Vacatussa 06

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Editorial Abrir convocatória de textos para compor a Revista Vacatussa é sempre uma aposta. Não sabemos quem serão nossos colaboradores, de onde virão os textos, qual o nível deles, quais temas serão abordados e, sequer, se chegará alguma colaboração. Lançamos nosso chamado na internet e esperamos o resultado no breu, com a crença de que o sinal despertasse algumas faíscas. O fato de você estar lendo este editorial agora é um sinal de que nossa aposta deu certo. Aos poucos, a escuridão foi se dissolvendo. Primeiro, na forma de 79 e-mails carregados de contos, poemas e crônicas. A partir de então, através da leitura, passamos a seguir as linhas de palavras que acabaram por nos guiar até esta revista. Assim, nesse processo de virar a página, descobrimos valores e resolvemos dobrar a aposta em cima do elemento fantástico nos contos de Bruno Alves e Rodrigo Fernandez Pinto, do poema leve e destemido de Ana Guadalupe, do mundo corporativo proposto por Leonardo Villa-Forte, da sordidez nos contos de Alex Camilo de Melo e Kelen Linck, do conflito entre a religião e o corpo em Nathalie Lourenço e das desilusões apresentadas por Naymme Moraes e Ludmila Rodrigues. Junto a esses nomes, você também encontra nestas páginas a presença do poeta Fabiano Calixto, autor convidado desta edição. Boa leitura! expediente Edição Thiago Corrêa

Conselho editorial Aline Arroxelas Joana Rozowykwiat Julieta Jacob Mario Lins Thiago Corrêa Projeto gráfico Jaíne Cintra

Textos Alex Camilo de Melo – Ana Guadalupe – Bruno Alves – Kelen Linck – Leonardo Villa-Forte – Ludmila Rodrigues – Nathalie Lourenço – Naymme Moraes – Rodrigo Fernandez Pinto – Fabiano Calixto Ilustrações Pablo – Cecília Torres – Raul Aguiar – Beto França– Juliano Dornelles – Camila Arruda – Karla Linck – Hallina Beltrão – Flavão – Tainá Tamashiro


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Boas maneiras - 4 a/c proprietário do imóvel - 6 Céu de Carnaval - 8 Desapego - 10 Necessita-se profissional do medo - 13 Diz-que morre antes de chegar ao chão - 16 Sudário - 18 De tudo ficaram poucas coisas - 22 Ignorantia scientiae inimica - 24 Apollo is a girl - 26


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Boas maneiras Conto: Alex Camilo de Melo | Ilustração: Pablo

O sangue escorre pelos lados, misturado com porra quente. Com olhar terno a dona escarra o pedaço tenro de carne da boca, lambe os beiços e observa a máscara de horror do desfalecido. Aquele imbecil podia muito bem ter avisado antes. Bastava ele avisar, tomaria tudo sofregamente até não sobrar uma única gotícula. Mas não, ele tinha que bancar o safo, tinha que se achar no direito, tinha que me tomar o prazer. Enquanto se veste das cintas-ligas, se calça com os scarpins, se reveste no tailer, o corpo jaz inerte, incompleto, gemente, feição dolorida. Muito calma ela pega o resto do chão e com toda a delicadeza de uma lady na mesa, anda elegantemente até o lugar onde sua bolsa caíra, abaixa-se com uma mão cobrindo o sexo, como toda boa moça de família aprendeu quando menina, apanha-a, abre-a, toma um lenço, lim-


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pa cada canto da boca e um resto de lágrima que borrou seu rosto, enrola seu prêmio, guarda-o junto com tudo que uma mulher precisa para estar linda. Em câmera lenta caminha até o toilet, lava as mãos com um daqueles sabonetes de boneca, lembra do batom, retoca o rosa dos lábios, vê as horas, ainda faltam 3 pro amanhecer, pode deixá-lo dormir diz ela ao telefone, paga em dinheiro vivo, olha-o da porta, faz charme com os cabelos, entra no carro, põe a chave na ignição e antes da partida pensa alto: Quem sabe o próximo é um pouco mais cavalheiro.

Alex Camilo de Melo nasceu em Caruaru-PE, em 1974, mas hoje vive em João Pessoa-PB. É autodidata, redator publicitário, roteirista e poeta. Continua inédito em livro, mas tem muito da sua produção compilada no blog: http://alatrina.blogspot.com.br


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a/c proprietário do imóvel Poema: Ana Guadalupe | Ilustração: Cecília Torres

caro proprietário deste imóvel em que vivo já há algum tempo sem nunca no entanto abandonar o medo de você acordar meio mal-humorado ou querendo abrigar seu sobrinho que faz faculdade de cinema


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ou apenas irritado com meus hábitos noturnos conforme informaram os gestores do condomínio acredito ingenuamente que se você me conhecesse mudaria de ideia de forma brusca enfrentaria a reprovação dos parentes se você me conhecesse veria meu esforço e esmero saberia que morei em outros 23 espaços alugados antes de chegar rolando a este se então fôssemos amigos que se conhecem há menos de um mês mas já se compreendem profundo você notaria que sua renda total é suficiente e que eu tenho tristezas o bastante para que você me liberte dos valores e avise rapidamente os gestores que tenho o direito de residir para sempre e livre de medo neste seu apartamento

Ana Guadalupe nasceu em Londrina-PR, em 1985, e hoje mora em São Paulo-SP. Seus poemas foram publicados em antologias, sites e revistas literárias no Brasil, Espanha, Chile, México e Estados Unidos. Seu livro relógio de pulso foi publicado pela 7letras em 2011. Escreve no blog roxy carmichael nunca voltou e no twitter @anaguadalupe.


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Céu de Carnaval Conto: Bruno Alves | Ilustração: Raul Aguiar

Não havia mais esperanças. Geovani olhou para o céu desazulado e começou a chorar. Então, era só isso? Assim? Sem direito a questionar, protestar, revidar, gritar um NÃO bem alto? Era até engraçado ver todas aquelas pessoas correndo de um lado para o outro, sem direção; outras tantas simplesmente prostradas no chão, molengas, como se fossem feitas de pano; claro, havia algumas vociferando, punho em riste, os dentes à mostra e olhos vermelhos, soltando palavras desconexas de revolta. Mas a maioria das pessoas simplesmente estava parada, contemplando aquilo que prenunciava o fim. Geovani era uma dessas pessoas. “Pra que correr”, pen-


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sava ele, “se o final da história está claro para mim?”. O que mais chamava a atenção era a cor do céu. Geovani, homem das imagens, preferia pensar naquilo como uma não-cor. Por mais que se esforçasse, não conseguia reconhecer aquela paleta. E isso era a prova definitiva de que aquele fenômeno não era deste mundo. Outra coisa engraçada era que não havia som. Isto é, o barulho ao redor era caótico – pessoas gritando, buzinas, colisões, alarmes... mas havia um silêncio emanado por trás do que estava provocando todo aquele caos. Onde estavam os trovões, os raios ou o som grave de um órgão anunciando o fim, coisas comuns em filmes-catástrofre? Geovani interrompeu suas divagações estéticas. Olhou ao redor, desolado. Pra que correr, afinal, se tudo estava evidente? Então, de repente, a gigantesca mão que surgiu no céu tingindo-o de cores inexistentes se moveu. Houve um silêncio brusco. Cessaram os gritos, os choros, o clac-clac dos sapatos no asfalto. Todos ficaram com se tivessem sido congelados. Na mão descomunal, os dedos começaram a se fechar, lentamente. Apenas um permaneceu estático. Quando o movimento cessou, havia um dedo indicador apontando para as pessoas. Era um dedo inquisidor, opressivo, quase como se tivesse uma expressão desenhada em sua ponta. E apesar do seu tamanho, parecia que ele apontava particularmente para cada uma das milhares de pessoas que o fitavam naquela manhã ensolarada de sábado de carnaval no Recife. Geovani chorava. Seu peito estremecia com os soluços. Não conseguia desviar o olhar daquele dedo que apontava acintosamente para ele. Geovani ficou de joelhos, juntou as mãos em prece e pediu perdão. Em todos os cantos do planeta, bilhões de pessoas faziam o mesmo. Impassível, o gigantesco dedo escrevia o capítulo final da história da humanidade sobre a Terra.

Bruno Alves nasceu no Recife-PE, em 1965. É arte-educador e professor da UFRPE. Tem contos publicados no seu blog Macaxeira Geral (www.macaxeirageral.net.br). Colabora com o blog Geek Café (www.geekcafe.blog.br) escrevendo sobre quadrinhos e cinema e participa do podcast Geek Café FM.


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Desapego Conto: Kelen Linck | Ilustração: Beto França

No começo passei a conter todo impulso de carinho. Percebi que ela sofria com meu desinteresse e eu dissimulava qualquer vestígio de atenção. Fingia que não notava sua presença e não ouvia o que falava. Mal olhava na sua cara. Ela parecia um cachorrinho, sem dono e com medo. Ainda tinha ânimo para me fazer festa e se esforçava por me ver sorrir. Assistia passivo às suas tentativas de me reconquistar. Do alto da minha fria desatenção, via seu orgulho definhando, sua beleza morrendo, seus planos agonizando. Naquela noite que eu cheguei em casa e ela, sentada no chão, me olhou com aqueles olhos inchados de chorar, percebi que eu estava ficando bom naquilo. Virei as costas


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e saí de novo. Com o tempo, fui aprimorando minhas técnicas de desprezo e aos poucos ela ia ficando menor. Eu acordava no meio da noite só para me certificar de que não estava tocando nela enquanto dormia. A ideia de lhe dar a oportunidade de entender aquele deslize como um gesto de carinho me fazia passar o resto da noite em claro. Quase senti pena de vê-la tão fraca e só. Mas era assim que eu gostava dela. Fraca e só. Quando atingi a perfeição, ela foi embora. Deixou uma carta que não li para não estragar tudo no final.

Kelen Linck nasceu em Recife-PE, em 1976. É designer e firmou sua carreira também como ilustradora e artista plástica. Embora seu trabalho seja mais voltado às artes visuais, costuma ter a ousadia de brincar com as palavras no seu universo criativo. Seus textos são parte de suas obras e atribuem um sentido poético às suas pinturas.


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Leia e baixe as edições anteriores da Revista Vacatussa no nosso site:

www.vacatussa.com

Lá você também encontra críticas de livros, notícias, comentários sobre o mundo da literatura e dossiês sobre os escritores Sidney Rocha e José Luiz Passos, com fortuna crítica de suas obras, entrevistas e jogos temáticos.


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Necessita-se profissional do medo Conto: Leonardo Villa-Forte | Ilustração: Juliano Dornelles

O medo da coisa não é a coisa, é o medo. É assim que entendemos o seu talento. Gostaríamos que você fizesse parte da nossa equipe. Aqueles que se apegam ao medo são extremamente úteis em situações nas quais a prevenção ganha importância. Esse é o nosso caso. Diante da atual situação do mercado, há dentro da empresa um grupo buscando inovações. Esse grupo nos leva a correr o risco de perdermos a nossa


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identidade. Precisamos continuar os mesmos. O público já nos conhece. Com a equipe que temos aqui, talvez não seja possível conter essa onda de novidades. É aí que você entra. Sempre que um projeto apresentar qualquer grau de inovação, precisamos que você exponha, para nós e para os empregados, todas as razões pelas quais seria interessante nos recolhermos ao comportamento mais conservador possível, enjaulando o ímpeto daqueles que propõem mudanças. Ultimamente, você sabe, os empregados só têm falado em projetos inovadores. Uma praga! Qualquer tentativa dessas deve ser rechaçada. Não cabe mais a nós sermos os agentes inibidores. Eles já estão nos pressionando, e são muitos. Você circulará por todos os departamentos, como alguém do nível deles, e semeará a prudência e a contenção. Se seu trabalho for bem-sucedido, vamos manter as coisas como sempre foram. É de grande importância para nós podermos contar hoje com um medroso profissional. Esperamos de você o medo pensado e o medo instintivo, todo tipo de medo infundado e carente de elaboração. Precisamos de qualquer sintoma que gere alerta. Se não houver razões, você as formulará posteriormente. Inovações não devem passar sem uma observação exigente, impiedosa – nossa intenção é que sejam inviabilizadas. Fica a seu critério a utilização dos seus serviços fora do local e horário de trabalho. No entanto, a experiência mostra que o cultivo de pensamentos e ações livres, desimpedidos e empreendedores fora do local e horário de trabalho leva o profissional a baixar o rendimento do seu medo também durante o expediente. Para nós, a alta performance é necessária a todos, assim o aconselhamos a não se manter afastado do seu medo por muito tempo, exercendo-o sempre que houver oportunidade, seja no trabalho ou fora dele. Em caso de necessidade, será destacada uma pessoa de confiança como sua colaboradora. Esta pessoa poderá, por exemplo, ajudá-lo a controlar seu medo de demissão, para que ele não comprometa seu rendimento e você trabalhe com afinco em seus relatórios e não se desvie da sua prioridade: contaminar as aspirações e iniciativas dos empregados com seu olhar clinicamente medroso. Caso seu trabalho não esteja ocorrendo da melhor maneira, essa mesma colaboradora o ajudará a não ter medo de vir à empresa ou de falar conosco, visto que esses são medos que afetariam diretamente - e


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negativamente, caso deixem de ser apenas medo e você de fato não apareça - a sua produtividade e, por consequência, a nossa. Nesse caso, teríamos de dispensá-lo, e quem sabe divulgar para terceiros a informação de que o senhor não exerce um medo profissional, mas um medo amador. Seja bem-vindo. Trabalhemos juntos. O senhor será fundamental para a manutenção de nossa identidade.

Leonardo Villa-Forte nasceu no Rio de Janeiro-RJ, em 1985. Tem contos nas antologias Prêmio Off-FLIP 2009 e Veredas – Panorama do conto contemporâneo brasileiro, e nas revistas Pessoa (Brasil/Portugal), Litro e Modern Poetry in Translation (Inglaterra). É autor do MixLit – O DJ da Literatura e da intervenção urbana Paginário. Site: http://www.leonardovillaforte.com


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Diz-que morre antes de chegar ao chão Conto: Ludmila Rodrigues | Ilustração: Camila Arruda

Até que o inimaginável: como se pula de uma janela? Talvez nenhuma morte assim tivesse sido tão premeditada. Mas, ali, madrugada, plano feito, faltou o trivial, o inimaginável. E depois de esperar o silêncio que só a madrugada, depois de carta e bilhete de despedida para alguns, ele não sabia como pular da janela. O mar embaixo era denso, completamente negro ainda. Mas isso era mais à esquerda; ele certamente cairia nas pedras. O parapeito da janela era branco: ou ia ou não ia. Sentou-se na tinta branca, pernas ainda viradas para sua sala. Silêncio.


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Agora, pernas já sacudindo no vento salgado, mãos trêmulas de, por ventura, soltarem os puxadores de metal. É preciso se acostumar. É preciso se acostumar, ele pensava. Corpo acostumado à madrugada, já era tempo, enfim. Deixo-me soltar, apenas. Sentia que precisava ser algo mais certeiro, aleijado ele não queria ser. Me jogo de cabeça, pensou. Diz-que se morre antes mesmo de chegar ao chão, é o que se comenta. Uma casa pequena lá adiante tinha uma luz acesa, muito simplória, a casa, que estariam fazendo àquela hora. De sua janela branca só via o vulto feliz de alguém na outra janela acesa, parecia que a pessoa dançava ou flutuava, certamente sorria. E não parava, alguém devia estar naquele mesmo cômodo, ela sorria e se movia doce, e tanto tempo ficou assim. Ele havia esquecido de que precisava pular a janela, a casa pequena mais parecia um farol naquela negrura do oceano, embora também estivesse sustentada nos rochedos. Deixo para amanhã, pensou. Volto calmamente à sala, bebo um pouco de vinho e também fico a dançar um pouco. Parece que foi na hora de trocar o lugar das pernas, as mãos também já deviam suar um pouco. Um senhor de cabelos grisalhos, levemente ensanguentado. Encontrado morto, às oito da manhã, nas pedras que levavam a um mar azul-claro vivíssimo.

Ludmila Rodrigues nasceu em Salvador-BA, em 1991. É estudante de Letras Vernáculas na UFBA e publicou O rosto na xícara (2012) e Minha cabeça já não comporta tantos antigamentes (2014). Mantém o blog http://ludmila-rodrigues.blogspot.com.br/


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Sudário Conto: Nathalie Lourenço | Ilustração: Karla Linck

A mãe não tirou a linha da boca para falar - É pra não costurar tua sorte, Rebeca - superstição de costureira. - Não fica nervosa, Bequinha, você vai estar é linda. - Eu sei. Eu sei, mã. - Te juro. Benzadeus. Esse é o vestido mais lindo que eu fiz. Mais que o do casório da Danieli, que é toda metida a besta. - Hahaha. - Hahaha.


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Rebeca apoiou a mão na parede, apavorada com a ideia de cair da bancada e ter que casar toda fodida amanhã. É claro que o vestido ia ficar lindo. Dentro da barra, a mãe costurou 3 imagens pequenininhas: São João, Santo Antônio e Nossa Senhora. Olhou para a filha sobre a bancada, o pensamento nu, fora do vestido, longe daquela sala. - Não te preocupa. É normal dar frio na barriga… - Deixa de ser tonta, Tilda. Ela tá preocupada é com o Vuco-vuco. A tia, que estava concentrada pregando florezinhas no véu, soltou uma daquelas risadas que vinham ali de dentro, do fígado, do pâncreas, quem sabe de onde. Quando conseguiu parar, sorriu. - Não é nada demais, meu anjo. Acaba rapidinho. Quase nem dói. A noiva acenou para a tia, bem séria. Virou para a mãe poder alcançar o outro lado da barra, sentindo o gelado dos alfinetes segurando as rendas no lugar. Rebeca cresceu escutando que seu dom (era assim que a mãe chamava o hímen, para desgosto da filha e, provavelmente, da humanidade) devia ser guardado para seu marido, uma prova de lealdade a nosso senhor. E ela cumpriu a promessa. Mas a verdade é que mesmo agora, na sala com duas senhorinhas de meia idade, ela molhava a calcinha só de pensar no dia seguinte. Não, ser devota não é fácil hoje em dia, tão melhor seria chegar no dia do casório sem saber que existe pica, sem suar de roupa com o namorado, o raspar grosseiro dos jeans dele entre as pernas criando eletricidade no vestido de algodão. E então, divorciar os corpos e respirar fundo, por que Jesus tá olhando e essa xana ainda não mudou de nome no cartório. O nome do inferno é internet. As pessoas disfarçam, criam sites, perfis de redes sociais, blogs, flogs, jogos, mas é tudo uma casquinha bem fina. Se você mergulhar mais que as canelas, já está no reino da putaria. Rebeca sofria a cada busca. Não importava o termo: a partir da terceira linha, ali estaria inescapável, hipnotizante, a foto de uma mulher sugando uma banana, um homem nu, um desenho japonês, seu corpo sendo invadido por tentáculos. Não, ser devota não é fácil quando o mundo esfrega na sua cara sem descanso nem piedade. Quando todo mundo está gozando. Menos você. A mãe terminou a barra, e Rebeca tirou o vestido, os sapatos perfeitos, o sutiã


20 vacatussa #6 tomara-que-caia que colocaria de novo no dia seguinte. Botou a calça jeans com pressa, rezando para ninguém ver o estado (líquido) da calcinha. ** A música aumentou. Era a sua deixa. Deu o braço para o pai, orgulhoso no fraque, e começaram a descer por entre as fileiras, bancos e mais bancos de familiares, amigos, primas que já choravam. No fim do caminho, Samuel, de pé ao lado do altar. Decidiram casar por tesão. Depois de 2 anos de namoro, Samuel já estava enlouquecendo. E ela também. Em poucos meses juntos, beijar era pouco, as mãos insistiam em subir por dentro da blusa, encontrar os mamilos de Rebeca, ajustar seu calor de acordo com aqueles botões. Agora, no dia que insistem ser o mais importante da sua vida, ela só queria pular direto para a sobremesa, escapar da festa, e sentir por dentro aquele pau que ela só segurou com muitas camadas de roupa a lhe proteger a santidade. Pau nosso, que estais nas calças, espera só mais um pouquinho. O padre deu um longo, longo sermão, como se pressentisse a pressa dos noivos. Agora, os sins trocados, as alianças escorregando de suor nos dedos, umas 5h de festa ainda os separavam da lua de mel. A primeira valsa. Os ravioles de nozes com gorgonzola. As incontáveis marcas de batom das suas bochechas, suvenires de tias de segundo grau, amigas de avós, mães de amigas. Pau nosso, que estais nas calças, espera só mais um pouquinho. - Rebeca, o fotógrafo está chamando para o retrato com a família. Vem, vem! - Tá, só vou buscar o Samuel, acho que vi ele por ali. A foto, com todos os 4 irmãos, seus esposos, os sobrinhos, pais, primos e avós, ia ser na escadaria dupla, imponente do bufê. Rebeca ia puxando Samuel pela mão, mas parou. Era o primeiro minuto completo de solidão no meio da massa


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de parentes e conhecidos. Um beijo bastou de estopim, e logo o penteado alto estava se desmontando e as mãos morenas do marido lutando contra um exército de 45 botões. Pau nosso que estais nas calças, você vai ver o que eu faço contigo. No corredor, passos se aproximavam - Mas onde que foi essa menina? Fugiram. Samuel na frente, Rebeca tentando não denunciar a escapada com o barulho dos tacos sobre a pedra. Se enfiaram na primeira porta, quase sem ar e riram até os lados do corpo doerem. Ela fechou o trinco do depósito, os lábios dele já no pescoço, um botão, dois botões, e foda-se, quem tem tempo pra tanto botão, e subiu os tules da saia, moisés partindo um mar de branco. Pau nosso que estais em mim santificado seja o troço enorme seja feita tua vontade assim na frente como atrás o gozo de cada dia me dai hoje não perdoai meus orifícios enquanto não os tiver fodido. Amém O fotógrafo foi fumar lá fora, e uma meia hora depois surgiram os noivos, e foi preciso montar toda a família na escadaria de novo. A copeira encontrou no depósito um guardanapo com uma mancha leitosa que desenhava o rosto de Jesus. No dia seguinte, o guardanapo sudário saiu no jornal da cidade. Disseram que foi milagre.

Nathalie Lourenço é paulista e paulistana desde 1984. Trabalha como redatora publicitária e teve textos publicados na coletânea Edifício Marquês de Sade e na Revista Parenteses. Escreve (ainda que raramente) no blog Sabedoria de Improviso (sabedoriadeimproviso. wordpress.com)


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De tudo ficaram poucas coisas Poema: Naymme Moraes | Ilustração: Hallina Beltrão

De tudo ficaram poucas coisas, três ou quatro lembranças, nenhum amigo em comum. Algumas contas pendentes.


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Viagens penduradas na parede; A promessa de um filho que nunca teremos. A vontade de envelhecer juntos, [de morar em Paris.]. Nem a saudade, nem a vontade, nem o desejo. Agora que o passado se acumula nas lembranças ficaram coisas que eu jamais conseguirei entender; Os navios que queimei, as promessas que não cumpri [por que nunca as fiz]. E mais um pássaro azul morto, apodrecendo dentro de mim.

Naymme Moraes nasceu em São Bento do Una-PE, em 1981. Mora em Recife, é historiadora e escreve crônicas e poesias.


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Ignorantia scientiae inimica Conto: Rodrigo Fernandez Pinto | Ilustração: Flavão

Não dormia. Não se alimentava. As preces comunitárias (com os irmãos, para marcar as horas), também não as fazia. Não podia parar nem um minuto sequer. Ademais, como rezar em coro, se estava completamente só? Em setembro de 1348, a Peste Negra rompera no Mosteiro de Seiça. Em pouco mais de dois meses, ceifara cento e cinquenta religiosos. Apenas Bernardo sobrevivera.


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Isolado no scriptorium do mosteiro, ele corria contra o tempo para terminar a última cópia restante no mundo do Apocalipse de Lorvão. De repente, um estrondo. E apareceu no céu o sinal: um enorme dragão vermelho com sete cabeças e dez chifres e com uma coroa em cada cabeça. Chamava-se Ignorantia. Com a cauda, a fera arrastou do céu a terça parte das estrelas e as jogou sobre a terra. Depois, parou diante do monge, a fim de destruir o livro logo que ficasse pronto. Bernardo partiu a corrente que prendia o livro à mesa e chispou para a saída. Enfiou pelo vão estreito, desceu a escadaria do torreão e despontou no pátio do mosteiro. Fugiu em direção à mata, onde as árvores haviam preparado um abrigo para ele. O dragão bateu as asas de um lado a outro e levantou voo, cortando caminho entre os corvos agourentos, que, sabendo a desgraça, aproximavam-se em bando. Investiu para o firmamento, volteou no ar em tom de ameaça e começou a perseguir o fugitivo. Perto de um curso d’água, Bernardo tropeçou numa falha do terreno e caiu. Torcera o pé. Ciente da impossibilidade da fuga, decidiu jogar o livro no córrego. Esperava que o dragão não arriscasse apagar o hálito de fogo por causa de um livro tão somente. De fato, o monstro fabuloso, irado, preferiu atacar o monge indefeso. Caído de costas na relva, com a criatura a rasgar-lhe o peito, Bernardo ergueu os olhos para o alto. E concluiu, pouco antes de morrer, que no céu os corvos pareciam vírgulas obtusas, pausando brevemente o discurso das nuvens. P. S.: As águas fluentes do riacho lavaram as páginas do Apocalipse de Lorvão. Carregaram a tinta fresca das letras e iluminuras correnteza abaixo, até uma aldeota distante, perdida no meio de um vale sem nome. Lá se disse, muito anos depois, que quem bebesse daquelas águas teria visões estranhas. E uma vontade incontrolável de fazer perguntas.

Rodrigo Fernandez Pinto nasceu em Olinda-PE, em 1976. É formado em Direito e Letras. Trabalha como professor de línguas no IFPE/Campus Caruaru. Foi um dos vencedores do 3º Concurso Osman Lins de Contos, promovido pela Fundação de Cultura Cidade do Recife, em 2007. Aventura-se tanto na prosa como na poesia.


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AUTOR CONVIDADO { FABIANO CALIXTO

Apollo is a girl Ilustração: Tainá Tamashiro

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Ela lê sobre os ataques corsários no golfo de Aden, costa da Somália. Os somalis não querem viver de cheirar fumaça de óleo diesel. Iates de luxo, pesqueiros, veleiros, foi tudo pro vinagre. E agora foi a vez do superpetroleiro saudita Sirius Star. Para libertar o navio e a tripulação, os somalis exigem US$ 25 milhões. No abominável estômago de aço do superpetroleiro, dois milhões de barris de petróleo avaliados em US$ 100 milhões. Não queremos que as negociações se eternizem, afirmou o comandante corso. O príncipe saudita decidiu desembolsar a nota preta. A Blackwater logo aportará por ali com setenta mercenários cuspindo coca-cola e chumbo. O jornal sabichão diz que a Somália é o país mais falido do mundo e que depende de ajuda humanitária internacional para sobreviver. Aqueles olhos, antes castanhos, abusavam um azeviche sem alavanca de reparo, como se o jornal lhes houvesse imprimido o imundo carvão de suas tralhas. Às vezes imagino que minhas palavras são como chips de silício afundando num pântano, você disse, antes mesmo que a magra luz do sol de inverno pudesse, com suas lâminas afiadas a persiana, cruzar os pães sobre a mesa. Terrível o planeta que criamos... Sim, mas também sintomático, como aquele sonho que você teve por dias seguidos, onde um artista cego repetia infinitamente a mesma oração: “Não se tira leite de tanques de guerra”. “Não se tira leite de tanques de guerra”. “Não se tira leite de tanques de guerra”. Até que a oração perdesse por completo o sentido. Ele tinha sempre as mãos ensanguentadas e sua obra-prima era uma reprodução hiper-realista em Lego de Eduardo Collen Leite após ser torturado por 109 dias consecutivos. A precisão do artista em esculpir o corpo repleto de porradas e queimaduras, as orelhas decepadas, olhos vazados, dentes arrancados, escoriações, hematomas e centenas de rasgos, a impressionou. Tanto que a vida também perdeu por completo o sentido para você, lembra? Sempre há quem tente mudar as coisas. Como aquele homenzinho que dedicara sua vida a olhar demoradamente as pinturas dos grandes mestres franceses e a derrubar o governo da Rússia. Sim, exato, mas o que fazem os jovens inteligentes das famílias abonadas, senão falar de literatura e de pintura? Ou aquele velhinho, cujo azul salgado do mar ardia-lhe a pele e que não pescava peixe algum há 84 dias até entrar


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num violento combate com o enorme espadarte que, vencido, negou-lhe a carne e esparramou apenas seu imenso esqueleto à orla. E nós também gostamos de biscoitos de gengibre, de música vienense, de fumar e de beber licores fortes como metal fundido. Mas não somos mesquinhos, não posamos de subversivos doentes de esnobismo burguês. O tiro de fuzil aceso na semântica de um poderoso verso pode alterar alguma frase na prosa da história? Pode derrubar um caça israelense momentos antes de descarregar sua diarreia sobre os civis na Palestina? Poderia, naquele 16 de setembro de 1982, conter as milícias cristãs libanesas que invadiram os campos de refugiados palestinos de Sabra e Chatila e massacraram a população? Poderia ter evitado o assassinato dos ativistas Michael Schwerner, Andrew Goodman e James Chaney cometido pela Ku Klux Klan no dia 21 de junho de 1964? Poderia nos salvar de nossa inevitável desolação? Uma rima pode algo contra uma carnificina? Jamais! Somos, todos nós, editores de discursos perversos, desembrulhando bombons e vendo ouro onde não há. Eu poderia cantar uma canção para descansar a menina dos seus olhos. Estamos sempre prontos, vestidos com nossas camisas, quase sempre claras, de tecido barato. Esvaziamos os copos, tentamos riscar um sorriso no rosto um do outro. Tentamos pensar que, mesmo sob a manta empesteada desta terrível miséria, ainda vale a pena continuar respirando por este planeta. Como o casal que caminha de mãos dadas e cujas camisetas azul e vermelha machucam o cinza esquizofrênico da cidade bombardeada. É preciso que diga como vejo esta maçã, a rua, as pessoas, meu cinzeiro de cerâmica, aquela garota na janela, já que foi isso que escolhi como referência neste momento em que a astrofísica se centraliza novamente na história do cosmo. São as linhas da minha mão que me levam ao centro do mundo ou o centro do mundo que me leva às linhas da minha mão? Viver é a profanação do improvável, é um acontecimento aquático, um madrigal sussurado de longe. I have become so depressed by the fact of my mortality that I have decided to commit suicide. Na verdade, queremos apenas alguma serenidade. Já passamos dos trinta e sabemos que ela realmente se matou. Enforcou-se com um cadarço que arrancara de sua bota preta com a qual sempre caminhava pelo St. James Park refletindo sobre as questões de impasse e espera nas peças de Beckett. Os torturadores caminham de fraque pelo anfiteatro de cúmulos da


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inconsciência coletiva. Quem na verdade morresse tuberculoso e molambento, antes dos dezesseis anos, seria o único talvez a ter razão. Os outros se dilaceram entre si. Eles se vendem, são vendidos, eles se venderão para todo o sempre. Vivemos momentos nulos. Ainda assim, meu coração teima em bater. É a teima que preciso para continuar a construir locomotivas e acrobatas. Essa lua vermelha, debaixo de nuvens encardidas, essa eternidade que nos foge e que a tudo deita cor: você pega minha mão e diz: imagina se o mundo fosse uma cama e a gente pudesse andar de meia o tempo todo.

Fabiano Calixto nasceu em Garanhuns-PE, em 1973. É poeta. Publicou os livros de poemas Nominata morfina (2014), Equatorial (2014), A canção do vendedor de pipocas (2013), entre outros.


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