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Editorial Já na edição de estreia, a Vacatussa trazia, entre os textos de jovens idealistas que pretendiam dominar o mundo, as ilustrações de Vitor Veras e Guilherme Botelho. Naquele número, as imagens ainda apareciam deslocadas em meio às palavras, respondendo mais ao tema que norteou a edição do que aos contos e poemas ali impressos. A partir da segunda edição, os textos passaram a ser acompanhados de ilustrações e o diálogo entre palavras e imagens se consolidou como característica e objetivo da publicação. No entanto, como a origem da Vacatussa tem as quatro patas fincadas na literatura (afinal ela foi criada por ex-integrantes da oficina do escritor Raimundo Carrero), chega a ser natural observar que, até a presente edição, as palavras tivessem certa prioridade no modo de organização da revista e na presença das minibiografias apenas dos autores. Nesta edição, porém, resolvemos dar o devido destaque às ilustrações, reconhecendo a importância delas para a Vacatussa. Assim, invertemos o processo de elaboração da revista, libertando os ilustradores das palavras e passando o desafio da tradução para os escritores. As narrativas que se encontram nas próximas páginas foram inspiradas pelos contornos de cenários, personagens e ideias das ilustrações. O resultado está em suas mãos. Boa leitura! expediente

Edição Thiago Corrêa (vacatussa@gmail.com) Rua Setúbal, 914, 1002, Boa Viagem, Recife-PE, CEP: 51030-010.

Ilustrações Christiano Mascaro – Daniel Edmundson – Derlon Almeida – Gil Vicente – Gio Simões Glasner – João Lin – Keops Ferraz – Leugim – Neilton Carvalho – Ricardo Cavani Rosas

Conselho editorial Aline Arroxelas, Joana Rozowykwiat, Julieta Jacob, Mário Lins, Thiago Corrêa

Textos Joana Rozowykwiat – Adelaide Ivánova – Lulina – Tatiana Maciel – Julieta Jacob – Helder Santos – Helder Herik – Marcelo Mário de Melo – Marcelo Coutinho – Ronaldo Correia de Brito

Projeto gráfico Jaíne Cintra

Periodicidade: Bimensal ISSN 2359-1609


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O pacto - 4

A palavra ilustrar é como um boy de gêmeos - 7 20.01.20&¶ - 10 Livre - 13 A morte é bela - 15 O violeiro do apocalipse - 18 Lunus fuscalus - 21 Ratos ao mar - 24 Da invasões trôpegas, dos exércitos mancos e de eu como par de botinas - 26 O mico - 28


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O pacto Ilustração: Christiano Mascaro | Conto: Joana Rozowykwiat

Na penumbra do quarto, a luz fraca e vacilante do pequeno abajur deixa ver um edredom grosso, com centenas de aviõezinhos estampados, e parte do rosto de Nico. Seus olhos saltam esbugalhados, interessados naquilo que miram. Ele presta atenção ao pai, sentado na pontinha da cama, a contar mais uma de suas mirabolantes histórias. A janela está aberta, deixando passar um vento agradável, que balança suavemente a cortina.


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O pai gosta de criar climas, gesticula, muda a voz e o olhar a cada reviravolta no enredo que transmite. Naquela noite, mistura terror e magia, verdade, fábula e catástrofe. Conta a história de um tempo antigo, quando surgiram as primeiras cidades. O homem tinha aprendido a plantar seu próprio alimento, não precisava mais vagar em busca de comida, brigando com outros homens e enfrentando os perigos da mata. Decidiu morar em um só lugar e, aos poucos, foi construindo paredes e muros. Começava a criar então seu local de abrigo, descanso e proteção. Nico ouve tudo encantado. Desenha dentro da cabeça os monstros da floresta e do mau tempo, as disputas entre tribos, a construção de uma grande vila murada. Vê torres e pontes levadiças, pessoas agora felizes e tranquilas. O homem ao seu lado então começa a falar pausadamente, franze a testa e incorpora um ar soturno. Lembra que, para construir suas cidades, os homens afastaram-se da natureza. Roubaram-lhe os recursos de que precisavam. A cada machadada num tronco de árvore, os seres encantados das matas soltavam gritos de dor e tristeza. E, à medida que os homens ampliavam seus domínios, mais precisavam das águas, das madeiras, dos minerais, do solo. As criaturas da floresta iam pouco a pouco definhando. Temiam perder seus poderes, temiam perder seu lar, mas temiam, sobretudo, a ira da deusa-terra. E ela se apresentou em uma noite sem lua, como aquela em que Nico viajava pelos contos do pai. Veio na forma de ventos raivosos, que arranharam sem piedade pedras, barros, madeiras e tudo o mais que encontravam pela frente. Carregou telhados, carroças, plantações. Deixou destrambelhadas vilas e aldeias. Largou sem nada as gentes que tinham aprendido a acumular coisas e coisas. Atônito, o líder do povoado rogou aos céus que aquela ventania parasse e lhes fossem concedidas novas graças, para que pudessem reconstruir seus pertences, para mais uma vez serem felizes e tranquilos, abrigados e protegidos. Das brenhas e bosques então ela surgiu, propondo aos cidadãos um acordo. Para cada pedacinho de sua mata que fosse violentado, cobraria como pagamento o coração de um homem. O líder tentou em vão negociar. Mas o que teria ele a oferecer às forças da natureza? Desolado, foi à praça e comunicou aos irmãos o acerto.


6 vacatussa #10 Naquela noite, ninguém dormiu. Um conselho se reuniu para decidir quem seria posto em sacrifício pelo bem dos companheiros. Para ter o conforto de volta, teriam que abrir mão de alguém. Entre choros, maquinações, acusações e defesas desesperadas, a aldeia decidiu que um ancião seria ofertado à deusa da mata, para que todos pudessem começar a ter suas coisas de volta. O menino nem pisca mais. Viaja através das palavras lançadas pelos lábios do pai. O homem então acaricia sua testa e pergunta se ele quer saber o fim da história. Nico sente medo, raiva e pena. Mas lembra que, no fim, as histórias sempre terminam bem. Sabe que ali, no seu quarto, cercado por muros e pela família, está abrigado, protegido. Abre um sorriso e pede que o pai continue. No dia seguinte, os cidadãos foram ao bosque recolher o material que precisavam para reconstruir a vila e trabalharam dia após dia para erguer novas paredes. Até que uma criatura da floresta surgiu para cobrar o preço acertado. Sem conseguir esconder a vergonha do semblante, o líder ofereceu o ancião. Ali mesmo na praça, o velho teve o coração separado do peito e exposto a toda a comunidade. Com seu passo lento e ruidoso, o gigante desapareceu na floresta carregando não só um órgão ensanguentado, mas também a alma de uma cidade corrompida. Curioso e amedrontado, Nico fita os olhos do seu contador de histórias. “E o que acontece com as pessoas que ficam sem coração, pai?”. Antes de ouvir a resposta, o menininho sente que algo está errado e agarra com força a ponta do edredom. O vento deixou de correr e a luz do abajur parece estar indo embora. Por entre uma brecha na cortina, vê com seus olhinhos apertados um gigante se aproximar. Aterrorizado, escuta a voz agora trêmula e soluçante do pai se distanciar, enquanto a mão da criatura adentra pela janela: “E não somos todos sem coração, meu filho?”

Christiano Mascaro nasceu no Recife em 1974. Designer e ilustrador profissional há mais de dez anos, colaborou para as principais revistas do país além de editar a revista de quadrinhos autorais Ragu. Participou de coletâneas nacionais e internacionais, ganhou prêmios importantes tanto como designer ou ilustrador. É editor de artes no Diario de Pernambuco. Joana Rozowykwiat nasceu no Recife, em 1981, e hoje mora em São Paulo. É jornalista, especialista em Jornalismo Político e autora do livro Subversivos - 50 anos após o golpe, recém-lançado pela CEPE. Tem contos publicados na coletânea Recife conta o Natal I (2007) e no Suplemento Cultural Pernambuco. Integra o Vacatussa.


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A palavra ilustrar é como um boy de gêmeos Ilustração: Daniel Edmundson | Crônica: Adelaide Ivánova


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A palavra ilustrar é como um boy de gêmeos: tem um quê de luminoso e ao mesmo tempo de escorregadio. Sua etimologia é illustratio, uma palavra linda, e no dicionário significa “conjunto pessoal de conhecimentos”); ao passo que no cotidiano o termo é usado para nomear a imagem que serve de muleta para alguma outra coisa – um texto, um poema, uma cartilha, uma placa de “sem saída”. Significado e aplicação são completamente opostos. Como num boy de gêmeos, a promessa do que algo poderia ser não corresponde à prática. Boris Schnaiderman, o tradutor de Dostoiévski para o português brasileiro, escreveu, em um ensaio sobre Oswaldo Goeldi, que ilustrar um texto é como traduzi-lo – o que ele chamou de “tradução intersemiótica”. Goeldi, que fez os desenhos para diversos livros de Dostoiévski, Edgar Allan Poe e Machado de Assis, era, como Dostoiévski, escorpiano (ninguém perguntou mas eu queria dizer). Existem textos que nos despertam imagens e existem imagens que nos fazem pensar em textos. Quando vi esse trabalho de Daniel, a primeira coisa que me veio à mente foi Roberto Bolaño e Kung Fu Panda. Numa certa cena, a Tartaruga (que interpreta apenas Deus) explica ao Panda que tudo está interligado. Como tinha bebido um montão de vinho, achei a frase mais genial do que na verdade é (ou talvez tenha achado genial o fato de que ela tenha sido dita por uma tartaruga? Não sei), e na mesma noite tive um sonho em que me era revelada a equação matemática que explica o universo. Era uma equação aplicável a todas as coisas, vivas e mortas, que mostrava sua interligação, o aspecto uno da existência. Foi um sonho pesado, porque tive uma sensação muito física de clareza, quase um Nirvana, e a certeza que esse estado de consciência não se pode sentir por muito tempo; é uma aproximação do real que não acho estarmos habilitados (ou autorizados?).


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Acordei e fui doida reler a parte de Amalfitano em 2666, que faz perguntas semelhantes. O personagem nos dá a impressão de que depois de atingir certo nível de conhecimento, a única saída é enlouquecer. Se o sujeito realmente para para pensar o que une uma antena parabólica a uma mulher deitada em posição fetal a um homem segurando um microfone, pode chegar a conclusões mais duras do que a vida em si (que já não é mole). É o próprio Bolaño quem sugere a solução para esse problema. “(...) deixar o livro de geometria pendurado às intempéries, para ver se aprende alguma coisa da vida”. O exercício, que originalmente é proposto por Duchamp, é para mim como uma performance que tenta buscar esse elo perdido entre todas as coisas, unindo o divino (“traduzido” na imagem de um livro) e o mundano, que é o ato de pendurar em si. E deixar a vida entrar (as intempéries, talvez?). Se Schnaiderman chama de tradução intersemiótica o ato de desenhar para um texto, como chamar o ato de escrever para ilustrar uma ilustração? É isso que estou tentando fazer há dias com esse desenho de Daniel. Tem sido muito difícil – olho para o desenho e só consigo pensar em mim (e no Panda). Tem quem diga que só assim se olha (e se vê) arte; eu não sei. Ontem vi um livro de Rafal Milach (dê Google, é maravilhoso) em que um dos seus fotografados diz: “What I like best about Russia is myself ”. Ao ler isso entendi que, ao contrário do boy russo (que devia ser leonino), o melhor do desenho Daniel não sou eu, mas gosto muito do que o desenho fez comigo.

Daniel Edmundson é designer e diretor. Sócio da mooz Branding & Design em Recife e da Bateu Castelo Filmes, em 2013 fundou a Engenhoca, uma marca de softwares educativos responsáveis. Recebeu o prêmio de melhor animação no Pernambuco Design 2004 com a abertura do programa Sopa Diário. Dirigiu o documentário No Ar Coquetel Molotov 2011 e também o curta Faraway, que entrou na seleção oficial do La Jolla Fashion Film Festival 2014 (California, USA). Adelaide Ivánova nasceu no Recife em 1982 e desde 2011 mora em Colônia, na Alemanha. Estudou fotografia na Ostkreuz, em Berlim, tendo sido orientanda de Ute Mahler. Tem 3 livros publicados, faz parte do acervo do Museu de Belas Artes da Bretanha e tem exposições individuais e coletivas em diversos países, a mais recente sendo no Dieselkraftwerk Museum, em Cottbus, na Alemanha.


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20.01.20&¶ Ilustração: Derlon Almeida | Conto: Lulina É muito importante respeitar os prazos de validade. Tem gente que insiste em consumir o produto até o cheiro e o gosto mudarem por completo para algo detestável. E digo por completo, porque ainda tem gente que insiste em retirar apenas a parte que visivelmente se transformou em bolor e consumir o resto. Estamos juntos há 9 anos, sendo 1 como namorados, 4 como casados e mais 4 como pais de Isabela. Toda semana nos unimos na tarefa de jogar fora os produtos vencidos da geladeira. Ela é como eu: respeita os prazos de validade. E é ansiosa como eu: verifica dia sim dia não como estão os prazos, para saber em quanto tempo teremos que consumir o que ainda não venceu. Consigo disfarçar bem a suave angústia que sinto sempre que olho para a data impressa nos produtos. Algumas estão bem visíveis, outras vêm em letras quase indecifráveis, mal impressas ou distorcidas por algum amassadinho da embalagem. As datas que encontro com mais facilidade são as que me deixam pior. O tempo que passaria distraído realizando a minuciosa tarefa de achá-las ou decifrá-las, passo contemplando aquela grandiosa, legível e arrogante data, parada diante de mim. Parada e em movimento, porque cada segundo que nos encaramos é roubado dela por mim e de mim por ela. O ligeiro pavor que sinto nesse momento vem da lembrança de que também eu tenho um prazo de validade. Mas só conseguirei descobrir qual é a data bem no dia que ela chegar. Isso me angustia de verdade, mas só um pouco. Quando será que ela vai me jogar fora? É a primeira coisa que penso. Será que o patê vai durar mais do que a minha vida? É a segunda coisa que penso. Como será que a minha vida vai estar quando esse leite, com prazo de validade de quatro meses – se mantido fechado e armazenado em local seco e arejado – ficar velho? Será que até lá eu terei desenvolvido intolerância a lactose? Nosso relacionamento muda de sabor como uma fruta que amadurece bem devagar. Posso não saber a data exata da validade da nossa relação, mas, como nos amassadinhos da embalagem, consigo ver um ou outro número, talvez o ano, mas não tenho certeza. O número, no caso, é um símbolo para uma vaga percepção de que talvez, só talvez mesmo, não tenho certeza, ela esteja experimentando um produto novo no mercado. Esse produto pode ser o novo amigo do novo curso que depois sempre sai para tomar um café com ela e às vezes até sorvete para discutir algum assunto que não ficou tão claro na aula. Jotapê é o nome dele. Não sou um cara ciumento, mas sou medroso. De tanto contemplar prazos de validade, tenho a plena consciência – talvez não tão plena, senão


12 vacatussa #10 ficaria um pouco desesperado – de que tudo na vida acaba. Penso que 9 ou 10 anos é um excelente prazo para uma relação, eu já deveria estar satisfeito com isso e não deveria me comportar como aqueles que não respeitam prazos. Insistir em consumir algo que já não lhe faz bem é, também no caso dos alimentos emocionais, pedir para ter asco ou muitos problemas de saúde. Será que para ela eu já apresento algum bolor? Essa marca de café me lembra dos nossos 20 anos de casados. Essa massa fresca de validade curtíssima me lembra das nossas curtíssimas brigas nesses 30 anos de casados. Esse ketchup já no fim me lembra que os netos vêm no fim de semana e que precisamos comprar mais ketchup. Dividimos o último iogurte da bandeja, que venceria amanhã. Todos os Jotapês tinham um prazo mais curto que o meu. É muito importante respeitar os prazos de validade, também no que se refere a saber esperar – e aproveitar – até que ele realmente chegue.

Derlon Almeida nasceu no Recife-PE, em 1985. A partir de pesquisas sobre a xilogravura popular e a street art, criou um novo projeto de linguagem contemporânea incorporando elementos do grafite e da xilogravura. Com poucas e contrastantes cores, apropriação da estética da xilogravura, criou uma simbiose da intervenção urbana com um dos principais meios de comunicação impressa da cultura popular. Lulina nasceu no Recife em 1979 e vive em São Paulo desde 2003. É formada em Publicidade e Propaganda pela UFPE e trabalha como redatora, compositora e cantora, com dois discos lançados pela gravadora Yb. Em 2008, publicou de forma independente o artesanal Livro das Lamúrias e em 2010 participou da Coletânea Antônio Maria de Crônicas, lançada no Recife.


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Livre

Ilustração: Gil Vicente | Conto: Tatiana Maciel Licenciado por inARTS.com

Gil Vicente. Homenagem a Osman Lins, 2002, Nanquim.

Ela tinha uns sete anos quando viu a primeira pessoa se matar. Se assustou um pouco com a gritaria, com o corpo para fora da janela, com o medo dos outros. Depois chorou porque não pôde ir ao enterro. Mas se todo mundo vai? Não teve jeito. Ficou sentada na escada de casa, brincando de cortejo fúnebre com suas bonecas. Pintou o carro rosa da Barbie com uma sharpie preta, com capricho, sempre na mesma direção, como a professora de educação artística ensinou. Não demorou muito, se matou sua avó. Morreu, disseram. Só que de propósito. A política da família foi a de sinceridade por puro encurralamento, já que era inquisitiva, a menina. Então ensinaram que existia uma coisa chamada de livre arbítrio, que a avó não sabia viver, que escolheu aquilo, coitada. E ela começou a achar que esse tal de livre arbítrio só existia para os outros, já que ela não podia escolher nem o vestido que ia usar no aniversário da Mirela. Quando foi a vez do seu pai, ela já tinha onze anos. Depois foram uns tios distantes, uma amiga da mãe, o barulho que ouvia dos corpos caindo do edifício vizinho.


14 vacatussa #10 Começou a achar que talvez tivesse alguma coisa com aquilo. Será que ela era contagiosa? Amaldiçoada? Estragadora profunda de prazeres? Por garantia, decidiu rasgar todos os revezes do Banco Imobiliário. Já não tinha mais amigos e sua culpa não lhe permitia querer conhecer os desconhecidos. Não queria sentenciar à escuridão eterna aquele casal tão simpático ali, nem a ruiva do 435 que puxou assunto. Um dia sua mãe bateu na porta do quarto, era tarde. Ela estava estudando isomeria óptica para a prova. A mãe pediu ajuda. Compreensão. Paciência. Disse que não queria mais viver, que não gostava da vida. Eu te amo tanto, minha filha, disse, e achei que só isso seria suficiente. Não é. A menina ficou em silêncio. Depois perguntou se não tinha mesmo saída. Mas sua mãe lhe passou as senhas dos bancos, os extratos das contas, os seguros e os contratos, com uma tranquilidade de quem já chegou aonde ia. A menina anotou tudo, prendeu com clipes, separou em pastas. Algumas fichas de estudo acabaram se misturando lá no meio, porque a menina não estava pensando direito. E se nunca soube diferenciar um levógiro de um dextrógiro, podia dizer que foi culpa desse dia. E se nunca soube diferenciar a dor do resto todo, podia dizer que foi culpa desse dia. Pouco depois, conheceu um cara. O pai dele tinha se matado, afogado numa lagoa, uma tragédia. Se apaixonaram lindamente. Mas por isso mesmo, logo foi embora, o cara. A felicidade nos cai tão mal, ele disse. Ela fechou a porta e ligou o gás. Mas depois de meio minuto pensou: que besteirada. Tinha crescido a menina. Oi, livre arbítrio, prazer. Desligou o gás, ligou o som alto e se vestiu pra uma festa. A gente se mata todos os dias da vida, de uma só vez ou devagarinho, como fizeram todos antes da gente. Tem quem escolha hora e tem quem prefira a surpresa. E Teresa gostava demais de surpresas. Estava se lembrando, ainda agora, que quase morreu de susto e de alegria quando ganhou um Guitar Hero no natal de 2005. E riu, riu, mas riu tanto que perdeu o fôlego.

Gil Vicente nasceu no Recife, 1958. Estudou na Escolinha de Arte do Recife e em cursos livres da UFPE e da Escola de Belas-Artes Paris. Em 1975, venceu o Prêmio Salão dos Novos, MAC-PE. Em 1981, recebeu o Prêmio MEC Funarte Salão PE. Participou da Bienal Mercosul em 2001, e das 25ª e 29ª Bienais de São Paulo, em 2002 e 2010. Tatiana Maciel nasceu no Recife em 1979 e mora no Rio de Janeiro. É roteirista, tradutora e escritora. Seu romance O Homem dos Sonhos foi publicado pela editora Agir em 2006. Tem uma paixão um pouco descontrolada por histórias, música e sorvete de café.


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A morte é bela Ilustração: Gio Simões Glasner | Conto: Julieta Jacob

Eu queria muito morrer. Desejava isso todos os dias ao dormir, embora não me achasse merecedora de morrer durante o sono – a melhor das mortes, na minha opinião. Se tivesse direito a um pedido antes de morrer, aliás, seria exatamente esse: morrer durante o sono. Uma morte indolor e higiênica. Sem sangue, sem sofrimento, sem esforço. E o principal: sem culpa. É que o suicídio era demais pra mim. O ato mais corajoso que alcançava era o de desejar a morte com muita força, já que era fraca demais para interromper a minha própria vida. No máximo, me deixaria morrer passivamente, sem reagir. Sem mexer uma pestana, sem mover um músculo. Sem culpa. Minha vida já tinha culpa demais e não suportaria o risco de ser julgada – e condenada – mesmo depois de morta. Afinal, minha vontade de morrer justificava-se exatamente pela vontade de me libertar da culpa que carregava. E a culpa era dos meus pais. Eles que me disseram que sexo era feio, sujo e doloroso. Que na primeira vez sangrava muito. Um horror. Acho até que vem daí a minha obsessão por uma morte bela, limpa e confortável. Mas o pior que eles me fizeram foi dizer que fazer sexo – incluindo a masturbação – antes do casamento era um pecado horrendo e irreversível, inegociável. Essa ameaça era tão temida por mim, que, só de imaginar o castigo correspondente a tal desobediência, já sofria por me achar merecedora da punição. Doía no corpo e na mente. Difícil era controlar minha imaginação. Aos 19 anos, eu era uma insaciável explosão hormonal. Se imaginava o castigo, era porque fantasiava com o pecado em igual ou maior medida. E tudo isso, embora me trouxesse algum prazer, me trazia também muita culpa. Essa maldita. Insalubre. Insuportável. Incompatível com a vida. Viver com culpa? Ora, faça-me o favor. Não nasci pra isso. Para livrar-me da culpa, portanto, era necessário que me livrasse da vida, já que, no meu corpo, ambas viviam em (con)fusão. Na morte eu seria livre. Essa era a minha escolha, a minha solução. Naquele sábado eu acordei feliz. Não por estar viva, mas porque a vida era o meu passaporte para a morte. Estava certa de que encontraria a liberdade. A cidade estava agitada. Havia motins por toda parte. Grupos terroristas saqueavam lojas. A polícia não conseguia manter a ordem. Pedestres eram espancados e presos à revelia. Na avenida principal, os bombeiros tentavam controlar um incêndio devastador.


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Ao tomar conhecimento do caos pelo noticiário, fui tomada por uma onda de alegria que só as recém-casadas sentem na noite de núpcias. Eu trabalhava no maior shopping da cidade, ali bem no meio do agito. Meu plano de morte estava traçado. Asfixia por gás lacrimogêneo seria perfeito. Bala perdida, podia ser, desde que o projétil – apenas um e fatal – não atingisse o meu rosto. Morrer pisoteada ou atropelada, jamais! Carbonizada? Por que tamanho castigo? Eu fazia questão da integridade do meu corpo, sobretudo da aparência facial. Queria uma morte sem hematomas nem mutilações. Sem sofrimento nem culpa. Uma morte tranquila, numa boa e – por que não? – com uma certa beleza. Enquanto imaginava as possibilidades, me arrumei vagarosamente. Cuidei de cada detalhe, como se estivesse cumprindo um ritual. Feito uma noiva que se prepara para entrar na igreja. Primeiro, raspei as pernas, virilha e axilas. Decidi então passar hidratante de lavanda no corpo para acalmar um pouco minha ansiedade. Mas, ao me tocar e me insinuar diante do espelho, fiquei mais excitada. O desejo represado no meu corpo encontrou uma brecha de


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permissividade e inundou a brecha por entre as minhas pernas. Tarde demais para me arrepender ou para temer. Sabia que aquele orgasmo seria o último. Eu seria absolvida. Um pouco trêmula, vesti minha melhor lingerie – um conjunto de calcinha e sutiã com estampa de oncinha comprado dois anos atrás, mas que ainda estava na embalagem lacrada. O que de mais sexy eu pude ter nesta vida. Em seguida, uma meia-calça cinza-chumbo, um sapato de salto e pronto. Chegou a hora da maquiagem. Debrucei-me na penteadeira, pintei os olhos com uma sombra escura, combinando com a meia-calça, colori as bochechas com blush rosado para dar um ar de saúde, e finalizei com um batom vermelho-clichê, mas que para mim era inédito e, por isso mesmo, era um vermelho-fetiche, o mesmo que escolhi para as unhas. Era outono e soprava um vento frio. Coloquei um casaco e saí de casa com o corpo e o coração aquecidos. Eu estava bonita como não costumava ser e as pessoas na rua não disfarçavam olhares na minha direção. Sem tempo para alimentar vaidades nem agradecer elogios, eu só fantasiava com o momento em que me encontrassem morta na rua e me levassem para a necrópsia. A tranquilidade de saber que na hora do exame – quando minha intimidade seria inaugurada por um estranho – meu corpo estaria bem apresentado numa lingerie sensual, com virilha, pernas e axilas depiladas e com a pele levemente perfumada de lavanda; foi tão gratificante, que deixei escapar um sorriso. Sorri com o rosto inteiro e desejei que essa expressão de prazer ficasse visível e imortalizada na minha rigidez cadavérica como uma fotografia que resume o sentimento de uma vida inteira. Se tivesse direito a um pedido antes de morrer, eu pediria que acreditassem que fui feliz. Gio Simões Glasner nasceu em Recife-PE, em 1985. É formada em Administração de Empresas e trabalhou cerca de 10 anos como estilista. Em 2012, quando decidiu morar em Berlim, descobriu sua paixão pelas artes plásticas e a afinidade com o pastel seco e o papel. Julieta Jacob nasceu em Recife-PE, em 1981. É jornalista, educadora sexual e pesquisadora em sexualidade pela UFPE. Trabalhou em diversas emissoras de TV (TV Globo, TV Cultura, TV Brasília) e atualmente faz parte da equipe da TV Pernambuco. Fundou o blog Erosdita e tem contos publicados no site e Revista Vacatussa.


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O Violeiro do Apocalipse Ilustração: João Lin | Conto: Helder Santos Lá vai o arrombado! O meu filho. O arrombado. Arrastando sua viola cheia de fitinha. Arrastando desgraça por onde ele toca aquele troço. A primeira vez foi na inauguração da estátua do Major Otacílio, avô do prefeito Isaías. Coisa da minha mulher. Aquela cobra de morder calcanhar. O menino veio com essa de ser artista. Ela apoiou, só pra poder se amostrar às custas do talento dele. Pense! O danado quando toca aquele pedaço de pau sai um som que parece o da harpa de um anjo.


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Mas o estrupício é envergonhado. A jararaca disse que dava um jeito. Convidou o prefeito pra um café e botou o menino pra tocar do quarto. O homem quando ouviu caiu pra trás com tanta beleza. Saiu de lá convencido pela surucucu que ia ser perfeito o menino tocar na tal inauguração. Ele ia lançar um artista que com certeza seria um sucesso. Devaneio! Quando o menino tocou de cima do palanque, os olhinhos fechadinhos de vergonha, saiu uma música primorosa. Ao mesmo tempo começou uma tempestade, um vendaval, era raio, trovão e tome! Um relâmpago caiu bem em cima da estátua. Craque! Torou a bendita no meio. Tome! Nesse dia teve início uma falação na cidade inteira que o menino dava azar. Mas nem todo mundo acreditou. Vado de Dina convidou o menino pra tocar no seu casamento. Ladijane, a noiva, disse não, que o menino dava azar. Ele retrucou que era superstição do povo, não ia acontecer nada. Então ela avisou, se acontecesse qualquer coisinha, assim, ele ia ver. Dito e feito. Enquanto ela entrava toda radiante na igreja, o menino tocava “Ave Maria” do jeito mais lindo como nunca se ouviu. De cima da praça, lá da ladeira do juá, o caminhão de Doda descontrolou-se, o freio falhou. Desceu de ré atravessando a praça e entrou porta da igreja adentro. Carregado de estrume, no que finalmente freou, foi merda voando como nunca se viu. Claro que a culpa foi posta no menino, e claro que Vado de Dina não casou com Ladijane. Vixe! Hoje foi a última tentativa, a urutu mandou ele tocar na praça pro povo da feira. Disse que não se abalasse com o que o diziam, era inveja do seu talento. Lá foi ele de novo! De cima de uma caixa velha, de olhinho fechadinho tocou uma música belíssima. No que ele tocou todos os bichos da feira começaram a enlouquecer, os burros, os cavalos, os bois, as galinhas, os cachorros. A bicharada ficou em polvorosa e disparou pela feira derrubando tudo. Voava ovo, tomate e pena pra todo lado. Parecia


20 vacatussa #10 um terremoto. Quando o menino abriu os olhos não tinha viva alma, só as sobras do desastre. Bichinho ficou xoxo, soltou a viola que enfeitou toda e tá aí. Todo arrombado. Só eu sei que não é azar. É maldição. Praga do cigano que ensinou ele a tocar. Porque o menino fez a desfeita de meter o coiso dele na coisinha da filha do outro. A cascavel não estava em casa quando o cigano apareceu se babando de raiva. Pediu pra honrar sua filha, o menino tinha que casar com ela. Aí não, violão! Botei-lhe o rifle na fuça, mandei chispar. O tinhoso levantou a mão cheia de unhas pretas, arreganhou os olhos e os dentes verdes, e gritou na língua dele – Rafinague trusque tori trasquetovsqui! Entendi patavina! Sumiu! Hoje entendo. A praga era que toda vez que o menino tocasse o violão em público ia acontecer uma desgraça. Nunca ele ia poder ser artista. Já pensasse? Que coisa boa. Que bênção. Agora não tem desculpa, ele vai trabalhar comigo na fazenda, onde é o lugar dele, e pronto. Porque desgraça de verdade é ter um filho artista.

João Lin é artista visual com atuação na produção de quadrinhos, cartum, ilustração, xilogravura, serigrafia, videoarte e intervenção urbana. Como artista gráfico recebeu vários prêmios em salões nacionais e internacionais de humor e quadrinhos, edita a revista de quadrinhos autorias Ragu, ilustra para a literatura infantil e publicações jornalísticas diversas. É coordenador assistente do projeto Oi Kabum! Escola de Arte e Tecnologia - Recife. Helder Santos nasceu no Recife (PE) mas passou a maior parte de sua infância em Madison (Wisconsin), Estados Unidos. Formou-se em Design Gráfico pela UFPE, trabalhou em Luanda (Angola), fez mestrado em Barcelona (Espanha) e trabalha atualmente com direção de arte. Artista plástico, especializou-se em gravura em metal e xilogravuras. Escreveu Raiar, lançado editora Edith, seu primeiro romance em 2013. O livro também é ilustrado por ele.


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Lunus fuscalus Ilustração: Keops Ferraz | Conto: Helder Herik

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22 vacatussa #10 Cinco, quatro, três, dois, um! Foguete foi pelo subimento. Velho: “Será o lá o pensado cá?” Velho cismava de o caminhão de combustível. Dele ser o lá subindo, que era o pensado cá, o desconfiado acá. Velho cismava que alguém, a maluquência, o havia emborcado, amavadeuzado de o tocar fogo, ao que ele, pelo não ser bicho de o se correr ou de o se bater asas, pegou de ir subindo, que era o subindo de coisa tocada fogo, coisa de explodição. “É até parecido a buscapé, um jamais fraquejado. Foguete deixava o rastro no céu. Vez em quando o velho sentava, ficava da admiração do rastro. “Parece um pum, fino pum afilepado pum”. Menino e o Velho: Menino correu no ferro velho: “Um motor, um radiador e fuselagens”. “Que é lá isso, fuselagens?” Perguntou o Velho. “Carcaça de avião. Tem?” “Aqui só mesmo se tem é carcaça de fusca, belina, opala.” “Já serve”.

Pelo a noite, já no deitado, Velho entronchava a boca. Jeito dele de pensar era entronchando a boca, que era o mesmo que torcer os miolos. “Um motor, um radiador e fuselagens, saquei a do guri.” Pelo de manhã o velho procurou o menino: “Posso ir? “Ir para o onde?” “Para os ares” “Para o fazer o quê?” “Para o nada afazeres, só mesmo o ver os ares estrelares” Ficaram os dois, martelando e soldando, pelo dia e pela noite. Alguém observando: Velho amalucado. Juízo que tiver por certo é anuviado. Que é esse o meu ver: da voz do Velho se falar com Menino de nenhum lugar. Menino de corpo nenhum, ou que somente aconteça no dentro de sua cabeça. É o velho somente consigo: dele pra ele sem que se haja amigo. Menino: Cinco, quatro, três, dois, um!


vacatussa #10 Foguete foi pelo subimento, já ele bem pequeno, pra o menormente que mosca: mosquito. Só mesmo o veria quem untasse o colírico telescópico. Menino soprou o bafo na janela, esfregou: Cutú,cutú,cutú. Que lá viu ele foram pessoas se formigando. A cidade se formigandozinha. A cidade se virava a um farelozinho num gramado. “Se eu mijasse chuviscaria.” Ao pouco tempo sumia a gravidade. Menino ficava de câmera lenta, se boiando. Menino soltava as chimbres, ao que elas orbitavam. “Cada uma que se seja um planeta” Velho: Ao pouco tempo sumia a gravidade. Velho ficava de câmera lenta, se boiando. Velho soltava bolas de bilhar ao que se orbitavam. A de mais vermelhura era o sol. A de mais brancura era a luação. “Cada uma que ilumine os planetas, um pelo o dia e outro pelo a noite” Pelo vidro do fusca Velho olhou a lua. Era um mundeu sem nem pé de planta, sem nem pé d’água. Era lá só mesmo o aquele cinza

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da terra que foi incinerada. Era só lá a terra de fuligens e plânctons sedimentando. Já era o foguete pousado: Velho ficava de enrolar papel alumínio pelo o corpo, que era proteção do sereno ao lá de fora. Pelo daí então o velho abriu o capô de fusca ao que quem saiu foi o Menino pelo nunca haver havido o Velho.

Keops Ferraz é ilustrador, designer gráfico e diretor de arte pernambucano nascido em Recife em 1971. Formado pela Academy of Art University - CA. Trabalhou em Recife, São Francisco e São Paulo em diversas empresas de comunicação: agências de publicidades, escritórios de design, e no portal Universo Online. Hoje comanda a Pleura Invenções Gráficas e as Camisetas da Pleura. Site: www.keops.ws Helder Herik nasceu em Garanhuns PE. Tem quatro livros publicados. Acorda, todos os dias, às quatro horas da manhã e vai escrever. Gosta de esticar formigas até virarem dobermanns e domesticar aranhas para lhe palitar os dentes. É dessas pessoas que inventam problemas maiores, para os reais ficarem menores. Por fim: sonha escrever para aqueles que ainda estão na infância, fase da vida da qual nunca saiu.


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Ratos ao mar Ilustração: Leugim Poema: Marcelo Mário de Melo Nem sempre o crime e a corja predominam e um dia os ratos terão seu lugar. Sonho com isto e imagino a cena que se desenha entre céu e mar. Depois de caça cerco e isolamento a vil quadrilha então é derrotada e expulsa da viagem clandestina desfeita a teia em que imperava. É o trunfo da justiça enfim. Os passageiros no navio potente vencendo as ondas a distância o tempo olhando os ratos náufragos à frente. Eles navegam em barco de papel cumprindo pena de maior tormento: morrem de fome pra manter o barco ou fazem dele o seu alimento?

Leugim é o heterônimo da mão direita de Miguel Falcão. Nasceu em Timbaúba-PE, em 1963. É cartunista, ilustrador, quadrinista, caricaturista e chargista. Começou a trabalhar profissionalmente com ilustração em meados da década de 70. É fundador da Associação dos Cartunistas de Pernambuco (Acape). Em 2005, desenhou, para a Editora Massangana, a versão para quadrinhos do poema Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto.


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Marcelo Mário de Melo nasceu em Caruaru e veio para o Recife aos nove anos. É jornalista, escreve poemas, textos de humor, histórias infantis, minicontos e notas críticas. Publicou diversos livros, participa de antologias de poesia e de texto de humor e tem vários títulos inéditos, entre eles, folhetos de cordel paradidáticos, tratando de questões gramaticais. É assessor de comunicação da Fundação Joaquim Nabuco.


Da invasões trôpegas, dos exércitos mancos e de eu como par de botinas Ilustração: Neilton Carvalho | Conto: Marcelo Coutinho Eu é clareira para a madrugada. Eu é palco onde, ao som de clarins, adentra decidida e claudicante a silhueta escura de uma outra tribo. Eu, aquietado, apenas ouve o tremor do solo sob as botinas deste exército manco. Encolhido em seu canto, de olhos bem fechados, eu assiste a solenidade de hasteamento desta outra bandeira. Eu vê-se terra ocupada, hospedeiro aturdido. Afinal, eu não sabia: nunca ocupara por inteiro sua própria terra. Eu surpreende-se, assusta-se ou maravilha-se com a face estrangeira deste desconhecido que desde sempre dividiu consigo a mesma morada. A voz que mastiga


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esse sotaque sempre forasteiro, não vem “do alto”, tampouco “de baixo”. Esta outra topografia sempre esteve ali, sempre arrastou o pó do mesmo chão. Nele sempre ergueu suas cidades e para elas projetou o mesmo devir arruinado. Por que Eu é um outro. Aquele que se deixa invadir pela língua desse Outro servirá de pradaria para as patas desta cavalaria. O solo que nos compõe já foi revolvido e não é mais o mesmo. Poder-se-ia alertar os desavisados: não ofereça a Isso nem um copo d’água. Pois de bom grado Isso aceitará. E após o aceite tua mesa não será mais tua e nela não mais serão servidos alimentos para ti. Tua cama não acomodará mais teu descanso. Teus filhos não terão os mesmos olhos a te mirar. Teus próprios olhos não mais reconhecerão no espelho a mesma velha face. No coração de tudo passará a habitar este estranho galope. A cada naco de carne arrancada a dentadas deste íntimo desconhecido, os efeitos da ingestão permanecem vibrando, invadindo a vida desperta. A cada nova imagem abatida e arrastada desta outra pradaria, os efeitos da experiência de caça passam a vazar e invadir os olhos em pleno dia. Foi assim com os surrealistas. E é assim que Isso costuma se deixar entrever para mim. Muitas vezes, os restos de uma atmosfera na qual estive envolvido durante o sono se estendem e permanecem vibrando ao acordar. Meu corpo desperto arrasta atrás de si o peso dos membros adormecidos de um corpo que não é mais meu. Nas ruas, ouço o ranger das coisas em movimento. Um talher cai no chão e faz ressoar um sino. Por um ínfimo instante, meus olhos se surpreendem ao me verem à distância, multiplicado, cruzando a pé uma ponte, debruçado em uma janela, entrando em um restaurante. Ou uma mesma frase ressoa insistentemente com a urgência de um atropelamento. Abro meu caderno e como uma forma de assepsia, escrevo: “tive de pedir fezes emprestadas, tive de pedir fezes emprestadas, tive de...”

Neilton Carvalho nasceu no Recife-PE em 1971. É músico, artista plástico, designer gráfico, eletrônico de amplificadores e pedais de efeitos para instrumentos musicais. Formado como desenhista de artes gráficas, é o responsável pelas capas dos vinis e CDs da Devotos desde 1997, banda em que é guitarrista. Também ilustrou capas de discos, sites e DVDs de bandas como Cordel do Fogo Encantado, Orquestra Popular da Bomba do Hemetério e Cascabulho. Marcelo Coutinho nasceu em Campina Grande-PB, em 1968, e, desde 1986, mora em Recife. É artista visual e professor do Departamento de Teoria da Arte e Expressão Artística da UFPE e da Pós-Graduação em Artes Visuais-UFPE. É mestre em Comunicação e doutor em Poéticas Visuais. É autor do romance Antão, O Insone publicado em 2008 pelo Documento Areal e Editora Zouk e de Isso: Entre o Acometimento e o Relato, a ser publicado também pelo Documento Areal e Confraria do Vento.


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O mico Ilustração: Ricardo Cavani Rosas | Conto: Ronaldo Correia de Brito

– E se eu te der uma tapa? – Fica preso em minha cera. – E se chutar tua barriga? – Chute! – Chuto? – Você que sabe. Minha cera gruda e ninguém escapa de mim. – Sei. – Sabe mesmo? – Imagino. Nunca se tem certeza, quando você empunha o revólver, apontando a própria cabeça. Ameaça cometer suicídio e somos nós que ficamos em cana. – Represento a lei. – De que lado? – Ué! À direita, claro. – Estou fora! Esquerda, direita, volver. – Nem tente fugir! Não reparou? A arma aponta em sua direção. Se me aborreço, disparo. – Já tinha sacado seu disfarce. – Direita, esquerda, pum! – Cansei de macaquinhos chineses. Olhos fechados para não ver e ouvidos que jamais escutam. E a boca? Não vai dizer nada? – Não atirei, foi só um pum. – Macacos! – Você é quem fala. Eu só escuto e prendo. – Gruda, seria mais correto dizer. – Grudo, se prefere. – Vou remover os prendedores de suas orelhas. Prendedores, escutou bem? Tudo o que se refere a você prende, embarga, contém. Não basta ter sido suspenso no varal, como peça de roupa lavada? E se eu pescá-lo, com um anzol. – São necessários dois anzóis. Minha carne não possui a leveza de um peixe, sou duro de roer. Martelo o cérebro, mas ele nunca amolece. – Sofri o terror dessa rigidez. Deixe eu passar. – Uhn! Não abro nem para o trem. Sou uma porta fechada.


30 vacatussa #10 – Eu espero, tenho paciência. – Por que não senta no chão? – Acho que vou fazer isso. – Não assobie, exijo. – Ah! – Nem cante. – Ah! – De qualquer forma, não escuto. – Então, vou contar uma história. – Tanto faz. – Uma história curta. – Ahn! Comecei a dormir. – Dois palhaços olham uma porta fechada. “Ela abre?”, pergunta o mais baixo. “Tente abrir”, estimula o magro, de calças listradas e chapéu. O pequeno bate palmas, pergunta se tem alguém dentro da casa. Ninguém responde. Ele recua, planeja carreira, posiciona o ombro esquerdo como se fosse um aríete. Investe sobre a porta, mas esbarra sem tocá-la. “Eu consigo”, diz. “Consegue”, garante o magro, sem parar de rir. O pequeno avalia as dimensões do obstáculo. O de chapéu não se move. “Minha dança abre a porta”, garante o minúsculo. “Abre!”, confirma sem convicção o magro. Quando o mais baixo ensaia movimentos de bailarino, a sombra dele se agiganta. O de chapéu recua.

Ricardo Cavani Rosas nasceu no Recife-PE, em 1952. É desenhista, escultor e ilustrador. Colabora com as revistas Continente, Le Monde Diplomatique, Caros Amigos e os jornais Jornal do Commercio, Folha de S. Paulo e Diario de Pernambuco. Ronaldo Correia de Brito nasceu em Saboeiro-CE, em 1951, e hoje mora no Recife. É autor dos livros de contos Faca (2003), Livro dos Homens (2005) e Retratos imorais (2010), além da coletânea Crônicas para ler na escola (2011) e dos romance Estive lá fora (2012) e Galileia (2008), com o qual conquistou o Prêmio São Paulo de Literatura.


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