{ edição especial
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CIDADE
Editorial No dia 17 de junho de 2014, acordei ainda de madrugada para viabilizar o lançamento da edição passada da Revista Vacatussa. Como estava sem internet, recorri à casa da minha mãe para poder colocar a 6a edição online. No caminho, com o dia ainda escuro, passei por um batalhão de policiais interditando as ruas próximas ao Cais José Estelita. A presença da PM onde integrantes do movimento Ocupe Estelita acampavam em protesto contra a condução do projeto imobiliário Novo Recife indicava que o debate sobre os rumos da cidade logo se materializaria como um embate físico, através de cassetetes, bombas de efeito moral, chicotadas, balas de borracha e spray de pimenta. Discussão esta que já vinha sendo realizada à base de palavras e que ganhou um novo contorno na noite do dia 21 de maio, quando o Novo Recife iniciou a demolição dos armazéns do cais, provocando a invasão do terreno por parte dos manifestantes. O ato simbólico nos fez pensar sobre as consequências do modelo urbano que está transformando a paisagem e a memória das cidades brasileiras. Por isso decidimos fazer deste número uma edição temática. Assim, deixamos de lado a convocatória que nutriu as edições passadas e pedimos a alguns escritores que construíssem suas cidades com letras, amarguras e esperanças. Como a causa é importante, os integrantes do Vacatussa também foram convocados a participar. O resultado está nas próximas páginas. Boa leitura!
expediente Edição Thiago Corrêa
Conselho editorial Aline Arroxelas Joana Rozowykwiat Julieta Jacob Mario Lins Thiago Corrêa Projeto gráfico Jaíne Cintra
Textos Alexandre Furtado – Aline Arroxelas – Cristhiano Aguiar – Diogo Monteiro – Ivan Moraes Filho – Joana Rozowykwiat – Renato L – Thiago Corrêa – Valmir Jordão – Marcelino Freire Ilustrações Alexandre Cavani – Javier Alonso – Sebba Cavalcante – Victor Zalma – Keops Ferraz – Matheus Asfora – Neilton Carvalho – Juliano Dornelles – Raoni Assis – Thales Molina
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Hospício - 4 Ave, deuses políades - 6 O nome retirado - 10 Meu turno na ronda - 12 Crianças Estelitas - 16 Paisagem roubada - 19 Carros, prédios e overdrives - 21 Estela - 24 Ah, Recife - 27 Um livro - 28
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Hospício Poema: Alexandre Furtado | Ilustração: Alexandre Cavani
Na Hospício sussurram manchas De uma falência à mostra onde já houvera algum indício de vida melhor, nesta hora, o calor exaure as faces de quem passa, um clima às avessas desprovido de ameno calendário Na Hospício, o espartilho é apertado como uma camisa-de-força na cintura que estreita o que na cabeça apodrece
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as esgalhadas árvores com braços cobertos de negra poeira, a dor da ruína imposta pelo abandono contínuo e corrosivo Na Hospício tem-se a impressão de um eterno ato falho que descobre o abismo das coisas um caos insuportável, em vez de sombras um deserto enlouquecido que talvez devolva a condição da morte como pele da vida e reafirme a precariedade dos dias
Alexandre Furtado nasceu no Recife-PE, 1970. Professor de Literatura da UPE, coeditor da revista do IHAGP e da Encontro do GPL. Tem contos publicados em: Recife conta o Natal II (2008), Suplemento Cultural Pernambuco (2011). É colaborador do site INTERPOÉTICA e autor do livro De Ruas e inti-nerários (Cepe, 2010).
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Ave, deuses políades Conto: Aline Arroxelas | Ilustração: Javier Alonso
“Evitem dizer que algumas vezes cidades diferentes sucedem-se no mesmo solo e com o mesmo nome, nascem e morrem sem se conhecer, incomunicáveis entre si. Às vezes os nomes dos habitantes permanecem iguais, e o sotaque das vozes, e até mesmo os traços dos rostos; mas os deuses que vivem com os nomes e nos solos foram embora sem avisar e em seus lugares acomodaram-se deuses estranhos.” (Ítalo Calvino, Cidades Invisíveis)
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No fim do século XIX, na ilhota de Hashima, Japão, foi erguida uma cidade para extração de carvão submarino. Mais de cinco mil almas estabeleceram moradia naquele pedaço de terra no meio do mar, com pouco mais de seis hectares, alguns em busca de uma vida melhor, outros porque foram forçados a tanto. Na década de 70, a ilha ficou completamente vazia, abandonada junto com as minas. As ruínas estão entregues ao vento e à maresia inclementes. Mais ou menos nessa época, foi fundada uma das cidades nucleares da União Soviética: Pripyat, Ucrânia, anexa à usina nuclear de Chernobyl. Em seu auge, tinha quase cinquenta mil habitantes. Em 1986, com o colapso da usina e a nuvem radioativa, foi desocupada. Fotos clássicas mostram a roda-gigante e o hotel desertos, legando-nos uma bela urbe arborizada. Dois anos depois, em Pernambuco, Brasil, a antiga cidade de Petrolândia – que recebera em 1877 a visita do Imperador Dom Pedro II – foi inundada para a construção de um lago e funcionamento de uma usina hidroelétrica. A população foi transferida para a área onde hoje está a atual cidade de mesmo nome. No fundo do lago, atual destino para mergulhadores, jazem os escombros dos edifícios submersos, incluindo duas igrejas e uma fábrica de doces. Parece que ainda procuram a estação ferroviária construída sob as ordens do Imperador. Pompeia, atingida pela lava do Vesúvio em 79 d.C. Fordlândia, comprada no frenesi do latex em 1927. Oradour-sur-Glace, cuja população foi dizimada na Segunda Guerra. Pyramiden, esvaziada durante o colapso do sistema soviético na década de 90. Belchite, destruída em batalha de Guerra Civil, em 1937. A lista é grande e ainda crescente. NARRADOR: - Amamos algumas poucas cidades ao longo da vida. Outras odiamos. E em algumas cidades juramos mesmo nunca mais por os pés. Há cidades, assim, onde chegamos para sair; de outras, saímos para encontrar o que quer que seja. CORO: - Nenhuma cidade existe sozinha, porque é produto do trabalho e da racionalidade dos homens. Enquanto que o ambiente natural não carece de explicações
8 vacatussa #7 – a árvore e o rio são o que são e não se justificam – o construído tem existência porque o homem brinca de Deus e quer fabricar seu próprio meio. Para expandir, para trocar, para celebrar a própria grandeza (às vezes fingindo enaltecer o próprio Deus). NARRADOR: - Quando a cidade é dissociada da humanidade que a gerou – permanecendo apenas os esqueletos das construções de pedra, metal, e escritos incompreensíveis – diz-se que se tornou uma cidade-fantasma, isto é, um lugar parado entre a vida e a morte. Mas é claro que uma cidade naturalmente vive e morre, até mesmo as grandes metrópolis, e toda ela é, em parte, um cemitério. Nascem de rescaldos antigos, em tempos mal lembrados. Surgem de um amontoado de gente e circunstâncias nem sempre benfazejas, e sobrevivem numa sucessão de renovações. CORO: - Porque numa cidade tudo morre: toda a gente, por óbvio, mas também os lugares, as funções dos lugares, os nomes dos lugares, e, por fim, a própria lembrança dos lugares. Para se conhecer essas cidades que já foram – e que sobrevivem dentro da cidade que é – ou se procura fundo em suas entranhas, ou se confia nas lembranças dos mais antigos. Escavar, perguntar. Pesquisar, ouvir. Preservar, narrar. NARRADOR: - Uma amiga lembra que tinha seis anos quando veio morar na cidade, trazida pelos pais que se separavam. Conta que chovia. Quando cheguei aqui, não havia senão casas nessa praça; disso me lembro bem. O moço do sertão chega e sente que o mundo todo começa ali, no destino do ônibus calorento. Minha avó pegava um trem na zona da mata e desembarcava no centro, e até hoje quando conta essa história balança o corpo para marcar o ritmo da viagem, xec xec xec: “que delícia era viajar de trem”. No lugar onde hoje floresce um lucrativo hipermercado, era um hospital psiquiátrico onde pacientes gritavam atrás de grades para toda a eternidade. Eu vi.
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DIVINDADE: - A tudo isso os deuses desta terra respondem: Pois morra, pólis herética. Definhe, acabe-se em ruínas. Primeiro, substitua-se até se tornar irreconhecível; serás feia e maltratada a nossos olhos. Depois, na lama debaixo dos prédios suntuosos, nos esgotos deficientes, nas encostas podres de teus rios e no pó que cimenta os buracos das estradas tu sobreviverás. Alguém há de lembrar que ali havia uma praça, um hospital, um cais. Não os mortais, eternos viajantes de passagem, mas os que virão depois, vivendo em outra cidade coincidente, sairão em tua busca, como exploradores do próprio umbigo. Fatalmente, em um ou outro momento, a cidade antiga reassomará, sobrepondo-se em carcaças secas – uma cidade por cima da outra - como um monstro descrito em língua morta, até ser refundada, reiniciada, sem história e sem fotografias. Na cidade inundada de Potosí, Venezuela, por vinte e cinco anos só foi possível ver, saindo das águas como um sinal daquela Atlântida, a cruz no topo da torre da igreja. Hoje, a estiagem revela não só a igreja como também seu cemitério, completamente emersos por sobre a terra seca. Renasceram para não serem esquecidos. Mas serão.
Aline Arroxelas nasceu em Recife-PE, em 1979. Graduada em Direito pela UFPE, é membro do coletivo Vacatussa desde 2005, tendo publicado contos em edições anteriores da revista.
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O nome retirado Crônica: Cristhiano Aguiar | Ilustração: Sebba Cavalcante
Foi uma biblioteca que me ensinou, pela primeira vez, a vida e a morte nas cidades. Chamada Cantinho da Gente Miúda, se localizava no térreo de um alto edifício comercial, em cujos andares funcionavam apenas consultórios médicos. A proprietária, uma mulher de meia idade fissurada em charutos e livros esotéricos, cujas gargalhadas ecoavam pela sala onde funcionava o Cantinho, não conseguiu manter o empreendimento e logo precisou fechar as portas. Eu tinha virado cliente por volta dos nove anos de idade e loquei livros intensamente até os doze. Chegava lá, conversava com a dona e o único funcionário enquanto passava um tempão folheando livros de Monteiro Lobato, Ana Maria Machado, Sylvia Orthof, Marcos Rey, Ruth Rocha, Ziraldo, entre tantos outros. Após escolher os livros que locaria, os colocava na sacola de papelão fornecida pelo próprio Cantinho e seguia para casa, onde lia, com uma liberdade que nunca mais tive, até dormir.
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Sempre achei engraçado aquelas pessoas que me dizem: “a vida não se aprende nos livros”, como se por dentro mesmo da própria rua não estivéssemos o tempo todo lendo placas, sinais, rostos. Os próprios lugares por onde nos deslocamos e vivemos, embora não sejam encadernados em capa dura e impressos com papel, dificilmente nos respeitam se não nos dispomos a decifrá-los e recontá-los. Digo isto porque um dos meus maiores desafios como leitor não foi, sei lá, páginas de João Guimarães Rosa, Osman Lins, ou da mais intrincada filosofia, mas sim a grade de ferro que encontrei cerrando a saleta onde o Cantinho funcionava. Eu já estava na adolescência e há anos não frequentava mais a biblioteca. Quando soube, por amigos, do seu fechamento, lamentei, mas não senti abalos imediatos com a notícia. Mesmo assim, por curiosidade, dias depois decidi passar por lá. É que, mesmo não sendo mais sócio, havia uma segurança, uma satisfação semelhante àquela sentida quando colocamos a última pecinha no espaço vazio de um quebra-cabeças montado sobre a mesa. Lá estavam as grades de ferro; acima delas, o nome retirado da biblioteca. Me mantive em pé por alguns instantes, tentando decifrar o que nem mesmo sabia sentir. Só fui interrompido quando um dos seguranças do prédio me abordou, curioso com meu comportamento. Assim como meus parentes mais velhos, pela primeira vez eu tinha um lugar desaparecido para chamar de meu. Em histórias de terror, às vezes a morte nos transforma em fantasmas; nas histórias de ficção científica, personagens transferem o seu Eu para dentro de computadores e outras máquinas. Mas a verdade é que não existe um Eu guardado, intacto e sólido, dentro da gente. O que guardamos, se pudesse ser “extraído”, sequer teria uma forma humana. Somos um corpo que se projeta pelos espaços através de diferentes relacionamentos e imaginários. A saúde desta interface, aliás, é fundamental. Não pisamos apenas onde nossos pés se posicionam; pelo contrário, estamos espalhados pelos lugares que fazemos acontecer e que conosco acontecem. Sempre que as cidades desmoronam ou se levantam, minha memória resgata este pequeno episódio, não para me torturar ou conjurar qualquer tipo de autopiedade, mas sim para me lembrar quanta lucidez precisa existir naquilo que se preserva, ou se deixa para trás.
Cristhiano Aguiar nasceu em Campina Grande-PB, em 1981. É escritor, crítico literário e doutorando em Letras pela Mackenzie. Participou da revista Granta – Melhores Jovens Escritores Brasileiros e tem textos publicados na Inglaterra, Estados Unidos e Argentina. Foi escritor-residente da University of East Anglia. Editou as revistas Crispim e Eita!. Contato: cristhianoaguiar@gmail.com / https://twitter.com/cristhianoag
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Meu turno na ronda Conto: Diogo Monteiro | Ilustração: Victor Zalma
Um réptil habita meu cérebro. Ele implora para se estirar e afinar o sangue sob o dia. Mas lhe concedo apenas estas incursões à janela, na madrugada. Ele chia contrariado, lambe o ar morno, contrai as garras, ameaça com a cauda, mas se recolhe, deixando-me só na vigia. O réptil quer inflamar as escamas. Eu quero o escuro e o silêncio. O silêncio dos outros. Só, eu me preencho.
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Daqui, passeio sobre o abraço dos muros. Nesta hora, as janelas conversam. Buracos acesos no preto, onde cada observador cede a outro um corte de biografia. Eu os espreito, completando as histórias, e atravesso sem corpo o ar. Súbito, estou lá. Eu sou eles: as luzes piscando o mesmo programa de tv, o sono adiado na quina da cama, um banho para escorrer o dia, a roupa pendurada para amanhã. Aqui em frente, na proximidade incômoda de alguns metros, a janela apagada há um mês. É nela que minha ronda termina, invariavelmente. Desde antes, quando a atenção ocupava seu interior como um cômodo de minha própria casa. Parava sobre ela, coletando uma informação escapada, um movimento. Se conseguia, o primeiro reflexo era recuar, fechar o vidro e me recolher à proteção do escuro. No entanto, nem os pés nem a cabeça se moviam, e eu permanecia aqui. Era nessa janela que meu silêncio se acabava. Começava como agora. Uma madrugada de som baixo, de estridulação sobre motores distantes. As luzes do apartamento apagavam e uma lanterna acendia, o facho se debatendo pela casa, rebatendo em aleatórios telhados e cacos de vidros - seguranças entre vizinhos - até parar no cômodo à frente, onde minha atenção esperava. Começava o debate exaltado com o vazio. O morador emendava grunhidos, engasgos e estalos. Em alerta, imposição, contrariedade, frases encurtadas em palavras sem solo. Seguiam-se as pancadas nas paredes, objetos ao chão. Às vezes, vidro quebrando. E acabava com o silêncio, um gigante deitado entre nós. De dia, o vizinho era polido. Palavras economizadas quando nos batíamos na fila do ônibus, na parada da padaria, a calçada dos passeios. Bons dias e boas tardes. A chuva, a manchete, o resultado do jogo. Pequenos acenos de diálogos já de despedida. No semáforo, esperávamos a impaciência das pessoas do outro lado. Ele soluçou um sorriso apontando para a senhora de cabelos presos: “Ela faz isso também em casa. Nas noites nubladas, estica o pescoço fora da janela, para forçar a chuva a se decidir. Torço para a tempestade”. Atravessamos. Era tudo que me concedia. Menos ainda aos outros. Eu também não me agradava da intimidade forçada, esquivava da familiaridade dos vizinhos, da cumplicidade geográfica. Ocupava-me de suas vidas,
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mas detrás de meu esconderijo. Há ofensa na invasão não desvendada? Assim, também era o homem. Fora dos acessos noturnos, pouca era a nossa diferença, e eu me assustava. À noite, nos encontrávamos, cada qual em sua janela. Ele não falava, não acenava. Apenas encarava, os olhos chumbados - um pedido de ajuda lançado com uma corda. Eu fingia não perceber, apressava uma saudação displicente e me recolhia com o cigarro pela metade. E o homem permanecia lá, seu turno na ronda. Uma hora, desistiu. Foi encontrado dois dias após o colapso. No cérebro, uma artéria rompida. Um parente teria aprontado o velório sem convites. Os pertences foram levados e o apartamento, trancado, habitando o silêncio. Nas calçadas, falavam de um imóvel inquieto. Juravam pequenos barulhos, sussurros, fios de choro arrastado, e pediam missa. Eu me exasperava para dentro, diante dos idiotas. Irritava-me encherem de superstições os cômodos vazios. Agarravam-se ao destino do louco para preencher os seus, faziam mais barulho que os gritos do antigo vizinho. Isso eu contestava, até segundos atrás, quando no sono veio o grito. Na borda da consciência, escuto a voz do louco, ventando. “Eles estão olhando. Estão vendo”. Acordo. Agora escuto vozes, como os idiotas gerais, reclamo. Deixo a cama irritado, busco o cigarro e meu posto de observação. Restos de sonho pelo caminho, chego à noite aberta. O lagarto reclama mal-humorado, no entanto, me acompanha. Entre a faísca do isqueiro e a primeira fumaça, o redor me puxa a atenção para a plateia. Cada casa, cada apartamento, um espectador insone. Um parlamento mudo. Observo-os enquanto o pulmão trabalha. O cigarro reduz em poucas tragadas e eu acabo fixado aos vidros vedados em frente. “A luz de um morto não se apaga nunca”, a frase vem antes ou depois de o facho se lançar através da janela do imóvel vazio? A lanterna acende na sala, roda paredes e tetos, avançando sombras e desenhos, chegando ao quarto bem à frente e uma silhueta se aproxima da janela. Separado de mim por oito metros de ar carregado, o louco da rua sorri.
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Cogito me despedir com a mesma saudação, mas estou preso. O lagarto guincha e contorce, e então percebo que não é com um sorriso que o homem me saúda. Os lábios arregaçados mostram dentes entre bolhas e perdigotos. Os olhos espantados do homem projetam íris na noite. Surpreendo-me ao escutar nítida sua respiração: o fôlego asmático nos meus ouvidos e a alvura daqueles globos é tudo o que vejo. Depois, o tempo me confunde, a respiração é a minha, o cenário branco se desfaz. Vejo a moldura de minha própria janela, do outro lado do vão. Nela, o homem que eu era me observa. Larga o cigarro e dá as costas sem despedidas, sumindo no escuro. Quero chamá-lo de volta. Contenho o grito, porque, só então, ouço o grunhido grave no fundo do quarto, atrás de mim. Já arrependido, aponto a lanterna para iluminá-lo.
Diogo Monteiro nasceu em Recife-PE, em 1978. É jornalista, colaborou com entrevistas e reportagens para revistas de cultura e literatura como Cult, Continente Multicultural e Raízes. Teve contos publicados no livro-coletânea Tempo Bom (2010). Foi editor de Política da Folha de Pernambuco, editor-geral do portal de notícias LeiaJá e atuou como consultor da Unesco junto ao Ministério da Igualdade Racial.
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Crianças Estelitas Crônica: Ivan Moraes Filho | Ilustração: Keops Ferraz
Quem passa de carro tem dificuldade de ver a cidade. Vidros fechados e ar condicionado no quatro pra se proteger do sol, da poeira, das pessoas. Os olhos firmes no trânsito que pouco anda e muita atenção para parar sempre bem antes da faixa de pedestre. Medo de gente e mais segurança para conferir em paz as novidades do feicebuque que chegam pelo espertofone estrategicamente colocado entre as pernas. Não é fácil ver as pessoas.
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Salvo pra sacar, pelo retrovisor, o movimento daquele rapaz que chega pra vender água/pipoca/fruta. Todo mundo é um suspeito em potencial. E não se suspeita da vida que acontece todos os dias, nos lugares mais inimagináveis. Por entre os trilhos de uma ferrovia semi-abandonada. Embaixo de viadutos e outras paragens em que pessoas inquietas engenhosamente transformam lona, papelão, plástico e madeira de demolição em residência. Na cidade em que faltam mais de 100 mil moradias adequadas para a população, não é apenas o déficit habitacional que faz com que muitas crianças vivam em situação de rua. Algumas são expulsas de casa pela miséria, pelo preconceito, pela falta de alternativas. Meninos e meninas que insistem em sonhar não tardam a perceber o tanto que a cidade lhes deve. Na marra, buscam liberdade mesmo sabendo dos riscos que correm em perdê-la de forma definitiva. Seja para a polícia, para algum vício ou para sempre. Quem participa do #ocupeestelita vem aprendendo muito mais do que imagina com essa turma. É uma galera que já frequentava a região e que foi se chegando aos poucos. Primeiro interessada na comida doada para garantir a permanência do acampamento montado para insistir na discussão pública sobre um projeto que promete mudar (para pior?) a cara do Recife. Depois achando interessante a convivência com aquele povo branco com casa, comida e roupa lavada e que por vontade própria resolveu fincar pé no meio da lama pra dizer que a cidade tem jeito. “Quando a gente começou a ocupação, esses meninos já estavam por aqui. Então, de certa forma, são eles quem estão nos recebendo e não o contrário. A gente chegou achando que estava somente discutindo as questões de urbanismo que envolvem o Cais e descobriu que nossa luta é muito maior do que isso. A vivência nesse local, que foi ‘esquecido’ governo após governo, dá a real dimensão do quanto precisamos caminhar na garantia do direito à cidade”, explica um dos integrantes do movimento. Estudante de arquitetura, não imaginava o que essa experiência representaria. “A gente é acostumado a ver a cidade de cima, nas plantas. No mundo real, os desafios são gigantescos”. Hoje, já integrados no esquema da ocupação, os adolescentes participam dos debates, das oficinas, das atividades culturais do movimento. Na divisão de tarefas aprendem (e ensinam) que cor da pele, condição social e gênero não podem ser determinantes para definir quem deve fazer o quê. As crianças estelitas não escondem a revolta que têm na alma. Estão acostumadas a ver o estado como inimigo. A polícia como algoz e o poder público como apenas um departamento do sistema que foi fabricado para fazer com
18 vacatussa #7 que seus direitos não atrapalhem o desenvolvimento e o progresso. Mas, no convívio com quem sempre consideraram “de elite”, percebem que há caminhos para mudar essa história. “No começo a gente se estranhou um pouco, mas hoje tá dando beleza esse lance de maloqueiro com playboy”, brinca um desses meninos. Homem transexual de dezesseis anos que não tem mais contato com a família nem com a escola que não o acolheu. Vive de bicos e outros “corres”, como gosta de dizer. Encontrava seu barato numa garrafinha de Norcola que perdeu o protagonismo em sua vida nesses meses de convivência com a moçada do acampamento. Perguntado por uma repórter espanhola sobre qual seria seu sonho, apenas riu. “Meu sonho?”. “É, seu sonho”. À insistência da europeia, pensou um pouco mais e respirou fundo antes de abrir a boca. “Igualdade. Todo mundo igual, sendo tratado igual. Sem frescura de rico, de pobre, de negro, de branco. De mulher, de homem. De porra nenhuma. Todo mundo respeitando todo mundo, sem ninguém ter nem ser mais do que ninguém. Queria meu sonho? Pronto, meu sonho é esse.” E se foi mais uma aula estelita. Fácil de entender. Menos pra quem só passa de carro.
Ivan Moraes Filho nasceu no Recife-PE, em 1976. É jornalista, defensor de direitos humanos, escritor e mestrando em Comunicação pela UFPE. Autor de Quasamar (poesia, 2000), Problema de Coluna (crônicas, 2003) e Kanimambo - um ano em Moçambique (relatos de viagem, 2007). Integra o Centro de Cultura Luiz Freire, edita o blog Bodega (bodega.blog.br), apresenta e dirige o programa Pé na Rua (penarua.tv.br).
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Paisagem roubada Conto: Joana Rozowykwiat | Ilustração: Matheus Asfora
Da sua casinha de vão único, ele vê um mundo fatiado através do basculante. É um homem sem horizontes. Logo ali começa o mundo do vizinho, com uma parede de tijolo vermelho enclausurando seu olhar resignado. Mais que dono de uma casa, sempre quis ser dono de um quintal com uma mangueira, onde ele moleque se pendurava para chupar a fruta e brincar a vida. É um homem de outro tempo, do tempo dos quintais.
20 vacatussa #7 Percorre as ruelas do progresso inconcluso, desvia dos fedores pelo caminho, algumas nesgas de céu ardem na sua cabeça. Nenhuma árvore lhe protege. Nenhuma beleza lhe enche os olhos. Entra no ônibus e, do corredor espremido, só avista coisas e gentes pela metade. Vê meia menina, meio velho, meio prédio, outro meio prédio e outro e outro. Um cachorro inteiro. Meio tronco de ipê, ele imagina, sem conseguir mirar a copa. Ouve buzina, freio, bate-estaca, o barulho da catraca e a voz desmedida que sua companheira de viagem lança ao telefone. Quando chega ao seu destino, já está cansado. Presta atenção às florzinhas coloridas que brotam do jardim de um prédio de luxo e sorri. No trabalho, troca de roupa e entra no elevador. Acompanha com os olhos os andares de um edifício que se revela, parece infinito. Consegue ver, lá dentro, em cômodos empilhados, uma senhora sentada no sofá, um homem à frente do computador, muitas cortinas fechadas que enclausuram outros olhares resignados. Fios e antenas enfeiam o teto das coisas. Quando chega ao último andar da construção, ele sente certo orgulho. Vê o cinza a seus pés. Vê inteiro. Vê a cidade como ela é, tão distante. Tão sufocada. Um amontoado de concreto, motores e passos apressados. Mas ele nem liga. No topo, ele tem o céu. Tem o vento. Fecha os olhos e inventa ali a sua mangueira carregada de manga espada. Sente até o cheiro. Volta por um instante a ser um homem com horizonte. E vem uma alegria temporária. Porque não é seu aquele horizonte. Porque construiu com cimento, tijolo e suor a paisagem de outra gente. Mas ele nem pensa muito nisso. Quer aproveitar enquanto pode aquela imensidão. Quer estar por cima por alguns momentos. Curte um pouco a vida nas alturas, antes de voltar para sua realidade operária. Antes que se ouça mais um bate-estaca na vizinhança. Antes de descer para o seu mundo fatiado. É um homem como muitos, em uma cidade para poucos.
Joana Rozowykwiat nasceu no Recife-PE, em 1981 e hoje mora em São Paulo. É jornalista, especialista em Jornalismo Político. Tem contos publicados na coletânea Recife conta o Natal I (2007) e no Suplemento Cultural Pernambuco. Integra o Vacatussa.
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Carros, prédios e overdrives Crônica: Renato L | Ilustração: Neilton Carvalho
Quando o movimento Ocupe Estelita ganhou força no primeiro semestre deste ano, não foram poucos os que compararam seu impacto ao do Mangue Beat na década de 90. Novamente, para rememorar o manifesto Caranguejos com cérebro, escrito por Fred Zeroquatro, parecia que uma dose de energia era injetada com o propósito de “estimular o que ainda resta de fertilidade nas
22 vacatussa #7 veias do Recife” e desmascarar “o desvairio irresistível de uma cínica noção de ‘progresso’, que elevou a cidade ao posto de ‘metrópole’ do Nordeste”. A comparação, claro, não era um mero exercício de nostalgia. A movimentação em torno do Estelita, na sua rica diversidade e na inteligência orgânica coletiva, digamos assim, que traça seus rumos, estava (e continua) conectada realmente com aspectos decisivos do Mangue. Além disso, basta uma olhada superficial nos manifestos e letras de artistas como Chico Science e Nação Zumbi e Mundo Livre S/A, para mapear o impacto nos seus trabalhos da crise crônica das cidades brasileiras, intensificada ao ponto da catástrofe a partir da “década perdida” que foram os oitenta. Tomemos, para reforçar esse segundo ponto, uma letra como a de Pastilha colorida, do Mundo Livre. Seus versos autobiográficos descrevem o crescimento desordenado do bairro de Candeias durante a adolescência de Zeroquatro. Uma espécie de distopia urbana onde campos de futebol são abduzidos por prédios e só resta aos jovens trocar “pastilhas coloridas”, referência ambígua ao material usado para revestir construções de baixo custo e aos comprimidos vendidos nas farmácias das esquinas. Ou, então, a incrível letra de A Cidade, talvez a música que melhor traduziu, na década de 90, os impasses da crise urbana brasileira, com seu refrão de precisão absurda: “a cidade não pára, a cidade só cresce/o de cima sobe e o de baixo desce”. É, no entanto, esse refrão clássico de Chico Science que nos permite, também, demarcar algumas diferenças entre o contexto do Mangue Beat e este do Ocupe Estelita. Porque, o fato é que, nos últimos 10 anos, assistimos a um processo inédito e contínuo de redução das desigualdades sociais, onde o “de cima” ainda sobe, por certo, mas o “de baixo” conseguiu ganhos consideráveis. É verdade que essa redução da ainda grotesca disparidade de renda brasileira está ligada a um modelo de desenvolvimento que alimenta, com velhos e novos ingredientes, a crise urbana. Mas isso não anula a importância das conquistas obtidas e só deixa o quadro ainda mais complexo. Outra diferença a ser notada diz respeito ao campo artístico que melhor captou o “zeitgeist” da época. Se a música surgiu como intérprete privilegiada dos sonhos e pesadelos da Manguetown, agora é o audiovisual que parece dialogar melhor com nossos impasses. Cineastas como Kleber Mendonça Filho e Marcelo Pedroso, ao lado de veteranos cheios de vigor como Cláudio Assis e Hilton Lacerda, elaboraram a crítica mais estimulante ao “Novo Recife”, através de longas e curtas de ficção e de documentários.
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Talvez a mudança mais importante, no entanto, seja o próprio Ocupe Estelita. Porque o fato é que o Mangue, apesar do imenso impacto cultural, não veio acompanhado por uma movimentação da sociedade civil com o grau de criatividade e a força potencial que vemos agora. É daí onde, provavelmente, nos próximos anos, seremos lembrados da utopia embutida em um slogan do Maio de 68 remixado por Science e seus companheiros: “sob o calçamento está o mangue/está a praia/estão nossos desejos por outro cais, outra cidade.”
Renato L nasceu no Recife-PE, em 1963. É formado em Jornalismo pela UFPE. Trabalhou muito tempo como DJ, foi o “ministro da informação” do Mangue Beat e secretário de Cultura do Recife por três anos e meio.
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Estela Conto: Thiago Corrêa | Ilustração: Juliano Dornelles
Diante do espelho, ela se viu outra. O que encontrou no reflexo da superfície fria e lisa já não correspondia à Estela que aparecia na carteira de identidade. Aquela Estela estava escondida no fundo da bolsa, sufocada num pedaço de papel plastificado. Os cabelos crespos e negros, que soltos nos anos 70 lhe renderam o apelido de leãozinho pelos versos de Caetano, tornaram-se avermelhados e sem curvas. No lugar do nariz arredondado, agora havia linhas retas que se encontravam numa angulação meticulosamente planejada para dar certo ar esnobe, igual a da atriz de Hollywood, que ela costumava observar, de baixo pra cima, desejando que a tela do cinema se transformasse em espelho.
25 vacatussa #6 Junto com as marcações da moda registradas pelas fotografias, também se desprendia dos traços históricos e genéticos de uma colonização realizada por senhores católicos à base de escravidão. Graças aos avanços da medicina, as ondas do cabelo e as curvas nasais foram descartadas, assim como fizera com a camisa amarrada na cintura, as calças boca-de-sino e saint-tropez. Respirou fundo na intenção de apreciar o cheiro do progresso e ouvir o médico dizer novamente: um dia a ciência fará com que o tempo se curve ao poder do bisturi e o nosso corpo poderá ser reformado, demolido e reconstruído como qualquer outro imóvel, do jeito que a gente quiser. Depois de tantas mudanças, talvez nem mais a impressão digital do seu polegar direito permanecesse a mesma. O que restava era apenas o número do RG e o nome de casada com o sobrenome do ex-marido. Embora continuasse indicando o ano de 1957, a data de nascimento agora parecia inverossímil, um erro de digitação diante da pele lisa, espichada por fios de ouro. Sem as cicatrizes do tempo, sentiu como se tivesse nascido outra vez e a vida, dali pra frente, surgisse como um cruzamento, oferecendo novos caminhos. Um horizonte sem amarras do passado, pronto para ser desbravado por seios erguidos, barriga chapada e pernas enxutas por drenagens linfáticas e lipoaspirações. O alívio de finalmente perceber o resultado de tanto sangue, ossos serrados, sucções de gordura, cortes e costuras faciais, aplicações de botox, dores e curativos do pós-operatório a fez sorrir. Ao invés da satisfação como efeito das descargas de endorfina no corpo, o que ela sentiu foram puxões por baixo da pele. De imediato, as fisgadas subcutâneas se engancharam em lembranças de quando o pai a obrigava vestir roupas encolhidas pelo seu crescimento, das unhas da mãe cravadas no seu braço para que ela se comportasse durante a missa de domingo, do peso do cassetete em suas pernas nos protestos contra a censura na época do diretório acadêmico e dos beliscões por baixo da mesa do marido para fazê-la se calar nos jantares de negócio. No espelho, o rosto permaneceu no presente diante das recordações do passado. O corpo como uma barragem a interromper o fluxo de memória que ainda pulsava dentro dela. Tentou novos movimentos: expressões de felicidade, satisfação e alegria se equivaleram a espanto, melancolia, tristeza. Viu-se presa, incapaz de romper o silêncio do espelho. Na frustração e no arrependimento alimentado pela memória, encontrava a mesma imagem insípida que enxergava nos dias de alívio e esquecimento. Aos seus olhos, os momentos de júbilo ficaram iguais aos instantes de desespero, ou de terror, ou de prazer. Tudo correspondia à mesma imagem.
26 vacatussa #7 Na ausência de referencial de suas emoções, passou a interpretar gargalhadas na hora do choro, brigas em vez de abraços. Os convites para sair rarearam, a campainha se calou e o telefone emudeceu. Um dia, acordou com a sensação de ter sonhado com os sonhos de outra pessoa. Algo que se repetiu dia após dia até reconhecer o mesmo rosto nos porta-retratos do apartamento. Não fosse a sua imagem presa num pôster na parede e nos filmes em DVD que assistia para exercitar a memória, acharia que estivesse na casa da mulher do sonho. Mergulhou em si para entender o que se passava em silêncio. Quando voltou a falar, o que ouviu foi em inglês: who is that bitch? Resolveu vasculhar os armários até encontrar os álbuns de retrato. Pelas fotos, entre uma pose e outra, ela pôde recompor a vida da estranha que de alguma forma emergia em seus sonhos. O vestidinho de ir à missa, o carinho da mãe, as viagens, os sorrisos, o brilho do olhar, os amigos, as roupas, o casamento, os filhos, os cachos de cabelo e as curvas simpáticas do nariz. A partir de então, passou a folhear os álbuns da mulher durante os dias. Até que, do canto do olho, brotou uma certeza. O contraste da sinceridade cristalina da lágrima escorrendo sobre a máscara costurada em seu rosto a fez perceber o quanto gostaria de ter sido aquela mulher.
Thiago Corrêa nasceu em São Bernardo do Campo-SP, 1981, e mora no Recife. É jornalista e mestre em Teoria da Literatura. Tem contos publicados nos livros Recife Conta São João (2008), Possibilidades da fotografia contemporânea (2009), Tempo Bom (2010), Ficção em Pernambuco (2013), Inquebrável: Estelita para cima (2014). Edita a Revista Vacatussa.
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Ah, Recife Poema: Valmir Jordão | Ilustração: Raoni Assis Dizem os bardos que uma cidade é feita de homens, com várias mãos e o sentimento do mundo. Assim Recife nasceu no cais de um azul marinho e celestial, onde suas artérias evocam: Aurora, Saudade, Concórdia, Soledade, União, Prazeres, Alegria e Glória. Mas nos deixa no chão, atolados na lama de sua indiferença aluviônica: a ver navios com suas hordas invasoras e o Atlântico como possibilidade de saída...
Valmir Jordão nasceu em Recife-PE, em 1961. É performer, oficineiro e poeta oriundo do Movimento dos Escritores Independentes, 1981. Publicou: Sobre Vivências (Ed. Pirata, 1982), Antípoda (Escalafobética, 1990), Hai Kaindo na Real & Outros Poemas (Escalafobética, 2008) e Poemas Diversos (Escalafobética, 2013), entre outros.
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AUTOR CONVIDADO { MARCELINO FREIRE }
Um livro Ilustração: Thales Molina
“Lá longe, onde “Quero nascer” a morte diz.” Murilo Mendes
Lá longe, onde “Quero nascer” a morte diz. Murilo Mendes
Faz silêncio em São Paulo. São Paulo é uma cidade silenciosa. Um cemitério de astronautas. Nada se ouve, uma nuvem. Uma asa. Estou em casa, à boca de um livro, aberto. Para onde foram os carros? As buzinas que buzinavam? Uma ou outra palavra me foge. Discretamente, saio à caça. Estou apaixonado, mais uma vez, pela poesia de Murilo Mendes. Aqueles anjos, tantos demônios. Derrubaram os helicópteros. As motos mortas. Nenhuma mosca de gente. Acho que, de repente, o mundo deu meia-volta. Cansou de rodar por aí.
30 vacatussa #7 Peso o meu pensamento. E ele está leve. Saio à igreja para comprar um pão. Sim, tudo virou igreja, templo. Qualquer estabelecimento, uma meditação. Não entendo onde enfiaram a cidade. Nem memória há no corpo do asfalto. Ali mesmo, onde morreu um ciclista, nenhuma sombra. Caminhões não caminham. Cachorros não cagam. O pão, debaixo do meu braço, parece consagrado. O café, moído. Falta sinal à internet. Vai ver foi isto. Tudo virou invisível. No espelho do quarto, entro. Sem fazer barulho. Mesmo que quisesse, nem o espelho fala. Velho o espelho. No mesmo sossego, o meu reflexo. Acho que estou contaminado, sim, hoje, por algum verso, que lançou sobre São Paulo uma luz de fim de mundo. Qual verso? Velocidade. É porque escrevi para você ontem falando sobre seu aniversário, a vida longa e a saudade que nos aperta – eu, em meu apartamento de 42 metros quadrados, e você residindo na floresta. Já falei para você vir morar aqui. Aí você diz que não acostumaria nunca com o ritmo dos viadutos, os relógios motores, as febres. Tudo passa com o tempo, eu digo. Nada é mais urgente, saiba, do que um coração vivendo perto do outro. Para juntos podermos suportar tamanha solidão sozinhos. Acho que estou perdendo o pulso, devagarinho. O que fizeram com os pombos? Arrulhos tristes toda manhã. E os fios de alta tensão? Volto aos versos de Murilo Mendes. Por que não há uma rua com o nome de Murilo Mendes? Digo: em minha esquina, nossa esquina, logo ao lado. Talvez em Minas. Rio Grande do Sul. Colômbia.
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Criciúma. Se São Paulo parou, as ruas também não fazem mais parte deste Brasil. As canoas, em algum lugar, afundaram. Você ainda não se convenceu de que eu sou capaz de estacionar todas as vias para ver você chegar de uma vez. Posso apostar que a floresta é mais barulhenta do que São Paulo. As dores dos bichos às unhas dos predadores. Os bacuraus caçadores. Os grilos poluidores. Os bandos de urubus urbanos. Fluorescentes vagalumes. Venha. Está um deserto a vida. Sem solução, a metrópole agoniza. Meu amor por você é maior do que todos os prédios. Maior do que todos os arames. As janelas azuis. Maior do que a Rua Augusta. Os jardins subterrâneos. Muito mais fundo do que o jazigo do rio. Meu amor é uma limousine perdida. Afogada. Igual àquela que foi encontrada, faz tempo, com dois noivos boiando dentro. Amor maior. Até a morte, enorme. Pensa bem. É preciso “pensar o pensamento”. Eu sempre digo: longe de qualquer raciocínio, breca, ouve, brega, o teu coração. Ele para. Ele para São Paulo. Acredita, acredito. Meu amor só não é maior do que um livro.
Marcelino Freire, nasceu em Sertânia-PE, em 1967. Vive em São Paulo desde 1991. Escreveu, entre outros, o recém-lançado romance Nossos Ossos (Record). Para saber mais sobre o autor, acesse: www.marcelinofreire.wordpress.com
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