Vacatussa 09

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FUTURO


Editorial Chegamos ao fim de 2014 com a sensação de dever cumprido e a certeza de que este, até então, foi o ano mais produtivo da história do Vacatussa. Com esta edição, alcançamos à 9ª Revista Vacatussa, das quais cinco números foram produzidos e lançados este ano. Mas antes de comemorar, lembramos que a proximidade do fim de ano também nos coloca diante de um novo ciclo. Num convite à imaginação, o ano que se insinua a partir da meia-noite do dia 31 de dezembro nos instiga a fazer promessas, estabelecer planos e metas. Por isso, resolvemos fazer desta uma edição especial, adotando como tema o futuro. Sem dar maiores instruções do que lançar essa palavra enigmática, convidamos alguns autores e antigos colaboradores do Vacatussa para se juntarem a nós diante desse abismo chamado amanhã. O desafio foi colocado na forma de páginas em branco a serem preenchidas por versos e histórias, na tentativa de traduzir em palavras nossa delicada relação com o tempo. Espero que gostem do resultado. Boa leitura e feliz ano novo a todos!

expediente

Edição Thiago Corrêa (vacatussa@gmail.com) Rua Setúbal, 914, 1002, Boa Viagem, Recife-PE, CEP: 51030-010.

Textos Bruno Liberal – Conrado Falbo – Débora Ferraz – Deco Vicente – Joana Rozowykwiat – João Paulo Parisio – Mário Lins – Nivaldo Tenório – Thiago Corrêa – Samarone Lima

Conselho editorial Aline Arroxelas, Joana Rozowykwiat, Julieta Jacob, Mário Lins, Thiago Corrêa

Ilustrações Alexandre Cavani – Clara Moreira – Hallina Beltrão – Raul Luna – Helena Pontes – Eduardo Padrão – Galdino Sa – Feliciano dos Prazeres – Victor Zalma – Jarbas

Projeto gráfico Jaíne Cintra

Periodicidade: Bimensal ISSN 2359-1609


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Passado - 4

Dedicatória - 6 No fim - 9 Quarto - 12 Sobre mistérios e pragmatismos - 14 A infinita queda - 16 Sombras de Tel’Ahmar - 18 Peso ou mola - 21 Evolução - 24 Antologia do Instante – Um livro sem futuro - 27 Atmosferas - 30


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Passado Conto: Bruno Liberal | Ilustração: Alexandre Cavani

Primeiro é o choro que passa, depois o vazio que se apodera. Ele prefere assim, com todos os equipamentos ligados e todas as luzes acesas. Conectado. O picolé que escorre vermelho e suja a camisa do filho. O homem que ele foi gritando. Dizendo para a criança tomar logo a porra do picolé e não se sujar. Olhando o relógio, respirando impaciente. Volta, retrocede. Vê novamente. Não chora mais, embora a dor seja sempre maior e vá gritando mais alto, mais alto. A menina estava brincando. Ele na rede, balançando devagar, lendo um livro. Ela corre com uma faca na mão. Ele lembra o que sentiu e o susto que tomou. A filha corre em sua direção com a faca apontada para cima. Ele pula e grita. Ela para e não entende. O homem


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que ele foi bate na criança com força para ela aprender a nunca mais pegar uma faca. E ter responsabilidade, ela precisa. É uma dor instalada, irresistível. O homem que é, agora, está sempre assistindo e sofrendo essas coisas. Não há fuga. É o seu alento. Restou isso para viver. (O mundo parece que ficou preso nessa redoma de acessos. Essa máquina é fantástica. Reconstruir as principais lembranças e projetar na nossa frente. Parece até que podemos pegar as imagens e viver novamente. E que pesadelo, meu Deus!) “Segura minha mão”, diz para essa imagem do filho. “Segura!” Mas a imagem é uma lembrança e se vale do passado para cumprir seus passos. Ela faz justamente o que fez, não se abre para o novo. Ele é espectador, mas também participa. O que faz é isso: olhar repetidamente a cena e ver claramente os olhos do filho, a faca da filha. A tristeza dos dois que também é sua. * Eu sinto: agora é o vazio que passa e o choro que se apodera. O quarto imundo. O cheiro de esgoto. A barba crescendo, grama que se arrasta. A pele que o tempo entrega, os fios brancos, a louça suja na pia, as roupas amontoadas, as baratas morando. Mas também estou sorrindo com meus óculos de realidade virtual. A casa limpa, o jardim florido, meus filhos correndo na década de dois mil e vinte. A pele macia recém barbeada, o cheiro que sinto, o sol e o céu. A comida farta. (Direciona o avatar e chama os filhos. Não consegue tirar dos olhos suas últimas lembranças. Tenta reprogramar e mudar a cor e esticar o sorriso e alterar as pálpebras. Nada disso muda o olhar triste. Ele sempre irá ver esse olhar. Sempre.) Queria entender essas últimas lembranças. Por que o menino lembra do picolé e a menina da faca? Assisto repetidamente às cenas. Digo para segurarem minha mão, tento participar, levá-los a outros lugares. Suja a camisa de vermelho, o brilho da faca. Penso que poderia ter feito algo. Os olhos tristes. Do meu filho. Olhos. Da minha filha. Olhos. Os meus secos, rijos, crispados em mim. Sempre fazendo algo meu, da minha vida. Trabalhando todo dia, rindo com os amigos, bebendo, fazendo a barba. Traindo a esposa. Traindo e traindo meus filhos. Mentindo, mentindo. E não consigo despertar. Todos estão mortos. Eu aqui. Vivo. Preso no passado. Trabalhando e trabalhando nos olhos. Para ficarem felizes. (Volta, retrocede. Vê novamente. A máquina, essa prisão: o passado. Qual futuro? Não chora. Sempre. Firme. Alta. A dor.)

Bruno Liberal é economista e escritor, estreou na literatura com o livro de contos Sobre o tempo (Editora Multifoco). Seu segundo livro Olho morto amarelo foi o grande vencedor do Prêmio Pernambuco de Literatura em 2013. Em 2014, lançou pela Mariposa Cartonera o livro Juro por Deus que é um final feliz. Vive em Petrolina-PE. E-mail: bl.liberal@gmail.


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Dedicatória Poema: Conrado Falbo | Ilustração: Clara Moreira

quanto do que pensei mas não fiz cabe em cada ação que finalmente viu a luz do dia? quanto do meu não-fazer ajuda a mover minha mão na hora de empunhar vontades? de vez em quando o mundo não cabe nos meus olhos


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de vez em quando meus olhos são poços sem fundo infinitos da cor do escuro onde mora tudo o que ainda não foi criado de vez em quando visito uma terra povoada pelos escombros de todos os pensamentos que um dia abandonei eles são muitos alguns grandiosos outros humildes todos parte de mim são minhas discretas profecias o material que uso para construir futuros rascunhos de vento sob asas que acabaram abrindo outros sentidos … tudo o que se vai sem ter vindo me interessa muito: o quase dito o que não chegou a ser esboço a ideia decantada em inação o desistido, antes mesmo de... o silêncio pensando melhor e além: o que nem se transforma em memória o que voa perto, mas não roça a superfície da consciência o que às vezes nem eu sei

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… aquilo que acontece sem ninguém ver continua acontecido em algum lugar e não é menos real por causa disso dedico a tudo que eu não cheguei a fazer tudo o que fiz

Conrado Falbo é artista, professor e pesquisador. Fez mestrado e doutorado em Teoria da Literatura com pesquisas sobre voz, corpo, palavra e performance. Deu aulas de literatura em algumas universidades e é artista ocupante do Coletivo Lugar Comum desde 2011.


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No fim Conto: Débora Ferraz | Ilustração: Hallina Beltrão

No fim da história eles ficam juntos. É isso que está escrito bem no topo da página, no começo do texto. Que ficam juntos. Ainda que, e isso vem logo em seguida, ainda que na verdade este ficar junto signifique que tenham que ficar muito sozinhos. Antes e rotineiramente. E ainda tem mais, é preciso dizer. Juntos são infelizes. Sim, não é sempre. Mas, às vezes, são infelizes. Porque o ácido úrico deu meio alto nos exames, o médico proibiu um monte de coisa e ele teve que cortar a cerveja. E ela, que agora usa o cabelo bem mais curto, precisa, reiteradas vezes, tingir a raiz e retocar as tatuagens dos braços, das costas, dos tornozelos, que desbotam. Às vezes cansa. Ficam juntos, mas cansa.


10 vacatussa #9 Não que ele tenha retocado alguma coisa. Porque as tatuagens dele eram poucas, todas pretas... Essas merdas vão ficar feias de todo jeito, disse. Cabelo, então, nem pensar, homem vai pintando o cabelo e vai ficando aquelas costeletas acaju... É sua piada preferida: homens com cabelo acaju. Repete sempre. Sabe como é? Todo mundo tá vendo que o infeliz pinta o cabelo, mas não tem coragem de dizer que tá ridículo — Nunca foi do tipo reservado; puxava conversa com a senhora da cantina; agora conta piadas— E o sujeito, bem que desconfia que não ficou bem, mas sem ter certeza, fica disfarçando com cara de cachorro que mijou na sala. Ela não gosta da piada por motivos óbvios. Já disse a ele, em casa, quando a sós: você sabe o que isso me lembra. Enfim, é mais um sinal do óbvio: ficaram juntos. Têm segredos compartilhados, dores compartilhadas. Ele poderia resgatar, por sua vez, se lembrasse: Também não gostei quando você estava com aquela ideia maluca de encher o corpo inteiro com tatuagens feias, lembra disso? Puta merda. Aquilo quase separou a gente!, diria. Mas não diz porque não lembra mais. Não lembram. Ela, também, se lembrasse, diria: Não foi “quase”, Marcelo. Nós, realmente, nos separamos, naquela época. Você pegou suas coisas, saiu. Porque era uma questão de espaço. O apartamento era pequeno demais para os dois. Diriam se lembrassem. Mas não lembram. Agora, que há espaço de sobra. Agora, que vivem num apartamento de bom tamanho onde cabem as coisas dela, as coisas dele, as coisas dos dois. É isso, finalmente, está tudo bem. Podem ser infelizes. Podem brigar por causa das piadas e ela pode repetir pela milésima vez, que não. Não vai querer outro cachorro. Tem isso: tiveram um cachorro. Viveu 12 anos. Morreu ano passado. Não foi fácil. E as piadas dele sempre pioram tudo. Me lembra a cara dele, tadinho. Ele fazia mesmo essa cara, quando fazia xixi na sala. Só que pra entender melhor essa configuração é preciso voltar ao longínquo e passado ano de 2014. Quando estavam com seus trinta anos e quando o problema não eram as piadas, nem o ácido úrico, nem o retoque de tinta nos cabelos. Não estavam de luto por cão nenhum porque, naquela época, não havia um cão. E é claro que se a história começa no fim, ela termina no começo. Ele precisou sair de casa. E deixou também uma historinha. Um texto truncado, mal-escrito, e que começava assim: no final, com eles ficando juntos. Mas aí, nesse ponto, tudo dependia, que ela concordasse. Quando chegasse em casa, naquele longínquo e passado ano de 2014, encontrasse o texto, lesse e concordasse. Certo. Precisamos de espaço. Um apartamento maior. Porque se ela não concorda. Se diz que não. Que é inviável. Então voltamos ao mesmo futuro e não há marcas tristes na parede, porque não há parede. Não compram o apartamento e esse cachorro, que viveu 12 anos, nunca existiu. E então ele entra no texto e diz: E seria uma pena porque era um cachorro ótimo! Invade o texto: Deixe-me falar um pouco dele. Ele tem um rabo que abana freneticamente, gosta de focinhar suas coisas na estante e, sempre, quando você chega, ele treme, uiva, se mija inteiro. É ótimo. E se você diz que não...


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E se ela diz não. Então voltamos para o futuro. O apartamento está ocupado por um casal vulgar, desses que vão ao shopping no sábado e acabam separados. E Marcelo é só um cara que tomou a decisão errada. E você? — diz o texto — O que aconteceu com você? Ele não sabe. Nesse futuro, ele não sabe. Não tem notícias dela há anos. Só teve uma vez a impressão de tê-la visto, na rua. As tatuagens... tem a impressão de ter reconhecido as tatuagens. Mas, então, ela entra no ônibus, o ônibus. É isso: mais um cara constrangedoramente correndo atrás de um ônibus que já partiu enquanto todos disfarçam o riso.

Débora Ferraz é escritora e jornalista. Seu primeiro romance, Enquanto Deus Não Está Olhando, foi vencedor da 10ª edição do Prêmio Sesc de Literatura. É autora ainda do livro de contos Os Anjos (2003). Seu conto O filhote de Terremoto, finalista do Prêmio Sesc Machado de Assis, foi adaptado para o curta-metragem Catástrofe (2013), dirigido pelo cineasta Gian Orsini. Trabalha atualmente em seu segundo romance e conclui o mestrado em Comunicação Social pela UFPB.


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Quarto Conto: Deco Vicente | Ilustração: Raul Luna

Ele veio. Atrasado, mas veio como um príncipe. Meu príncipe. Todo de branco, a pele corada, sem nenhuma ruga. O cabelo bem aparado, a barba feita. Mas por quê ele tá usando esse perfume diferente? Bobagem minha. Isso não é nada perto desses olhos castanhos. Por que ele deu meia volta? Deve ser porque estou na cama ainda. Dez da manhã e ainda de camisola. Preciso levantar daqui, me maquiar, ele não pode me ver assim, descabelada, sem nem um batonzinho sequer. Você sabe como é cabeça de homem.


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Um dia te ama e no outro te troca. Preciso dos meus cremes, não posso continuar envelhecendo tanto. Posso até perguntar que creme ele usa. O danado não envelhece. Tem a mesma carinha de 50 anos atrás. É amor, boba. Só pode ser amor. Onde estão minhas coisas? Que estranho. Não me lembro dessa última mudança. Deve ter sido ideia dele. Ah, sempre esperto. Como não confiar? Pediu pra tirar os quadros para não acumular pó por causa da minha alergia. O branco das paredes, do piso e do teto pra economizar luz. Mas cadê minha maquiagem? Tantos potes diferentes, nomes esquisitos. Acho que vamos ter que sair assim. Mas se ele me ama mesmo, não tem problema. Que se dane o que as outras pessoas vão pensar na rua. Somos nós dois. Só nós dois. Nessas horas o mundo não interessa. Finalmente. A porta abriu de novo. Mas quem é essa moça? Como ele traz uma mulher aqui em casa e não me diz nada? Ela está aqui no meu quarto e eu assim, sem estar vestida. - Dona Lourdes, bom dia. O Dr. Adauto teve uma emergência mas ele vem já, tá? Tá vendo? Ele vem. Atrasado, mas vem. Meu príncipe.

Deco Vicente, recifense, é de 1979 e visita a cidade regularmente. Já escreveu em alguns blogs, mas prefere omitir os detalhes. Hoje também tenta contar histórias através de câmeras fotográficas.


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Sobre mistérios e pragmatismos

Conto: Joana Rozowykwiat | Ilustração: Helena Pontes

Estava escrito. Lá nas estrelinhas do céu. Perfeccionista, trabalhadora, metódica, inteligente, crítica. Olhava para cima e lembrava de quem deveria ser. E era. Acreditava na força da natureza, no poder da lua e do dinheiro, claro, que podia ser meio esotérica, mas besta é que não. Então danou-se a trabalhar para garantir que o amanhã chegasse farto. Analisava processos, relatórios, enviava análises, recebia elogios, dava broncas, ganhava aumento de salário, franzia a testa, cobrava os prazos, era cobrada, varava as madruga-


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das, corria para a academia na hora do almoço, bebia um café e outro e outro. Comia um hambúrguer e outro e outro. Arranjava um tempinho para o salão. Começaram as reuniões na filial, depois as decisões sobre a fusão. Contratou jovens promissores, demitiu amigos experientes. Chegava atrasada no bar, desistia da festa, esquecia o aniversário. Perdia os encontros, evitava os encontros, odiava os encontros. Aff, que encontro? Telefonava para desabafar com os amigos. Depois ficou mais fácil mandar e-mail. Aí viu que WhatsApp era mais prático. Ontem desejou feliz dia dos pais com aquele smile maroto. Hoje nem tempo teve de entrar no Facebook. Não leu as notícias. Não conseguiu checar o e-mail. De reunião em reunião, distraiu-se. Não percebeu que era o grande dia. Há anos as runas confirmaram o que as cartas e os astros diziam desde 1999. Aquele seria o seu momento. A realização, o amor e a riqueza viriam naquela tarde de setembro. Ela sabia e preparou-se para recebê-los. Mas passou o dia trancada no escritório. Não viu que a prefeitura lançou um edital para novos escritores, nem percebeu Gabriel atravessando a rua e olhando saudoso para a cafeteria onde eles costumavam conversar nos intervalos do trabalho. Também não checou o saldo da sua conta bancária. E o dia passou assim, como também passaram-se os meses e os anos e tudo o mais, menos o seu futuro prometido, que ela insistia em esperar. E praguejava porque o amanhã das maravilhas nunca chegava e, com o tempo, passou a maldizer também as cartomantes, as constelações e os espíritos, que erraram feio nos seus presságios. Desacreditou dos mistérios e decidiu que seria cética. E era. Ou assim pensava. Até o dia em que o telefone tocou e Gabriel disse alô. Ela abriu um sorriso e disse que ele estava atrasado. Nem os deuses poderiam prever que ele fosse tão tímido.

Joana Rozowykwiat nasceu no Recife, em 1981, e hoje mora em São Paulo. É jornalista, especialista em Jornalismo Político e autora do livro Subversivos - 50 anos após o golpe, recém-lançado pela CEPE. Tem contos publicados na coletânea Recife conta o Natal I (2007) e no Suplemento Cultural Pernambuco. Integra o Vacatussa.


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A infinita queda Conto: João Paulo Parisio | Ilustração: Eduardo Padrão

Estou caindo. Meu futuro se resume aos poucos segundos que me separam do chão. Pode parecer absurdo que eu sequer tenha chance de pensar, mas só o tempo coletivo é unânime. Quanto mais a queda se acelera de fora para dentro, mais se torna lenta de dentro para fora. Creio que seja devido a um efeito semelhante que os pacientes terminais recordam suas vidas inteiras um momento antes de expirar. Terei uma era inteira para compor um futuro alternativo para mim caso não tivesse caído, pois foi preciso que eu caísse para perceber o quanto o original era insensato. Digo que era porque toda mudança de curso transmuta automaticamente num passado fantasmático o futuro a que o rumo primário conduziria. Tecerei este futuro hipotético com tamanho esmero que por fim me convencerei de que fui criado pela vida que criei, e então me debaterei em sua malha como na teia do


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destino, esquecido de que fui a aranha. E voltarei a cair, a cair na armadilha. Se assim é, devo me perguntar se esta é a primeira queda, se a vida que vivi até agora não foi engendrada em meio a outra, e assim sucessivamente. Se assim é, devo me perguntar: quantas vezes já caí, quantas ainda cairei? Meu futuro imaginário é mera repetição de futuros imaginados, de futuros passados? A desaceleração é tal que a queda para mim talvez nunca se conclua. Faz anos que estou caindo. Dentro de séculos interiores terei caído mais alguns metros, em milênios pairarei a milímetros do chão, e após eons a distância será da escala de nanômetros, mas nunca chegarei. Essa é sem dúvida uma das expressões do Inferno. Apenas reproduzo um paradoxo de Zenão: a metade de uma distância será sempre maior que zero, de modo que é impossível ir de um lugar a outro. Se isso é verdade, não há movimento, meu corpo não está caindo. Talvez os eleatas estivessem certos em crer que só existe a Esfera. Quanto a nós, se somos dotados de uma fração ínfima da Inteligência, talvez sejamos seus vértices, pois uma esfera é um poliedro platônico de faces infinitas, tão platônico que nem Platão o reconheceu. Porém os eleatas erraram em supor que a Esfera permanece intacta, invicta, imutável. Para que houvesse um Início foi necessário que experimentasse sua própria queda, e desde então está interminavelmente caindo, que se pulverizasse em um quintilhão e mais pontos, que são suas partículas indivisíveis e iguais a Ela, pois quem em sã consciência dirá que um ponto não é uma minúscula esfera? E a esses pontos os homens que o intuíram deram o nome de centelha divina, atma, mônada. Sendo a Esfera todo o Ser, contudo, ao explodir não tinha para onde expandir-se. Não sofreu qualquer alteração em Seu aspecto. Apenas deixou de ser una, fez-se miríade. Talvez a analogia menos imperfeita seja a de um organismo cujas células deixassem de servi-lo e regredissem ao estágio de moneras. Se mereceu tamanho sacrifício, a realidade é o grande amor da Esfera, a razão de ser do Ser. E mais: se o mundo sensível é uma ilusão, essa ilusão é, está na ordem do Ser, não na do Não-Ser. O homem é o único ente apto a presidir a transição entre as duas instâncias. Os frutos de sua imaginação são os rebentos de que o Ser está túrgido, e que um dia virão à luz. A Esfera, quem diria, está grávida, grávida de feras e quimeras. Tudo o que concebemos são sugestões para o próximo universo, e quando a obra desse estiver completa, tal será a matéria-prima do futuro. Inapelavelmente caindo, descubro tarde demais – que sou uma ponte. E já não especulo, pois assim como cada célula traz em si todo o genoma do indivíduo, cada mônada carrega toda a memória da Esfera, a não ser que essa seja apenas a lembrança do futuro circular a que tenho retornado eternamente, ou enquanto vegeto em uma cama.

João Paulo Parisio nasceu em 4 de setembro de 1982, no Recife. É autor do livro de contos Legião Anônima, publicado pela Cepe neste ano, e já teve trabalhos veiculados nos jornais Rascunho e Pernambuco, assim como nos sites O Recife Assombrado e Interpoética. Mantém o blog de poesia Ilha Invisível.


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Sombras de Tel’Ahmar Conto: Mário Lins | Ilustração: Galdino Sa

O ombro esquerdo de Sulaphin pulsava em ritmo com suas passadas, uma agonia que irradiava fogo por todo o seu braço enquanto ele corria ao lado de Ralek, duas sombras em disparada sobre os telhados de uma silenciosa Tel’Ahmar. “Um trabalho pra dois, Suli. É só entrar e sair, ninguém vai nos ver”, era o que Ralek havia dito, uma caneca de turgaal pela metade à sua frente na mesa da taberna escura e esfumaçada onde eles haviam se encontrado uma lua antes. O ladrão parecia ansioso, e Sulaphin sabia que isso sempre significava um belo pagamento à espera. Mas as coisas nunca acontecem do jeito que você espera.


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Os dois saltaram em sincronia do templo de Akara para o teto de uma estalagem, flechas zunindo sobre suas cabeças. Sulaphin caiu no telhado e fez um rolamento para amortecer o impacto, seu ferimento imprimindo uma mancha molhada contra as telhas. Levantando-se num movimento contínuo, ele prosseguiu com sua fuga por sobre os topos dos edifícios. “E o que é que nós vamos pegar?”, Sulaphin havia perguntado, seus olhos ardendo, se da fumaça ou do turgaal que acabara de beber, ele não sabia dizer. Ralek se inclinara para frente, um sorriso no rosto, “Nós, meu velho amigo, vamos roubar um Trul khor.” Parecia que ele já estava correndo havia uma eternidade. Os guardas tinham ficado para trás, despistados no emaranhado de becos do Fosso. O ombro de Sulaphin pulsava, a silhueta de Ralek mantendo um ritmo constante à sua frente enquanto a dupla traçava um tortuoso caminho em direção ao esconderijo. Para fugir da dor, sua mente voltava para aquela noite que parecia cada vez mais distante, a fumaça rançosa da taberna transformando-se em um bálsamo reconfortante na sua memória. Ralek havia prometido que aquele seria o último trabalho deles. “Vamos nos aposentar, Suli. Passar os dias estirados nas areias prateadas de Sah Huntal, quatro ou cinco morathnas lindas nos servindo e nenhuma preocupação no mundo.” Uma telha cedeu sob o pé direito de Sulaphin e ele se viu mergulhando de uma altura de doze braçadas direto sobre uma cerca de ferro com enormes pontas afiadas. Filho de Malak! Rápido como uma serpente, Ralek deu um bote na gola do apphak de Sulaphin e transformou a queda fatal num movimento pendular, lançando-o além da cerca. O ladrão caiu numa ruela de terra batida, o impacto expulsando todo o ar de seus pulmões e causando uma dor tão excruciante que, por um instante, Sulaphin desejou que Ralek tivesse deixado ele acertar a cerca e pro abismo com tudo aquilo. Sentindo gosto de sangue em sua boca e a dor de algumas costelas quebradas, o ladrão precisou da ajuda do companheiro para se levantar. “Falta pouco, Suli”, sussurrou Ralek, passando o braço direito de Sulaphin sobre seus ombros e ajudando-o num andar cambaleante. “O Trul khor”, Sulaphin conseguiu dizer, o som raspando em sua garganta. “Não se preocupe, está comigo”, Ralek respondeu, erguendo o embrulho de couro que guardava, Sulaphin sabia, uma enorme chave de metal. “Se a chave é desse tamanho, imagine o tamanho da porta que ela deve abrir”, ele havia comentado, olhando o desenho do Trul khor sobre a mesa cheia de restos de comida, a taberna já deserta àquela hora. Ralek simplesmente dissera, “Se essa fosse a chave dos Jardins de Akara, pouco importaria. Pense em tudo que você vai poder comprar com uma única noite de trabalho, Suli.” Uma noite que está custando bem mais do que eu imaginava. Após alguns minutos cambaleando por entre becos e ruelas escuras, Sulaphin começou a sentir no ar um cheiro de sal e podridão. Estamos perto do mar. Mas o esconderijo não ficava junto do cais, Ralek tinha se afastado muito da rota planejada. Como se estivesse ouvindo as dúvidas de Sulaphin, Ralek sussurrou, “O Beco da Navalha estava


20 vacatussa #9 sendo vigiado. Alguém nos entregou, Suli. Vamos tentar passagem com algum pescador pra fora da cidade e deixar as coisas se acalmarem um pouco.” De algum lugar próximo, eles escutaram um som de folhas secas sendo reviradas. O ruído foi ficando mais alto, até transformar-se num chocalhar que fez todos os pelos do corpo de Sulaphin se arrepiarem. Não, por favor. O kthrall ergueu-se das sombras, sua enorme carapaça negra parecendo sugar a fraca luz que chegava da rua pela entrada do beco. Sulaphin ouviu alguém soltar gemido de pavor, e alguma parte distante do seu cérebro reconheceu que o gemido havia sido seu. Um devorador, por Akasha. O khtrall ficou de pé, um borrão escuro de quase dois metros de altura, seus muitos braços desdobrando-se à sua frente numa sequência de estalos que lembravam Sulaphin de ossos sendo quebrados. As pernas do ladrão fraquejaram, e não fosse por Ralek segurando-o, ele teria caído. Seu companheiro estava paralisado, o rosto pálido e olhos esbugalhados. “Ralek, faça alguma coisa. Não dá pra fugir de um devorador, Ralek. Ele é rápido demais, um devorador nunca perde um rastro, Ralek. Eles só param quando abraçam a caça e sugam ela inteira viva. Ralek, porque você não falou que eles tinham um maldito kthrall guardando o Trul khor, Ralek?” “Se eu tivesse avisado, você não teria vindo.” Sulaphin sentiu as mãos segurando seu ombro agarrarem seu apphak e empurrarem com força. O ladrão teve tempo apenas de dar um grito, concentrando todo o pavor que sentia em uma única nota aguda que ecoou brevemente pela noite. O khtrall fechou todos os seus membros sobre ele, perfurando a pele de Sulaphin em dezenas de lugares num abraço que estava longe de acabar. Ao longe, passadas rápidas levavam Ralek para uma pequena embarcação com destino a Sah Huntal. Era um trabalho para dois, planejado para garantir o futuro de apenas um.

Mário Lins nasceu no Recife-PE em 1979, e radicado em São Paulo. É publicitário, já atuou como transmedia storyteller em algumas das melhores agências do país. Tem contos publicados em suplementos culturais. Atualmente escreve seu primeiro romance, do qual o conto Sombras em Tel’Ahmar é uma pequena prévia. É fundador do coletivo literário Vacatussa.


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Peso ou mola Conto: Nivaldo Tenório | Ilustração: Feliciano dos Prazeres

Domingo, acorda ao meio-dia, foi a mulher quem o chamou, é quase hora do almoço, mas ele não tem fome e deseja dormir. – O que é que você tem? Talvez esteja doente. Pensa na noite passada, que foi aquilo? Soa a campainha. Deixa que eu atendo, ouve. Termina de se pentear, no espelho a cara irremediável boceja. O concunhado propõe um brinde. Ele não bebe uísque antes do almoço, mas não vai bancar o chato.


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As irmãs os deixam a sós. Não se sente à vontade com o Roberto, aliás, durante muito tempo não se sentiu à vontade quando saíam os quatro; sempre a mesma coisa: ele o intruso e ninguém interessado em mudar isso. Reclamou mais de uma vez. A esposa sorria. Você quer que a gente converse o quê?, perguntava enquanto o beijava. Achava aqueles três bobos, sempre trocando impressões de peças de teatro, ele não gostava de teatro, os atores o constrangiam, paciência, também estava só nas discussões, o mundo da arte não contrapunha a religião coisa nenhuma. Riam dele, chamavam-no católico, era católico sim senhor, não acreditava que a vida fosse só isso, é muito pouco e teatro nenhum vai preencher o vazio, às vezes achava que nem o trabalho conseguia, mas não pensava nisso, dedicar-se ao trabalho é o que tem de fazer, a família precisa dele, de outro modo como teria pagado o curso de medicina do filho? Vivia prometendo não sair mais, não se importava de ficar em casa nas noites de sexta vendo televisão. Roberto e as irmãs se conheceram na faculdade, ele já ouviu a história de quando os três montaram uma chapa e disputaram as eleições para o diretório acadêmico, também ouviu sobre os esquetes em que atuaram e viagens que fizeram juntos etc. No final a formatura. Roberto foi conhecer o mundo, as duas se interessaram por música, de vez em quando alguém se lembra de tocar o demo. Depois o reencontro. Roberto e Amanda que começam uma relação colorida, afinal o casamento não estava em seus planos. Mas depois de um período complicado que incluiu aborto e tentativa de suicídio dela, os dois se casaram no civil. Os conheceu no fórum, onde foi apresentado como namorado da irmã da noiva, seu blazer sem combinar foi colocado às pressas depois que transaram no apartamento dela. As irmãs se demoravam na cozinha. – Cadê o doutor? – Na casa da namorada. Durante o almoço Marcela está desconfortável e Roberto constrangido com a mulher que insiste em encarar o prato. O mais que se ouve são talheres. Ele bebe uísque e sente que alguma coisa não está bem. O almoço estava ótimo, Roberto diz quando se despede. Ele os acompanha até a porta, Marcela desaparece no quarto. Lá passa a tarde. O jornal de domingo ainda está na caixa do correio. – Sobrou comida do almoço, ouve a voz da mulher. – Que horas são, pergunta acordando do cochilo, no chão, debaixo da poltrona, o jornal espalhado. – Aonde você vai? – Falar com Amanda. – Não vai me dizer o que está acontecendo? ...


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Sábado à noite não conseguiu dormir. Fechou a porta com cautela para não acordar a mulher. No corredor há um relógio de parede. Nunca se esqueceu de dar corda, mas alguma coisa vinha afetando as variações no movimento do pêndulo, 4 ou 5 graus, de modo que estava sempre adiantado. No trabalho, alguém lhe disse que para manter constante a amplitude do movimento é necessário compensar com um peso ou mola. Comparou com as horas marcadas no relógio de pulso. Uma hora adiantado. A luz da sala estava acesa. Abriu a porta. Sua casa fica na parte alta da cidade. A noite estava bonita, não fossem alguns faróis de automóveis, a cidade dormia sem preocupação. De repente algo quebrou o silêncio. Quem está aí?, gritou tomado pelo terror. Estava com medo, mas desceu os degraus. Lá embaixo tudo escuro. Por que não acendeu as luzes?, sua estupidez só deu ao outro mais vantagens. Esperou o pior, a qualquer momento iam cair em cima dele – sim, quem sabe mais de um – um enorme peso o esmagava e antecipava o choque. O invasor deve portar arma de fogo, vai entrar na casa e estuprar a mulher. Não tinha nada nas mãos, não tinha arma em casa. Segunda-feira vai comprar um revólver. Mas a segunda pertence ao outro, ele invadiu sua privacidade e, se aproveitando das sombras, progride resoluto. ... Sexta-feira, quando acabou o expediente, ligou para a esposa, mas o telefone dela estava ocupado, devia estar falando com as amigas, contando do filho que se forma em medicina. Ele queria dar outra boa notícia. Os colegas o convidaram pra comemorar, não, ele não vai, queria correr pra casa, mas insistiram: que é isso, senhor diretor, um drinque de nada, de mais a mais, era sexta, sábado estava de folga, tudo bem, só ia tomar um. Tomou seis. O bar era vizinho do trabalho, às vezes precisou passar ali num término e outro de expediente, sozinho, a língua seca, depois de bater a meta do dia. Sabia que o desemprego já ultrapassa vinte e seis por cento na Espanha? Chegou tarde. No quarto a esposa dormia, queria beijá-la, e não sabe se por efeito do uísque ou a certeza do futuro, o fato é que se sentia feliz. O mais feliz dos homens.

Nivaldo Tenório nasceu em 1970 em Garanhuns-PE. Publicou os livros A Grande Torre (2002) e Dias de febre na cabeça (2012), que ganhou nova edição em 2014 pela Confraria do Vento. Participou de antologias como Panorâmica do Conto em Pernambuco, Tempo Bom, Recife Conta o Natal e Osman Lins de Contos (2006).


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Evolução Conto: Thiago Corrêa | Ilustração: Victor Zalma

Ele sabia que não conseguiria interromper o fluxo do tempo. No que dependesse dele, aquele ano nunca teria nem começado. Até tentou esconder a chave de Breguet, na esperança de que o domingo se prolongasse e o seu melhor amigo não precisasse ir ao colégio. Já na primeira semana de aula, ele o percebera cada vez mais ausente, com lições de casa que atrasavam as expedições no quintal. Era preciso agir rápido para evitar uma nova ruptura. Ele não gostava de mudanças, sentia-se bem na rotina. Por isso esperou o beijo de boa noite da mãe às 9 horas, aguardou a luz se apagar por baixo da porta às 10 horas e saiu na ponta dos pés em direção ao relógio.


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Acordou com a mãe levantando pra trabalhar antes da aurora, depois observou o amigo sair cedo de casa com o patrão e voltar a tempo do almoço ser servido como todos os dias, apesar do relógio permanecer nas 8 horas e 32 minutos. Devolveu a chave de Breguet e passou a medir em minutos a espessura da rachadura que agora o separava do amigo. Quatro horas e meia por dia no colégio eram suficientes para que o amigo voltasse com um novo olhar. O que acontecia lá fora? Por que o amigo voltava diferente? Ele então passou a lançar perguntas na tentativa de acompanhar, mesmo que tardiamente, o amigo na expedição além quintal. O muro que cercava a casa onde moravam se tornou um estímulo à curiosidade. Assim que o carro do patrão aparecia no portão, ele saía correndo em direção ao amigo com seu questionário. Uma ansiedade que era saciada com entusiasmo, debaixo da sombra das árvores do quintal. Pelos olhos do amigo, ele foi descobrindo as possibilidades de um mundo em que homens eram capazes de andar sobre o mar e transformar água em vinho, em que lagartas se transformavam em borboletas e máquinas eram enviadas ao espaço. Até que um dia, o amigo voltou quieto para casa. Diante da insistência das perguntas, descobriu que ele também estava prestes a fazer parte desse mundo extraordinário. O amigo contou que, na virada do ano, ele se transformaria num macaco. Não sabia por que nem como, mas quando o relógio anunciasse a meia-noite, ele viraria um macaco. Ele, a mãe, o irmãozinho, o pai e até mesmo Pelé. Todos os negros seriam macacos. Naquela noite, ele se retraiu no colchão entre a cama da mãe e o berço do irmão, usando o lençol como um casulo à espera da metamorfose. Ao menos não se transformaria numa barata, como o homem do livro que o patrão contou à esposa. No dia seguinte, iniciou um novo hábito, aproveitando a ausência do patrão no escritório pela manhã para consultar os livros. Encontrou gravuras de lagartos gigantes, mulheres com rabo de peixe e homens de chifres com patas de cavalo. Também lembrou das histórias do avô em que homens viravam lobisomem na lua cheia, mas nunca ouvira falar em gente que se transformava em macaco. Talvez fosse mentira do amigo. Invenção. Mas num mundo povoado por tantos mistérios, não lhe parecia impossível a metamorfose de pessoas em macacos. Não, não havia motivo para mentira, o amigo também ficara triste com a notícia. O desconhecido estava prestes a entrar em suas vidas. Para os dois, no entanto, o ano ainda parecia longo. Mantiveram os encontros na sombra das árvores do quintal, mas o extraordinário que brotava dos relatos do amigo agora falava de mudança, apontava para uma despedida. Como narrativas de suas próprias vidas, as histórias se moviam a partir de rupturas, de ameaças que geravam relações de ação e reação, perguntas e respostas, afeto e desconforto. Se no início as perguntas que ele fazia serviam como uma ponte, pela qual o amigo cruzava para trazer notícias da sua expedição no colégio; aos poucos passaram a provocar risadas, virar anedotas durante as refeições. Enquanto a família do amigo ria na sala


26 vacatussa #9 de jantar, ele se recolhia em silêncio na cozinha a cada estilhaço de “burro”, “analfabeto”, “macaco”, “coitado”, “filho da criada”. No fim do ano, a distância entre os dois podia ser medida em degraus. Nas férias, eles já não compartilharam a mesma cabana montada no quintal, o amigo permaneceu no primeiro andar e ele no quarto de empregada, ao lado da cozinha. O amigo transformara-se no filho do patrão, os convites ganharam tons de ordem e as brincadeiras de bang-bang viraram perseguições de bandeirante contra escravo. Envolvido em pesadelos, adquiriu um aspecto sombrio, ressaltado a cada dia. Nem mesmo a história do nascimento de Cristo foi capaz de lhe dar esperança. Na noite de réveillon, os olhos fixos nos ponteiros sabiam que era inevitável, não havia salvação, dali em breve chegaria 1960 e nada mais seria igual. A festa ao seu redor se diluía como um emaranhado de sons, risadas e tilintar de taças de cristal, enquanto a mãe preparava o jantar na cozinha. As outras crianças brincavam com os presentes do Natal no quintal, enquanto ele permanecia como mais um móvel da sala, parado de frente para o relógio. Vigiava o tempo como uma forma de marcar cada resquício de sua humanidade. Cada transformação era mensurada em segundos. Imaginou-se como um relógio, as engrenagens do corpo respondendo a estímulos do tempo, o coração como pêndulo, bombeando sangue para o giro das roldanas internas que desencadeavam movimentos na superfície, o crescimento das unhas, o surgimento dos pelos, o esticar dos ossos e cartilagens. Ele sabia que as mudanças operavam silenciosas sob a pele, invisíveis. Foi assim com a mãe, que de repente apareceu com uma jaca na barriga e três meses depois voltou do hospital com seu irmãozinho no colo. A experiência de acordar a cada três horas por conta do choro do bebê o fez rejeitar mudanças. Por ele, tudo continuaria igual. Desejava ser máquina para se manter indiferente ao tempo, um relógio no funcionamento regular de sessenta segundos por minuto, com o avanço circular dos ponteiros até o início de um novo e repetitivo ciclo a partir da chegada do ponteiro maior ao número 12.

Thiago Corrêa nasceu em São Bernardo do Campo-SP, 1981, e mora no Recife. É jornalista e mestre em Teoria da Literatura. Tem contos publicados nos livros Recife Conta São João (2008), Possibilidades da fotografia contemporânea (2009), Tempo Bom (2010), Ficção em Pernambuco (2013), Inquebrável: Estelita para cima (2014). Edita a Revista Vacatussa.


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autor convidado { samarone lima

Antologia do Instante – Um livro sem futuro Ilustrações: Jarbas

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28 vacatussa #9 Há muitos anos tenho o péssimo hábito de anotar tudo. Trechos de livros, pedaços de contos, romances, poemas, tudo o que me chame a atenção. Por conta disso, tenho centenas de cadernetinhas de vários tipos, cores, formatos, além de cadernos, agendas, pedacinhos de papel, que transformam o lugar em que vivo uma espécie de celebração ao papel – ou uma usina de reciclagem, como diz um amigo. Nunca sei o que vou fazer com isso, mas há um tipo de anotação que já ficou muito conhecido entre meus amigos – a “Antologia do Instante”. É uma coleção de frases e diálogos que têm um princípio fundamental – só podem ser anotadas no instante em que foram pronunciadas. Não vale citação. Tem que sair na inspiração fundamental, seja ela numa mesa de bar, dentro de um ônibus, na rua, alguém falando ao telefone etc. Os anônimos são presença constante. Quando o Vacatussa disse que trabalharia nesta edição o tema “futuro”, encontrei uma forma de compartilhar com os leitores um livro que provavelmente vai demorar muito a ser publicado. Talvez nunca. Mas quem sou eu, reles anotador, para dizer nunca sobre uma publicação? O futuro como se sabe, zomba dos homens todos os dias... Boa leitura. “Melhor escuta aquele que anota”. (Dante. Canto XV de “A Divina Comédia”) “Ele não pode vencer, porque ele é o ícone da derrota”, Marcelo Barreto, analisando uma possível vitória do piloto Rubens Barrichello na Fórmula 1 “Essa morena deu as celulites dela para nossas mulheres”, de um amigo, ao ver uma bela morena passar. “Eu gosto do ser humano. Mas se for para escolher, eu prefiro que seja rico”, Edinho, Lindo Olhar, do bar Princesa Isabel. “Essa música da tua vizinha é como usar sapato apertado”, Jorge Alberto, num dos raros almoços em minha casa. “Naná, venha logo, porque você pode lavar o carro todo dia, mas enterro de Jorge é só uma vez na vida”, Lula Terra, apressando Naná para o enterro de nosso amigo, Jorge Alberto. Diálogos extraordinários - I Garçom – Temos frango desossado com ervas indianas.


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Samarone – Que ervas indianas são essas? Garçom – Coentro... “Tudo é mentira, a vida é mentira. Estou na merda”, cliente do Princesa Isabel, tomando todas e pensando em voz alta. “A Shineray está vencendo o jegue em suaves prestações”, Lemingue Diálogos extraordinários - II Motorista – (cantando) “Eu queria ter na vida simplesmente/um quintal e mato verde...” Cobrador – Quando tu morrer, tu vai ganhar teu pedaço de mato, visse? Motorista – “Ter uma casinha branca de varanda...” Cobrador – Vai ter é um ataúde branco, isso sim! “Você pode não saber como chegar ao Taj-Mahal, mas à Sinfarma é fácil – fica no centro de Arcoverde”, comercial numa rádio em Arcoverde, em 25/5/2009. “Eu só vim porque moro atrás do shopping”, uma das poucas pessoas que foi ao lançamento do livro A cabeça do futebol, que ajudei a editar, em um shopping em São Paulo. “Eu sei viver sem mim mesmo, quanto mais sem ela”, de um amigo, respondendo se viveria sem sua mulher. “Quem morre cedo, não tem tempo de gravar disco ruim”, Edmundo Glauber, falando da morte precoce de Chico Science. “Isso não é uma mesa, é um indulto de Natal”, Otávio Toscano, ao se deparar com uma mesa cheia de amigos pilantras. “Ele dava carinho como quem dava esmolas”, Lemingue. “Vou fundar a Igreja da Última Chamada. A Igreja da Última Chance. Será uma igreja rancorosa e o lema será: ‘Vem ou te fode pra lá!’”, Abdoral Lira.


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Atmosferas De minha avó Uma forma de amassar o alho De sorrir entre os escombros De alternar a incoerência dos dias. De meu pai Silêncios atemporais A respiração entrecortada E movimentos bruscos. De minha mãe Uma forma de estudar as mãos Como quem joga uma toalha limpa Numa mesa antiga. Do meu avô A busca de algo sem nome A fronteira apagada num sopro de Deus O sorriso escorregando Para um canto da boca. O gosto pelo infinito Um horizonte maduro por chegar. Mas longe e efêmero Como as grandes esperas Como um futuro sem nome.

Samarone Lima nasceu no Crato-CE em 1967 e mora no Recife. É jornalista e escritor. Publicou os livros Zé (1998), Clamor (2003), Estuário (2005), Viagem ao Crepúsculo (2009), Tempo de Vidro e A Praça Azul (2012) e O aquário desenterrado (2013), pelo qual recebeu o Prêmio Alphonsus de Guimarães.


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