamente como cores. Foi esse o desafio dos repórteres e fotógrafos desta edição da Primeira Impressão. Os alunos tiveram que encontrar pautas jornalísticas nas cores do mundo. Prédios, sentimentos, músicas, objetos, proje-

tos, pessoas, lugares, comidas, tudo tem cor. Convidamos você, leitor, a também exercitar seu olhar e a conhecer um pedaço dessa vida colorida nas próximas páginas. Thaís Furtado Flávio Dutra Professores-orientadores

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MARINA CARDOZO

Editorial


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BRANCO

PRETO

AZUL

AMARELO

ROXO

MARROM


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ANDRÉ ÁVILA

índice

LARANJA

VERDE

VERMELHO

CINZA

ROSA

INCOLOR


ANDRÉ ÁVILA


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Rico era o rosto branco; armas trazia E o licor que devora e as finas telas Na gentil Tibeima os olhos pousa E amou a flor das belas Machado de Assis


A BRANCA DA RUA Texto de BRUNA VARGAS. Fotos de MAURÍCIO OTT

UMA MULHER RANZINZA ENTRELAÇA VIDAS DE DESCONHECIDOS NO CENTRO DE PORTO ALEGRE

A

bafados pelo movimento dos carros, palavrões bradados na esquina do Viaduto Otávio Rocha parecem ganhar força perto dos desavisados que passam próximo ao local no fim de uma manhã de quarta-feira. A idade avançada da miúda personagem de quem partem os gritos é denunciada pelos cabelos brancos, cortados à altura dos ombros, e motivo a mais para intrigar quem ouve os impropérios que transformariam Dercy Gonçalves numa vovó insossa. Uns reagem com risos; outros se espantam. Horas mais tarde, a cena se repete. O palco agora é a rua Duque de Caxias, nas proximidades do Colégio Bom Jesus Sevigné. Frases aparentemente sem sentido e reivindicações de moradia e trabalho misturam-se aos palavrões. O discurso desconcerta, mas já não surpreende a plateia. Está entre conhecidos. Seu Salvação levanta o limpador de parabrisa de um carro importado para começar a lavagem quando é abordado pela reportagem. Embora viva na Zona Norte de Porto Alegre, o homem de 75 anos é dos poucos que habita a Duque antes da senhora, que, a esta altura, en-

cerra a performance e desce apressadamente uma rua transversal. Lavando e estacionando carros há 42 anos, José Carlos Galeão, que pela providencialidade de seu ofício tornou-se Salvação, lembra mais ou menos da época em que a mulher apareceu, “há quase 30 anos”, mas com clareza da peculiaridade que marcaria sua relação com as pessoas. “Ela só vestia branco”, conta, enquanto limpa os óculos com a camiseta. Rapidamente, a “mulher de branco” tornou-se Branca. Mas não estava só no estilo de vestir o motivo que perpetuaria o apelido. Não usa mais apenas branco, e muitos já a chamam por seu nome de registro. Branca é Branca porque gosta da cor, mas, sobretudo, porque repudia preto. O contato, ainda que visual, com roupas, objetos, alimentos e tudo o mais que não lhe pareça claro o suficiente é combustível para explosões de histeria. Quase todas as manhãs, há uma dúzia de anos, Maria Inês Zerbes separa leite, bolachas sabor limão e pão, “mas só se for bem branquinho”, e entrega a Branca na rua. A moradora de rua paga tudo o que consome, mas foi proibida

de entrar no mercadinho do qual Inês é proprietária por causa de um surto diante de um freguês negro. Sentada entre o balcão e a parede enfeitada com três pôsteres do Sport Club Internacional, a comerciante de 52 anos diz nunca ter questionado os gostos da cliente. “Essa coisa dela com o branco é um mistério”, analisa, deixando escapar um riso tímido trazido do interior do Estado. Inês mudou-se de Lajeado – município localizado a 117 quilômetros da Capital, de onde preserva também a pronúncia característica de um único erre em todas as palavras - há 29 anos. Deixou a roça para ajudar o marido no comércio. O casamento acabou; a paixão pelo negócio tomou fôlego. Branca veio como uma herança informal, quando, em 1999, comprou o ponto na Duque de Caxias. O antigo dono guardava um par de sapatos da moradora de rua. “Disse que viria uma senhora buscá-lo. Era um modelo todo clarinho, inclusive a sola”, lembra. Clientela, amizade e “pena” já se confundiam quando, no inverno de 2011, Inês, no auge do frio, deu a Branca um par de tênis todo branco, “inclusive a sola”, como no modelo que inaugurou a relação das duas. Em alguns dias, o sapato que havia usado uma única vez já percorreria sozinho o Centro Histórico da cidade. Numa sala do quinto andar do prédio extenso, mais horizontal que vertical, 8 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2011


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que compreende a Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), na Avenida Ipiranga, o jornalista Luiz Eduardo Barbosa transfere os óculos de sol da cabeça para cima da mesa. Liga um mini system na Rádio Gaúcha e, enquanto a interlocutora disputa sua atenção com Lasier Martins, ele anota as informações a pesquisar sobre a moradora de rua - dias depois, relata por telefone o resultado da busca. Branca nasceu em Antônio Prado há 67 anos. Trocou o interior pela Capital na juventude, para trabalhar como empregada doméstica. Embora sobrem especulações, ninguém sabe a data nem os motivos que a levaram a viver na rua. Relatos à vizinhança e brados acalorados a quem ouvir fazem proliferar diferentes versões sobre sua vida. “Ela conhece vários lugares do país. Já viajou ao Rio de Janeiro e ao Espírito Santo”, diz um porteiro; “Quando era jovem, saiu com muita gente do governo”, deixa escapar o garoto da pet shop; “Tem uma filha adulta que vive em Santa Catarina”, conta a dona da venda. Há alguns anos, depois de um sumiço ironicamente obscuro Aparições marcantes e sumiços inexplicáveis são ponto em comum na trajetória de Branca e de Nossa Senhora de Lourdes, santa da gruta frequentada pela moradora de rua

da mulher que vive o branco, a comerciante conversou por telefone com uma das irmãs da cliente. Descobriu que, depois de uma intervenção da Fasc, Branca tinha ido viver com a família no interior catarinense. Não demorou a que achasse o caminho de volta a Porto Alegre.

IDAS E VINDAS

Se a rua é onde escolheu descansar o corpo, uma gruta de cerca de 10 metros quadrados na descida da rua Vigário José Inácio é o repouso para a alma. Isolado por uma grade, o altar que ocupa metade do espaço guarda flores e a imagem de Nossa Senhora de Lourdes. O lugar do qual a moradora de rua é frequentadora assídua pertence a um pensionato para senhoras. Lá, cerca de 50 hóspedes desembolsam uma média de R$ 1 mil mensais para morar, fazer refeições, assistir à televisão e à missa - ao vivo, às sextas e sábados -, navegar na internet e participar de atividades especiais, como aulas de yoga. Mas só depois de passar por uma entrevista admissional com a madre superiora. Branca não foi interpelada, nem despende um tostão para usufruir uns minutos de paz no patrimônio das irmãs franciscanas. Nas idas e vindas de seu retiro espiritual, cruzou o caminho de Maurício Noer. Natural de Cachoeirinha, onde vive com a família, o garoto de 21 anos dissimulados por uma precoce calvície trabalha na pet shop Cão Belereiro, próxima ao pensionato.

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A despeito do trocadilho no nome, o local oferece serviço de banho e tosa também a gatos, além de rações, coleiras, guias e outros apetrechos para a bicharada. Maurício é quem atende às mascotes. Dele partiu a iniciativa para, meses atrás, aproximarse da moradora, a quem se refere com ternura. “Eu e meus amigos víamos que algumas pessoas a tratavam mal e começamos a brincar com ela”, conta. A despretensiosa tática de interação funcionou. Desde então, Branca troca atos espontâneos - como pegar balde e vassoura e lavar a frente da loja – e seus melhores causos por alguns minutos na banheira onde Maurício transforma cães e gatos em pompons perfumados. Usa o lugar para lavar a cabeça. Os produtos, ela mesma leva. Além de limpar o cabelo com xampu e condicionador, tem por hábito pintar as unhas – e dois sinais do rosto, próximos à boca – com esmalte branco. Numa sacola sua guardada pelos porteiros de um prédio próximo ao mercadinho de Inês, quatro blusas, um casaco e uma calça de veludo impecavelmente limpos e dobrados completam seu enxoval. Afora a arcada dentária prejudicada pelo tempo e precários cuidados, quase nada em seu visual denota alguém que vive e dorme na rua. “Ela mantém devaneios femininos”, diz Mazília Grillo. Sentada no sofá de três lugares, na sala de um dos 46 apartamentos de outro edifício das imediações, a aposentada de 78 anos manipula a chave da porta de entrada enquanto, como num divã, desabafa sobre uma amizade antiga. No dia em que recebeu a visita da reportagem, um guardachuva era a causa das nuvens negras sobre a relação com a mulher que ajuda há quase 20 anos. “Dei a ela num dia chuvoso. Estava um pouco gasto, mas em ótimo estado. Ela não gostou e abandonou. Podia ser útil para outra pessoa” diz, em tom de mágoa. No cachepô colocado em frente à porta, um modelo novo, em tons de azul. “Soberba” é o termo que a ex-professora de Língua Portuguesa de sobrancelhas angulosas, que em alguns minutos passam a contrastar com seu temperamento afável, usa para descrever Branca. “Ela só aceita dinheiro. Roupas e sapatos, escolhe”, observa. Os “devaneios femininos” a que se refere, no entanto, não residem apenas na vaidade de decidir o melhor look ou pintar as unhas. Branca quer casar. O pretendente tem que ser caucasiano, ter cabelos loiros e olhos impreterivelmente azuis. Clayton Almeida Bienert se encaixa nos requisitos nada básicos, mas prefere apostar noutro candidato. Parado com as mãos nos bolsos da calça social em frente ao seu táxi, no ponto sob o Viaduto Otávio Rocha, garante que o coração da moradora de rua pertence a uma paixão antiga. “Ela vive dizendo o nome dele, que mora na Zona Sul. Anos atrás era um homem conhecido na cidade.” Enquanto o taxista de traços e estatura germânicos discorre sobre a vida amorosa de Branca, com quem conversa quase diariamente, uma pedra arremessada de cima do viaduto por outro morador de rua passa a 10 centímetros da repórter. “Este vivia aí, atirando coisas, mas fazia tempo que não aparecia”, comenta. Segundo estudo realizado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 2008, pelo menos 1203 pessoas têm a rua como moradia em Porto Alegre. Dessas, estima-se que mais de 350 se concentrem na região central da cidade. Talvez pela possível insignificância do resultado, não se calculou quanPRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2011 | 11

tas delas foram capazes de mobilizar algo parecido com a rede de benfeitores que Branca criou a seu redor. Na quadra onde costuma se abrigar à noite, nas imediações do Colégio Bom Jesus Sevigné, outros dois moradores de rua passam o dia. Um homem se abanca nos degraus de uma construção quase ao lado do mercadinho de Inês, enquanto uma mulher passa a tarde deitada nos degraus do casarão em frente. Truque de uma misteriosa indiferença, diante das duas fachadas brancas, os visitantes - ambos afrodescendentes - se camuflam. Nenhum dos entrevistados soube dar informações sobre eles. Além das fontes que assumiram auxiliar Branca de diversas formas, uma outra, que não quis se identificar, confessou prestar favores, como cozinhar miojo e esquentar leite para ela em horário de trabalho. Questionada sobre o motivo de colocar seus interesses em risco para ajudar a instável personagem, a resposta vem bem mais curta que o suspiro que a precede: “Não sei”. No centro de Porto Alegre, branco é cor da espuma que lava os carros importados confiados a seu Salvação; do poodle exibido que ostenta lacinhos no pelo brilhoso depois da tosa. É a cor que pinta a cozinha do amplo apartamento de uma avó de família e, no feminino e diminutivo, do apelido da cachaça que encalha nas prateleiras do mercadinho. Personificada em Branca, foi subvertida e tomou nova forma. Branco, por lá, é um pequeno, instável e intrigante campo magnético.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER

“O

que mais me impressionou ao conhecer Branca foi o fato de, mesmo com poucas descrições sobre sua aparência, encontrar exatamente o que eu imaginava. Depois de mais de um mês ouvindo histórias inusitadas envolvendo a tal senhora louca por branco que vivia na Duque, surpreendeu-me que fosse ela tão fielmente a criatura miúda e destemperada que dizem que é - algo como um daqueles piões em que ninguém repara girando frenético no chão, mas, quando cai perto do pé da gente, assusta. Nossos encontros não deixaram por menos. Marcados por seu comportamento intempestivo, me levaram a buscar em sua bem tramada rede de benfeitores um jeito de compreender um pouco as coisas que se recusou a falar – motivo pelo qual seu nome de registro é preservado na reportagem. Subindo e descendo as ruas do Centro de Porto Alegre no rastro de passos ligeiros, esbarrei nas personagens que ajudam a contar a história da senhora descompensada que, pela força de sua presença, mostrou ser ainda mais que a personagem perfeita para uma história monocromática.”


CAROLINA KAZUE

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O GIGANTE BRANCO RECONHECIDA POR SUA ARQUITETURA EMBLEMÁTICA, A FUNDAÇÃO IBERÊ CAMARGO É UM MARCO PARA A CAPITAL GAÚCHA

Texto de FABRÍCIO TEIXEIRA Fotos de CAROLINA KAZUE e FABIANA ELEONORA

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uem anda por Porto Alegre sabe da efervescência de cores que é vista por toda cidade. O cinza do asfalto mistura-se com o desbotado dos edifícios, com o verde da vegetação e com a cor achocolatada do Guaíba. Porém, andando pela Avenida Padre Cacique, entre a beleza natural da orla e seu famoso pôr do sol, uma cor se destaca. Cravada em uma paisagem lotada de cores, está a soma (ou a ausência) de todas elas: a Fundação Iberê Camargo, o prédio mais branco de Porto Alegre. É impossível falar sobre arquitetura moderna sem dissertar sobre sua história dentro do contexto da cidade. Porto Alegre foi montando seu mapa ao longo dos últimos dois séculos. Na época do Império, o Theatro São Pedro (1858) e o Mercado Público (1869), marcaram a arquitetura da capital. Com a chegada da República e do século XX, a cidade ganhou ares mais modernos, com um novo porto, prédios públicos importantes e uma universidade. Porém, até meados dos anos 1980, Porto Alegre ainda era carente de espaços culturais. Os encontros de intelectuais da classe artística aconteciam em museus e cinemas precários. Alguns locais provisórios e sem preparo tornavam-se espaços institucionais para abrigar as mais variadas formas de arte. As novas gerações, contrariadas com essa falta, realizaram junto ao governo do Estado, em 1989, o I Encontro Latino-Americano de Artes Plásticas, que oito anos depois conseguiria criar a I Bienal do Mercosul em Porto Alegre, colocando a cidade no circuito artístico internacional. Nesse mesmo período, mais especificamente em 1995, foi criada a Fundação Iberê Camargo, ainda em sua antiga sede. Com o objetivo de preservar e divulgar as obras do pintor gaúcho – morto um ano antes –, o espaço também servia para estimular o entendimento da arte contemporânea, transformando o local em um importante centro cultural. Sem um espaço físico adequado, exposições e outras atividades ocorriam temporariamente em outras instituições. Com a necessidade de proteger o

acervo deixado pelo artista, nasceu a ideia de se criar um lugar próprio que também pudesse abrigar todas as atividades culturais promovidas pela Fundação, e que ainda contasse com uma arquitetura adequada para museus. Após uma pesquisa dos grandes projetos da Europa e dos Estados Unidos, chegou-se ao nome do arquiteto português Álvaro Siza. Antes mesmo de ser construído, o projeto que viria a ser a nova sede da Fundação Iberê Camargo conquistou o prêmio Leão de Ouro da Bienal de Veneza, em 2002. O arquiteto e professor universitário Flávio Kiefer ressaltou no livro Fundação Iberê Camargo: Álvaro Siza, que, para Porto Alegre, uma cidade carente de uma cultura arquitetônica própria, a Fundação era o início de uma nova realidade. Durante a construção do prédio, o canteiro de obras esteve permanentemente aberto à visitação de professores, estudantes e pessoas interessadas em conhecer o primeiro museu do Rio Grande do Sul e um dos poucos do Brasil projetado para ser um museu.

O CUBO BRANCO

A escolha do branco para estampar as paredes da Fundação Iberê Camargo é uma característica forte dentro das obras de Siza. Para a arquiteta e professora universitária Vera Mascarello, a cor branca se constitui como uma força que se soma à arquitetura do museu. Segundo ela, o uso da cor é um modelo recorrente dentro da arquitetura de museus modernos, fato prestigiado e criticado por estudiosos do ramo. Existe até um livro sobre o assunto chamado No interior do cubo branco: a ideologia do espaço de arte, de Brian O’Doherty, que teoriza a noção do Cubo Branco para espaços expositivos. Segundo a teoria, um museu deve escolher a cor branca para que o interior não se sobreponha ao objeto artístico exposto ali. De acordo com Vera, o Cubo Branco surgiu porque museus estavam tornando-se lugares com obras em excesso e assim, consequentemente, lotando o espaço visual. “O Cubo Branco é uma limpeza, uma limpeza de elementos”, afirma. Outro fato que chama atenção dos

visitantes da Fundação Iberê Camargo é a opção do arquiteto de quase não utilizar janelas dentro do edifício. Essa escolha também se encaixa dentro da mesma teoria do Cubo Branco, pois, afinal, um cubo é fechado, não possui entradas. É um fato recorrente dentro da Fundação os visitantes entrarem para tentar ver a vista para o Guaíba. Quando chegam lá em cima, porém, deparam-se com poucas janelas, a maioria delas pequenas e quadradas, como se estivessem enquadrando a paisagem, transformando-a numa obra artística. Siza fez essa opção justamente para chamar a atenção mais para dentro, para as exposições, do que para o lado de fora. “Se desejassem somente admirar a vista, que se construísse um mirante”, diz a professora Vera Mascarello. Para estudiosos da arquitetura, visitar a Fundação Iberê Camargo é uma experiência enriquecedora. Para Vera, ir com seus alunos do curso de Arquitetura rende comentários empolgados em sala de aula, de quem realmente visitou algo importante. Mas e para quem nunca se informou ou especializou sobre o assunto e do nada enxerga-se trabalhando dentro de um prédio tão imponente, como seria? Para a faxineira Sônia Goulart, certamente foi uma experiência diferente. Trabalhando na limpeza da Fundação Iberê Camargo há três meses, Sônia já fez de tudo: trabalhou em loja, em casa de família, mas em um museu de arte contemporânea é a primeira vez. Já havia passado pela fachada do prédio antes e afirma que achou muito bonito, mas nunca havia entrado. Sônia não sabia quem era Iberê Camargo e muito menos Álvaro Siza. Para falar a verdade, ainda não sabe. Responsável pela limpeza do terceiro andar do museu, Sônia orgulha-se de observar que tudo está sempre limpo e afirma: “Gosto das obras que estão aqui, embora não entenda muito sobre o assunto”. Sobre o branco, Sônia acredita ser uma cor bonita e que chame a atenção, mas nada mais tem a declarar. Já para a segurança Ana Carolina Correa, que nunca havia passado pela frente do museu antes, e sequer sabia de sua existência, chegar ali foi um fato 14 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2011


FABIANA ELEONORA

FABIANA ELEONORA

CAROLINA KAZUE CAROLINA KAZUE

A segurança Ana Carolina e a faxineira Sônia não entendiam nada de arte quando começaram a trabalhar no museu, mas aprovaram a cor branca

inovador. Ao se deparar com um prédio tão diferente de tudo que já havia visto, pela primeira vez, Ana achou aquilo tudo muito moderno. Surpreendeu-se ao entrar e constatar que era branco por fora e por dentro e considera isso uma decisão acertada, pois acredita que as obras têm que ter uma importância maior do que o espaço. Mas já não concorda que a Fundação ofereça tão poucos espaços para apreciar a vista. Seu local favorito dentro do museu é a maior janela do prédio, na rampa entre o terceiro e quarto piso, e afirma que se fosse a arquiteta colocaria PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2011 | 15

um terraço para que todos pudessem apreciar a bela paisagem. Ana não entendia nada de arte, mas hoje, depois de quatro meses trabalhando na Fundação, pode dizer que já sabe bem mais do que quando entrou. Observando as visitas dos mediadores com os visitantes, Ana aprendeu que arte é, nas suas próprias palavras, uma “expressão da alma do artista”. Responsável pela segurança do quarto piso, onde são expostas obras de Iberê Camargo, Ana, assim que entrou, não gostou muito do que viu. Achou tudo muito triste e sem sentido. Mas hoje afirma que não entendia porque não sabia nada sobre a vida dele. Hoje já sabe que ele pintava assim porque era sua maneira de ver o mundo. Andando por entre os corredores e galerias da Fundação Iberê Camargo, sabemos que, com o passar do tempo, suas exposições acabarão se renovando por diferentes artistas. Porém, o que sobra são suas paredes: o papel em branco que estará sempre aguardando por novas cores.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER

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uando se vai fazer uma reportagem grande como esta para a Primeira Impressão, ficamos tão atônicos em procurar fontes e informações que nos esquecemos de ver o nosso próprio ponto de vista. Por isso tentei me recordar como foi a primeira vez que eu entrei na Fundação Iberê Camargo e como me senti. Lembro que iria fazer uma entrevista para um estágio e nunca havia passado ali pela frente. Quando vi o prédio pela primeira vez, mesmo eu, que não entendia nada de arquitetura, sabia que ali estava uma grande obra, de um grande artista. Ao entrar, foi inevitável ficar olhando para cima, meio embasbacado com suas formas diferentes de tudo que já tinha visto. Na época, não sabia e nem me passou pela cabeça que o branco teria uma explicação lógica dentro do espaço do museu. Quando foi proposto o tema “cores” para a revista, imediatamente me lembrei da Fundação e suas paredes brancas, que agora sei que também possuem um significado importante dentro do contexto de um museu moderno. “


TAMIRES GOMES

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QUATRO GERAÇÕES ENTRELAÇADAS SOLAINE NASCEU EM MEIO AOS TECIDOS BRANCOS E HOJE VÊ SEU NOME NA LISTA DOS MELHORES ESTILISTAS DO PAÍS Texto de GIÓRGIA BAZOTTI. Fotos de ANDRÉ ÁVILA e TAMIRES GOMES

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izem que nem todo mundo têm um dom, e geralmente os privilegiados o descobrem cedo. Com Solaine Piccoli não foi diferente. Essa descoberta aconteceu aos 12 anos, quando já brincava costurando suas roupas e de suas três irmãs. Mas, além do dom, ela contou também com a influência da mãe, Zenaide Andrade Isoppo, e das avós, Eulália Teixeira da Rosa e Virgínia Manssan, que eram costureiras e precisavam da ajuda das adolescentes para confeccionar as flores para os véus das clientes que casariam. Solaine tem nove irmãos (seis homens e três mulheres) e foi a primeira da turma que assumiu com criatividade os passos iniciais de uma carreira de sucesso. Depois de ajudar a mãe e as avós, Solaine encarou o desafio de costurar um vestido de noiva para sua professora do curso normal em 1968. Após passar pela confecção de colchas e cortinas, ela decidiu dedicar-se exclusivamente aos vestidos de noiva, sua verdadeira paixão desde a infância. Já com alguns anos de experiência em costura, Solaine encarou a missão de desenhar e fazer o próprio vestido de casamento. Uma história divertida e que mostra um pouco da personalidade dela. “Desenhei três vestidos para o meu casamento. O escolhido foi um lilás, um tanto diferente para a época”, relembra Solaine. “Muitos pensam que faço vestido de noiva, mas não sou casada. Pois saibam que sou muito bem casada, mas para isso há muitos segredos.” A estilista afirma que, para o casamenPRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2011 | 17

to dar certo depende mais da mulher do que do homem. “Se ela não souber levar, a relação não dura”, brinca Solaine. Foi em 1974 que Ernani Antonio Picoli e Solaine trocaram alianças. Alguns anos após o casamento, o casal iniciou a multiplicação do amor com a vinda da filha Gabriela, hoje com 35 anos. Mais tarde vieram Camila, 34, Thiago Augusto, 31, e Júlia, 28. Para investir na costura voltada a noivas, em 1980 Solaine decidiu abrir um atelier em Gravataí, cidade onde morava. Já em 1984 mudou seu local de trabalho para Porto Alegre. “Era necessário fazer moda considerando a elegância, o estilo próprio e a liberdade”, afirma Solaine. Isso não foi problema para ela, que desde pequena colhera todo o encanto e paixão das gerações passadas. Ao sentir o avanço que sua marca havia dado, Solaine decidiu expandir o seu talento Brasil à fora. Há três anos ela levou seu nome a São Paulo, onde abriu uma loja em um dos endereços de moda mais badalados da capital paulista, a Rua Oscar Freire. A marca Solaine Piccoli atende, em sua maioria, público AA e, segundo a estilista, são feitos cerca de 250 vestidos por ano, ou seja, já foram feitos em média 10 mil vestidos durante toda a trajetória da estilista. Continuando no mesmo caminho, as três filhas de Solaine decidiram formar a quarta geração no ramo de vestidos brancos. Gabriela Piccoli é formada em artes visuais e, além de ser responsável pela loja em São Paulo, trabalha como estilista para a grife Solaine Piccoli. Camila e Júlia au-


FOTOS TAMIRES GOMES

xiliam a mãe na loja de Porto Alegre, onde Camila desenha e Júlia modela vestidos. Talvez mais especial do que fazer o próprio vestido foi fazer o de sua filha Camila em 2008. “Foi muito emocionante, mas ao mesmo tempo engraçado”, conta Solaine. Segundo a estilista, eram cerca de 10 pessoas opinando no vestido da filha, o que tornou a experiência um tanto cômica. “A Camila que cortou, bordou e fez as flores do vestido”, lembra Solaine. Para confirmar o dom e o talento que veio da avó de Solaine, atualmente todas as quatro filhas de Arlindo e Zenaide Isoppo trabalham com vestidos de noiva. E como se não bastasse, carregaram também as suas filhas para a carreira. Somando as quatro gerações que seguem o ramo da família, totalizam 11 mulheres. Isso mesmo, são 11 mulheres entre avó, mãe, netas e bisnetas que aproveitaram o dom e estão realizando o sonho de muitas outras mulheres.

O JEITO SOLAINE DE COSTURAR

Apesar de vestidos coloridos estarem em alta, o branco ainda é a preferência das noivas

Solaine Piccoli foi eleita uma dos cinco melhores estilistas de São Paulo pela revista Casar de maio deste ano. Os outros quatro são: Emannuelle Junqueira, Rogério Figueiredo, Ronaldo Ésper e Samuel Cirnansck. A estilista vestiu mulheres como a top Shirley Mallmann, a irmã de Gisele, Rafaela Bündchen, a filha de Mano, Camila Menezes, e a atriz Larissa Maciel. Ao falar sobre a responsabilidade e a paciência de encarar diferentes perfis de clientes, Solaine desabafa: “É preciso ter um jogo de cintura e saber se impor”. Além disso, a estilista afirma que nunca levanta de mau-humor, o que contribui para o bom relacionamento com as noivas. Solaine conta que segue o jeitinho da noiva. “Procuro fazer o que a cliente pede, mas é claro que tenho as minhas preferências e que sempre sugiro a melhor opção para o tipo físico dela.” A estilista conta que já chegou a fazer cinco vestidos para uma mesma noiva, mas que é raro ter cliente tão indecisa. “Existe sempre um modelo para cada uma delas, basta entender o estilo”, finaliza Solaine. Reza a lenda que o vestido de noiva é branco para simbolizar pureza e castidade, mas ao longo dos anos a moda traz novos ares, tornando o tradicional mais autêntico. Para Solaine, o vestido branco caracteriza a noiva, mas ela destaca a tendência: “O tradicional branco cedeu lugar para os tons off-white e ele está vindo com tudo!”. Essa tonalidade diferente é uma espécie de tecido “branco natural”, que, segundo Solaine, é muito elegante e combina com todos os tipos de pele. Para a estilista, outros tons claros como o marfim, o pérola ou lavanda são ideais para noivas do segundo casamento.

TRÊS VEZES BRANCO

Daniela Annes tem 33 anos e vivenciou cedo o sonho de vestir branco no casamento. Aos 23 anos ela casou pela primeira vez. “Como eu era novinha, minha mãe ajudou com as despesas da festa. Foi um casamento de princesa, com tudo que tinha direito”, conta Daniela. Ela ressalta diversas vezes que o primeiro casamento foi baseado no sonho que tinha: “É aquele desejo que toda menina-mulher tem de 18 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2011


ANDRÉ ÁVILA TAMIRES GOMES

entrar na igreja de vestido branco, véu e grinalda.” O vestido rodado, o véu e a grinalda de Daniela foram assinados por Solaine Piccoli. A noiva optou por “primeiro aluguel”, ou seja, a estilista desenhou um modelo para ela usar pela primeira vez e depois foi disponibilizado no atelier para outras noivas alugarem. Exatamente 10 anos se passaram e, em 2011, Daniela casou novamente. Com pensamentos mais maduros, opiniões diferentes descrevem a noiva recém-casada com Marcelo Spera, 44 anos, colega de empresa de Daniela. Apenas um beijo e nove dias depois já estavam morando juntos. A vontade de comemorar a união era tão grande que o casal casou duas vezes! No dia 26 de maio foi realizado o “Happy Wedding Hour”, como descreve Daniela. A ideia foi fazer uma festa somente para os colegas do trabalho em clima de boteco. Já no dia 27 de maio aconteceu a festa mais tradicional, organizada para a família e os amigos. Mas é claro que Daniela não deixou o vestido branco de fora. Os dois modelos foram inspirados nos da estilista australiana Maggie Sottero e, além de não repetir o vestido nas duas festas, ela os adequou dentro do padrão de cada dia. Daniela levou os modelos para a costureira Vera Fonte se inspirar: “A Vera fez o vestido mais tradicional exatamente como eu queria”. Na festa “boteco”, Daniela usou um branco curto com um laço preto na cintura e um sapato preto. Já no casamento para a família, a noiva optou por um vestido mais tradicional, mas muito diferente do primeiro. “Quando fui pesquisar os vestidos, achava tudo com cara de princesa e não tenho mais estilo para isso”, conta Daniela. Os dois vestidos do casamento com Marcelo são de Daniela e ela afirma que não quer se desfazer deles: “Vou guardar, pois adoro festa! Quem sabe daqui 10 anos, na nossa renovação de votos, eu não uso algum deles novamente?”, brinca sorridente. PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2011 | 19

A estilista Solaine (à direita) já confeccionou cerca de 10 mil vestidos de noiva. Foi ela que desenhou o primeiro dos três vestidos usados por Daniela

IMPRESSÕES DE REPÓRTER

“A

ntes de fazer esta matéria, conhecia apenas a marca “Solaine Piccoli”. Quando me deparei com a história dela não tive dúvidas de quem seria o personagem da minha matéria. Devido à rotina repleta de compromissos da estilista, pensei que seria complicado encontrá-la para a entrevista. Sorte ou não, na primeira ligação feita para o atelier dela, fui atendida pela própria Solaine! Evidente que foi muito mais fácil do que imaginava. Fui surpreendida mais uma vez quando cheguei para entrevista e a estilista me recebeu com sorriso no rosto e uma simplicidade de dar inveja! Solaine mostrou que sabe lidar com todo o sucesso que foi plantado lá na sua infância, colhido anos mais tarde e mantido durante toda a sua carreira. Conheci a história da Daniela Annes através das redes sociais. Desde o primeiro contato ela já me contou todos os detalhes e eu me interessei! Ela e o marido abriram o aconchegante apartamento para a equipe e a conversa se estendeu por quase duas horas, mas passou rápido como fossem 15 minutos. O casal é um exemplo de companheirismo!”


ANDRÉ ÁVILA


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Aqui na terra tão jogando futebol Tem muito samba, muito choro e rock’n’roll Uns dias chove, noutros dias bate sol Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta

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Chico Buarque


Márcia Santos é a atual líder do quilombo fundado por seu tataravô, Manoel Barbosa

A COR QUE UNE UMA COMUNIDADE


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LILIANA EGEWARTH

QUILOMBO LOCALIZADO EM GRAVATAÍ PRESERVA CULTURA NEGRA Texto de NATACHA OLIVEIRA Fotos de LILIANA EGEWARTH e JÚLIA KLEIN

Brasil seria um país diferente, não fosse a riquíssima herança cultural deixada por mais de quatro milhões de escravos negros que foram trazidos da África para o Novo Mundo ao longo de três séculos. Todas as regiões brasileiras, até mesmo as de colonização europeia, como o Rio Grande do Sul, foram influenciadas pelo legado negro. Capoeira, feijoada, samba, vatapá e candomblé foram algumas das heranças deixadas por esse povo que, aos poucos, conseguiu inserir sua cultura em todo território. Durante o período da escravidão, a resistência dos escravos foi feroz e constante. Apesar das punições rigorosas, milhares de negros tentaram escapar da senzala e obtiveram êxito. Embora grande parte fosse recapturada pelos capitães-do-mato, houve aqueles que fundaram quilombos para se refugiar com seus semelhantes no meio da mata. Essas comunidades, espalhadas por diversos estados, abrigavam negros de todas as raças, além de índios e brancos fora-da-lei. Algumas delas chegaram a ter cerca de 10 mil habitantes. O Quilombo dos Palmares, erguido em 1602 por 40 escravos fugitivos, foi o mais significativo e simbólico quilombo das Américas. Em nenhum outro lugar a resistência dos escravos fugidos foi tão bem-sucedida, organizada e longa como nos 12 mocambos erguidos no sertão de Alagoas. Seu líder, Zumbi, comandava os cerca de 20 mil habitantes do local. Séculos se passaram desde o fim da escravidão, mas os quilombos permanecem vivos até hoje. No Brasil, ainda existem 1,5 mil comunidades quilombolas, sendo 86 localizadas no Rio Grande do Sul. Uma delas encontra-se na zona rural de Gravataí, a 20 km do centro e a 43 km da Capital. Liderada por Márcia Maria Santos, 36 anos, a comunidade do Quilombo Manoel Barbosa abriga 39 famílias e quase duzentos moradores. Tataraneta de Barbosa, Márcia conta como o quilombo surgiu. “Meu tataravô era escravo de uma fazenda. Minha tataravó, Luiza Paim de Andrade, ganhou o terreno quando libertaram os escravos. Eles se casaram, aos poucos foram tendo os filhos por aqui, e foi crescendo a comunidade.” Com o passar dos anos, muitos descendentes não quiseram ficar no quilombo devido ao isolamento e às dificuldades de locomoção. “Eu lembro que nós só saíamos da comunidade em dias de desfile. Nós andávamos horrores até chegar à parada de ônibus e, quando chegava na faixa, o pé era virado só em terra”, conta Márcia. Comparado com as grandes cidades, não há muito que fazer e poucas oportunidades no quilombo, por isso muitos moradores foram embora em busca de melhores condições. “A cidade grande tem shopping, transporte e serviços de qualidade. Aqui eles acham que só tem três coisas para fazer: cultivar arroz, ter plantação ou gado. Se as pessoas não estão interessadas nisso, vão trabalhar em empresas e saem daqui”, afirma Márcia. A própria líder não mora mais no local, apesar de manter as visitas constantes. Ela resolveu mudar-se para o centro de Gravataí devido às dificuldades de lo-


FOTOS JÚLIA KLEIN

comoção, que se tornaram ainda mais evidentes quando Márcia começou a cursar Matemática, na Cesuca, em Cachoeirinha. “Eu penso que até terminar minha faculdade nós já vamos ter melhores condições, ônibus, estrada, então eu pretendo melhorar a minha casa e morar aqui”. Outra opção de Márcia seria comprar uma casa mais perto da comunidade para visitá-la com mais frequência. “Trabalhando eu posso comprar qualquer coisa para me locomover, porque agora só ando de bicicleta. A minha infância foi aqui, então eu só sei coisa grosseira, sei andar a cavalo, lidar com bichos.” Thaís Santos Longhi, sobrinha de Márcia, também está crescendo no quilombo e espera que no futuro a comunidade progrida. Os moradores do quilombo costumam plantar milho, alface, aipim, couve e outras verduras. Alguns criam animais, como peixes, galinhas e até mesmo ovelhas. A maioria das famílias é formada por mães e filhos, sem a presença dos pais. Quase todos habitantes trabalham em empresas distantes da comunidade.

PASSADO DESCONHECIDO

Para Márcia, não há grandes diferenças entre a vida dentro e fora do quilombo. “Aqui nós temos casas normais, é tudo normal. O que diferencia o quilombo das outras comunidades é o fato de sermos negros, mas nem todos são negros aqui, são raros os pretos mesmo. É quilombo porque é uma terra de escravos, mas muita gente aqui não conheceu a história dos seus antepassados.” Verônica dos Santos, 39 anos, mora no quilombo desde que nasceu. Casada, tem uma filha de 20 anos e trabalha à noite em um restaurante. “Pretendo ficar no quilombo eternamente. No futuro quero só comprar um carro, porque aqui nós ficamos isolados.” Já sua filha não pensa em continuar morando no local, assim como a maioria dos jovens que vivem na comunidade. “Ela é nova, quer fazer cursos, coisas assim, aí não dá, a não ser que apareçam ônibus ou a gente consiga comprar um carrinho para andar”, assegura a mãe zelosa. Apesar de todos os problemas estruturais encontrados no Quilombo Manoel Barbosa, é possível ver no rosto de cada morador o orgulho de viver na comunidade. Diferente do período da escravidão, em que os quilombos eram constantemente atacados por bandeirantes e capitães-do-mato, atualmente a paz impera neste tipo de comunidade. “A melhor coisa do quilombo é a paz. De noite tu só ouves um galo cantando, um cachorro que late de vez em quando...”, assegura Verônica.

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pauta sobre o Quilombo Manoel Barbosa foi sugestão dos meus colegas de aula. Antes de fazer a reportagem, a única vez que tinha ouvido alguma coisa sobre o assunto havia sido na escola. Por isso fui buscar informações nos meus livros de História, onde pude perceber que todos os materiais sobre o tema estão relacionados à escravidão, capitães-do-mato ou ao líder Zumbi dos Palmares. Mas, afinal, como será que funciona um quilombo no século XXI? Em busca de respostas fui ao Quilombo Manoel Barbosa, na zona rural de Gravataí. No local, percebi que hoje em dia não há grandes diferenças entre a comunidade quilombola e as demais, a não ser o predomínio da cor negra. Fora isto, os moradores são pessoas iguais a todos nós, com famílias, casas e empregos para zelar. Fiquei muito feliz com a realização dessa reportagem, pois tive a oportunidade de conhecer um lugar novo e pessoas diferentes.”

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Thaís Longhi está crescendo no quilombo

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BEATRIZ MROSS

A COR DO METAL AS TEMÁTICAS SOMBRIAS E MACABRAS DO HEAVY METAL ENCONTRAM NA COR PRETA SUA MAIS PERFEITA REPRESENTAÇÃO Texto de DIEGO DIAS. Fotos de BEATRIZ MROSS e FAHRA WITTÉE

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á virou lugar comum associar o heavy metal a temáticas mais sombrias e densas, muito por conta do estilo de se vestir, sempre adotando o preto como cor predominante. O heavy metal é um gênero musical que surgiu no fim dos anos 60 no Reino Unido e nos Estados Unidos. Também é conhecido como metal. As bandas assumem como característica visual o uso de jaquetas e calças de couro preta, além de braceletes, brincos de argola, barPRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2011 | 27

ba por fazer e cabelos compridos. Esse imaginário em torno do gênero é reforçado pelo comportamento e postura das bandas no palco. Muitas lendas foram criadas no decorrer dos anos em torno do heavy metal, provavelmente influenciadas pela falta de conhecimento do grande público, porque muito do que realmente se sabe sobre as bandas fica eclipsado pela sombra do estereótipo que se enraizou na cultura musical.

Para o estudante de bacharelado em Educação Física e fã de metal Luiz Fernando Candioli, de 28 anos, a cor preta adotada pelas bandas representa um escudo para a sociedade. “É como se não deixasse passar o que eles não querem, transmite um ar de mistério, como se escondesse algo, como se estivesse dizendo que nem tudo esta só na superfície”, comenta Fernando. Para o estudante, a forma como uma pessoa se veste, pré-determina um tipo de comportamento. Essa seria a razão pela qual ele acha


que a cor preta seja a que representa melhor o heavy metal. “Eu tinha 15 anos e todo mundo da minha idade gostava de ouvir música dance ou tecno e eu não achava isso compatível com a minha personalidade.” Ele diz que sempre foi do contra, que até os 15 anos não escutava música. “Comecei a me interessar por metal como uma espécie de manifestação. Foi para mostrar minha discordância de que todo mundo devia ser de uma determinada maneira, uma forma de demonstrar meu inconformismo com as coisas”, diz Luiz Fernando. Para muitas pessoas, esse estilo mais sombrio e misterioso causa um certo estranhamento. Histórias para apoiar essa afirmativa não faltam, desde as que envolvem pactos sinistros feitos pelas bandas até a criação de mitos, como a notícia de que Ozzy Osbourn, vocalista do Black Sabbath, teria mordido um morcego que fora jogado no palco durante um show. Para o vocalista da banda gaúcha de heavy metal Hibria, Iuri Sanson, as lendas que são criadas chegam a ser engraçadas, mas admite que elas ajudam a popularizar o gênero e a vender discos. “É toda uma cultura que se criou com o decorrer dos anos, de se associar o estilo visual das bandas a temas mais sombrios e macabros, e os fãs de certa forma cultivam isso”, destaca Sanson.

A banda Híbria foi formada em 1997, em Porto Alegre, e é composta por Iuri Sanson (vocal), Abel Camargo (Guitarra), Diego Casper (guitarra), Benhur Lima (baixista) e Eduardo Baldo (baterista). Conhecida por aliar peso, técnica e velocidade em suas composições, a banda possui três discos oficiais já lançados no Brasil, Japão, Estados Unidos e Alemanha. Além de estar preparando o lançamento do seu primeiro DVD ao vivo, gravado em Tóquio este ano, a banda já teve a chance de abrir shows e de participar de festivais com bandas como Metallica, Megadeth, Slayer, Judas Priest, Arch Enemy e Ozzy Osbourne, no Brasil e na Ásia. Para Sanson, a banda adquiriu influências bem ecléticas. “Começamos ouvindo clássicos como Iron Maiden, Metallica, Ozzy Osbourne e Megadeth. Com o tempo, fomos ouvindo sons mais pesados, como Arch Enemy, Children of Boddon e Soilwork.” O último álbum da banda, “Blind Ride”, lançado no final de 2010, no Japão, possui uma sonoridade

Iuri Sanson, vocalista do Hibria, diz que os fãs gostam de associar o metal com temas sombrios e macabros FAHRA WITTÉE

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de uma vez quando fui a um pub, com uma calça jeans justa, tênis preto gasto, uma camiseta do Nevermore (uma banda de metal), uma jaqueta de couro estilo motoqueiro. Quando as pessoas me olhavam, era como se pensassem que eu ia matar alguém, mas, no entanto, me senti muito bem com isso, senti orgulho”, lembra. É comum, no imaginário coletivo, criar-se uma séria de estereótipos em torno do jeito de ser dos integrantes das bandas de metal, principalmente em sua vida pessoal, que é sempre associada a comportamento desregrado, excessivo uso de bebidas, drogas e noitadas de festas. No entanto, muitas bandas adotam um estilo de vida mais convencional, como afirma Iuri Sanson. “Nenhum integrante da banda Hibria é casado, mas todos tem suas namoradas. Temos uma vida normal, todos tem seus afazeres, suas aulas (a maioria professores de música), seu trabalho. À noite nos encontramos para beber uma cerveja, bater um papo, mas não todas as noites, claro”, afirma o vocalista. O preto pode ser a cor do metal, mas é a música o principal elemento definidor do gênero. É por ela que os fãs vão aos shows e compram os CDs. A cor ajuda a manter vivo o estilo, afinal de contas, qual outra cor poderia representá-lo melhor?

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reportagem sobre bandas de heavy metal surgiu para mim como um terceiro filho que nasce por acidente. A princípio, quando ficou decidido que a pauta geral da revista seriam as cores, logo me interessei pelo preto, queria fazer uma pauta sobre luto. No entanto, como queríamos uma abordagem diferente do tema, entrevistando mulheres carpideiras, tivemos muitas dificuldades. A principal delas era encontrá-las. Após gastar todas as possibilidades e me aborrecer um pouco, desisti da pauta e fui para a segunda opção, os góticos. Essa pauta também não deu certo. Aí veio o heavy metal. A princípio me equivoquei um pouco e fugi do assunto foco da revista, mas acabei encontrando a abordagem certa e considero que foi uma experiência bem diferente para mim, pois nunca tinha feito uma pauta dessas. Meu maior desafio foi tratar a relação do heavy metal com a cor preta sem tornar a matéria muito chata de ler. Usei como fontes uma banda de metal e um fã desse gênero e penso que fiz um relato honesto do assunto.”

BEATRIZ MROSS

bem diferente, pesando mais a mão, com um vocal não muito alto. “Consideramos esse o nosso melhor álbum, um heavy metal bem tradicional, bem pesado”, destaca. Segundo Sanson, esse estilo visual cria uma certa unidade para o gênero, como se fosse um código de honra. “Quando somos vistos nas ruas, as pessoas logo nos associam ao heavy metal, devido à forma de nos vestir e a nossa aparência.” O estereótipo criado em torno do gênero não incomoda o vocalista, que considera que isso faz parte da cultura do metal. “As pessoas se vestem desse jeito porque curtem, não porque é moda. O legal é que o estilo metal tem uma simplicidade, uma originalidade, que não copia ninguém”, destaca Sanson. No entanto, apesar de considerar a cor preta a mais adequada para o metal, Sanson diz que o Hibria adota uma forma menos radical de se vestir “Nosso estilo vai de acordo com o tipo de música que fazemos, não seguimos aquela linha mais tradicional, com calças de couro, correntes e pregos nas roupas. Gostamos de enfatizar na cor preta, mas preferimos um estilo mais atual, sem carregar nos adereços, adotamos roupas mais normais”, diz. Para o metaleiro Luiz Fernando, essa relação com o preto tem a ver com o som da banda. “Quando eu ouço uma guitarra com uma distorção bem pesada, não consigo pensar em outra coisa que não seja algo escuro, denso, dark. Logo penso que estou numa caverna escura”, diz. Ele acredita que o preto é popular no metal principalmente pelo estranhamento que causa em quem vê. “O visual preto das bandas destoa, provoca um certo choque e impacto, tem uma postura diferente”, comenta. Luiz Fernando diz que se sente livre vestindo-se de preto, como se pudesse fazer o que quiser. “Quando minha mãe me via todo de preto, indo para os shows e me chamava de urubu, eu me sentia feliz, me sentia diferente”, lembra. No entanto, Luiz Fernando reconhece que há um certo preconceito envolvendo os metaleiros. “Lembro


ANDRÉ ÁVILA


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Ver na vida algum motivo Pra sonhar Ter um sonho todo azul Azul da cor do mar Tim Maia


O AMOR É Texto de DÉBORA SOILO Fotos de DIERLI SANTOS


AZULZINHO LEA E EVERTON SÃO A PROVA DE QUE UM SENTIMENTO PODE SURGIR E PERDURAR NO AMBIENTE PROFISSIONAL


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m cruzamento entre a Avenida João Pessoa e a Avenida Ipiranga, no bairro Santana, em Porto Alegre, é um lugar qualquer para a maioria das pessoas. Lea e Everton guardam com carinho a lembrança do dia em que esse cruzamento foi cenário de um encontro entre eles e que, embora tenha sido profissional, foi o início de uma história de companheirismo. Ela, natural de Santa Catarina, ele, gaúcho porto-alegrense. Lea Adriany de Bitencourt Ferrão e Everton Luiz Pedroso Ferrão, ambos com 40 anos, entraram para a Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC) de Porto Alegre em 3 de agosto de 1998. Mesma idade, mesma data de ingresso na carreira que tanto gostam, e as semelhanças não param por aí. A EPTC foi criada pela lei 8.133, de 13 de janeiro de 1998, com o intuito de regular e fiscalizar as atividades relacionadas com o trânsito e o transporte da cidade de Porto Alegre. O início do trabalho dos agentes de

trânsito, mais conhecidos como azuizinhos, foi muito divulgado pela mídia logo que a lei foi aprovada. Lea e Everton, que começaram na carreira de agentes de trânsito no mesmo ano de criação da EPTC, lembram da dificuldade inicial para se fazerem reconhecidos pelos motoristas. “No início ninguém sabia o que era, quem éramos. A gente chegava, cumprimentava, e eles: quem são vocês? Ah, vocês são aqueles da televisão! Ninguém tinha conhecimento”, conta Lea. Everton destaca que, depois que as pessoas perceberam que eles eram agentes de fiscalização e que podiam punir e cobrar, piorou a situação. “Aí sim, passamos a ser odiados.” Quando começaram a trabalhar na EPTC, Lea e Everton ficaram no mesmo setor. “A gente chama de PCAs, onde a fiscalização é dividida em quatro. Então tem centro, sul, leste e norte. Nós ficávamos na sul”, diz Lea. Com um sorriso no rosto, a agente de trânsito relembra o momento em que passou a ver Everton com outros

olhos. O cenário é o cruzamento das duas avenidas. Devido a uma queda de luz, as sinaleiras se apagaram e o caos se instalou. Lea, que estava sozinha, pediu ajuda a fim de que enviassem algum colega para lhe auxiliar a controlar o trânsito. “O Everton, logo que começamos na empresa, era motociclista e, naquele dia, foi o meu herói! Após o pedido de ajuda, ele chegou com a moto, se posicionou, e me ajudou a controlar os carros. A partir dali é que algo despertou entre nós. Eu passei a ver ele diferente”, relata. O namoro de Lea e Everton teve início em 1999, na festa de confraternização de final de ano da EPTC. Em 2000, eles já estavam casados. Os azuizinhos, que nunca tiveram problemas no trabalho devido ao relacionamento, fizeram parte do mesmo setor entre os anos de 1998 e 1999. A iniciativa de mudar partiu deles próprios, justamente para não misturar o profissional com o pessoal. Hoje, Lea trabalha no setor de educação duran-

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Há 13 anos na EPTC, o casal se declara apaixonado pela profissão

te o dia e Everton, na fiscalização de obras no turno da noite. O azul não prevalece apenas no uniforme de trabalho do casal. A família Ferrão é composta por cinco integrantes e todos são torcedores do Grêmio. Júnior, de 18 anos, e Guilherme, de nove, confirmam ainda mais essa paixão fazendo parte do grupo de juniores do Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense. “Lá em casa todos somos azuis. O Júnior, meu enteado, está no Grêmio desde os cinco anos de idade e hoje é jogador profissional do grupo dos juniores. O Gui está na escolinha desde os quatro anos e agora integra a seleçãozinha da categoria de base dos juniores”, conta Lea orgulhosa. Amanda, de seis anos, é a princesinha da casa. Vestida com a camisa do Grêmio e por trás de um sorriso envergonhado, ela confirma que, assim como os irmãos, gosta tanto de assistir quanto de jogar futebol. Everton, por trabalhar no turno da noite, acaba ficando mais tempo com os filhos. Lea aproveita as noites, finais de semana e o período das férias. “Nossas férias são sempre no mesmo período, até porque a própria legislação prevê isso. Procuramos sempre encaixar nas férias das crianças, para poder ficar um pouco mais juntinho deles”, completa Everton. Como em qualquer profissão, os agentes de trânsito acabam tendo que lidar com a correria diária e o estresse. Para que a pressão do dia a dia não afete o relacionamento, um serve de conselheiro para o outro. “Se ele está com muita pressão, eu escuto e, se eu estou muito carregada, ele escuta. Assim a gente se ajuda”, diz Lea. Antes de integrar a equipe da Empresa Pública de Transporte e Circulação, Everton trabalhava na Brigada Militar e Lea, como secretária. A agente de trânsito, que antes da carreira o máximo que pensa-

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va era em conquistar a habilitação para dirigir, se diz apaixonada pela profissão. Na BM, Everton fazia um trabalho muito parecido com o que vem fazendo há treze anos na EPTC. Também adora o que faz. Ambos não cogitam trocar de emprego. Hoje, diferentemente do que acontecia logo que começaram a atuar como azuizinhos, a população os respeita mais e clama pelo trabalho que fazem. “Mesmo eu trabalhando no setor de educação, ainda atendo mais pedidos por ampliação da fiscalização. Na educação, a gente passa conhecimento, a forma de comportamento, mas as pessoas mudam se querem. Com a fiscalização não, se tu seguir errado tu vai seguir sendo cobrado e punido, para daqui a pouco parar e pensar: opa, não vou mais fazer isso pra não ser punido”, analisa Lea.

mento. Havia pessoas na fila há muito tempo que já tinham passado por uma série de exames e acompanhamento”, finaliza Lea. Cris está com oito anos. A última informação que receberam da criança é que ele tinha sido adotado por uma família do interior do Estado. Embora eles não tenham conseguido a adoção do menino, ele foi o personagem principal de um dia de trabalho que Lea jamais esquecerá. Ao contrário do habitual, o amor entre Lea e Everton é caracterizado pela cor azul, e não pelo vermelho. O casal de azuizinhos descobriu em um congestionamento causado pela falta de energia o amor que supera barreiras, divide alegrias, multiplica a família com a chegada dos filhos, que comemora junto a vitória do time - que também é azul - e que divide histórias.

UM DIA MARCANTE

O trânsito é cenário de muitas histórias tristes; acidentes com mortes, feridos graves, familiares desesperados pela perda de alguém. Diante das tragédias que presenciaram, os dois guardam na memória uma história emocionante. “Eu estava em um plantão da noite fazendo ronda no bairro Cruzeiro do Sul quando um grupo de pessoas abordou minha equipe dizendo que tinha uma sacola em frente a uma casa. Eles não sabiam se era um bicho ou uma criança”, conta a agente de trânsito que, ao chegar no local, verificou que era um bebê. “Era um menino, estava limpinho. Verifiquei que ele estava bem e chamei por socorro. A Brigada Militar veio e o levamos para o Hospital Conceição”, completa. Nessa época, Guilherme, filho do casal, era bebê. Lea tinha voltado da licença maternidade há pouco tempo. O Cris, como as enfermeiras chamavam a criança, ficou no hospital cerca de 15 dias, sendo adotado por uma família pouco tempo depois. Lea o visitava diariamente, até que uma psicóloga pediu para que não fosse mais, porque ela já estava criando vínculo com o bebê. “Se pudéssemos, eu e o Everton teríamos adotado o Cris, mas não tinha como, há todo um regra-

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mor, companheirismo, união - esses são alguns dos diversos itens indispensáveis para um bom relacionamento afetivo. A maneira de pensar varia de pessoa a pessoa e, por isso, a relação de um casal também não dispensa uma pitada de paciência. Ao deparar pela primeira vez com Lea e Everton, o ditado ‘a primeira impressão é a que fica’ funcionou perfeitamente. Eu e a colega Dierli Muller aguardávamos na recepção da EPTC quando o casal e sua filha caçula, Amanda, apareceram descendo as escadas. Simpatia é o que não falta a essa família. Conversa vai, conversa vem, Lea e Everton não responderam apenas às perguntas pautadas para a entrevista, mas também falaram sobre algo que sempre duvidei dar certo: o relacionamento entre dois colegas de trabalho. Logo a primeira vista, percebe-se o companheirismo dos dois que, com muito amor, formaram uma linda família. E enganase quem pensa que o trabalho afeta o dia a dia do casal: um serve de apoio ao outro, como afirma a agente de trânsito.”


PORTAS ABERTAS PARA TODAS AS CORES Texto de FERNANDA KERN. Fotos de ANA PAULA FIGUEIREDO e LORENA RISSE

UTILIZANDO PROPOSTA ACOLHEDORA, HOSTEL DE PORTO ALEGRE RECEBE PESSOAS DE DIVERSAS PARTES DO MUNDO E COM OS MAIS VARIADOS ESTILOS

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á pouco mais de 50 anos, o cosmonauta soviético Yuri Gagarin, então com 27 anos, entrou para a história. Os 108 minutos que passou em órbita foram mais do que suficientes para marcá-lo para sempre como o primeiro homem a ir ao espaço. O feito deu início à chamada Era Espacial e atingiu proporções estratosféricas. No entanto, a baixa estatura de Yuri, que tinha apenas 1,57 metro de altura, não foi o único registro inversamente proporcional ao tamanho do momento. A frase mais célebre do cosmonauta possui apenas 11 letras, distribuídas em quatro palavras: “A Terra é azul”. Não tão grande quanto nosso planeta, nem tão longe quanto a estratosfera, existe um lugar que compartilha a pluralidade de ideias, culturas e etnias encontradas no globo terrestre. Este local, quase escondido entre os prédios de arquitetura antiga da Rua Lima e Silva, em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, possui outra semelhança com o mundo. Assim como a Terra, a casa do número 912 é azul. Talvez o ponto menos criativo da residência seja o próprio nome. Afinal “Casa Azul” é a nomenclatura mais óbvia para quem chega e observa a fachada em um tom de azul não tão escuro quanto a noite. Entretanto, o nome do estabelecimento não foi escolhido por preguiça, como pode parecer. “Antes de abrirmos, nós passamos um bom tempo em reformas. Então, quando um amigo ligava perguntando

onde estávamos, a resposta era sempre ‘na casa azul’, já que ainda não tínhamos um nome. No fim, todos os nossos conhecidos já chamavam o local de ‘Casa Azul’ e assim ficou”, lembra Murillo Adornes, 29 anos, um dos quatro sócios da casa.

PADRÃO INTERNACIONAL

Criada com base nas experiências e conversas deste quarteto de amigos de infância, a Casa Azul é um hostel. A palavra é de uso internacional para nomear albergues. Sem fronteiras de países no próprio nome, o local já abrigou pessoas de todas as partes do mundo por variados períodos de tempo. Da mesma forma que outros hostels, a Casa Azul tem como característica os preços convidativos, além dos quartos coletivos, divididos por gênero. Há, ainda, um quarto privado, onde podem ser acomodadas até quatro pessoas. Além de internet, cozinha e uma área comum, o hostel porto-alegrense, o único com padrão internacional do Rio Grande do Sul, possui um bar, que fica aberto 24 horas por dia para os hóspedes. Para o público em geral, a casa abre de terças a domingos até por volta de 3h da manhã. Montar um bar era a ideia inicial de Murillo, Daniel Alvez Pereira, 30 anos, Carlos Augusto 36 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2011


LORENA RISSE

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Caloghero, 29, e Rafael Favero, 27. As viagens pela Europa trouxeram a proposta de um hostel, o que foi concretizado em abril de 2010. As acomodações da Casa Azul são simples e a estrutura não conta com tantos funcionários quanto em um hotel, o que ajuda a aproximar os hóspedes. Esse contato direto, com maior interação, humaniza o atendimento e torna o ambiente aconchegante e familiar. Para se ter uma ideia, quase todos os funcionários e os quatro sócios tratam os clientes pelo primeiro nome e vice-versa. Este deve ser um dos fatores que leva cada vez mais famílias e pessoas de faixa etária elevada a optar pelos albergues. “Recebemos há algum tempo uma senhora de bastante idade, que possuía carteirinha de alberguista (o documento, com validade internacional, dá 10% de desconto nas diárias da Casa Azul). Ela contava que já conhecia boa parte do mundo se hospedando apenas em hostels”, destaca Murillo. LORENA RISSE

TROCA DE EXPERIÊNCIAS

A troca de experiências está por todos os cantos e pode ser experimentada por qualquer visitante. Não é necessário ir muito longe, basta atravessar as grades azuis e acompanhar as conversas no pequeno pátio de concreto, onde os clientes dividem espaço com uma banheira virada de lado – que serve de placa de boas vindas – e um guarda-sol fechado. Em uma quarta-feira à noite, por exemplo, era lá que um grupo de rapazes conversava. As camisetas tricolores e os diversos “bahs” e “tris” entre as frases não deixavam dúvidas de que os jovens, todos na faixa dos vinte e poucos anos, não tinham vindo de longe para apreciar a grande variedade de cervejas do bar. Um deles, no entanto, destoava um pouco do resto do grupo. Sua pele era mais clara, assim como os olhos e a camiseta pólo – usada com uma calça e um sapatênis – parecia ser um pouco formal demais para o que a situação exigia. Apesar do português impecável, o sotaque carregado não deixava dúvidas de que o jovem não era brasileiro. Um tanto quanto tímido, ele conversava com o gaúcho mais entusiasmado. Dizia ao novo amigo que talvez acompanhasse o grupo em uma festa dias depois. O gaúcho tentava persuadir o estrangeiro a sair naquela mesma noite. Envergonhado e demorando um pouco para articular os argumentos, o rapaz do exterior levou algum tempo para convencer o resto do grupo que não teria como ir para uma festa naquele dia, porém sairia com os amigos no sábado. Pouco antes de subir para o alojamento, o estrangeiro ainda teve que prometer aos gaúchos que iria à festa de aniversário de um deles, uma semana depois, mostrando que as amizades se constroem rapidamente na Casa Azul. Amizades repentinas e sinceras são consequências comuns da convivência em albergues. “Uma das minhas melhores amigas é de Belo Horizonte e eu conheci aqui, numa das primeiras vezes que vim para Porto Alegre. Passamos por uma situação parecida na nossa vida e nos aproximamos muito, o que continua até hoje”, conta Ana Alegretti, 26 anos. Na mesma noite que os amigos gaúchos combinavam festas com o estrangeiro, a paulistana, natural de Guarulhos, conversava animadamente com uma colega de quarto no alojamento feminino. “É meu último dia aqui no hostel, me apaixonei tanto por Porto Alegre que resolvi vir para ficar”, sorri. O emprego na capital gaúcha, Ana conseguiu por intermédio de amigos do Rio Grande do Sul, que conheceu em outro hostel, no Uruguai. “Tenho costume de viajar sozinha e foi assim que conheci meus amigos de Porto Alegre. Nisso os albergues ajudam bastante. Sem falar que sai muito mais em conta viajar ficando em hostels”, ressalta. Os diferentes estilos e personalidades que convivem em harmonia nos corredores do prédio atraem estrangeiros, brasileiros, gaúchos e porto-alegrenses. A Casa Azul é um local de pluralidade, presente desde a decoração do espaço – colorida e sempre em constante renovação, conforme os sócios voltam de viagens – até os hóspedes e clientes. Independente da idade ou do estilo, a Casa tem as portas azuis abertas para todos. 38 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2011


FOTOS ANA PAULA FIGUEIREDO

Além de administrar a casa, Murillo recepciona os hóspedes e clientes que vêm de várias partes do mundo

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alar sobre o hostel não era minha primeira opção. Sequências de desencontros e ‘probleminhas’ acabaram me levando à Casa Azul. Acredito que no fim foi melhor. O universo dos hostels é muito amplo e divertido. Por lá passam tantas histórias e personagens que penso que nenhum texto reproduziria de forma fiel essa pluralidade. Cada personagem daquela grande família em constante ampliação renderia um lindo texto de perfil. O clima familiar dificultou meu trabalho em alguns momentos. O gaúcho que não se importou em ficar horas conversando com um estrangeiro estranho não quis trocar algumas palavras comigo, a repórter. E a colega de quarto de Ana, cansada de ouvir a entrevista que fiz com a paulista resolveu tirar um cochilo antes que eu a entrevistasse. Mas não acordou até o horário que fui embora. A língua também se mostrou uma barreira complicada. Ao tentar entrevistar um rapaz da França que não falava português, a conversa não fluiu em inglês. Depois da pauta, estudar francês passou a figurar na minha lista de prioridades.”

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CAROLINA KAZUE


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Numa folha qualquer eu desenho um sol amarelo E com cinco ou seis retas é fácil fazer um castelo Toquinho


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O QUINDIM É UM DOCE PORTUGUÊS QUE FAZ A ALEGRIA DO BRASILEIRO PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2011 | 43

Texto de LUCIANA BOHN Foto de RAQUEL BITENCOURT


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receita veio de Portugal. O nome, da África. Quer dizer dengo ou encanto na língua daqueles que povoaram nossas terras. Em Portugal, o doce se chama brisa do lis, por ter sido criado na região de Leiria, banhada pelo rio Lis. Do lado de cá do oceano, tornou-se quindim. O original apresenta um degradê entre o fundo de amêndoa e o ovo, além de ser ligeiramente crocante. Até quase se sente o salgado da manteiga. Na parte superior, o ovo deve ser uma perfeita seda na boca, delicada e sensual. A receita da brisa do lis foi adaptada no Brasil. Saiu a amêndoa e entrou o coco, uma fruta africana que se adaptou bem por estas terras. Ao descrever o sabor de um quindim, já se pode notar as características do povo brasileiro. A multinacionalidade do doce é parecida com a do povo. Tem cores que formam um degradê, indo da pele mais clara à mais escura. A simplicidade da receita e a adaptação de um ingrediente são outras particularidades que lembram o jeitinho desse povo. Mas de onde veio tudo isso? Lá dos idos tempos de escravatura, quando as negras subiam para a cozinha da casa nobre e ensinavam às sinhás como preparar os doces que aprenderam antes de vir ao Brasil. Foram muitas receitas de doces trazidas ao nosso país pelos europeus. Curiosamente, a maioria delas era feita com ovos, ou melhor, com gemas de ovos. Mas e por que tantos ovos em tantas receitas de doces? Conta-se que as freiras utilizavam as claras para engomar os hábitos, e as gemas ficavam sobrando. As religiosas portuguesas, então, utilizaram a parte amarela do ovo para criar o que hoje faz a alegria dos brasileiros formiguinhas. Não é só de quindim que estamos falando. Nessa lista de sobremesas portuguesas com ovo entram também os frades, beijos de frades, lágrimas, doce de esperança, fatias de bispo, pudim princesa, sopa da rainha, papos de anjo, fios de ovos, baba de moça, ambrosia. Muitos dos nomes remetem à religiosidade das freiras, responsáveis pelas receitas que chegaram às nossas terras. Outra vertente diz que as filhas dos nobres portugueses iam aos conventos para estudar e levavam consigo as receitas de casa e aprendiam outras. Mas as freiras sempre foram guardiãs dessas receitas que, de alguma forma, acabavam escapando pelos muros dos conventos e tomando as ruas das cidades.

MISTURA DE SABORES

A mistura sempre foi o chão do brasileiro, e misturar sabores é o que se faz de melhor por aqui. Os restaurantes que mais fazem sucesso no Rio Grande do Sul utilizam o gênero Fusion Cuisine, que significa cozinha de fusão. Os chefs desses lugares utilizam, por exemplo, a cozinha japonesa e constroem

um prato típico com ingredientes de outros lugares do mundo. A notar pela história do quindim, por aqui sempre foi assim. As receitas longínquas chegam às terras verde e amarelas para trocar seus ingredientes e ganhar ainda mais sabor. Gilberto Freyre, um dos mais importantes sociólogos do século XX, tem uma frase que explica a época em que o açúcar entrou na vida dos nossos antepassados: “O açúcar refinou o paladar brasileiro, dando-lhe densidade histórica por intermédio dos doces e bolos”. Pois bem, se até mesmo os caprichos de uma cozinha de casa grande, da época da colonização, pode figurar entre os coadjuvantes da história do país, por que não pode ser o personagem principal da expansão da cultura? É uma pena que, naquela época, a maioria das senhoras era analfabeta e as receitas eram passadas no popular boca-a-boca. Não há receitas documentadas, por isso algumas acabaram por perder-se e hoje só se sabe como elas são feitas, mas não como surgiram. A chef pâtisserie Andreia Schein comanda, há dois anos, a cozinha do Foyer Nobre do Theatro São Pedro, em Porto Alegre e conta que retirou a receita de quindim do caderno de sua bisavó, Lili Paiva. Apesar de não ser dos seus doces preferidos, a chef Dea, como é conhecida, diz que a receita é simples, só que se deve tomar cuidado com o cozimento. O quindim deve ser assado em banho maria. Já o chef Felippe Sica é apaixonado pelo doce. Para ele, o quindim traz a lembrança dos verões no litoral norte, onde vendedores ambulantes passavam com caixas e mais caixas de doces trazidos de Pelotas. O chef, que é também consultor e professor de gastronomia, acredita que esses quindins de caixas são os melhores que se encontra pelo estado. Sica deixa ainda algumas dicas de como tem que ser cada parte do doce. O coco, por exemplo, tem que estar levemente tostado, nem branco e nem queimado demais. O creme de ovos tem de ser firme e macio e, de preferência, alto. O chef não gosta nem de pensar no seu doce preferido com a camada de coco maior que a de creme. O amarelo do quindim, segundo ele, indica se o ovo utilizado é caipira. Quanto mais amarelo, melhor. O brilho deve ser na medida certa. “Quindim que brilha muito contém glucose em demasia e fica pegajoso, grudento”, conta o apaixonado pelo doce. O sentimento é tão forte que o chef consegue notar a relação entre a gema e o açúcar na primeira mordida. “Essa relação, aliada à qualidade dos ingredientes, será determinante para um produto final de primeira.” O chef deixa uma interrogação. Quando será que um daqueles vendedores de doces irá bater à nossa porta com suas caixas cheias de quindins? Enquanto eles não chegam, vamos nos deliciar com a receita da bisavó da chef Dea. 44 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2011


QUINDIM DA LILI PAIVA INGREDIENTES: 12 a 16 gemas 1 coco ralado 500 g de açúcar 250 g de manteiga MODO DE PREPARO: Misture bem o açúcar com o coco até formar uma massa mole e úmida. Junte a manteiga e mexa. Deixe descansar na geladeira coberto com um filme plástico por 5 horas. Passe as gemas na peneira e incorpore-as à massa de coco. Deixe descansar por 30 minutos. Despeje a massa em forminhas individuais untadas e polvilhadas com açúcar. Disponha as forminhas em uma assadeira e ponha água quente até o meio das forminhas. Leve para assar em forno médio préaquecido até ficar firme. Desenforme frio e sirva.

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IMPRESSÕES DE REPÓRTER

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screver sobre algo que a gente gosta sempre é bom. A curiosidade aumenta, a vontade de ir atrás de informações e de pessoas conhecedoras do tema é grande. O trabalho deixa de ser uma obrigação e passa a ser um projeto pessoal. O meu trabalho surgiu com uma grande expectativa, eu iria descobrir muito sobre um doce que adoro. A expectativa tomou conta da pesquisa. Descobri curiosidades sobre o quindim e fiquei feliz de poder contar essas particularidades a quem lesse a reportagem. Mas com as entrevistas com fontes não fui feliz. Tive muita dificuldade para encontrar pessoas para entrevistar. Aparentemente, o doce, que veio de Portugal, apesar de ser um dos mais consumidos pelos brasileiros, não desperta tanto interesse assim. Pensei que optando por algo com o qual estivesse acostumada a trabalhar me daria melhor e poderia fazer um bom texto sem muitos esforços. Resultou em muito esforço, mas no final ele ficou bem como eu queria. Boa leitura!”


O AMARELO MAIS PESADO DO MUNDO 46 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2011


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O JOGADOR QUE VESTE A CAMISA DA SELEÇÃO NÃO CARREGA NAS COSTAS APENAS AS EXPECTATIVAS DE 190 MILHÕES DE BRASILEIROS, MAS AS DE 7 BILHÕES DE PESSOAS Texto de THAIS MACIEL e WILLIAM MANSQUE* Fotos de RAQUEL BITENCOURT PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2011 | 47

a bandeira, o amarelo evoca a riqueza mineral do Brasil. Uma grande diversidade de minerais podem ser encontrados no subsolo brasileiro — como ferro, alumínio, bauxita, manganês, ouro, entre outros. O país é um dos maiores exportadores de minérios do mundo. Mas é no rés do chão que o Brasil produz sua joia mais reconhecida no planeta: o futebol. Quase todo brasileiro teve, em algum momento da infância, o sonho do futebol. No seu jogo solitário, o pequeno artilheiro chuta a bola na parede e marca um golaço na final da Copa do Mundo. Ele já foi Pelé. Disse uma vez que era o Zico. Fazia gol imitando o Romário. Queria se parecer com o Ronaldo. Hoje tenta ser Neymar. No seu futebol particular, pode ser quem quiser. Até ele mesmo, por que não? É assim que os futuros craques começam a ser lapidados. A partir do momento em que o menino se imagina como jogador, independente do clube do coração em que ele sonhe atuar, sempre almeja o mesmo destino: Seleção Brasileira. O Brasil possui a seleção de futebol mais vitoriosa de todos os tempos. Cinco títulos mundiais, 20 conquistas internacionais oficiais e uma interminável lista de craques. Logo, a camisa de uma equipe tão vencedora tem uma representatividade enorme. A Seleção Brasileira vestia branco em 1950. Nesse ano, o Brasil perdeu uma Copa do Mundo em casa para o Uruguai por 2x1, de virada, quando um empate já bastava para o título. A partida final que aconteceu no Maracanã, diante de 200 mil pessoas, é considerada uma das maiores zebras da história. A camisa branca ficou marcada como a vestimenta do fracasso. Para livrar-se do estigma dessa derrota, a extinta Confederação Brasileira de Desportos promoveu um concurso, nas páginas do jornal carioca Correio da Manhã, para a escolha do novo uniforme da Seleção. O desenho vencedor foi feito por Aldyr Garcia Schlee, gaúcho nascido em Jaguarão.


Aldyr Schlee tinha 19 anos quando venceu o concurso da CBD e trabalhava como desenhista e caricaturista de jornais pelotenses. Foi premiado com um estágio no Correio da Manhã e uma quantia em dinheiro equivalente a R$ 20 mil. Ele não reconhece a atual camisa da Seleção Brasileira como criação sua. “Não é o uniforme que criei. Há uma faixa verde horrível na camisa. O goleiro se veste de preto como se estivesse de luto”, reclama. Depois do concurso, Schlee ganhou um prêmio Esso de jornalismo em 1963 e fundou o curso de Jornalismo da Universidade Católica de Pelotas. Como escritor, foi cinco vezes premiado com o Açorianos de Literatura. Sua ligação com a Seleção Brasileira termina com o desenho vencedor do concurso de 58 anos atrás, pois sempre torceu pela Seleção Uruguaia. De qualquer maneira, deixou um importante legado para o mundo do futebol. Com a camisa amarela, a Seleção Brasileira se tornou o que é hoje. Conquistou todos os seus títulos importantes. O futebol passou a fazer parte da identidade nacional. De acordo

com o jornalista inglês Alex Bellos, a camisa canarinho é o uniforme esportivo mais reconhecível no mundo. O publicitário Tiago Zili, 28 anos, presenciou essa distinção quando usava a camisa da Seleção Brasileira na época em que morou na Europa — França, Inglaterra e Itália —, de 2005 a 2008. Ele vestia uma vez por semana. Era uma forma de sentir-se mais próximo do seu país de origem. Zili afirma que a camisa é um símbolo pop. “É muito mais icônica do que qualquer outra camiseta esportiva. As vovozinhas que moravam em Preston (norte de Londres), os estudantes coreanos de Lille ou as punks da Via Prenestina, no leste de Roma, reconheciam prontamente que aquela era a camisa do Brasil”, conta o publicitário que hoje está fixado em Caxias do Sul. Quando morou em Portugal durante dois anos, entre 2007 e 2009, Felipe Mendes viajou para 25 países. Hoje no Rio de Janeiro, o assessor de imprensa de 26 anos foi abordado algumas vezes quando vestia a camisa canarinho na Europa. “O normal é haver uma abordagem respeitosa, o povo tem muito carinho pela seleção

e pelos brasileiros em geral. No máximo, havia umas brincadeiras — como na França, se não me engano em Nice, quando um francês passou de carro e gritou Zizou [Zidane]”, relata. Felipe salienta que a Seleção representa a expectativa de um bom futebol. “A camisa acaba materializando e simbolizando isso”, acredita. Segundo o jornalista, as cobranças com a Seleção Brasileira existem também por parte dos estrangeiros: “Sempre que o Brasil ganha, ficam felizes; se perde, querem entender o motivo e querem uma atuação melhor”.

DESBOTANDO

José Luiz Tavares Maciel, de Sapucaia do Sul, é um antigo aficionado pela Seleção Brasileira. Começou a acompanhá-la em 1970, quando seu pai comprou uma televisão para assistir aos jogos da Copa do Mundo daquele ano. De lá para cá, a admiração de José mudou muito. “A Seleção ficou muito exposta, muito banalizada. Os próprios jogadores escolhem os jogos que querem ir”, opina. Para o porto-alegrense Rafael Oliveira, 30 anos, deveriam acontecer mais jogos da Seleção aqui no

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país. “Quase não se realiza amistoso no Brasil, e falta um pouco de identidade com a Seleção Brasileira com o seu povo”, lamenta. O ídolo colorado Valdomiro concorda com Rafael, mesmo sem conhecê-lo. “Enfrentávamos as seleções mais fortes — como a Alemanha, Itália, Suécia etc. Hoje o Brasil joga com esses times que nem conhece”, se queixa o ex-jogador do Internacional.

VESTIR UMA NAÇÃO

Dez vezes campeão gaúcho e três campeonatos brasileiros pelo Internacional. É o mínimo que se pode sublinhar sobre Valdomiro Vaz Franco. Sua primeira convocação para a Seleção Brasileira aconteceu em 1972. Quando estreou com a camisa canarinho, o ponteiro-direito pensou: “Puxa vida, eu saí lá de Criciúma, das minas de carvão, fui para o Inter e hoje estou aqui na Seleção”. Participou da Copa do Mundo de 1974 e marcou um gol decisivo na partida contra a seleção do Zaire. “Foi um orgulho muito grande. Naquela época era muito difícil chegar à Seleção Brasileira. Tinha que jogar muito. Hoje qualquer um veste essa camisa”, diz Valdomiro. A notícia da primeira convocação de Tarciso, conhecido como Flecha Negra, foi justamente para uma Copa do Mundo, disputada na Argentina em 1978. No ano anterior, ele ganhara a Bola de Prata do Campeonato Brasileiro como melhor ponteirodireto. Era jogador do Grêmio. No dia em que seria divulgada a lista dos convocados para a Copa, estava assistindo a televisão com expectativa. Havia a possibilidade de seu nome ser lembrado. Estava junto da sua família. Era meio-dia quando Cláudio Coutinho, técnico da Seleção, anunciou os goleiros — e Tarciso se sentiu aflito. Zagueiros. Meio-campos. Mais ansiedade. “Quando chegou a vez da ponta-direita, o técnico falou Tarciso e Gil, do Fluminense. Foi um estouro. Nem ouvi que centroavante ele chamou depois”, lembra o atual vereador de Porto Alegre. “É um momento ímpar. O filme que passa na sua cabeça é aquele passado de lá atrás, quando estava PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2011 | 49

por baixo, batalhando. Você lembra quando, aos 11 anos, fez uma bolinha de meia e falava que ia jogar no Maracanã, e todo mundo ria. Esse filme passou na minha cabeça”, assim Tarciso descreve a sensação de entrar em campo vestindo a camisa da Seleção Brasileira pela primeira vez. Para o Flecha Negra, o valor da camisa canarinho nunca vai mudar. “Vestir a verde-amarela é teto máximo para o jogador. A emoção de ter essa oportunidade é a mesma desde 1900 e antigamente”, ressalta. Oscar, meio-campo do Internacional, confirma. Para o atleta colorado, foi uma carga maior ser convocado para a seleção principal, diferente de quando era chamado para defender as seleções de base. “É o sonho de todos os meninos que jogam futebol. O auge é estar na Seleção Brasileira, então, para mim, foi um sonho realizado. Você pensa nos seus familiares, seus amigos, e sabe que o Brasil todo está assistindo”, declara o jovem jogador de 20 anos. A camisa da Seleção Brasileira pode não ser mais a mesma que Aldyr Schlee desenhou uma vez. O nível técnico do futebol pode ter caído. Os ídolos não vivem mais no seu país de origem. As partidas só são disputadas no exterior. Quase tudo pode ter mudado. Contudo, o pequeno artilheiro continua chutando a bola na parede e dizendo que é gol do Brasil. A imponência da camisa canarinho permanece. Às vezes, ela entra em campo no lugar dos jogadores. Talvez um dia o amarelo da bandeira do Brasil seja atribuído a sua camisa. *Estagiário da Agência Experimental de Comunicação (Agexcom) da Unisinos (colaboração).

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ara cada entrevista, uma emoção diferente. Todos nós que participamos da confecção da revista PI, tivemos diversas situações a ser contadas. Não foi difícil para Tarciso e Valdomiro falarem sobre o momento em que vestiram a camisa da Seleção Brasileira pela primeira vez. As lembranças estavam vivas. Foi o ápice para os dois. Valdomiro ressaltou diversas vezes durante a entrevista o orgulho que sente por ter estado entre os melhores jogadores do Brasil de sua época. Tarciso ficou realmente emocionado ao recordar-se de quando estreou com a camisa da Seleção. Descrevia tudo com riqueza de detalhes. Parece que é algo que ele lembra todo dia quando acorda de manhã. Nesta reportagem, vimos o quanto uma peça de roupa pode evocar a nostalgia e ter tantos significados particulares. A camisa canarinho é polissêmica.


ANDRÉ ÁVILA


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Um dia um menino cego Tocou Violeta e viu E depois o surdo ouviu Chagas sumiram Curou-se o coxo Por obra e graça de santa Violeta de Belfort Roxo

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João Bosco


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A COR DO MISTÉRIO CONHEÇA MAIS SOBRE A RELAÇÃO DO ROXO COM AS RELIGIÕES Texto de LUÍSA STALDONI Fotos de BARBARA BAUER e JÚLIA KLEIN

BARBARA BAUER

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roxo é uma cor de contradições, é um meio termo. Uma indefinição misteriosa entre a sobriedade do azul frio e a energia do vermelho quente. Está entre o céu e a terra, entre a razão e a paixão. É uma cor muito rara na natureza. Poucos são os seres vivos que ostentam essa tonalidade. Somente em momentos bem específicos, como o nascer ou pôr do sol, ou até mesmo antes de uma tempestade podemos contemplar o roxo e seus tons. Para o estudioso das religiões padre José Ivo Follmann é exatamente esse caráter híbrido que torna o roxo misterioso e relacionado com aspectos espirituais e transcendentais: “Existe um quê de misterioso nessas colorações, que normalmente se manifestam na natureza em momentos indefinidos ou de prenúncio de alguma borrasca. Em geral são colorações mais raras, que naturalmente convidam à contemplação”. Em seu livro A Linguagem das Cores, o jornalista René Rousseau trabalha aspectos históricos das cores e relata que o roxo sempre foi um símbolo de poder e riquezas. Era utilizado, por exemplo, nos mantos púrpuras dos reis, como Alexandre, O Grande, que JÚLIA KLEIN

usava essa cor em suas audiências com outros líderes. Além de ser pouco usual, o pigmento era extraído de um molusco do mar mediterrâneo, chamado púrpura haemostona. Por ser um animal muito difícil de encontrar, esse molusco chegou a custar mais caro que ouro em algumas regiões, fazendo com que só os nobres pudessem comprar o pigmento roxo produzido dessa forma. São inúmeras as culturas e tradições religiosas que atribuem um caráter místico ao roxo. Na própria psicologia tradicional o roxo é costumeiramente relacionado à alma, à criatividade e ao mistério. O padre Miron Stoffels, do Santuário Padre Reus, explica que na Igreja Católica a vestimenta roxa é utilizada no tempo litúrgico do advento que é antes do Natal e da quaresma, antes da Páscoa. Além disso, também é usado em cerimônias fúnebres. Todas essas situações representam momentos de preparação para os católicos. “A cor roxa simboliza penitência, conversão e tristeza”, acrescenta Stoffels. O preto era empregado nessas situações até a década de 60, quando o Concílio Ecumênico Vaticano II substituiu a cor pelo roxo. Para os wiccanos, o roxo simboliza a espiritualidade de uma forma geral. Está ligado também a alguns Sabbats – festas comemorativas, que ocorrem ao longo do ano, relacionadas aos ciclos da natureza. Segundo a tradição wiccana, a ametista (que é roxa) é a pedra da espiritualidade. O chakra da coroa, que representa as questões espirituais, também é simbolizado pela cor roxa. A wicca é uma religião baseada em crenças ancestrais pré-cristãs, como os ritos celtas e nórdicos, e está classificada dentro do neopaganismo. A professora de história Liziane Ramos Zimmer, ou Erynn Dé Dannán, que é seu nome pagão, é coordenadora do grupo de wiccanos Irmandade da Floresta. Relata que o roxo está presente em algumas das importantes comemorações da wicca. “O roxo está ligado ao Sabbat de Samahain, que seria o dia das bruxas, que surgiu na Irlanda, comemorado como o dia dos mortos. É o dia em que o Deus pagão morre e que nós homenageamos nossos mortos. Também está ligado ao Sabbat de Ostara, a comemoração da primavera.”

O TOM DOS ESPÍRITOS

Em outras tradições, o roxo também deixa sua presença. No sincretismo religioso entre budismo e xintoísmo, que é crença mais seguida pelos japoneses, o roxo está presente nas vestimentas dos mortos em rituais fúnebres e em diversos utensílios relacionados aos espíritos. Na Tailândia, o roxo é a cor da viúvas. No esoterismo moderno, é a cor da iniciação espiritual. O Deus hindu Shiva e a Deusa Parvati são frequentemente representados na cor roxa. Entre nações indígenas brasileiras, o Ipê-roxo é conhecido como a “árvore divina” e era utilizado por esses povos como planta medicinal, que supostamente teria diversos poderes de cura. Durante a Segunda Guerra mundial, seguidores da religião cristã testemunhas de Jeová também foram alvo da perseguição nazista. Utilizaram um triângulo roxo como Padre Miron explica que, na Igreja Católica, a vestimenta roxa simboliza penitência, conversão e tristeza 54 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2011


FOTOS BARBARA BAUER

Erynn Dé Dannán diz que o roxo está presente em importantes comemorações wicca

seu símbolo de identificação dentro dos campos de concentração. Cerca de 2400 testemunhas de Jeová perderam suas vidas nos campos de concentração. Existe algum motivo especifico e definitivo para o roxo ser tradicionalmente ligado ao misticismo e a religiosidade? Não. Não existe um motivo único, mas uma junção de fatores. O que podemos ter certeza é que essa relação com o mistério parece bastante latente, nas mais diversas culturas, no ocidente e no oriente. Na umbanda, por exemplo, o orixá Nanã é associado a cor roxa. Nanã representa o fundo das águas, é o orixá das dimensões mais profundas da existência. Padre Follmann ressalta: “Nanã, no sincretismo religioso católico, é Santana, a velha avó de Jesus, mãe de Nossa Senhora, cuja vida é revestida de um grande mistério, pois era conhecida como estéril e ficou mãe em idade avançada.” Não ter uma resposta definitiva para esse questionamento somado ao fato de que existe uma dificuldade em definir o que é roxo - afinal são muitas tonalidades como o violeta, o púrpura ou lilás tudo isso consagra ainda mais o caráter misterioso dessa cor. Independente de ser realmente misterioso, mágico, híbrido, contraditório, ou não, o roxo se mantém presente e ativo no imaginário religioso da humanidade. PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2011 | 55

IMPRESSÕES DE REPÓRTER

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o inicio do semestre o desafio foi lançado: fazer uma matéria sobre a uma cor. Em um primeiro momento fiquei superanimada com essa possibilidade. Então logo escolhi a cor roxa e sua relação com o misticismo. Uma cor que eu adoro e um assunto que muito me interessa. Parecia perfeito. Eu tinha as fontes e tinha uma ideia do foco. Então, quando finalmente fui apurar as informações, começaram os contratempos. Duas das fontes tiveram problemas e não puderam participar da matéria. Com auxilio da professora Thaís, isso foi rapidamente resolvido, e eu pude prosseguir. Quando comecei a escrever a matéria de fato, percebi que falava mais sobre misticismo e menos sobre a cor em si, então tive que repensar o foco que eu estava dando e recomeçar. Por fim, percebo que essa temática das cores não foi uma escolha simples, mas rendeu um ótimo exercício de jornalismo, pois pude descobrir coisas novas sobre o roxo e sobre o misticismo. Tive a oportunidade de fazer ótimas entrevistas. Acredito que essas descobertas estejam refletidas no texto final, com uma proposta de trabalhar pequenos detalhes, que muitas vezes nem percebemos, e trazer novas informações e descobertas para os leitores.”


FEMINI

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ARIANNE VAN NOORDT / STOCK.XCHNG

NISTA

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CONHEÇA A LUTA DE ELIZETE DA SILVA, QUE DEFENDE OS DIREITOS DAS MULHERES HÁ 24 ANOS Texto de JULIANA BRIÃO Foto de DIERLI SANTOS Ilustração de ARIANNE VAN NOORDT


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ram exatamente 12h15min quando encontrei pela primeira vez Maria Elizete da Silva. Nunca havia ouvido falar dela antes do dia 21 de setembro, mas em menos de 24 horas já sabia que se tratava de uma feminista roxa. Elizete, como prefere ser chamada, me pareceu uma mulher muito simples logo de cara. Cabelos pretos lisos até os ombros, olhos pretos e redondos, pele morena, unhas compridas e vermelhas, três anéis em cada mão, dois nos anelares e um no polegar, brincos pequenos e simples. Comecei a conhecer Elizete aos poucos, a partir do play do gravador. Vi que ela não estava totalmente

Para Elizete, as mulheres não devem depender financeiramente de seus companheiros

confortável na situação de entrevistada, mas mesmo assim começou a me contar sobre sua vida. Ao longo dos dez primeiros minutos, mexia e remexia em um papelzinho branco no meio dos seus dedos. Papel esse que parecia ser de alguma campanha feminista, já que tinha um texto com letras roxas, e era cheio de imagens de bolsas e com o símbolo do feminismo na parte do verso. A moradora do bairro Rubem Berta, em Porto Alegre, me contou que entrou no movimento feminista há exatos 24 anos, em 1987, quando foi convidada por Glória Chiapeta, a líder da União Brasileira de Mulheres na época, para defender os direitos das mulheres. Elizete é enfática quando diz que a questão de as mulheres terem sua própria moradia sem depender do marido foi o carro chefe do seu interesse no movimento. Após esse primeiro contato, ela se apaixonou e não parou mais de tentar ajudar mulheres, que, assim como ela, acreditavam no movimento feminista ou que muitas vezes

somente precisavam de ajuda para enfrentar uma série de abusos pelos quais passavam. Elizete conta que em 1987, primeiro ano dela no movimento, a lei Maria da Penha não existia, fazendo, assim, com que a luta das feministas se tornasse mais árdua por não ter nada que garantisse o direito da mulher e a segurança das próprias engajadas. “Quando se começa nessa luta, não se para mais”, enfatiza Elizete, relembrando das várias dificuldade que passou junto ao movimento. Sem uma lei que protegesse as mulheres que sofriam com a violência, não havia respeito nem segurança. Mãe de Marx Alexandre, 22 anos, e orgulhosa do fato dele não se impor contra seus desejos como feminista, Elizete sorri ao lembrar que suas amigas sempre lhe deram força para ficar na luta. Foram elas que mostraram que ela era forte o suficiente para continuar o que já havia começado. Sua família não tinha muita ideia do que se tratava o movimento. E foi nele que conheceu Helen Monteiro, DIERLI SANTOS

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COM UNHAS E DENTES

Helen conhece Elizete há oito anos. A amiga a define como uma mulher guerreira que, mesmo separada e com um filho pequeno nos braços, saiu para trabalhar, lutar e estudar. Isso sem pensar muito no que iam dizer dela, nem nas dificuldades que ia enfrentar. Helen admira Elizete por nunca a ter deixado desistir e a fraquejar. Foi a única que estendeu a mão e fez Helen sempre voltar a acreditar no movimento. Para Helen, Elizete consegue manter a ternura mesmo nos momentos mais difíceis. Por mais que a própria se defina como chata e mandona, ela é a única que sabe xingar e aconselhar sem parecer rude ou desistir das pessoas. Para ela, Elizete tem o dom de saber usar as palavras a seu favor e reverter situações quase perdidas. Elizete defende o feminismo com unhas e dentes. O movimento começou no século XIX, como um movimento social, filosófico e político que tinha como meta os diretos iguais para homens e mulheres e defendia uma vida humana liberta de padrões opressores baseados em normas de gênero. Ao se tornar coordenadora da União Brasileira de Mulheres há alguns anos, Elizete, vivenciou a luta que grandes ativistas femininas tiveram antes mesmo de ela pensar em entrar no movimento. Como, por exemplo, as campanhas pelos direitos legais das mulheres pelos direitos de contrato, direitos de propriedade, de votar, de ter sua autonomia. Além disso, as feministas lutam para que as mulheres sejam reconhecidas como donas de seu próprio corpo. Nesse sentido, defendem direitos ao aborto e direitos reprodutivos, incluindo o acesso à contracepção e a cuidados pré-natais de qualidade. Existe também a preocupação com a proteção de mulheres e garotas contra a violência doméstica, assim como os direitos trabalhistas, incluindo a licença maternidade, salários iguais e a não discriminação. Uma das grandes preocupações de Elizete é conscientizar as mulheres de que elas não devem depender financeiramente de seus companheiros. Para ela, uma mulher que é independente, tem casa própria e carro e, quando casa, fica às custas do marido não é digna, pois não luta pelos seus direitos: “Quem faz isso, joga todo trabalho que vinha desenvolvendo por água a baixo, pois se acomoda”, argumenta. Elizete termina a entrevista me dizendo que entende que muita gente não concorde com o movimento, pois acredita que algumas feministas erram, quando argumentam como se tivessem nascido sabendo de tudo. Elizete é humilde ao afirmar que aprendeu muito durante esses 24 anos, mas tem muito a aprender ainda. Também sabe que verá muito mais casos quase impossíveis de resolver. Mas tem uma convicção: “Com amor e dedicação, para tudo há uma solução”. PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2011 | 59

ARIANNE VAN NOORDT / STOCK.XCHNG

sua colega de trabalho, por quem tem um carinho enorme, tanto que chega a encher os olhos de lágrimas quando resolve me indicar ela para que eu possa conversar para saber um pouco mais de sua vida.

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uando foi sugerido como o tema da revista “cores”, fui uma das primeiras que me interessei bastante, mas quando peguei a pauta sobre feminismo, confesso que achei que não iria render. Pensei primeiro na fonte, e depois em como fazer o gancho com a cor do tema por mais que o roxo seja a cor oficial do movimento. Ao conhecer Elizete, vi que nem tudo estava perdido, como estava achando desde o começo. Até porque minha primeira fonte caiu, mas Elizete foi uma substituta e tanto. Hoje acredito que melhor pessoa não haveria. Quando cheguei ao seu encontro, a primeira coisa que ela me perguntou, depois que me cumprimentou, foi: “está calor lá fora, menina? Por que essa manga curta?”. Assim, com um jeito espontâneo e como se me conhecesse há anos, Elizete me recebeu. Toda preocupada com seus erros e pedindo pra eu arrumar qualquer frase que ela tivesse conjugado errado, foi que eu vi que, para ser feminista, não basta somente seguir o movimento ao pé da letra. Tem que haver dedicação, humildade e paixão por tudo que envolve o tema, se não, não se é uma feminista de verdade.”


ANDRÉ ÁVILA


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Saio com a bola rolando me sacudo e vou sambando Pois eu sou a marrom E já nasci com esse dom Sempre sei o que faço Quando chego no pedaço nunca me dou mal Eu sei que sou bem musical

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Alcione


AS GURIAS DAS TRUFAS Texto de NATÁLIA VITÓRIA. Fotos de ANDRÉ ÁVILA, ANELIZE SAMPAIO e TAMIRES GOMES

DENTRO DE CADA RECHEIO DOS BOMBONS QUE VENDEM, TAMBÉM ESTÃO OS SONHOS DE DUAS JOVENS EM BUSCA DE UMA VIDA MAIS DOCE

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oram os maias e astecas que deram os primeiros passos numa descoberta saborosa. Tudo começou com o preparo de uma bebida feita com sementes extraídas da amêndoa do cacau. A iguaria era amarga e servida fria apenas para os nobres, sacerdotes e guerreiros. O sabor doce, resultado da mistura com açúcar ou mel, foi um incremento realizado quando o colonizador Fernando Cortez aterrissou em solo mexicano. A história desses povos é marcada por previsões e grandes descobertas para as futuras civilizações. Talvez o que eles não podiam prever é que a partir do cacau surgiriam várias delícias que conquistariam o mundo, como o chocolate. Com o passar do tempo, esse doce foi ganhando inúmeras formas e receitas. Deixou de ser um produto consumido somete por uma elite, popularizou-se, chegando às prateleiras de supermercados, padarias e bares. Seja em pó, em barra ou na forma de bombom, o chocolate tornou-se uma unanimidade. Duas jovens gaúchas fazem dessa unanimidade uma alternativa para engordar seu orçamento. Eliane e Katya vendem trufas, mas não é somente isso que possuem em comum. Cada bombom vendido por elas também carrega em seu recheio um pouco de seus sonhos.

AS GURIAS

Katya Kegler, 20 anos, mora em São Leopoldo, Rio Grande do Sul, e trabalha em dois locais. Além das responsabilidades adquiridas em seus empregos, ela mesma assumiu outra tarefa, pela qual recebeu o apelido de “guria das trufas do Xerox”.

Com apenas 15 anos de idade, começou a trabalhar atrás do balcão da central de cópias do Centro de Ciências da Comunicação da Unisinos. Atualmente, sua rotina de trabalho é dividida em dois turnos. Na maior parte do tempo, passa atendendo aos pedidos de alunos, professores e funcionários da universidade. Seu dia começa cedo, às 8h já está pronta para receber qualquer pedido de quem procure por determinado material ou precise realizar cópias e impressões. Às 16h30min, segue para o segundo emprego, também em São Leopoldo, numa prestadora de serviços, onde fica até a hora que tiver demanda. Em meio a correria do dia a dia, ela vende as trufas. Katya conta que o pai de um amigo é quem produz o doce, mas a ideia da venda partiu do namorado: “O pai do Mike tem uma fábrica pequena de trufas. Ele trouxe umas para eu comer, disse que era barato e perguntou se eu não queria levar pra vender”. Na primeira vez que vendeu na Unisinos, em setembro de 2011, ela pegou 20 unidades, que duraram apenas uma tarde. Até chegar nela, as trufas passam por outras mãos. Primeiro, elas são confeccionadas numa pequena fábrica em Campo Bom, depois são levadas por seu amigo para São Leopoldo, onde trabalha com o namorado de Katya, que recebe as trufas e as entrega para ela. Por dia, a jovem vende uma média de 20 unidades. 62 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2011


TAMIRES GOMES

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Ao contrário de Katya, que não sabe fazer o doce, Eliane prepara as trufas que vende durante a semana. A estudante de 28 anos, mãe de dois filhos, aprendeu a receita perguntando a uma colega, que também vendia trufas, e pesquisando na internet: “Ela me explicou por telefone como fazia, baixei alguns vídeos, fiquei olhando e fazendo. Claro, a primeira remessa não ficou muito boa, mas depois eu fui pegando o jeito e acerto até hoje”, conta. Natural de Camaquã, Rio Grande do Sul, a jovem residia na cidade de Arambaré, interior do Estado, e mudou-se para Porto Alegre para dar continuidade aos estudos. Ela cursa o sétimo semestre de Administração. Seus filhos ficaram com o pai, seu ex-marido, no interior. Eliane morava na capital com outra menina num apartamento. Como não pagava aluguel, em troca fazia a comida e realizava a limpeza da casa. Certo tempo depois, deci-

diu se mudar. Foi quando surgiu o convite para morar no atual apartamento, que divide com mais três pessoas. Feita a mudança, ela precisava arrumar uma maneira de aumentar o orçamento para pagar os custos com o aluguel. Então, teve a ideia de fazer trufas para vender. Os bombons são confeccionados em casa. Eliane faz o doce assim que chega da rua. Pela parte da manhã até o começo da tarde, a jovem se dedica ao estágio. O resto do dia, ela divide entre a produção das trufas, academia e o curso de administração.

A RECEITA

Se Katya nem imagina como é feito o doce, pois acredita “que dê um trabalhão”, Eliane desmistifica tal pensamento ao contar que faz tudo no micro-ondas, chegando a produzir, aproximadamente em três horas, cerca de 30 trufas. Inicialmente, Eliane derrete o chocolate em barra no microondas;

depois, forra as forminhas de plástico com uma camada do chocolate e leva ao refrigerador, onde deixa por alguns minutos. Depois, passa uma segunda camada de chocolate derretido e novamente coloca as forminhas para gelar. Enquanto as formas ficam gelando, ela prepara o recheio. O de brigadeiro, por exemplo, é feito com leite condensado, chocolate em pó e manteiga, também no micro-ondas. Nada de panelas. Por fim, recheia as forminhas e cobre com o mesmo chocolate derretido anteriormente, formando uma espécie de tampa. Após mais alguns minutos na geladeira, ela desenforma o chocolate e embrulha as trufas com papel filme ou alumínio. Apesar de uma saber a receita

Katya vende trufas durante seu expediente de trabalho ANDRÉ ÁVILA

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IMPRESSÕES DE REPÓRTER

e outra não, as duas já conquistaram uma clientela fixa sem precisar oferecer o produto diretamente. Katya deixa um pote com trufas ao lado do caixa da central de cópias. Eliane carrega o doce na bolsa, e, pelo fato de já ser conhecida, os próprios colegas perguntam se ela tem os doces. Os consumidores são pessoas que já faziam parte de suas vidas. A maioria é composta pelos colegas de trabalho, seguido dos amigos e familiares. Outra coincidência está no sabor da trufa mais vendida. A com recheio de brigadeiro é unanimidade entre os clientes das moças. Já entre elas as preferências se distinguem. Eliane gosta da de brigadeiro e Katya prefere a que é recheada com confeitos coloridos, popularmente conhecidos como “MM´S”. A venda dos bombons rende para as jovens de R$ 200 a R$ 300 por mês. Além de ambas venderem trufas para aumentar a renda ou fazerem o chamado “pé de meia”, as duas não têm planos de fazer da venda um negócio mais sério. Eliane quer um emprego fixo para trazer os filhos para Porto Alegre e depois pretende realizar uma pós-graduação. Katya quer cursar oceanografia em Rio Grande e, antes, pretende fazer um mergulho e conhecer o fundo do mar. Desejos que não embalam somente suas trufas, mas suas vidas.

• A lguns filólogos, estudiosos de idiomas, afirmam que o nome chocolate tem origem asteca e vem de Xocolatl (xococ = amargo e atl = água); • Em 1849 surgiram os primeiros chocolates em barra; • A mais antiga fábrica de chocolates do Brasil foi fundada no Rio Grande do Sul pelos irmãos, imigrantes alemães, Franz, Ernest e Max Neugebauer, e o sócio Fritz Gerhardt, em 1891; • A origem da trufa está atribuída a um erro do chef patissier da corte austríaca, no fim do século XIX. Preparando uma das sobremesas para o banquete em honra de um príncipe russo, uma falha fez com que ele inventasse a trufa de chocolate; • A s trufas de chocolate ganharam este nome devido sua semelhança com a trufa, ou túbera, que é um tipo de fungo subterrâneo que se desenvolvem nas raízes de certas árvores.

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uando escolhi a pauta sobre chocolate para fazer referência a cor marrom, tinha apenas duas certezas. Primeiro não queria que essa fosse mais uma reportagem que mostrasse as fábricas de chocolate ou que contasse como o doce era feito. Também não queria falar sobre os loucos por chocolate, conhecidos como “chocólatras”. Sempre achei as histórias de vida das pessoas algo interessante e fui atrás disso para fazer a matéria. Sei que a procura por cases nem sempre é algo fácil. Mas não precisei procurar muito para encontrar Kátya e Eliane. O medo maior era que as entrevistas não rendessem. Na hora de produzir a pauta, tem-se a expectativa de que o entrevistado seja alguém que fala bastante, mas muitas vezes, chega no dia da entrevista e a fonte fica intimidada, afinal todo repórter acaba sendo um intruso. No entanto, tive sorte disso não ter acontecido. A maior dificuldade mesmo foi entrevistá-las sem atrapalhar suas vidas tão corridas. No final, as meninas não precisaram mudar sua rotina, pois ali estava a história que procurei, coube a mim observar o dia a dia delas.”

Eliane prepara as trufas em casa e vende para seus colegas de trabalho ANELIZE SAMPAIO

CURIOSIDADES

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RAQUEL BITENCOURT

SETE PALMOS DE TERRA NO CAMPO SANTO DO CEMITÉRIO SANTA CASA SÃO FEITOS OS SEPULTAMENTOS GRATUITOS PARA AS FAMÍLIAS QUE NÃO TÊM CONDIÇÕES DE ARCAR COM OS CUSTOS DE UM FUNERAL Texto de CARINA MERSONI Fotos de PRISCILLA PILLETTI e RAQUEL BITENCOURT

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ilhares de cruzes estão fincadas sobre sepulturas rasas em um terreno nos fundos do Cemitério Santa Casa, na colina da Azenha, em Porto Alegre. Lá não há jardins com gramados, ciprestes ou cercas vivas, nem estátuas de anjos e calçadas para passeio, muito menos jazigos com letras douradas, epitáfios e fotografias emolduradas. No Campo Santo, onde é feito o enterro dos pobres, há apenas o mato rasteiro, que cresce livre entre os muros brancos. A paisagem é efêmera: a terra que se abre para acolher a morte mancha de marrom o cenário esverdeado. São cerca de quatro mil sepulturas que abrigam cada corpo por três anos, para depois dar lugar a novos enterros, quando os restos mortais vão para ossários. Os sepulcros recebem cruzes de ferro pretas, com números gravados em branco que determinam a ordem. É como se elas sinalizassem as cabeceiras dos caixões, que estão lado a lado sob o chão. No solo aparentemente liso, marcas retangulares, afundadas ou salientes, e até buracos em pontos ocos, indicam que a terra assentada sobre os mortos não volta mais ao nível certo. Entre as ervas, picões pretos aderem à roupa de quem atravessa o Campo, onde covas abertas mostram com dureza o fim de um ciclo. Remexida, a terra é sinal de morte, mas também gera vida. O revolver do solo e a insolação favorecem o surgimento dos malmequeres amarelos, que florescem entre densas folhagens e exalam discreto perfume ao tocar do vento, um contraste com as flores plásticas desbotadas e embrulhos onde os buquês já secaram. Na terra fofa, formigas-carregadeiras levam folhas verdes PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2011 | 67

e joões-de-barro trabalham para a construção de ninhos. Pombas rolinhas ciscam no chão e o silêncio é quebrado pelo canto dos pássaros e o arrulhar dos pombos. Funcionário da equipe de manutenção do Cemitério Santa Casa há 29 anos, José Ivo Gomes Torbes, 61 anos, se acostumou à função, mas confessa que ainda se sensibiliza quando cobre de terra os caixões sob o olhar de lágrimas dos familiares, principalmente se forem crianças. Ele conhece bem as diferenças entre os dois extremos do cemitério, especialmente o tempo de velório, que na área paga chega a 24 horas e no Campo Santo é de apenas 20 minutos. Há pouco tempo de despedida para quem parece se despedir ainda em vida. Um cachorro arisco caminha assustado pelos sepulcros e sobe até a parte mais alta do terreno, onde solta uivos longos. José comenta que os cães chegam ao local com as famílias, em alguns casos acompanhando o enterro dos donos. Permanecem alguns dias e vão embora. Esta cova em que estás com palmos medida É a conta menor que tiraste em vida É de bom tamanho nem largo nem fundo É a parte que te cabe deste latifúndio Trechos da música “Funeral de um lavrador”, composição de Chico Buarque de Hollanda e João Cabral de Mello Neto, expressam bem a realidade do Campo Santo, junto à frase em latim registrada na entrada principal do Cemitério, “Volta ao teu lugar”. A área de enterros gratuitos, cerca de um quarto do total de 10,4 hectares, recebe entre 65 e 70 falecidos por mês, número que já chegou a 100. Depois de três anos, caso a família continue sem condições financeiras, os restos vão para um ossário conjunto, para que a instituição possa continuar a atender às pessoas carentes. Desde a fundação do Cemitério, em 1850, a Santa Casa de Misericórdia exerce um papel social de auxiliar os necessitados também na morte. No início, as terras recebiam os corpos dos escravos, que eram sepultados separadamente. Com o passar dos anos, outras entidades passaram a fazer enterros gratuitos e também a doar caixões. O líder de equipe do Cemitério Santa Casa, Christian Silveira, diz que a instituição não consegue manter o Campo Santo com uma estrutura semelhante à parte paga devido aos custos, mas destaca que não há diferenças no atendimento às famílias. Se-


PRISCILA PILLETTI

gundo ele, o objetivo é conceder um sepultamento digno, independentemente da classe social. Exemplo disso é a construção há dez anos da capela para os velórios, que antes não aconteciam. Muitos corpos são velados em comunidades, outros vem do Instituto Médico Legal (IML) ou de hospitais onde já estão há dias e por isso os caixões não são abertos, nem os familiares querem esperar mais pelo enterro. Não é cova grande, é cova medida É a terra que querias ver dividida É uma cova grande pra teu pouco defunto Mas estarás mais ancho que estavas no mundo Uma área de terra de 1,10m por 2,20m na ala nobre, onde estão pessoas famosas como Teixeirinha e Borges de Medeiros, chega a custar R$ 30 mil. Para quem tem muitos bens, é importante ostentar a riqueza também no cemitério: uma família chegou a comprar seis lotes desses e construiu um mausoléu avaliado em R$ 1 milhão. A aquisição de menor valor para caixão é a gaveta comum, cerca de R$ 6 mil. Os aluguéis anuais custam no mínimo R$ 700 e as opções mais baratas são os nichos, que servem apenas para os restos, depois de três anos. Esses valores são o que a auxiliar de cozinha Lourdes Zuleica da Silva Medeiros, 39 anos, chama de “salgados”. Ela aguardava no Campo Santo, com o namorado Luiz Antônio dos Santos Pinto, a chegada do corpo do sobrinho de 35 anos, falecido há quase dois dias, vítima de tuberculose. O rapaz era deficiente, não

tinha o corpo desenvolvido da cintura para baixo e caminhava com o apoio das mãos ou de muletas. Órfão de pai e mãe, morava com a tia há mais de 15 anos, já que os irmãos vivem afastados. Lourdes foi quem sempre deu amparo ao sobrinho, mesmo agora que mora de aluguel. Porque, como se não bastassem as dificuldades, ela, que vive com três filhos e um neto, teve a casa consumida por um incêndio, do qual só conseguiu salvar a vida. Desempregada, como a filha mais velha, Lourdes luta para construir um novo lar, onde já estava garantido um quarto para o rapaz. “O terreno não é muito grande, mas dá para botar a casa em cima e viver.” O Campo Santo, para ela, que temia o enterro do jovem como indigente por não ter como pagar, foi a salvação. No dia anterior, comprou um traje e, com a ajuda da irmã, vestiu o sobrinho. Como ele foi internado sem documentos, precisou ainda procurar o Cartório de Registros para conseguir a certidão de óbito. Depois de tanta correria, acordou cedo para ser a primeira atendida naquela manhã pela assistente social e garantir o enterro do rapaz. Outros parentes nem foram avisados. “Nem sei se viriam. Se quando estava vivo não queriam procurar ele, acho que agora eles não iriam se abalar”, diz. Quando o corpo chegou, ela e o companheiro velaram por alguns minutos o caixão fechado, de madeira simples e lisa com alças que reluziam discretamente. Na cova pronta, funcionários o cobriram de terra, fincando a cruzeta ao final. Enquanto Lourdes ainda chorava à beira do sepulcro, ecoava pelo cemitério o ruído da limpeza das pás, sujas de terra. Agora, Lourdes espera 68 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2011


PRISCILA PILLETTI

ter condições de pagar um espaço para o sobrinho quando acabar seu tempo no Campo Santo. É uma cova grande pra teu defunto parco Porém mais que no mundo te sentirás largo É uma cova grande pra tua carne pouca Mas a terra dada, não se abre a boca Agachada no chão, uma mãe de 43 anos chora a morte do filho, assassinado aos 18 por gangues do tráfico. O sepulcro já tem mais de um ano, mas não há vegetação rasteira, apenas a terra remexida, que ela agarra e comprime na mão, sentindo esfarelar e esvair entre os dedos. No Campo Santo não é permitido instalar lápides, mas ela improvisou algumas pedras para deixar em pé uma foto já desbotada, algumas flores e uma vela acesa. O jovem, viciado em drogas, fugiu da Febem, para onde foi levado após cometer um assalto, e acabou sendo alvejado por seis tiros no morro onde morava. A mãe afirma que o alvo dos criminosos era outro rapaz, que o obrigou a trocar de roupa com ele, sabendo que seria identificado e morto. A mulher, solteira, tem outra filha e trabalha desde os 12 anos. Gari, ela varria as ruas, voltava para casa só à noite e, do pouco que acompanhou do crescimento do menino, diz não ter percebido que ele usava drogas. Quando soube, já era tarde. Na Febem, incentivava o filho a cumprir a pena, pensando que ele poderia construir uma nova vida depois. Mas as drogas eram um caminho sem volta. Na noite em que foi morto, ele pediu dinheiro para comprar cigarro e foi ao bar. Ela pretendia entregá-lo à Febem no dia seguinte. A mãe só lembra de sentir um pressentimento ruim, tomar água com açúcar e deitar. Da cama, ouviu os tiros. No sepulcro, a mãe lembra os tormentos que passou quando o filho roubava dentro da própria casa e ela chegou a construir um quarto para ele do lado de fora. Com os olhos cheios de lágrimas e a voz trêmula, conta que fez registro na polícia. “Eu não aguentava mais, não dormia. Falaram que pegariam ele, mas nunca pegaram. Um dia me ajoelhei e disse para Deus ‘que a polícia pegue ele porque eu não aguento mais ver os outros judiando dele, fazendo ele roubar de mim, dos outros’”, desabafa. Quando o rapaz foi preso em um assalto, a mãe ficou um mês sem visitá-lo, em sinal de castigo. “Ele dizia ‘eu estou sofrendo, a senhora está sofrendo, se eu sair daqui e não me endireitar, vou me matar, não quero mais viver’”, lembra. Pelo menos uma vez por mês, no dia de folga do trabalho, ela pega dois ônibus para ir ao Campo Santo, onde a dor do coração de mãe permanece insepulta. “Fico conversando, rezando para ele ficar em paz. Ele sabe que não era para ele, então acho que o espírito fica vagando. Mas não gosto muito de vir aqui, a gente sofre muito, porque eu não vou ver ele, não vou sentir ele. Esses dias eu vim aqui, tinha uma mãe enterrando três filhos, de 13, 15 e 18 anos”, conta a mulher. Para algumas histórias, não há protagonistas. O veículo que transporta os caixões leva até a capela uma pequena unidade, com uma criança que já nasceu sem vida, e o aviso é de que a família não chegará, já que a mãe teria rejeitado o bebê. O coveiro coloca o caixão embaixo do braço e sobe o morro em direção ao espaço destinado às crianças. Mais uma mancha marrom se forma na paisagem verde do Campo Santo. PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2011 | 69

Lourdes Medeiros chora sozinha a morte do sobrinho de 35 anos, vítima de tuberculose

IMPRESSÕES DE REPÓRTER

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inha expectativa era grande na manhã de segunda-feira em que encontrei a fotógrafa Lorena e nos dirigimos ao Cemitério Santa Casa. Cruzamos a ala nobre e a popular e podemos avistar o grande terreno onde estão fincadas milhares de cruzes numeradas, o Campo Santo. Partimos para uma incursão naquele cenário onde sentíamos a morte tão presente. Caminhamos sob um sol escaldante, sentimos com desconforto a terra fofa sob os pés, observamos de perto as covas abertas. Nunca havia me imaginado sentada a aguardar por um sepultamento, mas nossa espera foi em vão. Na quarta-feira, retornei com a fotógrafa Priscila e pude acompanhar enterros e conversar com familiares. Desta reportagem, levo duas grandes lições: a de sempre lembrar o quanto a vida é frágil e a de que para sermos bons repórteres precisamos estar muito perto daquilo que pretendemos contar, uma aproximação não somente física, mas também emocional.”


ANDRÉ ÁVILA


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Venha sem chão me ensina a solidão de ser só dois Depois te levo pra casa Que o teu laranja é que me faz ficar bem mais

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Maria Gadu


SER LARANJA É LEGAL 72 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2011


LORENA RISSE

POR UMA MUTAÇÃO GENÉTICA, 1% DA POPULAÇÃO MUNDIAL TEM OS CABELOS DE FOGO. CONHEÇA UM POUCO MAIS DE COMO É SER RUIVO Texto de LORENA RISSE Fotos de LORENA RISSE e BEATRIZ MROSS

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eu nome é Felipe Soares Spiess, 22 anos, libriano, de Porto Alegre, ruivo.” Madeixas compridas, encaracoladas e com um laranja absoluto que dá vida ao branco da pele. Algumas pintinhas enfeitam o rosto que hoje está com uma barbixa com o mesmo laranja absoluto dos cabelos. Essas características são essenciais para que ele seja reconhecido em meio à multidão de gaúchos curtindo o sol de domingo na Redenção, parque aberto localizado em Porto Alegre. A entrevista foi marcada com ele por um bom motivo: fazer o primeiro encontro de ruivos na capital gaúcha. No Rio de Janeiro, onde Felipe mora, já são realizados movimentos para instituir o 7 de setembro como sendo o dia dos ruivos, assim como já acontece na Holanda. Nas terras fluminenses, quem iniciou com o projeto de reunir ruivos foi a fotógrafa Virgínia Nuñes. Segundo ela, o que é incomum sempre lhe chamou atenção, e os ruivos por si só já são incomuns. “O projeto V Project_RedHead busca retratar com naturalidade ruivos de todas as idades, ressaltando suas características”, conta Virgínia. O projeto já passou por São Paulo e pelo Rio Grande do Sul e busca patrocínio para encontrar mais ruivos pelo Brasil. Nas terras europeias, o festival de ruivos acontece na cidade de Breda e busca reunir cabeças alaranjadas e vermelhas para um momento de celebração. Aqui no Brasil, por enquanto, o dia dos ruivos ainda está apenas nos planos de Felipe, mas o Redenção Laranja e Vermelha, como foi chamado o encontro, rendeu a participação de dez ruivos. A história que é comum entre todos eles é sobre a infância e os apelidos que surgiam pela coloração do cabelo e pelas pintinhas, as sardas, comuns em ruivos. Quando pequena, a alaranjada Sibeli Costa, 22 anos, passou por rejeição na escola. “Ninguém quer sentar com uma criança ruiva na escola, porque tu tens alguma coisa que não é normal”, revela. Era chamada de ferrugem, prego, sardenta e outros apelidos. Hoje acha que o preconceito diminuiu, mas ainda existe. “Fomos muito sozinhos, rejeitados. Hoje nem tanto, e temos a necessidade de mostrar pro mundo que nós existimos.” Para ficarem mais próximos de outros ruivos, são comuns comunidades na internet, onde eles se comunicam, se conhecem mais e descobrem como é ser ruivo para os outros. Dos dez ruivos que estavam na Redenção, quatro eram membros da comunidade Ruivos Mania no Facebook. Além dessa, Taiana de Castro, 26 anos, fez a sua própria comunidade. Ela se chama Ruivos, Lindos, Loucos e Inteligentes. Essa vontade de encontrar outros dos seus chama muito atenção, já que não é comum morenos, por exemplo, se procurarem em redes sociais e nas ruas, mas, segundo os ruivos, essa é uma tendência natural que surge pelo fato de eles serem incomuns. “Os outros não fazem isso porque têm o convívio com outros iguais. Eu não tenho. Então tenho essa necessidade de conhecer”, diz Taiana. Eles têm razão em dizer que são incomuns. O que mais se escutou nos anos 2000 sobre os ruivos foi que eles seriam extintos. Segundo estudiosos, até 2060 os portadores do gene recessivo, que dá a característica


BEATRIZ MROSS

Ter uma criança ruiva na família não é fácil. A probabilidade é de 4 a 8 portadores do gene ruivo em 10 mil indivíduos da cor alaranjada ou vermelha para os pêlos do corpo e cabelos, não existiriam mais. Isso se deu pela diminuição em escalas da população ruiva no mundo, que este ano está por volta de 1%. A região do mundo que mais concentra ruivos é o Reino Unido. A Escócia e a Irlanda têm aproximadamente 8% da sua população com as madeixas alaranjadas. Então quem quiser ter um namorado ou namorada ruivo, pode se mudar para lá que tudo fica mais fácil. Será? O biólogo e coordenador do curso de Biologia da Unisinos, Vitor Hugo Valiati, explica que estudos recentes apontam para variações nas sequências do gene MC1R como responsável pelo fenótipo ruivo. Nesse gene existem 65 alelos identificados que são associados à “ruivisse”. As possíveis combinações entre eles resultariam em ruivos de diversas tonalidades, desde os mais avermelhados para o mais alaranjados, como os desta reportagem.

A probabilidade de ter um filho ruivo é muito pequena, tão pequena que o maior banco de esperma do mundo, o Cryos (na Dinamarca), não aceita mais esperma de pessoas ruivas. O motivo? A procura é muito pequena e não há necessidade de armazenar muitos litros. Os únicos casos em que realmente o sêmen de ruivos é procurado acontece quando um dos parceiros também é ruivo, e mesmo assim é raro. Trata-se mesmo de uma loteria genética. Poucos dos ruivos entrevistados têm outro ruivo vivo na família, apenas Gabriel é uma exceção, tem mais 10 parentes ruivos, uma frequência incomum. No caso de Felipe, por exemplo, o pai é negro e a mãe loira. Quem iria imaginar que ele nasceria assim, ruivo? O professor Vitor Hugo explica que a dificuldade surge pelo gene ser recessivo. “No caso de Felipe, do casamento de um negro e um branco resultar em um ruivo, só ocorreu porque os dois pais eram heterozigotos, ou seja, cada um deles é portador de uma destas variantes não-funcionais ou com função diminuída. Assim, a probabilidade deste nascimento é de 25% a cada gestação neste tipo de acasalamento”, explica. Mas só é “simples” assim porque no

caso de Felipe os dois pais compartilhavam do gene. E quem não compartilha? “Considerando tais ocorrências, devemos esperar entre 4 a 8 portadores (heterozigotos) de alelos para a condição de ser ruivo a cada 10 mil indivíduos na população mundial. Já nas regiões europeias, esse número pode chegar a sete ruivos a cada mil indivíduos. Por isso que nessas regiões há maior probabilidade do encontro de dois heterozigotos e a nascimento de crianças ruivas. Além da peculiaridade no ramo da genética, os ruivos estão envolvidos em um universo cheio de superstições e em um passado também muito incomum. Na Idade Média, por exemplo, as mulheres que possuíam os cabelos alaranjados ou vermelhos eram cassadas e acusadas de bruxaria. Há indícios de que no Egito as crianças que nasciam ruivas eram mortas, pois a cor vermelha era associada à Seth, um deus com os cabelos vermelhos que representava a violência, a desordem, a traição, o ciúme e a inveja, só coisas negativas.

HUMOR LARANJA

Tem gente por aí que se sente tão excluído e atingido por essa onda de pre74 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2011


conceito histórica que resolveu combater isso tudo com uma das armas mais famosas da história, a arte. Uma peça de teatro intitulada Os Ruivos aquece os palcos brasileiros. Com um roteiro que fala sobre a discriminação e possíveis direitos que os ruivos poderiam ter, a peça conta com todos os integrantes ruivos. Entre as ideias do grupo estão reivindicações bem humoradas que só lendo para acreditar (ver quadro abaixo). Bom, uma coisa é certa sobre os ruivos: eles estão mais vivos do que nunca. São unidos, fazem suas mobilizações pela internet por meio de fotografia, texto e de teatro. O preconceito ainda existe, isso é verdade, mas existe também contra negros, índios, brancos. O que se sabe é que, mesmo com todo esse cenário de apelidos e bullying, tem muita gente que gasta para ter um cabelinho de fogo como aqueles. Nos salões, o ritual para ter os cabelos rui-

vos varia para cada mulher e para cada cor de cabelo, mas o que mais acontece é a descoloração total do fio e depois a aplicação do tonalizante ruivo. A cineasta gaúcha Renata Heinz é uma das mulheres que quer desfilar por aí com esse ar diferente que o cabelo alaranjado proporciona. É ruiva por opção. “Uso ruivo natural por vontade de mudar, acho que sempre me encantei por cabelos cor de cobre, por aquelas atrizes de cabelo ruivo, crianças ruivas. Acho lindo”, revela Renata. E ainda complementa: “Pessoas ruivas parecem ‘solares’, acho que eu estava precisando de uma energia extra. Nunca me senti loira, já ruiva estou bem à vontade”. Se eles não fossem tão incomuns assim, não seriam fascinantes. É como Renata diz: “Ser diferente é bacana”, e como eu digo, depois desta reportagem, no final das contas, ser ruivo é legal.

RUIVOS UNIDOS

Veja as reivindicações bem humoradas do Movimento Vermelho, apresentadas na peça de teatro Os Ruivos: • Meia entrada em consultas de dermatologistas, afinal freqüentam muito o consultório médico para cuidar da pele • Filtro solar fator 280 para ajudar ainda mais na prevenção do câncer de pele, o qual estão mais propensos • Inclusão do ruivo no censo do IBGE, já que hoje só são contabilizados negros, pardos, índios, brancos e amarelos • Eleger um presidente ruivo. Os Estados Unidos já elegeram um negro, o Brasil uma mulher. Por que não um ruivo? • Cotas nas universidades para ruivos • Um jogador ruivo na Copa de 2014 • Ferrugem como mascote das Olimpíadas de 2016

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empre tive grande admiração por ruivos. Quando recebi a pauta não foi difícil pensar no foco: a beleza deles era o que brilhava no assunto. Minha obsessão era tamanha que andava pela rua procurando cabeças alaranjadas e quando encontrava, dava um jeito de puxar papo para saber mais de como era ser ruivo. Cada vez que falava com eles, descobria uma curiosidade e sempre ouvia suas lamentações sobre o preconceito que os rondava desde a infância e que muitas vezes faziam com que eles quisessem ter uma aparência diferente da que tinham. Quem diz que redes sociais não ajudam na hora de fazer jornalismo, se engana. Foi lá que encontrei o case da reportagem, e que case. Um gaúcho que hoje mora no Rio de Janeiro e que, assim como muitos ruivos no Brasil, faz parte de iniciativas para a afirmação dos mesmos. Conheci pessoas engraçadíssimas, vi pessoas lindas, aprendi muito e, com certeza, minha vontade de ser ruiva aumentou muito mais. Pena que nasci morena, mas quem sabe, se um dia tiver um filho, a loteria genética não me presenteie com um de cabelos de fogo. Não seria nada mal.”

Para Felipe e Sibeli, ser ruivo só se tornou um fato positivo depois da chegada da adolescência FOTOS BEATRIZ MROSS

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IMPRESSÕES DE REPÓRTER


OS GARIS

A COR LARANJA DOS UNIFORMES CONTRASTA COM A INVISIBILIDADE SOCIAL DOS TRABALHADORES MANTENEDORES DA LIMPEZA URBANA

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CAROLINA KAZUE

EXISTEM Texto de LIANE RODRIGUES Fotos de ANA PAULA FIGUEIREDO e CAROLINA KAZUE PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2011 | 77


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profissão surgiu quando um empresário francês chamado Aleixo Gari assinou um contrato para organizar o serviço de limpeza das ruas da cidade do Rio de Janeiro, em meados de 1816. A origem do nome gari foi uma homenagem àquele que na história ficou conhecido pelo destaque no desempenho de seu trabalho. Desde então, a cor laranja do uniforme dá um contraste curioso à invisibilidade social dos trabalhadores que, com seriedade e dedicação, desempenham sua jornada de trabalho. Sacrifícios à parte, faça chuva ou faça sol, lá estão eles pelas ruas das cidades. Em Porto Alegre, são cerca de 1.495 servidores próprios do Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU) e mais de 1.700 funcionários vinculados a cooperativas e empresas contratadas, segundo dados da instituição. O trabalho dos garis é mais do que a varrição de ruas. A limpeza de praças e parques, o recolhimento dos lixos de vias públicas, de residências, indústrias e edifícios comerciais e residenciais também dependem deles. Além disso, capinam a grama, lavam e desinfetam alguns locais específicos. A falta

ANA PAULA FIGUEIREDO

de reconhecimento sobre a importância do trabalho realizado pelos garis gera por parte da população frequentes casos de discriminação e preconceito. Para a auxiliar administrativa da Cootravipa Ema Elisabeth Bender Borowsky, 55 anos, que trabalha há 19 anos no local, a cooperativa é um tipo de mãe brasileira, pois não há distinção entre as pessoas. O nome de princesa contrasta com as duras atividades que Ema desempenhou ao longo de sua vida no ramo. “Existe aqui um lado social, pois são acolhidas muitas pessoas. Todos aqueles que são marginalizados pela sociedade. Mesmo com as dificuldades, é preciso ter jogo de cintura para lidar com tanta gente diferente.” De acordo com a funcionária, ao ingressarem no serviço, os candidatos assistem a uma palestra e, dependendo da situação, são encaminhados para apoio psicológico. Na oportunidade são exploradas questões reflexivas de cunho social na tentativa de uma maior aproximação com os novos funcionários. A cooperativa oferece cursos com o objetivo de desenvolver a prática das atividades e de qualificar aqueles que mais se destacam no trabalho, mantendo, assim, a motivação de seus trabalhadores. “Já trabalhei em várias seções, tive a oportunidade e aproveitei. Apesar de não gostar de acordar cedo para vir trabalhar, depois que chego não tenho vontade de ir embora”, conta Ema. Gari há apenas 15 dias, Luciene da Costa Rosa descansa na esquina democrática, localizada no centro de Porto Alegre. Nos seus quinze minutos de intervalo faz um verdadeiro desabafo: “Esses dias estava na Avenida Borges de Medeiros e um senhor me xingou porque a vassoura encostou nele. A gente sai de cabeça baixa para não se incomodar”, afirma. Luciene lembra que os garis é que mantém a cidade limpa. “Mas o povo não colabora com a gente. Se colocassem o lixo no lixo, aí melhoraria tudo pra nós e pra eles.” Solteira e com quatro filhos para criar, diz que quer melhorar sua casa. O pouco que recebe por mês, cerca de R$ 600, serve para sustentar a família. “Quero mobiliar minha casa para criar meus filhos. Eu vou chegar lá.” Os sonhos de Luciene são semelhantes aos de muitas mulheres que trabalham como gari. Não existem números comprovados, mas a estimativa é de que a maioria dos (ou seria, atualmente das?) garis sejam do sexo feminino.

QUEBRA DE PARADIGMAS

A cooperativa Cootravipa foi fundada há 27 anos pelo movimento comunitário das vilas da Zona Sul de Porto Alegre. A ideia nasceu da necessidade de dar trabalho e acesso à saúde pública aos menos favorecidos daquela região. A comunidade organizada em torno de um projeto de geração e renda por meio do trabalho digno possibilitou a criação da cooperativa. Luis Andrade de Moraes, 57 anos, casado, pai de dois filhos, é zelador da sede dos garis, também chamada de capatazia, da região central de Porto Alegre. Trabalha ali há 30 anos e afirma que gosta do que faz. Se orgulha de hoje ser um “faz tudo”. Já foi varredor, trabalhou no caminhão do lixo e na reciclagem. O gremista Mulheres, como Luciene da Rosa, são maioria entre os trabalhadores da limpeza urbana 78 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2011


ANA PAULA FIGUEIREDO

revela ter uma grande admiração por seu colega e chefe da capatazia da unidade do DMLU do Gasômetro, o colorado, Ivo Ávila Silveira, 49 anos. Luis brinca que vai dar de presente ao colega uma camiseta do time rival, pois o vê como um pai. ”Sempre tem um cara que incentiva a gente”, diz. O histórico da cooperativa tem em sua trajetória a quebra de paradigmas pela superação de barreiras, como, por exemplo, o fato de a profissão de gari ser considerada de nível inferior se comparada às outras. A relação de trabalho entre funcionários e colegas é cordial, segundo o chefe do setor. Ivo trabalha há 20 anos no DMLU. É divorciado, tem três filhos. “Aqui a gente trabalha com pessoal que tem muitos problemas. Alguns são expresidiários, moradores de ruas, menores abandonados, que precisam de uma atenção diferenciada”, salienta. Segundo Ivo, a limpeza urbana é dividida em vários setores: varrição, coleta seletiva, pintura do meio fio, capina, limpeza, pintura de viadutos e de monumentos públicos. No centro, há cerca de 300 garis, nas 24 horas das três capatazias da região central da capital. Eles são divididos em turnos: diurno, das 8h às 17h, o intermediário, das 17h às 23 h e o noturno, da meia noite às 6h. Antigamente existia concurso público para se trabalhar como gari e era exigida PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2011 | 79

POLÊMICA Em 2009, o jornalista e apresentador do jornal da Band, Boris Casoy, sem saber que estava no ar fez a seguinte declaração: “Que merda: dois lixeiros desejando felicidades do alto da suas vassouras. O mais baixo na escala do trabalho.” O comentário, que foi feito após o telejornal exibir imagens de garis desejando votos de feliz ano novo aos telespectadores da emissora, causou polêmica na época. No entanto, revelou o que muitas pessoas pensam sobre os garis. No dia seguinte, o jornalista pediu desculpas ao que considerou uma frase ofensiva a esses profissionais. Ivo Ávila Silveira diz que o episódio do jornalista foi infeliz, porque o gari, apesar de ser um funcionário humilde, realiza um trabalho muito importante para a população. “O gari não só varre. A coleta de lixo domiciliar depende do gari, por exemplo. A limpeza de terrenos e praças também”, afirma.

Três décadas de trabalho renderam experiência e grandes amizades para Luis Moraes a 4ª série do colegial. Hoje as coisas mudaram. Através da cooperativa não é mais necessário ter estudo para trabalhar, pois o objetivo é dar oportunidade de trabalho para quem procura. No local, também são oferecidos cursos de capacitação, qualificação profissional, reeducação cooperativista e planejamento familiar por uma equipe especializada e responsável pelos projetos. Ivo revela que é preciso ter um pouco mais de paciência para saber lidar com o pessoal. Às vezes uma palavra mal colocada pode causar um desentendimento entre os colegas. O fardamento dos garis é composto por uma calça, um jaleco, um boné, um par de botinas e luvas. A cor predominante é o laranja pela visibilidade. No verão, ganham protetor solar, que é distribuído pelo líder do grupo, assim como as garrafas de água para garantir as condições da árdua tarefa. Conhecer um pouco mais do que desempenha cada um desses trabalhadores é reconhecer e respeitar a importância do trabalho realizado. Caso eles não existissem, quem manteria a limpeza das ruas da cidade?

IMPRESSÕES DE REPÓRTER

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escolha e a realização da pauta sobre os garis me fez repensar sobre o fato da profissão não ter reconhecimento perante a sociedade. Lembrei de ter ouvido na infância por muitas vezes e de várias pessoas: ‘Se não estudar vai ser gari ou lixeiro.’ Curiosamente, durante as entrevistas, essa frase vinha repentinamente na minha cabeça, só que de forma muito diferente das vezes em que ouvia enquanto criança. Agora, pelo conhecimento do que desempenham de verdade esses trabalhadores e de quão indispensáveis são para a manutenção da limpeza urbana de uma cidade, espero que a interpretação daquelas palavras, não só para mim, mas para todos que puderam ler esta reportagem, mude ao longo do tempo. Desejo também que as pessoas saibam valorizar a tarefa e o que ela significa para cada cidadão que depende deste trabalho. Uma mudança de atitude poderia representar grandes benefícios na perspectiva de vida de cada um deles.”


ANDRÉ ÁVILA


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São uns olhos verdes, verdes Uns olhos de verde-mar Quando o tempo vai bonança Uns olhos cor de esperança Uns olhos por que morri Que, ai de mi! Nem já sei qual fiquei sendo Depois que os vi!

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Gonçalves Dias


PRATO VERDE A

rroz, feijão, alface, tomate, brócolis, molho com soja, repolho e pepino. Esse é um prato comum para Anna Sofia Vargas. Bife grelhado mal passado, arroz, ovo frito, tomate, beterraba, alface. Este é um almoço típico de Émerson Vasconcelos. Émerson gosta muito de carne e diz que não conseguiria ficar sem. Sua dieta é rica em carnes, principalmente vermelhas. E não vê mal algum. “Eu cresci num meio onde é normal pensar em vacas, galinhas e porcos como animais que nos servem de alimento.” Todavia, se ele se lembra do bichinho que morreu para que seu prato esteja cheio, não consegue seguir adiante com a refeição. Por alguns instantes. Anna Sofia é ovo-lacto-vegetariana (permite uso de ovos, leite e derivados) há quase dois anos. Foi o namorado Henrique Cunha que a fez perceber que não é difícil parar de comer carnes. “Eu já não comia carne vermelha antes, então foi mais fácil. Para ser sincera, não conseguia ver minha mãe preparando qualquer tipo de carne para o almoço e, quando via alguém espetando um churrasco, me embrulhava o estômago”, fala. “Sem contar que não acho justo o sacrifício de vida animal para podermos nos alimentar.” A mudança dos hábitos alimentares fez a garota se sentir melhor. “Meu paladar, minha disposição, meu corpo, tudo mudou”, completa. A nutricionista Cláudia Carvalho, do grupo de reeducação alimentar de Novo Hamburgo Reeducare, comenta cada um dos pratos acima descritos. Ela diz que antigamente era normal pensar que os vegetarianos e veganos (quem não come absolutamente nada de origem animal) tinham problemas de saúde relacionados à falta de nutrientes que 82 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2011


O PRATO DOS VEGETARIANOS É VERDE, SIM, MAS TAMBÉM É MUITO MAIS VARIADO, COLORIDO E SAUDÁVEL

Texto de MARÍLIA BISSIGO Fotos de FABIANA ELEONORA e PABLO FURLANETTO

PABLO FURLANETTO

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deixavam de ser ingeridos devido a suas dietas. “Hoje sabe-se que o corpo humano é tão perfeito que ele busca o que precisa nos alimentos que são ingeridos. Este prato vegetariano está super saudável e possui ferro e proteína suficientes.” Já o prato dito “normal” – segundo Cláudia – peca em dois sentidos: mistura dois tipos de carboidratos diferentes, no arroz e na batata, e tem fritura. “Se o óleo usado para fritar as batatas é reutilizado, ele pode se tornar tóxico”, alerta a nutricionista. Para incrementar os pratos, ela sugere o uso de frutas, grãos integrais e azeite de oliva.

DIGA-ME O QUE COMES E TE DIREI QUEM ÉS

Comer é uma necessidade básica humana, mas, mais do que isso, a hora da comida tem um importante papel social – isso desde os primórdios da humanidade, quando os humanóides se reuniam em tribos para caçar, pescar e catar a alimentação do dia – e ainda reflete a personalidade do ser comilão. A escolha dos alimentos que ingerimos diz como nos relacionamos com o nosso próprio corpo e com o meio ambiente em que estamos inseridos. Diego Canquerini de Moraes – vegetariano há mais de 10 anos – acredita que a recíproca é verdadeira: o que comemos não apenas reflete o que somos, mas também determina o que somos. Ou seja, nossa personalidade dita o que comemos, e o que comemos nos transforma no que somos. “A carne faz as pessoas se tornarem agressivas”, acredita. “A alimentação interfere no lado emocional do ser humano”. O instrutor de yoga de Santa Catarina é a prova viva da teoria que levanta. Sua calma ao falar e ao levar o garfo à boca é de dar inveja aos estressadinhos de plantão. Diego transmite uma paz tranquilizadora, e a aura de bondade que o envolve é quase palpável, apesar de estar concedendo a uma entrevista durante seu almoço – um horário que, diz o senso comum, as pessoas não gostam de ser interrompidas. O que o motivou a parar de comer carnes foi o sentimento de compaixão que possui pelos animais que geralmente têm por destino virar um assado numa mesa de jantar com uma maçã na boca como enfeite. “Às vezes as pessoas nem sabem o que estão comendo.” Virar vegetariano foi um processo gradual e sem grandes dificuldades, auxiliado pela prática da yoga. “Difícil é encontrar lugares para fazer refeições”, salienta ele. “Em Porto Alegre encontramos variedade, mas em Santa Catarina, onde moro, é mais complicado. Por isso, acabamos priorizando fazer o alimento em casa”, completa. A tranquilidade de Diego é compartilhada com sua esposa, Maíra Biral Mendes. Carregando delicadamente o filho do casal, Arunan, de 11 meses, nos braços, ela fala pausadamente que era ovo-lacto-vegetariana, mas optou por comer carne de peixe há cerca de três anos. Ela procura uma alimentação leve, orgânica, livre de hormônios e agrotóxicos. O desejo de passar esse ensinamento ao pequeno Arunan é visível, mas não pretende proibir o filho de experimentar carne vermelha. “Ele vai ter a opção de comer o que quiser quando for mais velho, mas nós o instruiremos quanto

aos malefícios de uma alimentação com carnes vermelhas e também quanto às maldades sofridas pelos animais”, esclarece.

SOCIALMENTE ACEITO

Sair com os amigos – algo trivial para pessoas de qualquer idade – torna-se um motivo de desavenças ou divergências de opiniões quando esta saída envolve comida e alguma das pessoas (ou mais) é vegetariana. Maxwell Dicarmine, de Porto Alegre, relata que não gosta de ver os amigos comendo um churrasco, por exemplo. “Me incomoda ver as pessoas se alimentando com um animal morto.” Porém, em nome da amizade, Maxwell não abre mão desses momentos. “Dependendo da situação eu até vou, mas não faço parte daquela cerimônia, de dividir um pedaço de carne em torno de uma mesa. Sirvo meu prato quieto e não dou muito alarde. Eu faço a minha parte.” Para seu alívio, essas situações não são muito frequentes. Para o guri Maxwell, o processo de se tornar vegetariano foi difícil. Há apenas um ano ele conseguiu parar de comer carne. Foi motivado por duas grandes causas: a ética social que envolve o assassinato e tortura dos animais e sua saúde, uma opção de vida saudável. Porém, quando o assunto é namoro, ele se torna menos flexível. “Dificilmente namoraria alguém que não fosse vegetariana, é aquela questão da ética. Já aconteceu uma vez e foi chato.” Novamente, Maxwell pondera e explica: “Depende da situação”. Isto não é problema para o casal Fabiana Droescher e Rodrigo de Loreto Curto. Ela, vegetariana. Ele, não. As refeições são feitas ou compradas dobradas: sem carne para ela e com, para ele. Rodrigo não é louco por carne, isso torna a convivência deles na hora das refeições mais tranquila. “Às vezes ela comenta sobre os benefícios de ser vegetariano. Creio que ela ficaria feliz se eu mudasse meus hábitos, mas não estou preparado para isso”, diz o marido. Como tudo no início é mais difícil, Rodrigo se preocupava com a reação de Fabiana ao vê-lo se ali84 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2011


FABIANA ELEONORA

mentando com carnes na sua frente, mas o diálogo prevaleceu e tudo ficou em pratos limpos entre eles. “Não tivemos problemas por nossa diferença de hábitos alimentares, mas percebo que ela fica mais satisfeita quando como carne branca. Quando pego carne vermelha ou um presunto mais gordo, minha esposa fala que aquele tipo de carne não faz bem à saúde”, completa. Coma você carne ou não, o importante é se sentir bem com o mundo e as pessoas a sua volta. Não existe uma maneira genérica certa de se alimentar, cada pessoa segue sua ética e sua lógica. Os casos de Diego, Maíra, Maxwell, Fabiana e Rodrigo são exemplos de pessoas que vivem e convivem muito bem com o caminho que tomaram e fazem de cada alimentação um brinde à vida. PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2011 | 85

IMPRESSÕES DE REPÓRTER

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ual a melhor hora para encontrar pessoas vegetarianas no centro de Porto Alegre? Meiodia, claro. Porém, a dificuldade em puxar assunto com pessoas desconhecidas em restaurantes, ainda mais se apresentando como estudante de jornalismo, é grande – simplesmente porque a hora da comida é sagrada para muita gente. Encontrar pessoas vegetarianas dispostas a falar enquanto almoçam foi o desafio da vez. E consegui. Mesmo após diversas recusas, encontrei figuras com ótimas histórias pra contar. Essa reportagem sobre vegetarianismo não foi qualquer pauta pra mim. Sempre fui carnívora confessa, mas pesquisar mais a fundo sobre o assunto e conversar com pessoas que pensam diferente de mim foi muito gratificante e, com certeza, me proporcionou momentos de reflexão que de outras formas eu não teria. Desde que a matéria foi feita, comecei a pensar duas vezes antes de colocar carne na boca. Passei a lembrar dos animais maltratados e sacrificados e a me lembrar, também, da aura tranquila das fontes que deram vida a essa matéria.”



O MENINO QUE AMAVA O VERDE COMO A MORTE DE UM INGAZEIRO TRANSFORMOU O MENINO ARNO LEANDRO KAYSER EM UM DEFENSOR DA NATUREZA Texto de ANDRESSA BOLL Fotos de ANDRÉ ÁVILA e JAN FLASKA

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JAN FLASKA / STOCK.XCHNG

ra o ano de 1961. Mesmo ano em que o Muro de Berlim começou a ser erguido. Também o ano de nascimento do atual presidente americano, Barack Obama, e do nosso personagem, Arno Leandro Kayser, nascido no bairro de Hamburgo Velho, periferia do município de Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul. Naquela época, a cidade não esperava nem de longe se tornar a potência nacional no setor coureiro-calçadista. O ruralismo imperava, e assim o menino cresceu feliz e em contato com a natureza. O arroio que ficava perto de sua casa era o ponto de encontro da “gurizada”. Brincar de exploradores da selva era uma das melhores diversões que os dias ensolarados e quentes proporcionavam. O pátio de sua casa era grande, com horta com muitas verduras, pomar com as frutas da estação, docinhas e maduras, e um galinheiro, onde era possível obter ovos amarelinhos todos os dias. Entre as árvores frutíferas havia a goiabeira, que dava lindos frutos dos quais sua mãe fazia a compota mais deliciosa do mundo! Perto de sua casa havia os vizinhos que criavam gado, porcos, ovelhas, cavalos, entre outros animais. Era de lá que vinha o leite que ele tomava todas as manhãs. Próximo à venda da esquina, havia um ingazeiro, local preferido para suas brincadeiras. Subir na árvore e brincar de pega-pega com os amigos, pulando de galho em galho, era uma satisfação. O porão da casa de um de seus amigos, o sótão de outro, também eram locais de brincadeira, era lá que ficava instalado o esconderijo secreto das crianças. Eram necessárias senhas para entrar e sair e ter acesso aos assuntos secretos. Carrinhos de lomba, futebol, taco e bola de gude eram outras brincadeiras que não podiam faltar em sua rotina. Quando Arno fez 11 anos, a necessidade de modernização do seu bairro fez com que, durante o processo de troca de rede elétrica, seu ingazeiro fosse cortado. Uma decepção muito grande tomou conta do menino, fazendo-o crer que ninguém se importava com as árvores. Foi ali que percebeu que queria proteger cada vez mais a natureza.


Arno conta que é responsável pelo plantio da maior parte das árvores da cidade de Novo Hamburgo Ainda adolescente e cheio de sonhos, o jovem Arno começou a pesquisar sobre ecologia e descobriu que, assim como ele, havia muitas outras pessoas que também defendiam a natureza. Na Fundação Evangélica, em Novo Hamburgo, foi onde conseguiu descobrir como poderia fazer sua luta dar certo. As aulas de ecologia com o professor Schmeling foram importantíssimas para o seu futuro. Como para todo jovem, chegou a época do vestibular. Em meio a livros, leituras, fórmulas, contas e outros estudos típicos dessa época, Arno, junto com seus amigos, participou, aos 17 anos, da criação do Movimento Roessler, uma das mais importantes ONGs de defesa ambiental do Rio Grande do Sul. Mesmo envolvido em várias lutas pela causa ambiental, seus estudos não foram prejudicados. Ingressou na tão sonhada faculdade de Agronomia. Como para quase tudo na vida seguimos nossas influências, Arno foi influenciado por seu primo, que vivia “catando bichinhos”, o que o encantava desde sempre. Já na faculdade, entrou para o Centro de Estudos Ambientais, onde aprendeu sobre agricultura ecológica. Ali, seu destino ia sendo traçado, sua inclinação para a defesa ambiental e ecologia não tinha mais como ser impedida. Finalmente Arno se formou. Seu trabalho no Horto da Prefeitura de Novo Hamburgo fez com que a resposta para a pergunta “quantas árvores você já plantou ao longo de sua jornada?” ficasse impossível de ser respondida. Arno pode agora contar com orgulho e maestria que ele é um dos responsáveis pela maior parte das árvores existentes hoje na cidade de Novo Hamburgo. Lembrando-se da infância e de como as crianças são importantes para o futuro do planeta, Arno sentiu uma forte necessidade de fazer ainda mais. Começou então a desenvolver a educação ambiental nas escolas da rede pública e privada do Vale do Sinos. O contato com as crianças e a necessidade de contarlhes histórias sobre o meio ambiente o inclinaram a se tornar, também, escritor infantil. Porém, o ato de escrever já fazia parte da vida de Arno desde o fim de sua adolescência, quando ainda estava na faculdade. Depois, os artigos e colunas em jornais começaram a se tornar uma rotina. Arno não teve filhos, mas adora as crianças e tem prazer em trabalhar com elas. Ele tem uma companheira, Cristina Haag, que o apoia em toda a causa ecológica. Juntos possuem a casa mais verde das redondezas do Parcão de Novo Hamburgo. Para mostrar ainda mais sua preocupação com a causa ambiental, a casa de Arno é montada com a arquitetura antroposófica, que usa formas diferenciadas - e não apenas as paredes retas - e em princípios de construções ecológicas. O pátio da casa é cheio de árvores nativas e possui também um cachorrinho, o Ursinho Puff, resgatado de uma enchente. Arno como bom ecologista adora árvores e animais. Suas árvores preferidas são o ingazeiro, que marca sua vida desde a infância, e a sibipiruna, uma das árvores mais bonitas para ele. Já os animais preferidos são o lobo

guará, que Arno admira por sua discrição e elegância e o cágado, que, além de ganhar destaque pela sua resistência, remete à histórias da sua infância. Mesmo sendo ecologista, Arno não é vegetariano, mas respeita muito a postura filosófica de seus praticantes. O pão tem um sabor especial, sem saber explicar muito bem o porquê, uma das causas pode ser a influência do avô, que foi um “padeiro de mão cheia”. Como herança de sua descendência alemã, o verde e calor do chimarrão é trocado pelo frescor da cerveja. Arno não se considera um “verde”, já que esta denominação é mais própria para os políticos que se preocupam em defender a causa. Sua paixão vem de berço, de uma infância plena e harmônica, com o contato com as plantas, com os animais, com os riachos e ar limpos, sem a poluição dos tempos modernos. Quando criança descobriu, muito além da importância de preservarmos, que nosso planeta é nossa casa e precisamos cuidar dele para a nossa saúde e dos nossos descendentes. Essa foi uma breve história de um menino que cresceu e muito, mas que em nenhum momento abandonou seu sonho desde criança: proteger o meio ambiente. Hoje, com 1,96m de altura, Arno é um ecopersonagem desconhecido por muitos, mas fundamental para a preservação ambiental, principalmente do Vale do Sinos. Apesar de crescido de tamanho, tendo uma vida de gente grande, com responsabilidades e rotinas, Arno conseguiu manter o espírito e o sentimento da infância: valorizar a natureza e lutar por ela. 88 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2011


ANDRÉ ÁVILA

IMPRESSÕES DE REPÓRTER COM A PALAVRA, ARNO KAYSER: “Eu acredito muito num ditado do TAO: ‘O sábio obra sem agir. E por não querer ser visto, não passa desapercebido’. Cada um deve procurar ao máximo ser coerente com suas ideias e viver conforme elas indicam.” “Eu prefiro buscar o desenvolvimento ecologicamente sustentável, que é aquele que busca garantir as necessidades básicas das atuais gerações de humanos e demais seres do planeta sem prejudicar o atendimento das gerações futuras.” “A ecologia ambiental deveria estar no centro da tomada de decisão de todo gestor público, tendo o mesmo grau de importância de sua prima, a economia, bem junto com o princípio da justiça.” “Acho que já cortamos árvores que chega das nossas florestas naturais. Temos saber suficiente para conduzir manejos florestais que garantam produção de produtos florestais sem destruir as florestas.” PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2011 | 89

“C

riar um perfil de uma pessoa que mal conhecia foi um desafio e tanto. Como decidir? Menos perguntas e o risco de faltar informações, ou mais perguntas correndo o risco do meu entrevistado ficar entediado com as respostas? Na dúvida, resolvi optar por enviar mais perguntas mesmo. Um bom repórter deve estar preocupado com o produto final que, nesse caso, também interessou muito o entrevistado, já que acrescenta muito seu currículo. Como a entrevista pessoalmente ficou enviável devido a incompatibilidade de agendas, precisei partir para o e-mail. Não senti comprometimento das informações, já que tive a oportunidade de conhecer e observar o entrevistado antes. E lá se foram 40 perguntas via e-mail, com uma observação: ‘escreva o quanto quiser, sem ter papas na língua, lembre de todos os detalhes, preciso saber de tudo!’. Resultado? Vinte mil caracteres para serem selecionados e resumidos em sete mil. No final, uma história bonitinha sobre o menino que amava o verde, em outras palavras, o agrônomo, ecologista, escritor e meu ecopersonagem, Arno Kayser.”


RAQUEL BITENCOURT


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Vermelhos são seus beijos Quase que me queimam Que meigos são seus olhos Lânguida face Vanessa da Mata


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SANGUE

BOM O VIDA POR VIDAS É UM PROJETO QUE OBJETIVA CONSCIENTIZAR AS PESSOAS A DOAR SANGUE E MEDULA ÓSSEA

Texto de CECÍLIA MEDEIROS. Fotos de ANDRÉ ÁVILA

G

ilnei Belíssimo lembra muito bem do dia 4 de junho de 2008, quando Andrey, seu filho caçula, reclamou de dor de cabeça. No primeiro instante não deu bola, achou que era coisa de criança. Naquela noite, sua esposa, Kika, e seu filho mais velho, Brayan, foram dormir, mas ele ficou atento. Ao passar no quarto de Andrey, percebeu que ele estava com 41 graus de febre. Logo em seguida, o garoto, com sete anos na ocasião, convulsionou. Andrey foi levado às pressas para o Pronto Socorro de Canoas já com a nuca enrijecida. “Não temos uma notícia boa para lhe dar, seu filho está com meningite”, disse a médica de plantão. Imediatamente Andrey foi para a UTI pediátrica. “Eu não acreditei no que ouvi”, relata Gilnei. Os pais passaram a noite com o garoto, que insistia que queria ir para casa. Aos poucos o menino foi inchando devido à meningite bacteriana diagnosticada. Na manhã do dia 5 de junho, Andrey entrou em coma. Os médicos avisaram aos pais que não tinha mais volta. Sua pressão estava 8 por 4. PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2011 | 93


“Eu e a Kika saímos no corredor do hospital e nos ajoelhamos ali mesmo, orando, parecíamos dois fanáticos. Quando voltamos para o quarto, a pressão do nosso filho havia subido um pouco”, emociona-se Gilnei. Para salvá-lo, no entanto, os médicos precisavam trocar todo seu sangue. Gilnei pediu pela rádio Novo Tempo doadores de sangue com urgência. Para sua surpresa, apareceram 112 pessoas. “Todos queriam salvar o Andrey”, lembra o pai, chorando. Na ocasião, o banco de sangue da Ulbra, em Canoas, pediu que não fossem mais doadores para o hospital, pois não tinham mais como coletar sangue. “Vocês têm um exército de doadores!” comentaram os médicos. Esse exército pertencia ao projeto hoje chamado Vida por Vidas, criado a partir do sonho do casal Moisés Silva e Neusiodete Barreto. Ele tem como objetivo conscientizar as pessoas sobre a importância de doar sangue regularmente. Em 2005, os dois propuseram à Igreja Adventista, da qual fazem parte, que os jovens se inspirassem no motivo da Páscoa para conscientizar as pessoas a doar sangue. O slogan da campanha, criado por Odilon Fonseca, líder dos jovens no Rio Grande do Sul, é: “Ele (Jesus) deu tudo pra você doar um pouco”. A primeira ação foi criar um cadastro online com contatos e dados de doadores. O projeto foi realizado no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e São Paulo. De acordo com Júlio Felipe, presidente do Hemocentro do Rio Grande do Sul, entre os gaúchos, a doação de sangue aumentou em 110% no

primeiro ano da campanha. Andrey é apenas um dos beneficiados pelo Vida por Vidas. O garoto passou por outros problemas sérios nos 40 dias em que ficou hospitalizado, mas a ajuda dos doadores foi fundamental para sua recuperação. “O amor, o sangue doado e a fé em Deus salvaram o meu filho”, comemora Belíssimo. Em 2006, A Organização Mundial da Saúde (OMS), sediada em Washington, EUA, reconheceu o trabalho realizado pelos universitários e jovens adventistas como o maior projeto de mobilização efetiva de pessoas para doação de sangue em toda a América Latina. Foi no ano de 2008 que o projeto passou a se chamar Vida por Vidas. Atualmente, possui mais de 300.000 pessoas cadastradas em oito países da América do Sul: Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai, Bolívia, Peru, Equador e Chile.

GALERA DA MEDULA

Em 2009, percebendo que muitas pessoas confundiam a doação de sangue com a doação de medula óssea, o Vida por Vidas criou o projeto Galera da Medula, em parceria com o Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Seu objetivo é realizar coletas de cinco ml de sangue para o cadastro de voluntários a doação de medula óssea. Após cada mobilização, são remetidas todas as amostras de sangue ao hospital. O resultado já naquele ano foi de um total de 2.645 novos potenciais doadores cadastrados. No ano seguinte, esse número saltou para 12.689.

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O grande diferencial da campanha é conscientizar as pessoas de que a doação de sangue deve ser regular. Ana Paula Couto, secretária do Banco de Sangue do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, conta que normalmente as pessoas só se preocupam em doar quando algum familiar está precisando. A doação precisa ser regular porque o sangue tem tempo de validade. Ele é dividido em três partes: as hemácias têm de 25 a trinta dias de validade, as plaquetas, sete dias, e o plasma tem apenas oito horas de vida útil. Um banco de sangue precisa ter sempre sangue válido. O do Hospital Clínicas, por exemplo, necessita receber uma média de 70 pessoas por dia para se manter abastecido. Ana Paula diz que o Galera da Medula e o Vida por Vidas são projetos contagiantes. “As pessoas trabalham ali por amor, por respeito e solidariedade ao outro”, declara.

DOAÇÃO DE SANGUE A doação de sangue pode ser feita nos hemocentros do estado. Podem doar pessoas entre 16 e 67 anos, com 50 kg ou mais, saudáveis, que não estejam em jejum e que tenham um documento com foto (como RG, ou CNH). Menores de 18 anos devem apresentar-se com um responsável legal. Cada vez que alguém doa sangue, é feita uma bateria de exames para saber se a pessoa está bem. Esse exame pode ser retirado pelo doador. Após a doação, o doador recebe um lanche para repor suas energias. Não podem doar: mulheres grávidas ou que amamentam, pessoas com doença de Chagas, que tiveram hepatite após os dez anos de idade, que tenham diabetes ou hipertensão grave, pessoas que tenham comportamento de risco para AIDS e aquelas que ingeriram bebidas alcoólicas há menos de quatro horas da doação. A cada bolsa de sangue doada, nove pessoas podem ser beneficiadas.

Para saber mais sobre o projeto entre no site: http://www.vidaporvidas.com

DOAÇÃO DE MEDULA ÓSSEA

IMPRESSÕES DE REPÓRTER

“N

ão há como fazer uma pauta como esta e não se envolver. Acabei criando coragem e doei sangue pela segunda vez. Acredito que depois desta matéria perdi o receio de doar. Nem senti a picada da agulha, e acredite: detesto agulhas. Aprendi um pouco mais sobre a importância de doar sangue e os processos pelos quais ele passa. Pude visitar o interior de um hemocentro e conhecer os processos que passam o sangue até chegar ao receptor. Meu próximo passo será ser doadora de medula óssea. O que me chamou a atenção foi o amor com que essas pessoas trabalham, tanto os voluntários como os profissionais que coletam o sangue.

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Para se tornar um doador de medula óssea é necessário ir até um dos hemocentros no estado, ter entre 18 e 55 anos e não ser portador de nenhum tipo de câncer nem de doenças infecciosas. Para doação, são coletados cinco ml de sangue da pessoa e feito um cadastro que vai para o Registro Nacional de Doadores de Medula Óssea (Redome). O sangue doado será tipificado por exame de histocompatibilidade (HLA), que é um teste de laboratório para identificar as características genéticas que podem influenciar no transplante. O HLA é incluído no cadastro do doador e os dados serão cruzados com os dos pacientes que necessitam de transplante de medula óssea. No caso de comprovada a compatibilidade com algum paciente, outros exames serão feitos. A doação é um procedimento que se faz em um centro cirúrgico, sob anestesia peridural ou geral, e requer uma internação de no mínimo 24 horas. Nos primeiros três dias após a doação, pode haver um desconforto localizado, que pode ser amenizado com uso de analgésicos. Normalmente, os doadores retornam suas atividades habituais depois da primeira semana. Um simples ato como esse pode ser salvar uma vida.


CONTOS DA VERMELHA PRIMEIRA IMPRESSÃO REVELA EPISÓDIOS INSÓLITOS ESCONDIDOS EM LABORATÓRIOS DE FOTOGRAFIA Texto de AMANDA HEREDIA E MARINA CARDOZO* Fotos de ANDRÉ ÁVILA

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LUZ

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U

m local sem janelas, completamente fechado, sem qualquer luz do dia passando. O cheiro de químicos domina o ar. Iluminando, apenas uma luz vermelha que mal permite que se enxergue as próprias mãos em detalhes. O cenário, que pode parecer agoniante, é o quarto escuro de fotografia, utilizado, desde o século XIX, para a revelação de filmes fotográficos.

HISTÓRIA DA LUZ VERMELHA

Os primeiros materiais fotossensíveis criados eram monocromáticos, sensíveis a apenas uma cor de luz: o azul. Esses materiais podiam ser usados sob luzes verdes e vermelhas sem qualquer dano à fotografia. Em 1873, Hermann Wilhelm Voguel, professor de fotoquímica em Berlim, adicionou outros químicos aos materiais monocromáticos, tornando-os ortocromáticos, ou seja, sensíveis às cores azul e verde. Essa característica permitiu que os fotógrafos mais antigos usassem filtros vermelhos nas janelas de suas “tendas” escuras – normalmente localizadas no campo – para que pudessem enxergar durante a revelação. Posteriormente, foram adotadas as chamadas luzes de segurança – de cor vermelha –, inventadas pelo francês Antoine François Jean Claudet, que permitem que o fotógrafo não fique na total escuridão enquanto revela suas imagens. Claudet era aluno de Louis Daguerre, inventor do daguerreótipo e responsável pela primeira imagem registrada pela ação direta da luz.

HISTÓRIAS SOB A LUZ VERMELHA

O quarto escuro normalmente é um local em que o fotógrafo trabalha sozinho, uma vez que a entrada de outra pessoa implica em portas abertas. E portas abertas indicam luz, o que pode resultar em trabalho perdido. O local, com suas características tão específicas e peculiares, guarda histórias sem testemunhas, as quais apenas os fotógrafos, protagonistas das narrativas, conhecem. Jorge Aguiar, premiado pela Unesco pelo projeto Photo da Lata – que nasceu em Alvorada e ensina fotografia à população carente de diversas cidades do Rio Grande do Sul –, trabalha com fotojornalismo há 35 anos. Em 1995, o fotógrafo estava de plantão quando fotografou o acidente de trânsito que matou Thiago de Moraes Gonzaga e seu amigo Rodrigo, em Porto Alegre. O acidente originou, um ano depois, a Fundação Thiago de Moraes Gonzaga. Após fotografar o acontecido, Aguiar, que, na época, trabalhava para o Instituto Geral de Perícias da Secretaria de Justiça, foi ao quarto escuro revelar as fotos para que o perito responsável pelo caso as analisasse. Ele conta que ao terminar a revelação, saiu do quarto, desligou a luz e fechou a porta. Percebeu, porém, uma iluminação vinda de dentro do quarto. Ao abrir a O quarto escuro guarda histórias que apenas os fotógrafos testemunharam

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porta novamente, deparou-se com a luz ligada. Aguiar desligou a luz pela segunda vez e fechou a porta. Observou, entretanto, que a luz estava acesa mais uma vez. O fotógrafo abriu a porta e, quando se direcionou para o interruptor, as gavetas de um armário de dentro do laboratório abriam-se e fechavam-se sozinhas. No ano seguinte, Aguiar ficou responsável por fotografar uma jaqueta – que serviria como evidência de um assalto seguido de assassinato – para entregá-las, novamente, ao perito. A vítima era uma professora, cujo corpo foi encontrado tempos depois. Aguiar capturou as imagens e se dirigiu ao quarto escuro – de dez metros de largura por cinco de altura, como o próprio fotógrafo destaca – para revelálas. Enquanto trabalhava com o negativo, percebeu uma sombra na parede à sua frente. Olhou para trás, procurou alguém em volta, mas nada encontrou. Continuou trabalhando com o negativo, quando viu, novamente, o vulto caminhando pelo quarto. Aguiar entrou em desespero, foi até o corredor, procurou por alguém, mas nada encontrou. Voltando ao ampliador, sentiu algo diferente. Desta vez, era uma respiração ofegante em suas costas, perto da nuca. O fotógrafo ficou paralisado por alguns segundos enquanto sentia aquele “bafo” no pescoço e, assustado, correu para fora do quarto enquanto gritava de pavor, tentando encontrar alguém que o acalmasse. Foi quando deparou-se com seu chefe de fotografia, Pinheiro. Ele perguntava o motivo do susto, mas apenas recebia de Aguiar o negativo: “Pega isso, que eu não entro mais nesse laboratório”. Os acontecimentos assustadores não bastaram para acabar com o amor de Aguiar pela fotografia analógica. Até hoje o fotógrafo trabalha com câmeras de filme e gosta tanto deste tipo de fotografia que tem, em sua casa, um laboratório de revelação em preto e branco. Não é apenas de histórias de terror, porém, que são feitos os quartos escuros. Flávio Dutra, professor de Fotografia da Unisinos, lembra de um fato “tragicômico” que aconteceu com um amigo fotógrafo. Certa vez, o rapaz foi revelar alguns negativos. “Muito metódico”, segundo Flávio, o amigo apagou todas as luzes PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2011 | 99

e passou a abrir as bobinas e enrolar os filmes nos carretéis, para iniciar a revelação. Em meio ao trabalho, começou a espirrar continuamente e, numa tentativa de manter o equilíbrio, apoiou-se na parede. Má ideia: seu cotovelo bateu em uma vassoura, que estava encostada. A vassoura caiu em uma direção nada desejável em um quarto escuro e acionou o interruptor de luz. Resultado: a luz foi acesa, e todos os negativos, perdidos. “Há quem tenha saudade de fotografia analógica. Bem, há quem goste de vinil, fazer o quê!”, compara Flávio. O arquiteto e fotógrafo Cristiano Mascaro trabalhou como repórter fotográfico na revista Veja entre 1968 e 1972. É considerado um dos mais importantes fotógrafos da urbe e da arquitetura da capital paulista e recorda do tempo que trabalhou com quarto escuro, quando era coordenador do laboratório audiovisual da Universidade de São Paulo (USP), entre 1974 e 1988. Mascaro conta que, naquela época, muitas vezes aproveitava boa parte de seu tempo livre para revelar novas imagens. Ia cedo ao laboratório da universidade e, antes de chegar, comprava dezenas de chocolates Diamante Negro e muitas Cocas-Cola: “Passava o dia revelando fotografias no laboratório da USP”.

O FIM DA LUZ VERMELHA

Com o advento da fotografia digital, o quarto escuro tradicional sofreu uma reviravolta. No lugar do ambiente escuro, cheiro de produtos químicos e luz vermelha, entra um local iluminado, com computador e cabos para conectar a câmera ao equipamento. Programas como Lightroom e Photoshop fazem as vezes do processo de revelação. O “quarto escuro digital” torna o trabalho dos fotógrafos mais rápido e simples, mas, para os interessados em fotografia, sempre há na internet sites que ensinam a fazer quartos escuros para revelação. O gosto pelas câmeras analógicas ainda fascina. Os apaixonados por elas podem ter certeza de que o quarto escuro resultará em mais do que apenas imagens: renderá também boas histórias. *Estagiárias da Agência Experimental de Comunicação (Agexcom) da Unisinos (colaboração).

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ntre tantas ideias de pauta, o quarto escuro se destacou pela originalidade. Havíamos pensado em bombeiros, tapete vermelho, pimenta... que não nos despertaram tanto interesse e curiosidade. Começamos a reportagem um tanto perdidas. Temos pouca – praticamente nenhuma – experiência com quarto escuro. A ideia de que fotógrafos teriam histórias extraordinárias que ocorreram no local não passava de intuição. Além disso, nenhuma de nós conhecia fotógrafos que ainda utilizassem quarto escuro: a praticidade – e popularidade – da fotografia digital quase os extinguiu. Ao entrar em contato com os fotógrafos que entrevistamos, tampouco sabíamos os tipos de histórias que procurávamos. Não tínhamos ideia do que receberíamos daqueles profissionais tão experientes.”


ANDRÉ ÁVILA


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Apagaram tudo Pintaram tudo de cinza Só ficou no muro Tristeza e tinta fresca Marisa Monte


DIA DE CHUVA

COMO OS DIAS CINZENTOS E NUBLADOS AFETAM A VIDA DE UMA CIDADE GRANDE 102 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2011


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Texto de FILIPE ANDERSON. Fotos de ANDRÉ ÁVILA

s incas acreditavam que ela era um Deus. Os índios, em antigos rituais, dançavam para que ela caísse do céu. Na Bíblia, ela aparece como sinal de castigo ou como benção dos céus, assim como ausência ou sinal da presença de Deus. No Alcorão, é sinal de vida. Na música, há trechos como “Chove chuva, chove sem parar”; “São as águas de março fechanPRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2011 | 103

do o verão”; ou “Mas só chove, chove. Chove e chove”. O cinema já prestou homenagem com Gene Kelly em Dançando na Chuva. A chuva teve diferentes significados em diferentes culturas e religiões no decorrer da história, porém, hoje, pode ser vista como um problema, tanto quando em demasia quanto na escassez. Você já deve ter visto esta cena antes. Sexta-feira, 18h, todo


mundo saindo de casa ou do trabalho, se locomovendo pela cidade, e o dia, que até então estava com um céu azul, em pouco tempo dá lugar às nuvens cinzas, e a chuva cai. São inúmeros carros na avenida com apenas o motorista, ônibus lotados, pontos de táxi vazios, pessoas estressadas e tudo que envolve uma fuga da água da chuva. Tudo isso pode ser observado em apenas em um minuto caminhando por uma avenida de uma cidade grande. Fica pior se for um temporal, o que leva as pessoas a correrem da água como se fosse o fim do mundo.

INUNDAÇÕES

Uma das grandes preocupações da população que mora em uma cidade grande é ter a casa ou a rua inundada. Em Porto Alegre, no último século, houve três grandes inundações: as enchentes de 1926, de 1928 e a de 1941. Em 1941, a enchente foi de grandes proporções e deixou 70 mil flagelados sem energia elétrica e água potável. A população na época era de quase 385 mil habitantes. Com essa grande cheia, o governo da capital resolveu construir o Muro da Mauá para conter os avanços do rio Guaíba. A aposentada Ana Lúcia Teixeira, de 63 anos, revela a preocupação de ocorrer uma inundação nas ruas do Centro bairro onde reside. “É difícil imaginar que a chuva vá fazer um estrago grande, mas nunca se sabe. Às vezes chove o dia inteiro e os esgotos já começam a transbordar, imagina se as águas do Guaíba avançam pro Centro?”, questiona Ana Lúcia. Em relação à preocupação de inundações na cidade, o Departamento de Esgotos Pluviais (DEP) alerta sobre o risco de que a qualquer ano a cidade de Porto Alegre pode ter uma enchente igual ou até de maiores proporções do que vistas no século passado. Nunca foi executada nenhuma obra no rio Guaíba que possa minimizar essa probabilidade, nem mesmo algumas barragens executadas de 1941 até hoje, pois nenhuma delas teve como objetivo a contenção de cheias, mas sim navegação e geração de energia. No Centro de Porto Alegre, o Muro da Mauá serve de contenção das cheias. De acordo com o DEP, a última vez em que houve necessidade de fechamento dos portões de contenção da Mauá foi em 1984. O fechamento, se necessário (em casos de cheia do rio), seria feito em menos de 10 minutos. Para que não ocorra entupimento dos esgotos e inundações na cidade, é necessário que a população se conscientize e mantenha a cidade limpa.

TRÂNSITO CAÓTICO

Se você não tem a Arca de Noé, então terá que utilizar outro meio de transporte para fugir da chuva e dos alagamentos. Em Porto Alegre, além dos ônibus e lotações, a média é de um veículo para cada 2,04 habitantes, segundo o último censo do Departamento Estadual de Trânsito (Detran-RS). O que acaba causando um grande congestionamento quando muita gente resolve tirar o carro da garagem. O taxista Deivid Sampaio avalia que o maior problema em dias chuvosos em Porto Alegre é o trânsito, ainda mais por trabalhar na rua com seu táxi. “Em dias de chuva têm mais carros no trânsito, há tranqueiras. Os passageiros ficam com pressa. Muita gente anda de carro sozinho. Ninguém é gentil 104 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2011


Estudos indicam que, quanto mais cinza o dia, mais depressivas ficam as pessoas

no trânsito”, reclama Deivid. Os taxistas acabam por transportar muito mais pessoas em dia de chuva. E Deivid se surpreende a cada dia. “Já transportei gente molhada, encharcada, até um passageiro com cachorro, ambos molhados”, relata Sampaio. Segundo a Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC), os acidentes de trânsito dobram em dias de chuva, e a população deve ter mais cuidado no trânsito.

DEPRESSÃO

O dia nublado tem o poder de tornar as pessoas tristes e melancólicas. Estudos indicam que quanto mais cinza o dia, mais depressivas ficam as pessoas. A revista Galileu de junho de 2011 divulgou a inusitada pesquisa do professor Donald Redelmeier da Universidade de Toronto, do Canadá, que afirmou que as pessoas que fazem entrevista de emprego em dias de chuva são piores avaliadas. Os estudos de Redelmeier comprovaram que o céu cinzento provoca mau humor nas pessoas. A falta de exposição à luz solar pode, inclusive, contribuir para um tipo de depressão conhecida como depressão afetiva sazonal. Esse tipo de depressão foi reconhecida pela primeira vez pelos cientistas do Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos nos anos 1980. A doença atinge homens e mulheres de todas as raças e idades, inclusive crianças, mas a tendência é que as mulheres sejam mais afetadas do que os homens. Os sintomas mais comuns de depressão sazonal são: alterações drásticas de peso e apetite, fraqueza, insônia, letargia, ansiedade, falta de concentração, autoflagelação e fatalismo, entre outros tantos. A causa mais provável dessa depressão que ocorre nos meses mais escuros e em temporadas de dias nublados e chuvosos parece estar ligada aos seguintes fatores: aumento da Melatonina, um hormônio que regula o sono que é produzido no escuro, e diminuição de Serotonina, pois ela atinge seu pico de produção quando a pessoa é exposta à luz brilhante. O psicólogo Tadeu Alencar afirma que existem terapias que ajudam na cura da depressão sazonal e que dias nublados realmente afetam o humor das pessoas. “Existe a fototerapia, um aparelho que ajuda na cura da depressão sazonal e em diversas outras doenças. Porém, a depressão sazonal é diferente, e mais grave do que uma simples irritação das pessoas em um dia nublado”, diz Tadeu.

PESSOAS MOLHADAS

Vale tudo para se abrigar da chuva. Desde o famoso guardachuva, até os diferentes produtos inventados para proteger da água, como capas e botas de borracha. Mas a utilização do guardachuva continua unânime para boa parte da população mundial. Nada melhor do que estar em casa e ver a chuva pela janela do quarto enquanto ela cai. Ficar em casa em dia de chuva no inverno, assistir “Sessão da Tarde” com uma pipoca e um chá quente. Isso é privilégio para alguns. Para outros, o dia começa cedo. A chuva pode atrapalhar os planos de quem quer chegar ao trabalho seco e salvo. PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2011 | 105


Histórias de pessoas molhadas em dias chuvosos são comuns. O estudante do curso Técnico Ambiental Stheve Balbinotti conta que em seu primeiro dia morando no bairro Belém Novo, em Porto Alegre, acabou por se molhar por não conhecer o lugar. Estava esperando o ônibus de terno e bem arrumado para ir ao trabalho quando notou que todos que esperavam o ônibus não se abrigaram embaixo da parada. “Eu resolvi me proteger da água e fui para baixo da parada. O primeiro carro que passou me deu um banho. Fiquei todo molhado e cheio de barro. A partir daquele dia, nunca mais fiquei embaixo da parada. E até hoje as pessoas se molham no mesmo lugar”, relembra Stheve. Usar roupas de borracha, guarda-chuva, sair de carro, pegar um táxi... Tudo para continuar seco e protegido da água da chuva. O melhor é sair da rua e se proteger dentro de cinemas, cafés, museus, galerias de arte, teatros e shopping centers da cidade, para que o dia chuvoso não seja um dia deprimente e molhado.

OS VENDEDORES DE GUARDA-CHUVA Quando a chuva começa, eles aparecem nas ruas como em um passe de mágica. Para conseguir um depoimento de um vendedor resolvi ficar na esquina do Mercado Público sem guardachuva nas mãos para ver se eles vinham me oferecer um, mas nada. Fui conversar com eles, mas fugiam de mim como se eu fosse o Giovani Grizotti. Um deles disse: “Não vendo apenas guarda-chuvas na rua, vendo outros ‘materiais’”, por isso não falaria com um estudante de jornalismo nem anonimamente. “Pode embaçar pro meu lado”, disse outro vendedor. Consegui o contato com um deles, me imaginei como se estivesse investigando um caso de polícia. O vendedor de guarda-chuvas (vamos chamá-lo de João, ele pediu anonimato) tentava vender um guarda-chuva de qualidade duvidosa por cinco reais. “Qualidade? Nem penso na qualidade do guarda-chuva”, disse João, sorrindo. João trabalha há seis anos vendendo guarda-chuvas e em períodos chuvosos chega a vender cerca de vinte por dia. 106 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2011


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o começo da reportagem imaginei que o tema era fácil, que em poucos dias estaria com o trabalho pronto. Porém, falar sobre chuva acabou me dando muitas opções, e muita opção para falar do mesmo assunto pode atrapalhar. Se tivesse feito o trabalho sobre um lugar, como inicialmente tinha pensado, teria informações precisas sobre aquele local e faria o trabalho de maneira mais eficiente. Mas resolvi encarar. Escrevi a primeira versão do texto e confesso que ficou muito a desejar. Estava perdido. Uma incógnita, pois não sabia o que queria dizer. Era um texto sobre chuva, mas sem levar a lugar algum. De repente, meu trabalho foi ficando cinza e nebuloso. Todo trabalho só é difícil se você não executá-lo. Caminhei pelas ruas de Porto Alegre e conversei com muita gente, histórias bem humoradas, outras tristes e preocupantes sobre chuva. Um punhado de histórias. Ideias apareceram nas conversas com as pessoas. Um trabalho no início perdido, que não ia a lugar nenhum, virou um texto com mais caracteres do que o exigido. E tudo graças às pessoas que entrevistei.

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Para quem precisa sair em dias chuvosos e não quer encarar o trânsito caótico, o guarda-chuva ainda é a melhor proteção


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LIEGE FREITAS

ERGUENDO PAREDES E SONHOS O DIA A DIA DE QUEM TEM O CINZA DO CIMENTO COMO MATÉRIA PRIMA Texto de DAIANE BENIN Fotos de LIEGE FREITAS e PABLO FURLANETTO

À

s 9h de uma quinta-feira, José Neri Henz, 43 anos, toma seu café em meio a tijolos e sacos de cimento, cercado pelo cinza das paredes recém erguidas que logo se transformarão na nova loja da irmã. Natural de Estância Velha, iniciou o trabalho como pedreiro após perder o emprego em uma loja de calçados em Novo Hamburgo em 2002. Em 2004, quando sua esposa estava grávida da única filha do casal, ele começou a trabalhar como ajudante de pedreiro, mas após um ano já estava assumindo obras. “Eu comecei ajudando um senhor que trabalhava lá em Estância Velha, mas depois ele é que acabou se tornando meu ajudante”, brinca. “É que ele foi ficando pra trás, não se especializou. Em qualquer tipo de trabalho é preciso evoluir, se não tu acaba ficando pra trás.” Ele afirma que deixar o trabalho em uma empresa para misturar cimento, carregar tijolos e rebocar paredes não foi tão difícil como alguns podem imaginar: “Tendo boa vontade, nada é difícil”, enfatiza. Neri, como é conhecido, faz de tudo na obra: desde a fundação, até a colocação de piso e a parte elétrica. Segundo ele, trabalhar em obras é bastante cansativo, especialmente com uma jornada de trabalho que dura dez horas. “Se eu trabalhasse umas oito horas por dia não seria tão puxado.” As estações do ano se apresentam como um desafio aos profissionais da construção. No inverno, a chuva pode atrapalhar o andamento de um projeto: “É complicado, porque se eu iniciei a obra e estou trabalhando na parte externa e começa a chover, PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2011 | 109


PABLO FURLANETTO

tem que parar, não tem jeito.” Já no verão, o sol pode se tornar um inimigo desses profissionais com longas cargas horárias. “Às vezes o sol judia”, comenta. “O bom é iniciar uma obra e deixar pra fazer a parte interna em dezembro e janeiro, quando o calor é mais forte.” Há sete anos trabalhando em construções, ele reflete sobre o seu futuro na profissão, dizendo que daqui alguns anos pretende trabalhar ajudando a esposa, que é dona de uma loja. “Uma hora o cara vai se entregar. Chega uma certa idade que a pessoa não vai dar conta de trabalhar em obra, não vai mais ter o pique necessário, porque o trabalho é pesado. A menos que o cara monte uma equipe pra só comandar o serviço, senão, tem que trabalhar com outra coisa.” Foi exatamente isso que fez Osni Generoso de Vargas, hoje com 44 anos. Enquanto supervisiona uma obra em Sapucaia do Sul, ele afirma orgulhoso sobre o seu amor pela profissão e a dificuldade de encontrar profissionais que queiram seguir nesta carreira. Após 30 anos trabalhando como pedreiro, ele abriu a sua empresa de construção há cinco. Sua primeira obra foi em Arroio do Sal, onde nasceu e se criou, quando tinha pouco mais de dez anos de idade. Mesmo não tendo tido a oportunidade de estudar e tendo entrado no mercado da construção ainda muito novo, ele afirma que sempre gostou de trabalhar em obras. “Mas hoje em dia a maioria trabalha em obra porque não tem estudo. Eu também não estudei, mas fiz porque gostava. E gosto ainda. Hoje eu teria oportunidade de fazer outras coisas, mas eu não quero. Eu quero lidar com construção.” Osni foi para Canoas para construir a casa da filha de um cliente e nunca mais voltou para Arroio do Sal. “Eu atuei como pedreiro em Canoas durante uns oito anos”, relata. Em 2005, começou a trabalhar, ainda como pedreiro, em Sapucaia do Sul, e um ano depois decidiu abrir sua construtora na cidade. Ele reside em Canoas com a esposa, mas tem sua construtora em Sapucaia e realiza obras também em outros locais. “Tenho obras em várias cidades. Então eu saio de casa de manhã e almoço onde estiver, só chego em casa à noite.”

TUDO IGUAL

“Chega uma certa idade que a pessoa não vai dar conta de trabalhar com obra” José Neri Henz, pedreiro

Ao contrário de Neri, Osni não acha a rotina em obras cansativa. “Depende da pessoa, se gosta ou se não gosta. Antigamente era pior, hoje tem várias ferramentas, está tudo bem mais fácil”, completa. Ele afirma que não sente falta de não ter estudado e, mesmo se pudesse voltar no tempo e escolher outra profissão, teria feito tudo igual: continuaria trabalhando em construção. Segundo ele, a maior recompensa da profissão é observar o legado que ele ajudou a erguer. As paredes cinzas que foram construídas com muito suor e que para muitos são vistas apenas como mais um trabalho, para Osni são a motivação para acordar todos os dias. “Quando tu olhas pra trás, tu podes ver o que tu fez. Construir uma casa não é só construir uma casa. O sonho de todo mundo é ter um casa, e tem que ter alguém que faça. É isso que me motiva. Saber que as pessoas me procuram porque precisam de mim para realizar esse sonho.” Com 20 funcionários com carteira assinada e outros contratados conforme a demanda, o hoje empresário afirma que é difícil encontrar alguém que compartilhe do seu amor pela profis110 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2011


são. “É complicado arrumar funcionários. A maioria deles está neste mercado porque não teve outras oportunidades. Eles vão porque é obrigação, porque precisam do dinheiro.” Com uma rotina puxada (ele começa a trabalhar às 6h30min e só chega em casa às 20h), Osni atualmente supervisiona 12 obras em andamento em Sapucaia do Sul, Esteio e Portão. “É bom, o dia passa muito rápido. Eu trabalho dez horas por dia, mas é como se fossem só duas. Eu não vejo o dia passar. O dia pra mim teria que durar mais”, brinca. E parece que o amor pela profissão corre no sangue: Osni tem um filho, um irmão e um cunhado que também trabalham com obras. “E a minha filha quer fazer arquitetura”, diz, orgulhoso. Agora enquanto dono da construtora, ele passa os dias comprando materiais e ferramentas e supervisionando o trabalho de suas equipes em diversas obras. Mas ainda dá uma de pedreiro sempre que surge a necessidade. “Esses dias um dono de uma casa que construímos me ligou pra dizer que havia um vazamento debaixo dos azulejos. Eu mesmo fui lá e consertei. Ele ficou surpreso, pois a maioria dos donos das construtoras é apenas dono, eles nunca atuaram como pedreiros, como eu fiz.” Um fato curioso sobre as construções, segundo Osni, é que, na maioria dos projetos onde é contratado, todas as decisões são tomadas pelas mulheres. “Eu acerto tudo com elas, os homens só assinam o contrato e passam os cheques, mas quem resolve as outras questões são as mulheres”, comenta. Os profissionais da construção que cumprem longas jornadas de trabalho têm no cinza do cimento sua fonte de renda. Alguns por não terem tido outras oportunidades no mercado de trabalho. Outros, porém, encontram na profissão uma maneira de ajudar a erguer sonhos em forma de prédios.

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hego ao último semestre do curso quase sem nenhuma experiência na área, a não ser por um ano e meio de estágio em assessorias de imprensa que me fizeram perceber que não era exatamente isso o que eu queria fazer. Deste modo, a disciplina de Redação Experimental em Revista se mostrou como um desafio. Não daqueles que te motivam, e sim do tipo que te causam receio e te fazem evitá-lo até o último minuto. Mas, como não havia escapatória, tive que arregaçar as mangas e partir para as entrevistas. E qual não foi a minha surpresa ao perceber que eu gostei e até mesmo me diverti durante o processo. Conversar com as minhas duas fontes foi prazeroso e inspirador. Escrever a matéria, talvez pela minha falta de prática, nem tanto. Eu diria que me senti tensa e apreensiva, sempre exigente demais comigo mesma. Será que é assim mesmo? Será que vai ficar bom? Se ficou ou não, cabe a você, leitor, decidir. O que posso dizer é que me senti realizada por conseguir vencer este desafio e que admiro muito os colegas que o fazem diariamente. Pois, ao contrário do que possa parecer, não é nada fácil.

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“O sonho de todo mundo é ter uma casa, e tem que ter alguém que faça. É isso que me motiva” Osni Vargas, construtor

PABLO FURLANETTO


ANDRÉ ÁVILA


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Sexo frágil Não foge à luta E nem só de cama Vive a mulher... Por isso não provoque É Cor de Rosa Choque

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Rita Lee


A CASA COR 114 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2011


FERNANDA MANDICAJU

DE ROSA PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2011 | 115

UM OLHAR PARA VIDAS DE DETENTAS DA PENITENCIÁRIA FEMININA MADRE PELLETIER


Cerca de 80% das prisões de mulheres envolvem o tráfico de drogas. Na maioria dos casos, elas se relacionam com traficantes e acabam sendo condenadas

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Texto de NATÁLIA GAION. Fotos de FERNANDA MANDICAJU e LIEGE FREITAS

venida Teresópolis, número 2.727, Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Um local com grande fluxo de carros e pedestres, comércios e residências ao seu redor. Na esquina, uma enorme casa cor de rosa. Nas janelas, grades. Em cada grade, roupas femininas e lençóis pendurados que chamam atenção dos que passam. Esse é o maior presídio voltado para mulheres do estado do Rio Grande do Sul, a Penitenciária Feminina Madre Pelletier (PFMP). Essa instituição prisional teve início em 8 de fevereiro de 1937. É originária do antigo Instituto Feminino de Readaptação Social Bom Pastor, o qual foi obra apostólica das irmãs pertencentes à Congregação Nossa Senhora de Caridade Bom Pastor. O prédio rosado onde hoje funciona a penitenciária foi inaugurado em 1944. Desde 1971, é órgão estadual, mas somente a partir de 1981 deixou de ser dirigido pela Congregação Religiosa. “Aqui funcionava uma espécie de convento. Elas eram mandadas para cá pelos seus pais e maridos, que tinham o intuito de reeducá-las, reabilitá-las”, conta a delegada da Delegacia Penitenciária da Mulher, Maria José Diniz. A penitenciária abriga, hoje, 374 mulheres, mas sua capacidade é de apenas 260. “Como o prédio não foi construído para ser um presídio, estamos sofrendo com esse grande problema de superlotação. São mais mulheres do que cama”, ressalta. No Rio Grande do Sul existem 94 presídios, sendo que 74 deles aceitam também mulheres. A população carcerária feminina aumentou cerca 600% nos últimos 15 anos, segundo a delegada. “A maioria das mulheres vai para o crime por causa de envolvimento com tráfico de drogas, são cerca de 80% da estatística. Elas geralmente se envolvem com traficantes e acabam dentro dos presídios”, aponta Maria José. Adriana Moraes Fernandes, de 35 anos, ilustra bem essa estatística. Tinha uma vida normal, era casada havia 13 anos, tinha um emprego e criava seus três filhos – dois meninos e uma menina. Divorciou-se e, após um ano, se envolveu com um rapaz. Ela sabia do trabalho que ele fazia e dos seus riscos, mas não imaginou que isso lhe traria problemas. “Até que um dia ele me pediu para pegar uma carga no Morro da Tuca. Eu não sabia como chegar lá e pedi para meu irmão ir comigo. Fomos

de carro, pegamos o material e, na volta, na avenida Bento Gonçalves, a polícia nos cercou. Era viatura de todos os lados e o barulho infernal das sirenes. Nos pegaram com nove quilos de drogas”, relata. Ela e o irmão foram presos. Ela tinha consciência do que fazia, mas não imaginou que seria pega. Não contava que o celular que o namorado havia lhe passado estava grampeado pela polícia. “Os policiais na delegacia riam da minha cara, me chamavam de mula, porque eu estava apenas transportando.” Adriana foi condenada a seis anos e seis meses de prisão por tráfico de drogas e, junto com ela, levou o irmão, que acabou ficando dois meses preso. “Na audiência, eu assumi a responsabilidade, ele não tinha culpa”, afirma. Passados dois anos e sete meses, arrepende-se profundamente de não ter dito não ao namorado, que nunca a visitou no presídio e nunca se preocupou em saber como ela estava. Apesar do grande arrependimento por suas escolhas erradas, Adriana é capaz de sorrir. No mês de agosto, teve sua pena reduzida para cinco anos por ser uma detenta trabalhadora. A penitenciária tem um sistema de pena de redução para as mulheres que trabalham na manutenção da casa – cozinha e serviços gerais – ou nas entidades do governo do estado que têm parceria com o presídio, como é o caso da Companhia Rio-Grandense de Artes Gráficas (Corag) e o Departamento Estadual de Trânsito do RS (Detran-RS). A cada três dias de trabalho é diminuído um de pena. Há ainda algumas empresas privadas que têm sede dentro do presídio. Adriana trabalha na cozinha do presídio. Junto com ela, fazem os serviços da cozinha mais 42 detentas, dentre elas Cecília do Carmo Porto, 48 anos. A equipe é dividida em dois turnos. Cada uma trabalha cinco horas diárias. “A realidade da cadeia é outra bem diferente da que vivemos nas galerias das trabalhadoras. Aqui é limpo, organizado, cada uma tem sua cama, seu espaço. A gente sofre um pouco de preconceito com as demais detentas. Dizem que trabalhamos para a Polícia, mas eu não me arrependo. Ganho meu dinheirinho (cerca de R$ 50 mensais), ocupo a cabeça e ainda reduzo minha pena”, revela Adriana. Além disso, a detenta aguarda sua liberação para o regime semi116 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2011


LIEGE FREITAS

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LIEGE FREITAS

Na cozinha, Adriana (à direita) e Cecília compartilham suas histórias e dividem sentimentos. Enquanto uma aguarda pelo regime semi-aberto, a outra não vê esperanças de sair tão cedo

aberto, que já foi concedido pela justiça. “Eu destrui minha vida por um homem que nunca se preocupou comigo. Me arrependo muito, mas aprendi com tudo isso. Quando eu sair daqui quero virar a página, vou ser outra pessoa”, afirma Adriana. Planeja trabalhar na empresa de engenharia civil de seu pai. Adriana conta que, envolvido com ela, seu pai acabou empregando um grupo de mulheres ex-detentas e em regime semi-aberto. “E eu vou ser uma delas”, sorri encabulada. No entanto, num universo entre tantas mulheres, há casos pouco menos prósperos. Cecília é um deles. Depois de 16 anos de casada, foi acusada como suspeita do homicídio do marido, porém, o motivo de estar presa é tráfico de drogas. Permanecerá por 13 anos e quatro meses na prisão. Cecília está no presídio há um ano e três meses. Tudo começou com o sumiço de seu marido, Flávio Stamm da Rocha, que era oriundo de uma família rica e de influência da cidade de Gravataí, na Região Metropolitana de Porto Alegre. Cecília e ele estavam há 16 anos juntos e tinham dois filhos — de 15 e de 14 anos. “O meu caso foi assunto por semanas nos jornais e televisões do Estado. As man-

chetes sempre me acusavam, mas eu sou inocente. Não tenho porque ter matado meu marido. A gente tinha brigas como qualquer casal, mas a gente se amava. Além disso, nunca usei droga. Nem sabia como usar”, acrescenta. Por oito meses, seu marido ficou desaparecido. Descobriram que ele estava morto por confissão de um conhecido que trabalhava com seu sogro, ela foi apontada como mandante do crime e como amante do assassino. Cecília sofreu ameaças, teve seu sítio destruído por um incêndio e, por fim, a polícia encontrou 40 papelotes de cocaína, além de crack e maconha, em sua casa, o que levou à sua prisão. Sua vida não tem sido fácil. “Passei quatro meses na galeria comum. Eram 147 mulheres para 13 celas, cada cela tinha oito camas e 25 mulheres. Tínhamos que optar pelo chão ou em dividir a cama com alguma detenta. Foi a pior fase.” Hoje Cecília vive na galeria das trabalhadoras, divide seu espaço com mais 20 detentas, mas tem sua própria cama. Cecília tem pouca esperança e aguarda a audiência do processo do homicídio do seu marido. “O que me adianta dizer que sou inocente, que não matei meu marido e que não tinha amante. Não tenho perspectiva e nem esperança. Eu posso pegar mais 20 anos de prisão. Se isso aconte118 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2011


LIEGE FREITAS

cer, não sei o que fazer.” Cecília diz que de tudo tirou uma lição: não confiar em mais ninguém. “A gente tem que se preocupar primeiro com nós mesmos”, referindo-se a mulher ingênua e inocente que era quando entrou na prisão. Ela aponta que sofreu muito com toda essa história e que o fato de os filhos não a visitarem a machuca demais. “Meu sonho é ter notícias deles”, emociona-se. Essas são apenas duas das dezenas de histórias de vida que esse imenso prédio cor de rosa possui. Há as que, como Adriana, vão sair aliviadas por estarem livres, ou as que sentem a fúria e o ódio, como Cecília. Mas também tem as que nunca tiveram uma vida cor de rosa e que acreditam estar melhor lá dentro do que na rua. Há aquelas que têm a penitenciária como um lar e as que tiveram seus filhos e os criam lá. Possivelmente, há as meticulosas, que passam o tempo arquitetando e colocando em prática seus bárbaros projetos ou, simplesmente, passam seus dias trabalhando para uma redução de pena. São vidas difíceis que habitam esse casarão, em sua maioria, vidas que nunca foram cor de rosa, vidas que, provavelmente, também nunca serão. PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2011 | 119

IMPRESSÕES DE REPÓRTER

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uando escolhi a pauta sobre a cor rosa imaginei falar sobre a característica delicada, romântica e poética da cor. Assim, surgiu, inicialmente, a ideia de escrever sobre a Casa de Cultura Mário Quintana. Seu prédio cor de rosa me chamava a atenção e eu poderia falar sobre poesia, literatura, história e cultura. No entanto, entendi que o caminho era relatar sobre o quanto a vida não é simples, em o quanto penamos para conseguir um “lugar ao sol”. Escrever, então, sobre a Penitenciária Feminina Madre Pelletier se encaixou perfeitamente ao que eu imaginei. Retratar mulheres que vivem em uma casa cor de rosa, mas que nunca tiveram esse padrão de vida seria a minha meta. Eu sabia que não seria simples, e não foi. Tive dificuldades no agendamento da visita, em como me reportar com as detentas e em como questionar sem ser indelicada. Tive dificuldade para escolher o que escrever. No fim, as entrevistas foram além do que eu imaginava. Elas se emocionaram, eu me emocionei. E o resultado é esse, um retrato de uma pequena parcela de vidas nada cor de rosa”.


GUERRA A COR ROSA É O SÍMBOLO DA LUTA DE MILHARES DE MULHERES CONTRA O CÂNCER DE MAMA

Texto de ESTEFÂNIA CAMARGO Fotos de ANELIZE SAMPAIO e HIDDEN

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HIDDEN (STOCK.XCHNG)

PELA VIDA

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A FORÇA DE ROSA “Na virada do ano de 2005 para 2006, minha vida era uma maravilha. Casada e bem sucedida, me sentia uma mulher querida e amada por todos a minha volta. Apesar de me dedicar muito ao trabalho, sempre arrumei tempo para curtir minha vida com meu esposo, o qual amo muito. Numa noite quente de janeiro, acordei assustada e com muito frio. Estava com febre. Havia sonhado, e no sonho minha tia, que já é falecida, me dizia para procurar um médico, pois eu estaria com um nódulo no seio. Como já tinha outros casos de câncer na família e essa mesma tia com quem sonhei havia falecido por causa do câncer de mama, resolvi procurar um médico. Na manhã seguinte, levantei cedo e marquei uma consulta com uma ginecologista para o mesmo dia, tamanha era a minha preocupação. Na consulta, a médica localizou um nódulo no seio direito, mas apenas com outros exames teria o diagnóstico da doença. A doutora pediu que eu fizesse uma bateria de exames de urgência para só então termos certeza do que estava acontecendo. Tentei não me apavorar, mas foi inevitável. A situação se agravou ainda mais quando tive que fazer uma punção de mama. Naquele momento, entrei em desespero. Eram dois nódulos, mas precisava esperar o resultado da biopsia para procurar um mastologista, que poderia me dizer se eles eram malignos ou não. Quando recebi o resultado do exame com a confirmação de que o nódulo era maligno, minha vontade foi de desistir de viver. Fiquei desnorteada, pois o exame indicava a necessidade da retirada da mama. Fui perdendo peso e, junto com ele, minha segurança, felicidade, auto-estima, sexualidade e até mesmo minha identidade. A cirurgia foi marcada às pressas e, após uma semana da retirada da mama, enfim uma boa notícia: nenhum linfonodo ficou comprometido. Mesmo assim, ainda havia a necessidade de quimioterapia o que me desanimou novamente. Meu marido sempre acompanhou todo meu tratamento, mas, para mim, ser uma mulher sem um seio era horrível, mal conseguia me olhar no espelho. O sofrimento foi diminuindo, e eu, me acalmando. Resolvi procurar um cirurgião plástico para fazer a reconstrução da minha mama, o que fez eu me sentir uma nova mulher. Já estou preparada para cirurgia que vai me dar novamente à mama. Ela poderá ser feita dentro de poucos meses. Enquanto o dia não chega, coloquei um expansor no dia da mastectomia, pois somente quando estiver liberada da quimioterapia poderei fazer a reconstrução. O maior estrago causado pelo câncer não é físico, pois a mama se reconstrói e o cabelo cresce! O maior estrago é emocional, pois é o mais difícil de reconstruir. Acho que a melhor forma de começar é agradecer a Deus por estar viva e tentar tirar proveito de tanto sofrimento. Espero com tudo isso me tornar uma mulher mais forte, segura, porém mais humana, mais simples, e buscar a felicidade não só para mim, mas também para meus semelhantes. Agora, tenho convicção de que estou curada e agradeço a todos que tiveram suma importância nessa caminhada, que me deram força e coragem para enfrentar e combater esta doença.” Maria da Rosa Fernandes

N

aturalmente a cor rosa traz a ideia de alegria, de beleza e também de feminilidade. Mas, há alguns anos, o rosa representa muito mais que uma simples cor, representa também uma luta. Uma luta contra um mal mundialmente conhecido e que acaba com milhares de vidas por ano. Uma luta contra o câncer de mama, doença que atinge diversas mulheres em todo o mundo. Entretanto, a enfermidade que assusta quem a enfrenta, também se depara com a força que transforma a vida de muitas pessoas que convivem com ela. Não são apenas mulheres, mas são seus companheiros, seus filhos, seus familiares, seus amigos, que juntos compartilham da esperança da cura. A coragem feminina é tão grande que a cor rosa se tornou o tom da luta contra o câncer de mama. Jurema dos Santos, 42 anos, nascida e criada na zona rural, é um exemplo de mulher corajosa. Descobriu que há três anos tem câncer de mama. Foi com o apoio da família que resolveu se mudar para o município de Novo Hamburgo na busca de tratamento para a cura do câncer. Ela relata que a quimioterapia é a pior parte do tratamento, mas também sabe que só assim poderá se curar do câncer. Jurema conta emocionada que, a partir do momento que soube que tinha câncer, seu mundo parou. A vida não parecia ter mais sentido algum, pois o medo de ter câncer a assustava desde a infância, já que nem sempre se consegue vencer a doença. “A gente tem que dar mais valor para a vida, se preocupar mais consigo mesmo”. O apoio dos filhos e da família foi fundamental para Jurema. Para ela, este é um dos principais motivos para vencer esta doença que ainda faz muitas vítimas. Para ajudar na luta de mulheres como Jurema e comemorar a vida é que as instituições e projetos desenvolvidos para auxiliar na batalha contra o câncer escolheram a outubro como o mês rosa. A doença, que se caracteriza por afetar não só a saúde da mulher, como sua auto-estima, confiança e intimidade, também já foi considerada em vários lugares do mundo como fator alarmante de óbitos femininos. Hoje, com diversos trabalhos sendo realizados para a prevenção, esses números caíram muito. No Brasil, cerca de 10% no ano de 2010, em comparação com 2008, época em que foram detectados 11.735 casos de câncer de mama nas mulheres brasileiras segundo o Instituto Nacional de Câncer (INCA).

TRATAMENTOS

Um dos tratamentos mais conhecidos para a enfermidade é a quimioterapia, que utiliza medicamentos para destruir as células doentes que formam o tumor. Segundo a oncologista clínica Roberta Bressani, a escolha do tratamento depende do tipo de câncer e de seu estágio. “A quimioterapia pode ser curativa, complementar, paliativa ou agir junto com a radioterapia” acrescenta. A administração desses medicamentos tem a intenção de destruir as células doentes que estão formando o tumor e impedir que elas se espalhem pelo corpo. “A quimioterapia pode ser aplicada semanalmente, continuamente ou em intervalos regulares, podendo ter duração de vários meses”, afirma. Entre os principais efeitos colaterais está o cansaço, estomatite, náuseas, diminuição da imunidade e possível queda de cabelo. A médica alerta sobre a necessidade de se procurar um oncologista clínico ou um cancerologista no caso do diagnóstico de câncer. “Este é o especialista que vai poder indicar o melhor tratamento”, completa. 122 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2011


O câncer mais comum no Brasil não é mais o de o mama que por muitos anos permaneceu a frente no número de mortes de mulheres no país – e sim, o de pele. Essa mudança se deu graças ao trabalho preventivo e educativo realizado num esforço conjunto entre entidades e pessoas que se preocupam com a saúde das mulheres. A médica alerta também que, quanto mais precoce o diagnóstico, maiores são as chances de cura. A coordenadora e vice-presidente da Liga Feminina de Combate ao Câncer de Mama em Novo Hamburgo, Teonisia Reichert Vital da Silva, relata que esse trabalho social surgiu para ajudar pessoas de baixa renda de todo o Brasil na distribuição de remédios, roupas, comida, assistência psicológica e nutricional. Atualmente, somente na cidade de Novo Hamburgo, a Liga possui em seus registros cerca de 170 mulheres com câncer de mama em tratamento. Em Porto Alegre, o Instituto da Mama do Rio Grande do Sul (Imama) é uma organização sem fins lucrativos, reconhecida desde 2000 pelo Ministério da Justiça como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP). Este instituto foi fundado em 29 de julho de 1993, por um grupo de voluntárias e, desde então, tem como presidente a mastologista Maira Caleffi. O principal objetivo da entidade, desde sua fundação, é comunicar a população sobre a saúde da mama e amparar outras mulheres a não passarem pelas mesmas dificuldades que as pioneiras voluntárias passaram em anos anteriores. Precursor em diversos projetos, o Imama foi quem instituiu o Outubro Rosa, movimento mundial de mobilização pela prevenção do câncer de mama. No mundo inteiro, são realizadas ações para a conscientização das pessoas, incluindo a iluminação de prédios e monumentos na cor rosa. Na capital, monumentos históricos como o Palácio Piratini e o Museu Iberê Camargo receberam este tipo de iluminação. No Brasil, pelo quarto ano consecutivo, o Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, recebeu luminosidade em tons rosados, símbolo da campanha, que teve como tema mais do que um alerta, uma tentativa de salvar vidas. ANELIZE SAMPAIO

O VALOR DA VIDA “Com apenas 38 anos, descobri que tinha câncer de mama. Quando o médico me deu o diagnóstico, fiquei em choque e com a sensação de estar recebendo uma sentença de morte. Como descobri o nódulo bem no início, o tumor era pequeno, por isso não houve a necessidade da remoção da mama. Mesmo assim, passei por tratamentos como a quimioterapia e a radioterapia. Desde a descoberta da doença, sempre tive o total apoio da minha família e de amigos, que me deram força com palavras de amor, coragem e fé. Apesar da força que recebi, precisei de ajuda psicológica, que me fez compreender e aceitar melhor o problema. Hoje, aos 50 anos, estou curada. Aprendi a dar valor a muitas coisas, mas principalmente a entender que a vida é o bem maior e mais valioso que possuímos.” Marli Borges

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“T

rabalho em um hospital que atende mulheres com câncer, mas foi somente após as entrevistas realizadas com pacientes que têm ou tiveram a doença que consegui parar e imaginar as histórias de luta e superação que elas me contavam. Quando comecei a passar a reportagem para o papel, passei também a refletir sobre o assunto. Percebi que damos importância demais a coisas fúteis do dia a dia, enquanto muitas mulheres buscam a superação para enfrentar o tratamento contra o câncer. Isto sim é mais que uma luta diária. É uma guerra pela vida. Com os relatos dessas mulheres guerreiras, entendi que reclamamos de barriga cheia e que devemos aprender a dar valor às pequenas coisas e gestos. Também observei que a maior consequência para as mulheres não são as mudanças físicas que a doença provoca, mas sim o abalo emocional que ela traz. Apesar de tudo, vi também que essa luta vale a pena, pois o número de pacientes que superam o câncer de mama aumenta a cada dia e o ensinamento que essas mulheres trazem ficam para a vida toda.”

A vice-presidente da Liga Feminina de Combate ao Câncer em Novo Hamburgo, Teonísia Reichert Vital da Silva, conta que o projeto nasceu para atender mulheres de baixa renda PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2011 | 123



ANDRÉ ÁVILA

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Eu ando pelo mundo Prestando atenção em cores Que eu não sei o nome Adriana Calcanhoto


TRANSPARENTE,


MAS COLORIDA EM MEIO A TANTAS CORES, UM DOS PRINCIPAIS ELEMENTOS DA NATUREZA É INCOLOR. SERÁ?

Texto de TAÍS SEIBT. Fotos de ANDRÉ ÁVILA

P

ergunte a um pescador de que cor é a água. Se for Luiz Carlos Maciel, 56 anos, a resposta será espirituosa: “Agora está cinza, mas tem dias que fica da cor da Fanta”. Quando o rio está cor de laranja, não dá para pescar, coisa que Luiz Carlos aprendeu aos sete anos de idade, com o pai e o avô. À margem do rio Jacuí, na Ilha da Pintada, em Porto Alegre, Luiz retira as redes da água e separa os peixes da sujeira trazida de arrasto pela correnteza. Na companhia da mulher, Marinez Maciel, 54 anos, ele conta sua história na ilha, onde nasceu, cresceu e vive até hoje. “Quem é daqui dificilmente quer sair”, diz o pescador. A âncora que mantém o barco firme rio adentro é herança do pai, não deixando dúvidas de que as raízes da família Maciel estão firmes na Ilha da Pintada. Quando criança, ele saía com os mais velhos para a pescaria. Depois, a pesca virou profissão, garantiu o sustento e os estudos dos dois filhos: Jean, 35 anos, técnico em eletrônica, e Andrea, 32 anos, enfermeira. Trilhando seus caminhos do outro lado da ponte, os rebentos voltam para a casa dos pais para deixar as crianças: Luan, 12 anos, é filho de Andréa. Juan, sete anos, e Jeane, 11, são filhos de Jean. É ela, a princeza da família, que se mete a limpar peixe na beira do rio. Diz o avô que a moça é bonita, loira, de olhos claros, metida a modelo. “Até curso fez!”, conta Luiz, orgulhoso. Já Marinez destaca os dotes da neta para a lida. “Esta gosta de pescar! Os guris só querem saber de videogame”, revela. A conversa segue enquanto Luiz contabiliza a pesca do dia. Entre 20 e 25 quilos de peixe, a maioria, pintado. Pergunto se é por causa dele o nome da ilha. “Tem outras versões. Uns dizem que era por causa de uma onça, outros por causa de uma moça que se pintava muito para a época. Mas a do peixe é a que tem mais lógica”, filosofa.

ÁGUAS PASSADAS

A rotina é sempre a mesma: num dia, eles colocam a rede na água a uns 10 metros de profundidade. No outro,

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recolhem. Uma parte fica no viveiro, dentro d’água, para agradar os que preferem o peixe vivo. A outra, tem que limpar e congelar para vender na entressafra – de novembro a fevereiro, a pesca é proibida por causa da piracema, e os pescadores recebem seguro-defenso do governo. É assim a vida de Luiz há 48 anos. “Às vezes cansa, mas é uma terapia estar em contato com a natureza”, descreve o pescador. Entre suas memórias, está a de um tempo em que dava para beber a água direto do rio. Hoje, ele diz que tira mais de 10 sacolas plásticas por dia da rede. Duas vezes por ano, os pescadores da ilha fazem mutirão. Retiram mesa, geladeira e toneladas de garrafas pet de dentro d’água. Há 36 anos casada com Luiz, Marinez chegou à Capital com a família aos 12. O pai dela era dono de um barco que transportava arroz de Arambaré, no sul do Estado, para Porto Alegre. Navio de carga no rio, agora, só petroleiro. Vez que outra, eles vão para a Lagoa dos Patos, seguem em grupos, acampam por lá. São seis horas de viagem, mais o tempo da pescaria. Da época em que pescava com o avô, Luiz guarda uma panela de ferro, usada no fogo de chão, para fazer a comida no acampamento. “Briguei com meus tios para ficar com ela. Uma comida feita numa panela daquelas é outra coisa!”, diz. Agora, o pessoal vai com fogareiro, gerador, até televisão. São outros tempos. O que não muda é o gosto de Luiz pela vida na água. “Enquanto tiver saúde, vou continuar”, assegura.

A COR DA VIDA Pergunte a um químico de que cor é a água. Se for Sissi Maria Maciel Cabral, 52 anos, a resposta será precisa como uma ciência exata: “A água é verde”. Quando começa a explicação, a engenheira química troca elementos da tabela periódica por poesia: “Verde é vida, e a água é vida. Não é à toa que escolheram o verde”. Nas plantas das estações de tratamento, cada elemento tem uma cor codificadora. A da água tratada é verde, a do esgoto é cinza - “porque é uma água morta” - e a água


bruta é marrom, por causa da carapaça de sílica que cobre as algas do lago Guaíba, consagrado como rio. As tubulações seguem a mesma lógica. Química do Departamento Municipal de Água e Esgotos de Porto Alegre (DMAE) há 25 anos, Sissi é responsável pelo controle de qualidade da maior das sete estações de tratamento de água (ETA) de Porto Alegre, a José Loureiro da Silva. A cada segundo, três mil litros de água são bombeados para os tanques da ETA no bairro Menino Deus. O trabalho é 24 horas por dia, sete dias por semana. Para verificar se a água que sai das torneiras atende ao padrão de qualidade estabelecido pelo DMAE, são colhidas amostras em 60 pontos da rede de distribuição, diariamente. Elas passam por análises físico-químicas e são transformadas em números, gráficos e tabelas. Se a água está fora dos padrões, a distribuição é interrompida. Na ETA, uma substância coagulante é adicionada à água para que os residuais se aglomerem, formando flocos. Nos decantadores, os flocos vão para o fundo, deixando apenas o líquido. A transparência ideal é obtida pelo acréscimo de cloro. A engenheira, que afirma sequer usar tinta de cabelo para cobrir os fios brancos que começam a aparecer, garante que o uso da química é abominado pelos profissionais da área. “A satisfação plena do químico é não precisar usar química”, resume.

EM FORMA DE CHUVA Pergunte a um jardineiro de que cor é a água. Se for Isidro Schumann, 56 anos, a resposta será transitória: “A água é branca”, diz ele. “Na verdade, ela não tem cor”, remenda, depois de pensar um pouco melhor. “Água é tudo, porque sem ela não existe vida!”, arremata Isidro, que se tornou jardineiro da Dalkia na Unisinos em 2007, depois de uma vida inteira como agricultor no interior do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais. Filho de agricultores de Não-me-toque, uma cidadezinha do norte gaúcho, distante 280 quilômetros de Porto Alegre, Isidro cresceu no meio de plantações de trigo, soja e milho. Sabe bem o valor da água, esperada sempre em forma de chuva na lavoura. “Mesmo que seja irrigada, se não chove, seca o rio e não tem de onde tirar água”, explica. “Tinha épocas que passava tempo sem nenhuma nuvem no céu, nenhuma esperança. Quantas vezes a gente perdeu a safra inteira por falta de chuva...”, lembra. Nos anos 1980, muitos gaúchos migraram para Minas Gerais – “foram tentar a sorte”, como diz Isidro. Ele também tentou. Junto com o sogro, comprou uma fazenda em Patos de Minas, a 220 quilômetros de Uberlândia, no Triângulo Mineiro. Depois de um tempo, venderam as

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terras e mudaram para Guarda-Mor, 150 quilômetros de Uberlândia. No total, Isidro viveu 23 anos em Minas Gerais – suficiente para que seus três filhos nascessem em solo mineiro. Rodrigo, o do meio, agora com 26 anos, ficou em Uberlândia, onde trabalha num call center. A mais velha, Magali, 31 anos, é supervisora num call center em São Leopoldo, onde mora com o marido e o filho, Vitor, nove anos, no mesmo prédio que os pais. Isidro e sua mulher, Maria, moram em um edifício perto da universidade, com o filho mais novo, Gustavo, 22 anos, que faz faculdade de administração. Antes de ir para a “cidade grande”, a família ainda se aventurou em Camaquã, no sul do Estado, mas as oportunidades de trabalho, principalmente para os filhos, eram melhores mais perto da Capital. Então, a plantação de grãos deu lugar ao cuidado com a grama e as árvores do campus, mas com a mesma dedicação. “Nunca faltei serviço, nunca cheguei atrasado, nunca saio mais cedo, nunca tive um atestado”, enumera Isidro, orgulhoso, e se despede para terminar a poda que deixou pela metade enquanto concedia a entrevista. Pergunte a si mesmo de que cor é a água. Seja qual for a resposta, certo será dizer que, sem ela, a vida não poderia ser colorida em aquarela.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER

“A

gente aprende na escola que a água é inodora, insípida e incolor. A lição foi por água abaixo (perdoe o trocadilho) logo na primeira entrevista. Em busca de retratar o que não tem cor, tentamos colorir aquilo que a rotina torna meio desbotado. Começamos pela água da torneira, atravessamos a ponte do Guaíba e terminamos no campus da universidade. Desvendamos personagens anônimos do dia a dia. Tão anônimos que eu não sabia que o jardineiro mora no quinto andar do meu prédio! Serve para provar que o mundo é pequeno, que tudo o que fazemos impacta na vida do outro, e reforça a importância de cuidar do que me levou a conhecer meu vizinho: a água. Saímos da reportagem colecionando lições que os livros didáticos de ciências não tinham dado conta de nos ensinar.

Cada profissional enxerga a água de uma cor PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2011 | 129


Expediente Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) Endereço: Avenida Unisinos, 950. São Leopoldo, RS. Cep: 93022-000. Telefone: (51) 3591.1122. Internet: www.unisinos.br. ADMINISTRAÇÃO REITOR: Marcelo Fernandes de Aquino VICE-REITOR: José Ivo Follmann PRÓ-REITOR ACADÊMICO: Pedro Gilberto Gomes PRÓ-REITOR DE ADMINISTRAÇÃO: João Zani DIRETOR DA UNIDADE DE GRADUAÇÃO: Gustavo Borba GERENTE DE BACHARELADOS: Gustavo Fischer COORDENADOR DO CURSO DE JORNALISMO: Edelberto Behs

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Thaís Furtado (thaisf@unisinos.br) - Redação Flávio Dutra (flavdutra@unisinos.br) - Fotografia

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Disciplina de Redação Experimental em Revista Andressa Boll, Bruna Vargas, Carina Mersoni, Cecília Medeiros, Daiane Benin, Débora Soilo, Estefânia Camargo, Fabricio Teixeira, Fernanda Kern, Filipe Rodrigues, Giórgia Bazotti, Diego Dias, Juliana Brião, Liane Priscila Rodrigues, Lorena Risse, Luciana Bohn, Luísa Staldoni, Marília Bissigo, Natacha Oliveira, Natália Gaion, Natália Vitória e Thaís Jobim MONITORIA: Taís Seibt Colaboração Estagiários da Agência Experimental de Comunicação (Agexcom) Amanda Heredia, Marina Cardozo, Paola Gonçalves e Willian Mansque, sob orientação do professor Eduardo Veras

Alunos-Fotógrafos

Disciplina de Projeto Experimental em Fotografia Ana Paula Figueiredo, André Ávila, Anelize Sampaio, Barbara Bauer, Beatriz Mross, Carolina Kazue, Dierli Santos, Fabiana Eleonora, Fahra Witté, Fernanda Mandicaju, Júlia Klein, Liliana Egewarth, Liege Freitas, Lorena Risse, Luiz Fernando Barbieri, Mauricio Ott, Pablo Furlanetto, Priscila Pilletti, Raquel Bitencourt, Sergio Bohn, Tamires Gomes, Vanessa Ramos e Venise Borges FOTO DE CAPA: Carolina Kazue MONITORIA: André Ávila

ARTE E PUBLICIDADE

Agência Experimental de Comunicação (Agexcom) COORDENADORA-GERAL: Thaís Furtado

Editoração

ORIENTAÇÃO PEDAGÓGICA: Eduardo Veras e Thaís Furtado SUPERVISÃO TÉCNICA E PROJETO GRÁFICO: Marcelo Garcia DIAGRAMAÇÃO: Marcelo Garcia e Marcelo Grisa

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ORIENTAÇÃO PEDAGÓGICA: Letícia Rosa SUPERVISÃO TÉCNICA: Robert Thieme DIREÇÃO DE ARTE: César Escher REDAÇÃO: Morgana Morás ARTE-FINALIZAÇÃO: César Escher

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