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Editorial Após longo período de ruminações, a Revista Vacatussa está de volta. E, como em todo retorno, esta volta veio carregada da vontade de preservar memórias (o diálogo entre texto e ilustração) e do desejo de testar novas ideias, que aparecem a partir de agora com o acréscimo de um autor convidado e com o modelo de impressão por demanda. O que era apenas uma ideia, ganhou corpo como projeto lá no início de 2013. Depois reapareceu como sorriso após o resultado do Funcultura e transformado numa série de burocracias. No fim de janeiro, abrimos a seleção e uma avalanche de 421 textos enviados por 135 autores entupiu nosso e-mail. Diante do volume e do cronograma estabelecido no projeto, a solução foi dividir os textos entre os quatro integrantes do conselho editorial. Do peneirão, passaram 71 textos de 40 autores. Na segunda etapa, todos os textos foram lidos por todos do conselho. Ao fim do julgamento, somados os votos, saiu o veredito com os nove contos que você vai encontrar nesta edição. A eles, acrescentamos o escritor Sidney Rocha como nosso primeiro autor convidado. Boa leitura! expediente Edição Thiago Corrêa Conselho editorial Aline Arroxelas Joana Rozowykwiat Mario Lins Thiago Corrêa Projeto gráfico Jaíne Cintra

Textos André Balaio – Aymmar Rodriguéz – Cesar Cardoso – Cínthia Klummp – Daniel Vas – Ludmila Rodrigues – Mário Rodrigues – Mateus Barbosa – Nathalia Queiroz – Sidney Rocha Ilustrações Blackzebra - Greg - Jarbas - Javier Alonso Juliano Dornelles - Julieet - Kelen Linck Moca - Samuca - Silvino


su má r io

Seria um dia comum - 4 Torcendo pelo seu sucesso - 6 Nascer -8 Eu, você e o Rio - 10 Bigode - 12 Pedro e eu-15 Penico - 17 Chupando o Verissimo - 19 Sábado, dia 12 de junho - 22 Decameron - 27


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Seria um dia comum Conto: André Balaio | Ilustração: Juliano Dornelles

Osvaldo entrou no escritório preocupado. Havia contratos a fechar, reuniões a marcar, emails a responder. Seus funcionários já estavam todos lá, compenetrados. O engenheiro Norberto olhava cautelosamente uma planta baixa; o técnico Adolfo consultava atentamente uma norma; o orçamentista Mário preenchia cuidadosamente uma planilha; a secretária Carminha digitava metodicamente uma carta. Osvaldo preferiu não atrapalhá-los com perguntas ou comentários e atravessou o ambiente estreito onde se apertavam as escrivaninhas dos quatro colaboradores sem dar nem mesmo um bom dia. Chegou até a sala contígua com um largo sorriso de orgulho por ter uma firma tão produtiva. Era naquele segundo ambiente que o empresário tinha seu birô, a casamata de onde avistava e ouvia tudo o que se passava na sala maior,


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solução perfeita para a produtividade da equipe: todos vigiados, não perderiam tempo com conversa fiada. A pequena empresa de projetos existia havia cinco anos, desde que Osvaldo perdera o emprego de gerente de engenharia em uma indústria de grande porte. Foi um período duro, de muito esforço e dedicação, até conseguir se firmar no mercado e conquistar uma carteira razoável de clientes. Um período sem férias ou mesmo descanso nos fins de semana. A família teve que entender e se conformar com as poucas horas de convivência. Afinal, tudo aquilo era para eles. Às nove e meia, o telefone tocou insistentemente a ponto de quebrar a harmonia da sala. Carminha não viu alternativa a não ser interromper a sua atividade e atendê-lo. Mal disse alô e alguém começou a falar sem parar. A secretária arregalou os olhos e pôs a mão no peito. – Não é possível! Isso é sério mesmo? Que tragédia, meu Deus! Desligou e ficou um tempo olhando o nada. Finalmente explodiu em lágrimas e soluços incontidos. – Gente, Doutor Osvaldo morreu! – disse com um fiapo de voz. Os colegas foram da descrença ao desamparo. Mário abraçou a colega. – Como foi? – gritou Adolfo, rosto suado e vermelho, olhos a ponto de pular de susto. – Acidente de carro. Estava vindo para cá. Morreu na hora. O velório será no cemitério de Santo Amaro. Seguiu-se um silêncio curto e doído, quebrado pela impaciência de Adolfo: – O que vai ser da gente? Vamos ficar desempregados? – Não há o que fazer agora. Paremos aqui – Norberto contemporizou. – Precisamos saber como a família agirá; se vai manter o escritório ou não. Alguém quer uma carona para o cemitério? Desligaram os computadores, fecharam as gavetas, trancaram os armários, limparam as mesas de qualquer vestígio de vida, apagaram as luzes e saíram. Em seu posto de observação, Osvaldo se impacientou. Ainda não tinham concluído o orçamento para uma licitação no dia seguinte, nem o projeto da reforma do prédio da Secretaria de Educação. Não lembravam que havia prazos a cumprir? Tentou gritar para voltarem ao trabalho. Ficou ali pensando nos compromissos, tentando estabelecer prioridades. André Balaio nasceu no Recife-PE, em 1968. Tem contos publicados nos livros Histórias Medonhas d’O Recife Assombrado (2002) e Malassombramentos (2010). É roteirista de quadrinhos, músico, DJ e editor d’O Recife Assombrado (www.orecifeassombrado.com). Nas horas vagas, caça fantasmas e malassombros nas noites do velho Recife.


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Torcendo pelo seu sucesso Conto: Aymmar Rodriguéz | Ilustração: Silvino

Seguiram caminhos diferentes, mas continuavam amicíssimas. Ora, o que é um amigo senão um irmão que escolhemos ter? Dannielly Bombom a-do-ra-va Solange Axé, e Solange... Bem, Solange tinha algumas pendências antigas mas também a-do-ra-va Danni. Por isso mesmo ofereceu um day spa completo para ela no seu salão cinco estrelas, frequentado pela elite dos afrodescendentes de toda a região. Era um momento especialíssimo: em breve Danni ficaria


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confinada no BBB, ia virar celebridade. Vinha de uma família de quase-famosas: a avó já tinha posado para Di Cavalcanti, a mãe fora mulata de Sargentelli e uma irmã já foi cara de uma campanha da Embratur. Agora Dannielly tinha a incumbência de ser famosa por inteiro. Depois de muitas tentativas finalmente seria a negona superpoderosa do Big Brother. Pelo lado de Solange, a coisa era menos artística, sua família sempre fora de comerciantes e empreendedores. Ela, por exemplo, aos dezoitos anos já tinha seu próprio salão de beleza. Aos vinte e cinco era dona de tudo isso aqui: uma luxuosa clínica estética de dois andares, referência em tratamentos de vanguarda e equipamentos de ponta. Querida, hoje será um dia superrrr especial para você. Vai chegar arrasando no Big Brother. Quero abalar, nêga. E vai, meu bem, e vai. Olha, primeiro vamos cuidar do corpo, depois do rosto e do cabelo. A própria Solange ia comandar pessoalmente o day spa da amiga, dispensou as ajudantes. Vestiu as luvas e lhe deu uma massagem esfoliante com todos os ácidos que seriam seus cúmplices: ascórbico, azeláico, glicólico, kójico e retinóico. Isso aqui, sua vadia, é pelos namorados que você me roubou. Ui, Sô, tá pinicando. Ah é assim mesmo, meu bem. Não existe beleza sem sofrimento. Depois lhe deu um chazinho com um sossega leão dentro. Isso aqui, sua nojenta, é pelas minhas joias que você roubou e depois disse que foi minha irmã. Esse chá é desintoxicante, beba tudinho, querida. Depois que a outra ficou meio zonza, Solange mergulhou Danny, a gostosona, num banho com 25% de arbutin junto com umas ervas que conhecia e o despigmentador que um amigo químico lhe indicou. Isso aqui, sua vaca, é pelo boato que você inventou e que quase me levou à falência. Deixou Dannielly Bombom dormindo na banheira, sonhando com seu sucesso. Quando achou que já era hora Solange deu um gritinho: amigaaaaa. Meu Deus meu Deus. Você deve ser alérgica a algum produto. Do pescoço pra cima, Danni continuava negra. Do pescoço pra baixo, estava albina.

Aymmar Rodriguéz nasceu numa das brenhas do rio Jundiaí (SP), em 1985. Reside no Recife. Publicou os livros Pornópolis (contos) e Baba de moço (poesia) pela Livrinho de Papel Finíssimo Editora, e Atirem a pedra (poesia) que faz parte da antologia Tríade, junto com Raimundo de Moraes e Semíramis. E-mail: babecomigo@gmail.com


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Nascer

Conto: Cesar Cardoso | Ilustração: Blackzebra

o ovo é o câncer da galinha. a galinha é o passado da canja. a canja é o efeito colateral da gripe. a gripe é o escritório do termômetro. o termômetro é o símbolo fálico do suvaco. o suvaco é uma axila que não tem erudição. a erudição é um cachorro sem mato. o mato é o cabelo da terra. a terra é o apartamento da minhoca. a minhoca é o desejo do peixe. o peixe é o homem da água. a água é uma invenção da sede. a sede é uma fome em forma de líquido. o líquido é


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uma forma de liquidação. a liquidação é a literatura do extermínio. o extermínio é o gozo do poder. o poder é o sorriso da mordida. a mordida é o sexo do dente. o dente é o nocaute do vampiro. o vampiro é o vôo da masturbação. a masturbação é o consumo do sonho. o sonho é a marilyn monroe do sono. o sono é o provisório do eterno. o eterno é a desculpa esfarrapada de deus. deus é o almoxarifado do medo. o medo é o garfo e a faca da coragem. a coragem é o sexto mandamento do cinema. o cinema é o pânico da pipoca. a pipoca é a borboleta do milho. o milho é uma civilização. a civilização é um parto partido ao meio. o meio nunca é igual a seu irmão. o irmão é a diferença da repetição. a repetição é o aprendizado e sua morte. e a morte é o fim botando um ovo

Cesar Cardoso nasceu no Rio de Janeiro-RJ, em 1955. Tem diversos livros infantis publicados e o de contos As primeiras pessoas. Escreveu para a revista Caros Amigos, para os jornais O Pasquim e O Planeta Diário e para programas como TV Pirata, A Grande Família e Sai de Baixo. Edita o blog PATAVINA’S (www.cesarcar.blogspot.com).


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Eu, você e o Rio

Conto: Cínthia Klumpp | Ilustração: Kelen Linck

O problema todo é que conheci o Rio com você. Se tivesse ido ao Rio criancinha passear de bondinho, pegar uma praia; ou mais moça, a namorar nos bares da Lapa e desfilar nos carnavais de Santa Teresa, tudo teria sido diferente: quando o avião pousasse e aquele cheiro de Rio começasse a surgir, eu teria só saudades da molecagem ensolarada, toda recortada por aquelas montanhas. Mas não. A porta da aeronave abre, aquele calor-Rio sacode meu corpo e traz você de volta pra cena, como um fantasma escondido atrás das quinas dos meus pensamentos guardados. E, então, estamos eu, você e o Rio, nós três de novo.


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Você me obriga a voltar naquele restaurante abafado só pra comer um arroz com lula que nem é tão bom assim; me faz subir a escadaria da Lapa e tirar fotos em ângulos de bom humor; me faz ir até a Vista Chinesa e fingir que sou uma Helena do Manoel Carlos, interpretando os possíveis diálogos sobre o nosso fim. E aí você me cansa e me leva de volta pro hotel, onde, sozinhos, você se configura em ausência doída, em vazio que tira a pressão dos meus pulmões, em massa de tristeza pura, que pesa dentro da gente e me faz deitar na cama, me impedindo de continuar o dia. Fecho o olho e ouço você falar, daquele jeito que a boca fica ensaiando pra soltar uma palavra, que sai toda atrasada, construindo um sotaque só seu. “Levanta daí”. E eu vou levantar mesmo. Vou tomar banho, decidida a me vingar, te expulsando aos poucos de dentro de mim, colocando um rock que você não gosta para tocar, sentando com a toalha molhada em cima da cama pra te irritar, vestindo a roupa que você nunca elogiou e me maquiando, mais do que o necessário. Pego um taxi e digo o nome do samba que tanto fomos juntos. E lá, lá eu vou encher a cara, vou dançar chamando a atenção, vou dar bola pra todos os caras que eu achar que devo iludir e lá, lá eu vou te esquecer, entre um sambinha e outro, entre um copo e outro, entre um homem e outro. E, quando a festa estiver terminando, e eu me perceber sozinha, vou sair, cruzar a rua e dar de cara com a Urca, com a linda praia da Urca, onde vou sentar na muretinha, olhar as estrelas e, com sorte, haverá um grupo de pessoas dançando e cantando pra Iemanjá. Você vai chegar devagarinho, sentar do meu lado, passar um braço sobre os meus ombros, e vai perdoar a minha traição por ter te deixado de lado por algumas horas. A gente vai sofrer juntos ali, eu, você e o Rio, relembrar umas bobagens, chorar um pouco e aí vai ser hora de ir embora e eu vou ter que me despedir. De novo. De vocês dois.

Cínthia Klummp nasceu em São Paulo-SP, em 1986. É formada em Comunicação Social, trabalha com marketing e faz mestrado em Comunicação e Semiótica. Tem contos publicados nos livros Palavras e Progresso (Litteris) e Edifício Marquês de Sade (Valer). Nas horas vagas mantém o blog sersentindo.blogspot.com.


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Bigode

Conto: Daniel Vas | Ilustração: Moca

Quando o cachorro lançado da janela do oitavo andar se espatifou no chão, fez-se um barulho tão gelatinoso que, assustado, o homem do segundo andar acabou raspando o bigode. Merda. Seu reflexo encarava indignado, mutilado, inquirindo sobre o que deveria fazer. Não dava para esconder, isso estava na cara. Estava, agora está na pia. Não é hora pra piadas, sabia? Procurou um lápis de olho, não achou. Estranho, ali devia ter maquiagem. Ela estava maquiada.


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É claro que não tem, onde cê pensa que ela tava? Cala boca, estou pensando. Me ajuda aqui, vai. O reflexo ergueu o rosto para ter um ângulo melhor. Como sair do banheiro naquele estado? Um bigode falho, um buraco na alma. Ficou de perfil e aproveitou a vaga ilusão de não ter se machucado. Mas o estrago continuava lá. O que eu faço? Cê pergunta pra mim? Cê que fez a cagada. Olhou pela janela e viu aquele resto de bicho, explodido no asfalto. De todos os prédios, por que desse? Que jogue o cachorro, foda-se, mas precisava ser justamente ali? Agora? Enquanto aparava o bigode? Ele ouviu um “meu Jesus!” vindo do quarto, ela devia ter acordado. Estremeceu se lembrando do passado. Foi o bigode que a seduziu, anos atrás. Isso e o álcool. Ele tinha 25 anos, um desemprego e a loja da família como uma perspectiva inglória. Assim como o pai, nasceu sob a sombra de uma estrela errada, sempre tomando péssimas decisões e piorando situações que não podiam ficar mais enrugadas. Medíocre da escola até agora, o homem não recebia um elogio, ofensa ou nada que o tirasse da condição de paisagem. Bonito até, mas não passava disso. E, como pedia a época, um bigode de vassoura velha que tinha mais personalidade que ele. Foi justamente isso que ela viu nele, no restaurante. Foi no posto de gasolina, lembra? Não enche. Você nem devia falar. Tão rápido quanto má notícia, ele estava em cima e ela fingindo. Ela era uma mulher do interior que, junto com a virgindade, abandonou um avô moribundo, um noivo num altar e uma torneira aberta. Ela sabia rimar e ele gostava do cabelo dela. Ele era uma boa fachada. Casaram. Por três dúzias de menstruações ficaram juntos. Enquanto arrecadava chifres, ele galopava de um bico a outro, ganhando o suficiente para manter o bigode. Era um prêmio de consolação, por falta de coisa melhor, e ele ficou tão obcecado com aquele buço peludo que tinha mais sonhos eróticos com ele do que com a mulher. Depois cê ficava putinho quando te chamavam de pervertido. Não tem nada a ver. Me pegaram pra Cristo, no colégio. E eles tavam errados? Você não devia só me copiar? O bigode era o símbolo da masculinidade, virilidade, a fronteira que separava os meninos dos homens, o poder da submissão. Todos os grandes homens


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tinham bigodes. Einstein, Chaplin, Dali, Fernando Pessoa. Hitler tinha bigode. E agora a glória ia ralo abaixo. Num súbito de integridade, decidiu que encararia aquilo de um modo adulto, sem se desesperar. Nem tudo estava perdido, ainda havia a outra metade. Olhou seu reflexo, que zombava dele, e sem pensar arrancou a parte falhada. Sentiu frio. Estava meio ridículo, meio tosco, meio bigode e o homem se questionava o que iriam pensar dele. Ele mesmo não sabia, sem aquele pedaço sobrava pouco a dizer. Cê tá uma graça. Pensou em tirar o outro lado, mas aí ela não teria mais porque manter as aparências e ele mesmo não teria onde se esconder. Ignorando o reflexo, saiu do banheiro. E que se foda.

Daniel Vas nasceu em São Paulo-SP, em 1994. É estudante de Psicologia na USP e usa o que aprende em sala de aula como material para criar alguns de seus textos. Já publicou os contos Espelho e Chuveiro na coletânea Edifício Marquês de Sade. Mantém o blog argumentoinverso.wordpress.com


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Pedro e eu

Conto: Ludmila Rodrigues | Ilustração: Jarbas

Lembro que minha mãe me abraçava forte, toda destroçada por dentro, chorando uma lágrima grossa feito o diabo, se engasgando baixinho, que era pra eu não ver, mas eu via. Ele arrastava as malas, o suor pingava, ele arfava, não desistia. Ele não era meu pai. Eu já tinha perdido meu pai antes, pequeno de dar dó, nem entendia nada de nada. Minha mãe conta que eu agarrei perna de um e perna de outro, berrei, berrei até ficar estatelado no chão e ela me pegar pra botar pra dormir. De meu pai não lembro muita coisa não, nem dessa perna dele que dizem que eu agarrei. Mas desse outro... Era Pedro, o nome dele. Foi o segundo marido de minha mãe, veio um pouco depois de


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meu pai. A gente era feito irmão, porque ele era daqueles homens mais novos que a mulher. A gente nem ligava. Pedro me ensinou senão tudo, quase tudo. Dizia que no meu aniversário de dezoito anos ia me levar no puteiro, minha mãe ficava doidinha, resmungava que filho dela não ia em puteiro nenhum, e eu só ria, gostava era demais de Pedro e das ideias dele. Mas, no fim das contas, nem me viu fazer dezoito anos. Se eu lembrei dele no dia, lembrei, né?, mas já conhecia tanto corpo de tanta mulher que dei foi risada. Queria saber como é que anda Pedro, se fez família, se lembra de mim, do menino miúdo que ficava puxando ele pro mar com medo de ir sozinho pra maré cheia quando a gente ia na praia. Deve tá é homem feito, dia desses. Barba comprida como minha mãe gostava. Esses dias ela pegou uma foto dele e apertou assim contra o peito, e eu pensei que amor de verdade deve doer demais quando se perde. Mas minha mãe é mulher orgulhosa e, desde que mandou Pedro embora, nunca mais se falou nome dele nessa casa. Fiquei um tempo achando que ele ia voltar, chegar jeitoso como só ele dizendo esquece isso, mulher, vem cá, vambora cuidar desse piá e ser feliz. Mas Pedro sumiu na poeira da estrada, não apareceu foi nunca mais. Eu fiquei foi com saudade daquela peste, disse isso pra ele, naquele dia, falei: vou ficar com saudade de tu, peste. E ele disse: cuida de tua mãe, piá. E vira homem bom.

Ludmila Rodrigues nasceu em Salvador-BA, em 1991. Publicou O rosto na xícara (2012) e Minha cabeça já não comporta tantos antigamentes (2014). Atualmente, é estudante de Letras Vernáculas na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e publica contos, poemas e rabiscos no blog: ludmila-rodrigues.blogspot.com.br.


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Penico

Conto: Mário Rodrigues | Ilustração: Javier Alonso

Esqueça Napoleão e Tiradentes. Esqueça Aron Ralston: alpinista que amputou o próprio braço. Esqueça Britney Spears. Meu exemplo de bravura foi Penico: meu galo de briga. A rinha arredondada ficava no cinema velho ao lado do cemitério. Os campeonatos aconteciam quinzenalmente. Eu depenava parte do pescoço de Penico e revelava o gogó de sola. Queimado pelo sol o pescoço ficava vermelho-escuro. Processo igual era dedicado à lateral das coxas. Havia três categorias. Na C – a batida – os galos brigavam com proteções de couro nas esporas. Era patético. Os galos saíam eriçados como galinhas. E só. Na B – a briga – os galos lutavam com suas esporas naturais. Afiadas


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pelos seus treinadores com lapiseiras. Mas podiam se quebrar fácil e perder a letalidade. Por fim: a Série A: a Rinha. A mais assassina. A mais desumana. A mais desgalinácea. Brigavam com esporas de aço inoxidável. Era nesta que Penico agia. Eu lustrava suas esporas. Presenciei grandes brigas. Sabia que uma espécie qualquer de arte superior estava sendo protagonizada quando Penico batia as asas – uma envergadura perfeita – e se suspendia no ar e juntava as duas esporas de metal contra a cabeça do adversário. Cristas eram esmagadas. Das coxas escorriam gotas de sangue. O chão da rinha avermelhava. Vi muitos donos de galo pedir penico a Penico. Mas o galo bambo e derrotado era mais corajoso que seu dono e ia até o centro da rinha e não fugia. Penico mirava a cabeça do perdedor e suas esporas vazavam a cabeça do outro. O morto ainda levava umas bicadas na crista esfarelada. Mas um dia Penico morreu. Morreu de pé. Ele parou no centro da rinha no caminhar bambo de sua luta final. Não estava cabisbaixo. Olhou pros meus olhos e eu balancei a cabeça concordando. E ele se entregou às esporadas. Morreu como um galo. Bravo. Apanhei seu corpo. Paguei as apostas que perdi. Nenhum prejuízo. Penico me dera muitas vitórias. Coloquei a cabeça dele embaixo da asa esquerda. Fui pra casa. Coloquei-o na pia. Ele merecia uma última homenagem. Esquentei água. Depenei o que restava de pena em Penico. Coloquei-o pra cozinhar depois de tirar suas entranhas. A carne dele era escura e dura. Mas saborosa. Como deve ser a carne dos heróis.

Mário Rodrigues nasceu em Garanhuns-PE, em 1977. É professor e especialista em língua portuguesa pela UPE. Em 2010, sua coletânea de contos O vendedor de seriguelas recebeu menção honrosa no Prêmio Sesc de Literatura. Publicou os romances A curva secreta da linha reta (2011) e Brazil, 2014 (2012), ambos pela u-Carbureto.


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Chupando o Verissimo

Conto: Mateus Barbosa | Ilustração: Samuca

Alô, Rui? Ele. Rui, é o Anésio. Grande Freitas! Não o Freitas. É Anésio, o Pontes. Grande Pontes! Desculpa, não sei se te acordei, ou se tirei sua concentração, sei que você gosta de escrever à noite, mas eu precisava falar contigo. É que eu tava escrevendo e... e...


20 vacatussa #5 Fala, Anésio. Bom, é que... Desembucha. Vou direto ao ponto. Vai. Pra não enrolar e falar logo. Já tá enrolando. Então vou dizer. Já podia ter dito. Tá. Sem arrodeios. Tá arrodeando. Cara, eu sonhei que tava chupando o Verissimo. Ah, Freitas, quem nunca.... Não é o Freitas, é o Pontes. Pon-tes. Grande Pontes! Relaxa, quem nunca deu uma chupadinha numa ideia, num diálogo ou num conto do Verissimo? Não, não é só isso. E o que é então? Eu não tava exatamente chupando as ideias do Verissimo, se é que você me entende. E o que você tava chupando então, cacete? Isso. Isso o quê? O cacete. Como assim, o cacete, cacete? O cacete. O pau, a bilola, a manjuba, a tromba, o maranhão, a rola do Verissimo, porra. A porra também? Não, a porra não. Porra, Rui, sei lá. Enfim, eu sonhei que tava pagando um boquete no Verissimo. Vai ver é um desejo inconsciente, você admira tanto ele. Normal querer sugar um pouco da genialidade do mestre. Mas cair de boca no canudo realmente é estranho. Aí é que tá: eu sonhei com essa porra, acordei com uma ideia e escrevi algo muito bom, Rui. Um conto de humor, sarcástico, leve, um tema comum, cotidiano. Ficou genial, Rui, genial! Mas ficou a cara do Verissimo, entende? Bom pra você. Publica, oras. E se descobrem?


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Se descobrem o quê? Que ontem eu sonhei que dava uma chupada no Verissimo e hoje escrevi um conto hilário com a cara e o estilo dele? Isso aí já é paranoia. Eu tô me sentindo como uma prostituta, sabe? Eu chupo o cara e tenho uma ideia que parece que foi do cara que eu acabei de chupar. Parece que eu tô pagando a ideia com um boquete. Sei lá, não tô me sentindo honesto com isso. Fora que eu não gosto de sonhar que tô chupando o pau de ninguém, né? Parecia tão real, Rui, tão real. Calma. Vai dormir um pouco, tenta não pensar no Verissimo. Amanhã você decide o que fazer com a cabeça fresca. Mas se me permite um conselho... Foi pra isso que te liguei, Rui. Você sempre quis ter uma casa em Búzios, não é? O que isso tem a ver? Você tem vontade de morar em Paris, não tem? Também. Mas... Se você quer realizar isso tudo sendo escritor, tenta sonhar com o Paulo Coelho hoje, que amanhã você vai escrever uma merda que vai fazer sucesso em mais de oitenta países. E dorme tranquilo, todo mundo fala que ele tem o pau pequeno.

Mateus Barbosa nasceu em Maceió-AL, em 1977. Atualmente vive entre o Recife e o Rio de Janeiro. É escritor de contos e crônicas e roteirista da Rede Globo, onde escreve seriados de TV. É incoerente, paradoxal, vive se contradizendo, se sente como uma fraude e vive tentando não ser desmascarado.


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Sábado, dia 12 de junho Conto: Nathalia Queiroz | Ilustração: Julieet

Bati de novo na porta do apartamento dele à procura de sexo. Já tínhamos transado umas duas vezes, sendo uma delas meio bêbada e a outra meio receosa. Mas, dessa vez bem decidida, bati na porta e ele foi logo abrindo, a gente se beijando, mais ou menos como das outras vezes sendo que, dessa vez, sem receio ou álcool, e sem nenhuma inibição. Naquela libido de pouca conversa, ele me levou direto para o quarto, nos jogamos na cama previamente desforrada, coisa de solteiros em fins de semana, e fizemos amor até a tarde ficar escura.


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Já menos voluptuosos, permanecemos deitados olhando para o teto, nos fazendo carinhos despretensiosos, até que ele tentou conversar algo sobre o seu dia, sobre o meu dia, sobre como render essa noite de sábado, sobre música, política, planos, sobre como eu tinha sinais na pele, foram tantos ganchos de assuntos e praticamente nenhuma isca mordida. Ele perguntou se não seria melhor eu passar ali a noite, e eu disse que, na verdade, eu já estava de saída, e ele foi fumar um cigarro. Depois disso ele me levou até o portão do edifício. Nos demos um beijo tipo estalo. Tímido. Fui para casa para retornar ao apartamento dele uns sete dias depois. Bati na porta e ele já foi abrindo e me beijando, naquela libido de pouca conversa, ele me levando para o quarto de cama previamente desforrada, amor até a tarde ficar escura para então, já menos voluptuosos, ficarmos deitados olhando para o teto, carinho, tempo, qualquer assunto, um beijo tímido na saída… eu tinha perguntado, uma vez, se podia ligar sempre que quisesse e ele respondido para eu ligar também quando não quisesse, e foi quando ele começou a falar do seu dia, do meu dia, de que era sábado, e ai eu lembrei que, na verdade, eu já estava de saída e isso foi antes dele falar qualquer outra coisa. Eu ligava para ele. Ligava pouco, mas ligava. Ele nunca respondia minhas mensagens. Mas era um doce quando estava comigo e um doce pela voz no telefone, numas conversas que nunca rendiam mais que cinco minutos e sempre terminavam comigo batendo na porta do apartamento dele, normalmente aos sábados, quase sempre nos fins de tarde. E fomos nos repetindo desse jeito, ele insistindo cada vez menos em conversas, às vezes a gente rendendo a volúpia noite adentro, nem sempre com um beijo no portão, hora da saída, volta pra casa. Aconteceu que eu já não ligava mais porque, aos sábados, fins de tarde, ele já me esperava no seu apartamento com a porta aberta, fazíamos amor de pouca conversa,contemplávamos o teto por alguns minutos. Sábado passado, quando cheguei ao apartamento dele, ele me cumprimentou com um beijo na testa. Fui para o quarto deixar minha bolsa e deitei na larga cama desforrada, contemplando o teto enquanto esperava. Inutilmente. Pus o rosto na sala e o vi sentado, na varanda, fumava. Cheguei de mansinho e lhe dei um beijo no pescoço. Ele me puxou uma cadeira, me deu um beijo tipo estalo e, depois de uns dois minutos, disse que tinha conseguido reduzir 5 cigarros dos seus 7 diários, restando somente um para o fim da tarde e outro para quando acordava.


24 vacatussa #5 Depois ele me disse que o motivo de ter alugado aquele apartamento era aquela árvore gigante na casa da frente, que deixava a rua com um ar tranquilo e que, todos os sábados, antes de eu chegar, ele me esperava ali onde estava, sentado, na varanda. Foi quando, como um ato corriqueiro, passou o braço sobre o meu ombro e ficamos ali, o fim de tarde todo, olhando ou a árvore ou a rua. Nesse sábado dormimos juntos. Cama desarrumada. Um ou outro carinho despretensioso antes de fechar os olhos. De manhã eu fiz umas torradas e ele suco de laranja. Decidimos gastar o domingo vendo uns filmes que ele tinha baixado durante a semana, inclusive o novo de Polanski, que tinha acabado de entrar em cartaz. Mas, antes disso e depois do café, voltamos para o quarto e ficamos ali por algumas horas, discutindo coisas como o gosto esquisito dele por música gospel americana e essa minha mania de achar que Caetano combina com domingo de manhã.

Nathalia Queiroz nasceu em Recife-PE, em 1986. É designer por formação, desde sempre se mantém passeando por meios que de alguma forma a traduzam. Já teve textos publicados no Suplemento Pernambuco, integrou a Coletânea Antônio Maria de Crônicas (FCCR, 2012) e mantém o blog: nathaliaq.wordpress.com.


Participe da Revista Vacatussa

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Regulamento: 1. Serão aceitos textos dos gêneros conto, poesia e crônica; 2. Cada autor só poderá enviar um único texto; 3. O texto não pode ultrapassar o limite de 3.000 (três mil) caracteres (com espaço); 4. O texto deve ser enviado em arquivo de Word (.doc); 4.1. O arquivo deve ser nomeado com o nome do autor seguido pelo título do texto. Exemplo: “Fulano de Tal – Título da obra”; 5. O texto deve estar de acordo com o seguinte formato: 5.1. Fonte: Times New Roman; 5.2. Tamanho da fonte: 12 (doze); 5.3. Espaçamento entrelinhas: 1,5 (um e meio); 6. Os textos devem ser enviados para o e-mail vacatussa@ gmail.com até o dia 10 de maio; 7. Os autores dos textos selecionados receberão a quantia de R$ 300 (trezentos reais) pela cessão de direitos autorais, mediante apresentação de documentação complementar


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AUTOR CONVIDADO { SIDNEY ROCHA

Decameron Ilustração: Greg

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28 vacatussa #5 1 Aquilo começou dez dias antes, quando Zico apareceu nos jornais com as montanhas de gelo sobre o joelho esquerdo, olhando para a parede branca da enfermaria. Todos os atacantes do mundo sentiram o mesmo calafrio naquela noite. Menos um. 2 Paolo Rossi saiu da boate com a garrafa de uísque sob a jaqueta. Ruth ainda rebolava no colo do jogador quando recebeu as cédulas, enquanto lambia nesgas de vida na taça. Suas lembranças viajavam noites e noites de humilhação nas ruas de Governador Valadares. “Valhadólares”, dizia-se na época. Quando se viu só, Ruth ligou para o cafiolo. Ia descansar. Não tinha planos de seguir até Trinidad gastando todo o seu dinheiro para ser alguém diferente, como as colegas. Estava satisfeita consigo mesma. As coxas de mármore negro tinham músculos de zagueiro. As pernas estiradas, Ruth não cabia na cama. Assim, encaracolou-se. Quando meteu o travesseiro entre as coxas nuas já voava asa-delta sobre o desfiladeiro dos lexotanômanos. 3 Paolo Rossi subiu até à suíte, mordeu a fatia de pizza, abriu a janela, bebeu o gole no limite para não cair morto, ficou olhando a cidade sem cara e sem coração e caminhou de costas dois passos até a cama pensando num pênalti ao ritmo de um narrador dentro de sua embriaguez. O sotaque de Ruth ainda sibilava líquido na memória e isso o levou à torpeza de um jardim de delícias. Um reino maravilhoso onde brincava menino, naquela tarde, quando o “tio” inglês enviara pela mãe a bola de plástico da cor do sol, com a estampa do goleador Charles Hurst golpeando o vento. Foi assim que abandonou os automodelos da Revell, pra treinar dribles com a bola inglesa marcando escaras marrons na parede branca da sala. Naquela época, Paolo Rossi tinha dez anos. Moravam perto de Firenze, num pequeno apartamento fumarento sobre a “chaleira”, a antiga lavanderia em formato de bule no centro da cidade, de onde as máquinas gritavam piares de pássaros dia e noite. Havia uma saída à esquerda, pelo beco florido de sombras, e assim ele podia evitar a porta da frente, porque isso fazia Paolo parecer um personagem de Lewis Carroll, ou de algum desenho animado, quando ia à escola ou à igreja. Sair sempre parecia algo humilhante e então ele se acostumou aos limites do muquifo. O pai de Paolo era um italiano à antiga, os bigodes alaranjados de vícios, os pesadelos da Segunda Guerra enfiando contas de um rosário de sombras e traições nas canecas de vinho, para tudo terminar em ciúmes e úlceras. Mesmo assim, a


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senhora Rossi conseguia fazer uma vez por ano aquela viagem de veraneio até Lago di Garda, para ler livros durante o piquenique, nos pontos mais distantes do parque, recostada ao peito inglês coberto de lavanda, enquanto agora Paolo brincava na grama com o sol fujão do artilheiro Hurst. 4 Quando Paolo Rossi acordou, viu o sol do meio-dia de Barcelona enfiando agulhas de luz nas cortinas. A mania de esconder a carteira dos colegas nas concentrações o fez tatear com os olhos furados pela luz e, com custo, encontrou-a sob o colchão. Estava fora de forma, mas se sentia bem. Há um ano nem sonhava com outra realidade senão as grades, ou os brutamontes da máfia das loterias entrando na noite dos seus pesadelos ameaçando romper a canivete os ligamentos detrás dos seus joelhos. Tudo é passado agora. A Itália, o pai morto, a cadeia, Paolo Rossi desafiava o sol do meio-dia traçando retas com o olhar, como se pudesse desenhar campos e traves no ar ou meter gols em cada janela aberta de Barcelona. Ouvia ainda a voz de xamã de Ruth: “Não se preocupe, bambino. Você vai enfiar três gols naqueles exibidos.” “Nem precisa tanto, tolinha. Um só e basta.” “Mas será assim. Pedi a Deus por você. Eu vejo.” “Você jura, minha bruxinha?” Paolo dormiu. 5 Sonhou com Zico e as montanhas de gelo. Lembra-se do amigo Gentile rasgando a camisa do atacante, naquele amistoso. Gentile e os amigos de Gentile com suas ideias loucas de prever resultados para tudo na Itália. O Brasil naquela época vivia pedindo esmolas ao FMI. Tão sem defesa quanto naquela partida. Um Brasil, que pedia Rei, Rei, Reinaldo com seu punho esquerdo crispado contra o regime militar, se calou. Ruth estava na banheira e viu a partida pelo televisorzinho. Esse mês pagaria a última parte emprestada de sua alma ao cafiolo e estaria livre para dar por amor — até. 6 Fracasso. Falaram do quanto o Telê Santana recebeu pra se manter sob o elmo da arrogância. Comentaram de Cerezo entregar o jogo, de Júnior não


30 vacatussa #5 marcar Paolo Rossi, enfim, todos precisávamos de uma história secreta para resistir, estávamos numa guerra pessoal, numa Copa particular, pensou Ruth. Ela, sim, vencera Valadares, as ruas sujas, as boates da província, mas passou incólume pela inflação, a década das greves gerais, do fracasso, fracasso, fracasso, afinal. 7 Depois de alguns anos, Ruth viu pela janela chegar o amigo. Era um homem já velho, agora. Ainda o podia reconhecer em ternura e delicadezas. Mas Ruth não era mais a mesma. Algo se quebrara. O ânimo, a clarividência, a alegria, tudo nesse mundo requer amor, disse. Estava de mudança para os Estados Unidos, talvez casasse por lá, precisa, de fato, descansar agora. O amigo entendeu tudo. Apoiou-a em todas as necessidades. Penso que a presença de um na vida do outro será para sempre. “Eu fiz o Brasil perder aquele jogo, Paolo. Não me perdoo. Fui eu.” “Não diga tolices, Ruthinha. Fui lá e meti três gols. Três. Combinamos assim. Nos exibidos. Você não acredita mesmo que poderia, não é? Você me deu sorte, meu amor, só isso”. Ruth estava amarga demais. Ele foi embora. 8 Um ano depois, um jovem a procurou em Los Angeles. Tinha um cartão de Paolo nas mãos, e uma cartinha delicada e mal escrita falando do assunto que mais lhe agradava, ele mesmo; das risadas juntos nesses anos, dos netos na Toscana, da fome no mundo. Ruth se procurou um pouco naquelas lembranças, e a impressão era de não ter existido, e de ter sonhado a Europa, depois a América... Era uma visão para si mesma, um fantasma sonhando sonhos de fantasma. Ficou ali, inumada em tantas recordações, das tantas “ruths” para os tantos “paolos” entrando e saindo, a vida do tudo-passa como a oração de Santa Teresa ensinava, na qual somente Valadares doía o tanto que doía. Mas Ruth julgou a carta sincera. Estavam em 1994. Então, ela recebeu o jovem e o amou assim sem amor. “O amor é uma loteria”, estava escrito nas entrelinhas. Mas ali Ruth já perdera o trato com os jogos, ou com os homens jovens. Os anos desmontaram algo. O corpo se valia de muitas mágicas pra manter a escultura de pé, as curvas pediam penumbras, os dedos sem viço. Era agora feiticeira sem feitios. Talvez não se distinguisse tanto do velho cansado que


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via de relance passar diante do espelho fazendo caretas ranzinzas. Mas abraçou o rapaz e baliu nele sonhos encaracolados. Ronronou outros mistérios. Quando acordou, ele se sentia confiante e demonstrara alguma gratidão. Não era mais o rato afobado em busca de um milagre. Foi embora. No outro dia, quando Ruth ligou a tevê e o viu mil vezes perder aquele pênalti, as mechas do cabelo descendo por um dos ombros, a bola muitos metros acima da trave de Taffarel, é que soube se tratar de Roberto Baggio. Por um momento, Ruth compreendeu que Paolo, ao enviar o rapaz, devolvera para ela a chance de fazer as pazes conosco. E consigo mesma. 9 Esta é a história secreta da Copa de 1982. Ela termina por ser também a de 1994. E talvez só traga a melancolia de todas as Copas. Gostaria muito de esta não ser a verdade. Durante esses anos todos, temos convivido com o assunto e com a lembrança de Ruth pondo algodão entre os cristais. 10 Por fim, Ruth decidiu voltar Arthur ao Brasil em 2000. Viveu sozinho em Minas. Alguns ligávamos amiúde, no Natal, vez por outra, por qualquer motivo, alguma Copa ou Mundialito. Até que Ruth foi enterrada Arthur no Cemitério do Bonfim, em Belo Horizonte. A camisa canarinho e a da Azzurra vestiam o caixão simples, de pinho. A missa de corpo presente, sem noticiários, sem gols. Com o tempo, todos perdem, esta é a verdade. Ruth entendeu mais rápido que nós.

Sidney Rocha nasceu em Juazeiro do Norte-CE, em 1965. Atualmente mora no Recife. É autor do romance Sofia, uma ventania (1994), Matriuska (2009) e O destino das metáforas (Iluminuras, 2011), pelo qual recebeu o Prêmio Jabuti na categoria Contos e Crônicas. Integrou ainda a antologia Geração Zero Zero (2010).



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