Editorial Fazer a Revista Vacatussa exige um processo lento. Para chegar a esta edição, iniciamos um trabalho lá no dia 23 de julho, quando abrimos a convocatória. Durante quase um mês, aguardamos pacientemente a chegada dos 133 e-mails carregados de poesias, crônicas e contos. A partir do dia 21 de agosto, iniciamos a etapa de análise, dividindo o material recebido de modo que cada texto fosse lido por pelo menos dois membros do Conselho Editorial. Desse peneirão, 43 passaram para a 2ª fase, onde todos leram tudo. O que era apenas um esqueleto de lâminas A4 dobradas em livreto, passava a ganhar recheio de palavras. Mas até esse momento, a revista ainda não passava de um amontoado de textos. Só mesmo a partir da 1ª versão diagramada, quando relemos os textos na sequência no processo de revisão, é que a Revista Vacatussa 8 ganhou uma cara, impondo-se como volume, evidenciando uma unidade casual e possíveis diálogos entre os escritos selecionados. Nesse conjunto, percebemos a coincidência matemática nos contos de Álvaro Filho, Karla Linck e Micheliny Verunschk, a autora convidada desta edição; ou ainda a relação nostálgica com a praia entre o conto de Nathalie Lourenço e a crônica de Tiago Germano, bem como o tema da despedida entre essa crônica e o conto de Antonio Gueiros. Mas nem tudo é coincidência, lado a lado, os textos também revelam suas diferenças, o impacto brutal da realidade exposta no conto de Arthur Mota ganha contrapontos na variação do real apresentada na alternância de narradores de Carol Rodrigues, na ficção proposta por Sonia Nabarrete e na desconfiança gerada pela condição do personagem de Bruno Bandido. O resultado vocês podem conferir nas próximas páginas. Boa leitura!
expediente Edição Thiago Corrêa
Conselho editorial Aline Arroxelas Joana Rozowykwiat Julieta Jacob Mário Lins Thiago Corrêa Projeto gráfico Jaíne Cintra
Textos Álvaro Filho – Antonio Gueiros – Arthur Mota – Bruno Bandido – Carol Rodrigues – Karla Linck – Nathalie Lourenço – Sonia Nabarrete – Tiago Germano – Micheliny Verunschk Ilustrações Daniel Edmundson – Kilian Glasner – Helder Santos – Paulo do Amparo – Alexandre Dantas – Nathalia Queiroz – Isabela Stampanoni – Mauricio Castro – Ana Vizeu – Greg
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Prova dos Nove - 4 A sombra - 7 Desertificação - 10 Pra quem nunca entendeu os velhos detetives -12 Processo 146952404 -14 Tudo quanto - 16 Concha - 19 O duplo - 23 Cláudia - 26 12 - 28
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Prova dos Nove Conto: Álvaro Filho | Ilustração: Daniel Edmundson
Era professor de matemática. E sempre teve uma vida calculada. Acordava todo dia pontualmente no mesmo horário, um minuto antes do programado no rádio-relógio, que já contabilizava mais de uma década de frustradas tentativas em ser o primeiro a despertar naquela casa. Na hora em que o bip do aparelho soava num crescendo, o professor já estava com os olhos abertos, em pleno espreguiçar, esperando apenas que o metabolismo terminasse de executar os cíclicos espasmos em seu intestino, que culminariam religiosamente, no mesmo minuto e segundo, com um desejado alívio de suas necessidades, trancado na suíte do quarto de casal. No café-da-manhã, sentava no mesmo lugar da mesa, a noventa graus do filho, a filha no vértice oposto do triângulo, ligada ao olhar paterno por uma
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hipotenusa imaginária. Vez ou outra, lembrava-se do dia em que ele mesmo fez as contas para saber a probabilidade maior de gerar durante a relação sexual um menino e uma menina, sem admitir margens de erro. À direita, a esposa, a mão segurando a dele, os braços de ambos como retas perpendiculares. Uma geometria familiar que se repetia, sem variações, garantindo a simetria não só das formas, mas das rotinas e, consequentemente, da vida. Uma vida cujo três quartos do tempo era em sala de aula. Uma fração que não subtraia a alegria em nada, pelo contrário, multiplicava a estima e elevava ao cubo a sensação que cumpria não uma vocação, mas uma missão. Em frente ao quadro, calculava a pressão exata que a mão exercia no giz para que esse não se partisse no atrito com a superfície dura da lousa. Destreza que exigia ajustes de cálculos frequentes, readaptando a força ao comprimento cada vez menor do bastãozinho de cal, até que esse desaparecesse por completo, restando apenas o pó entre os dedos. A sineta também se mostrava inútil para indicar o fim da aula. O cronômetro interno na cabeça do professor era mais rápido e, dois minutos antes, a classe já havia sido dispensada. Tempo suficiente para apagar o quadro, repleto, não sem antes se permitir alguns segundos de contemplação do trabalho: uma sequência de números, entrecortada por mais, menos, iguais, parênteses, aspas, colchetes, raízes-quadradas e outras infinidades de símbolos. Uma parede pintada por hieróglifos que poucos decifrariam, e pior, muitos ignorariam, como se fosse possível viver sem perceber que a matemática era a ciência capaz de explicar a origem de tudo. Geralmente, era o último a deixar a escola e seguir para casa, cumprindo o mesmo trajeto, chacoalhando na cadeira 23 ou 29 do ônibus, que podia ser o 239 ou o 293, pois todos, tanto o assento quanto os coletivos, eram números-primos, os favoritos dele. Mas naquela noite, a rotina ia ser quebrada e o professor de matemática iria se reunir com a família em um restaurante no Centro. Afinal, hoje completava 50 anos. Ele bem que havia relutado, achava uma bobagem isso de aniversário e, além do mais, o número 50 não tinha nada de especial. Nem primo era. O restaurante era novo e como tal, movimentado. A esposa havia reservado uma mesa, mais afastada, longe do burburinho, pois conhecia o marido. Apesar da agitação, o professor de matemática foi se desarmando, se deixando levar pela
6 vacatussa #8 conversa fiada. Nem se queixou de o cardápio não ter os pratos favoritos. Incentivado pela família, pediu algo diferente, extravagante até, mas aprovou o sabor, assim como se permitiu, afinal, primo ou não, era o seu aniversário de número 50, uma taça ou duas de vinho. No fim da noite, estava rindo, feliz, como se soubesse de cór a raiz quadrada de 3.258. Em um determinado momento, levantou-se para ir ao banheiro. Cruzou lentamente entre os presentes, até achar o caminho do toalete, na parte de trás do estabelecimento. Era um corredor estreito, na penumbra, iluminado fracamente por uma luz vermelha. Quando estava alcançando a porta com um senhor de cartola desenhado na frente, a do lado, com uma senhora de saia estampada, se abriu. Era uma jovem, que saiu tão apressada que acabou esbarrando nele. Sem se importar com o incidente que havia provocado, ela apenas o encarou, e numa fração de segundos, o beijou. Na boca. Um beijo úmido e quente. O professor de matemática voltou à mesa e não comentou sobre o ocorrido. Passou o resto da noite alheio, olhando para os lados, tentando identificar a moça entre os presentes. Em vão. Distraído, errou o cálculo na hora da conta. Culpou a taça ou duas de vinho. Já em casa, demorou a dormir, o beijo úmido e quente ainda boca. Levantou-se de madrugada para ir correndo ao banheiro, o intestino funcionando fora de hora. Voltou exausto e suado, maldizendo a comida extravagante. Praticamente desmaiou. E só acordou no outro dia porque o rádio-relógio, pela primeira vez, despertou antes que ele. O beijo foi a variável que mexeu na equação, a prova dos noves que a vida pode ter um resultado inexato. Desde então, se atrasava na volta para casa, inventando desculpas para a esposa, quando na verdade havia trocado o 239 e 293 por outro ônibus, em direção ao Centro, em busca daquela mulher e de seu beijo úmido e quente. Até que um dia, na sala de aula, os alunos testemunharam incrédulos o professor de matemática passar longos minutos estático em frente ao quadro, a mão suspensa segurando o giz, sem saber ao certo o resultado de dois mais dois.
Álvaro Filho nasceu em Recife-PE em 1973. É jornalista e escritor, autor de quatro livros, entre eles o romance policial Jornalismo para Iniciantes. Seu mais recente trabalho foi O Diário de Viagem do Sr. A., um “livro” escrito em tempo real, durante 21 dias, integralmente em iPhone e publicado através de posts no Facebook.
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A sombra Conto: Antonio Gueiros | Ilustração: Kilian Glasner
Ele entrou pelo portão principal do Cemitério Senhor Bom Jesus da Redenção, no bairro de Santo Amaro das Salinas. Era começo de tarde em Recife, o sol a castigar. A claridade ofuscava, o calor era sufocante, de dar calafrios. Não sabia para onde se dirigir. Na verdade, não queria chegar. Passara a noite no hospital e na capela, a maior parte do tempo sozinho, acompanhado apenas do corpo do pai. Os irmãos chegaram pela manhã. Os seus amigos, antes dos irmãos. Nenhum amigo ou colega de seu pai comparecera. Um conhecido do velho aparecera ainda no hospital. Rendeu os seus sentimentos e prontamente se identificou como representante de uma casa funerária. Ele acertou, em silêncio, as condições do serviço fúnebre sem dar atenção ao papa-defunto, que, irritante, falava como um corretor de imóveis canalha,
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“este aqui tem o melhor custo benefício”. Tinha repulsa às liturgias da morte e aos paramentos grosseiros das exéquias. Assinou o que precisava ser assinado, pagou, indiferente, o valor a ser pago. Durante a breve cerimônia, o sacerdote se emocionou, apesar de não ter tido o privilégio de conhecer o falecido. A mãe, esposa por toda a vida, assistiu ao culto e foi para casa. Estava velha e doente. Alegou cansaço. Nunca chorou a morte do marido. Ao passar pelo pórtico, ele parou. Quis ir embora. “Deixai aos mortos o enterrar os seus mortos”, repetiu algumas vezes para si. Engoliu seco, estava pálido, com suores frios. Cuidara do pai durante o período inicial do internamento. Ouviu calado as reclamações do doente, que não era de se queixar quando sadio. Comovia-se com as indignações de alguém que fora resignado, feito pedra, a vida inteira; abalava-se em ver a dor de alguém que parecia insensível. Enxugava-lhe o suor, auxiliava-o em suas necessidades, asseava-o. Nestes momentos, o velho ficava completamente ausente. Em poucos dias, removeram-lhe, o moribundo, para a unidade intensiva, onde permaneceu de olhos semicerrados, com o corpo desejando a morte, mas sendo inutilmente animado pelas máquinas. Caminhou lentamente pelo campo santo. Suportara, até ali, o hospital, os médicos, o velho praguejando, os planos de saúde, o velho ausente, o telefonema no início da madrugada, a funerária, o sacerdote. Faltava pouco. Chegou à precária mesa de pedra onde repousava o caixão. Ali restavam os dois irmãos e poucos amigos do filho recém-chegado. Nada daquilo, exceto ele mesmo, era familiar ao pai, que cortara relações com os outros filhos havia muito e sempre ignorara os amigos do filho que restou. “Onde está a vida que perdemos ao viver?”, martelava em sua cabeça o verso do poeta cujo nome não conseguia lembrar. Colocou-se o esquife sobre o combalido carro metálico de se transportar esquifes. Deu-se início o pequeno cortejo, por vielas estreitas margeadas por mausoléus extravagantes, de profundo mau gosto, até sepultura feita no barro seco. O caixão foi depositado na cova. O filho estremeceu. A secura invadia-lhe o corpo, sentia-se árido como aquela terra, seco como o pai, feito pedra. Era órfão do pai que nunca chegou a ter. Postou-se em frente à vala, aos pés do pai. O calor era insuportável. Estava
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ladeado pelos dois amigos mais chegados. Os demais se abrigavam debaixo de um oitizeiro a alguns metros. O sol contra o seu corpo fazia sombra sobre o caixão. A sombra envolvia o pai no sepulcro. O último afago de uma vida sem afeto, um refrigério sobre o pai que sempre pareceu morto. O pai recebia o aconchego de quem jamais confortou. A terra foi jogada sobre o caixão. A cova foi fechada. Os amigos se foram. Os irmãos já tinham ido. Ele ficou ali, sozinho, acompanhado apenas do corpo do pai, até o sol ceder, até a sombra se dissipar.
Antonio Gueiros nasceu em Recife-PE, no ano de 1981. É servidor público e bacharel em Direito. Teve um conto publicado no 7º Prêmio Maximiniano Campos (2011).
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Desertificação Conto: Arthur Mota | Ilustração: Helder Santos
Água. Olha pros lados, não enxerga nada. Reflexo difuso. Branca, negra, marrom. Barro. Céu azul cinza. Chuva que não para. Ruas que se transmutam em vias fluviais. Plu-vias. Violentamente. Em meio ao subir das águas, procura. Filho, cadê tu? Desespero. Já haviam sido brutalmente separados num outro dia de céu azul cinza como esse. Seu estado civil teve de ser modificado. Estranho quando se tem 20 e poucos anos e na testa estampado “viúvo”. O menino, órfão parte de mãe, ainda tornou-se filho único. Divisão por dois. Rápido aumento do nível. Invasão dos cômodos, aliás, do único. Coisas miúdas, sacolas, lixo, brinquedos – uma boneca descabelada, pequenos jogos de panela de plástico, escovas de cabelo... Tudo se torna rio, correnteza.
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A vida passa. O sofá passa, a televisão passa, as roupas passam, a cômoda passa, as recordações passam. Sai correndo ou nadando. Bate a porta. Violentamente. Filho, filho! Cadê tu? Fala comigo, pelo amor de deus, responde! Tô aqui painho! Calma, tava só dormindo... Alivia. Ultrapassa a porta, em direção ao filho. Arranca-o com a violência dos que amam. Dormia na parte de cima do beliche. Já não havia parte de baixo. Tudo vai passar. Baratas, ratos, gabirus, bichos mortos. Sacos pretos de lixo flutuam pelo mar negro, pelo barro. Água putrefata. Leptospirose, hepatite A, hepatite B, febre tifoide, cólera, dengue. Quase tudo passa. Sai de casa, segurando o filho pelo braço. Pés descalços. Firme. Abre os olhos, enxerga. Perdi tudo! (Não tinha nada). Olha para os lados, 360 graus, enxerga o mar. Água. Deserto.
Arthur Mota nasceu em Recife-PE, 1985. Estudante de Letras da UFRPE, mantém o blog literário obraentreaberta.blogspot.com.br desde 2011, e participa do blog colaborativo Varal, onde publica seus poemas e contos.
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Pra quem nunca entendeu os velhos detetives Conto: Bruno Bandido | Ilustração: Paulo do Amparo
Liliana tinha apenas trinta por cento da visão. Era casada com um caminhoneiro evangélico e, certo dia, ao chegar de uma viagem, ele a flagrou de quatro no meio da cozinha, com a cabeça dentro do forno. Liliana dizia que sua filha se chamaria Consuelo. “Como a maluca da Ala B?”, perguntei. “Sim”, ela disse, “só que mais espanhola”. Ela gostava quando tocava Hallelujah com o Jeff Buckley na lista do meu MP3. Enchia os olhos de lágrima e falava que se seu marido estivesse ali dançariam até as pernas cansarem. “Se teu marido estivesse aqui, ele ia ser mais um maluco perturbado”, eu disse um dia. Ela sorriu e disse “Não, não” e continuou dançando sozinha. A gente conversava no sol. Inventava boatos sobre as enfermeiras, geralmente envolvendo sacanagens. Liliana
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inseria boquetes no meio de qualquer história. E tinha as pernas cortadas e os cabelos da Virgem Maria. Um dia seu marido foi visitá-la. Fiquei enjoado e fui até a calçada descolar cigarros com algum pedestre. O porteiro sempre me olhava abordar algumas pessoas, sem nenhum sucesso, daí sorria e tirava um cigarro da pochete. “Por que não me deu logo, porteiro de merda?”, eu perguntava. Mentira. Eu só pensava em perguntar de vez em quando. Caminhei até a esquina, ele gritou pra eu não ir muito longe, eu só queria ver o caminhão. Tinha os adesivos de para-choque que vocês podem imaginar, já que o cara era evangélico. Mijei em uma das portas e voltei pra fumar lá na frente. O marido de Liliana saiu. “Você é o cara?”, perguntou. “Sou. O melhor amigo de Liliana”. Ele riu e me olhou com uma cara estranha. “Não se preocupe”, eu disse e fiz uma pausa dramática pra soprar a fumaça, “os remédios não deixam que eu faça nada de bacana com ela”. Ele balançou a cabeça e saiu dali. No outro dia, Liliana disse que ele ligou. Que pediu pra que não andasse comigo. Que pressentia algo estranho. Me senti vitorioso. Quase um homem completo. “Por que tu colocou a cabeça no forno?”, perguntei. “Meu marido viaja muito”. Liliana era linda, linda demais. Pena que ela só podia ver trinta por cento disso quando se olhava no espelho. Se algum dia conseguisse olhar seu reflexo com clareza e nitidez, aposto que funcionaria mais do que todos os remédios. Aposto que ela jamais colocaria a cabeça no forno. “Você só queria se manter aquecida”, eu disse e desejei que tivesse um cigarro pra dar uma longa baforada depois. Mas Liliana não gostava de televisão nem cinema e nunca entendia essas coisas. Liliana tinha a sorte e o azar de nunca ter visto uma novela. Vocês já conversaram com alguém que nunca viu uma novela? É reconfortante e perturbador ao mesmo tempo. “O quê?”, ela perguntou. “Você só queria se manter aquecida” (não sei se repararam, mas quando eu quero falar frases de efeito, troco o tu pelo você – assim falam os velhos detetives). Então ela riu. Sentamos no sol e inventamos histórias que envolviam boquetes e o porteiro. “Uma vez eu me masturbei olhando uma estrela”, ela disse, “só uma estrela. E eu nunca gozei tão rápido”.
Bruno Bandido nasceu em Jaguarão-RS, fronteira com Uruguai, em 1990. Hoje mora na Bahia e acaba de lançar seu primeiro livro: Tem um palhaço agressivo e um hooligan triste em algum lugar aqui dentro (editora Bartlebee). Escreve no blog: brunobandido. wordpress.com
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Processo 146952404 Conto: Carol Rodrigues | Ilustração: Alexandre Dantas
146 Comprei a flor sim. Um mano lá amigo meu pinta fina, pinta fina, se tem pinto fino eu não sei. É branquelo. Pinta, jeito elegante, posso continuar? Falou que a rosa colombiana é a melhor pra pegar mulher. Porra, desculpa, eu queria né. Faz dois anos já eu falei te amo ela falou posso até casar mas troca os dentes. Aí eu trabalhei em obra empilhei cascalho pra trocar os dentes todos ó, os da frente, os detrás, tudo novo. Aí depois que eu troquei ela fez doce que tinha outro cara na parada. Aí eu disse qual cara. Ela disse teu primo. Eu disse o Lucas? Ela disse é, o Lucas. Eu disse mas porra, desculpa, o moleque tem vinte anos. Ela disse mas
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ele chegou antes, cheiroso, trouxe flor. Eu disse porra tá de sacanagem. Desculpa. Aí eu fui falar com o Lucas que entendeu mas continuou, pegando ela, aí eu consegui dele ir pra faculdade, um bacana fez a ficha, no ProUni, eu paguei, no cascalho, e mandei ele pra Minas, isso, Gerais, direito, tá fazendo, segundo ano, quer ser promotor. Aí pra chegar nela eu pedi assistência, pro amigo, o Inácio, pinta fina. Ele falou dessa rosa, no Box 12, Ângelo Flores, do cemitério. Aí fui perguntar o preço vinte pilas. Eu não tenho, meu senhor, uma nota de vinte, na mão, desde que eu mandei o filhadaputa do meu primo pro ProUni. E queria um buquê né, um ramalhete, o Ângelo falou, da Ângelo Flores, que funciona melhor que a rosa solta. Aí voltei pro esquema né. Pedi ajuda, viração, um camarada, tava devendo, não vou falar o nome, não adianta, não vou falar, não é o Inácio, é outro cara, posso falar? Aí a gente foi fazer a transação. Tudo limpo tudo tranquilo. Comprei a flor, o ramalhete, dei pra ela, disse que casa, que me ama, sou cheiroso, e eu tô aqui agora. A gente tá noivo e nem beijou. 952 Eu saí da agência às dez horas, isso, da noite, tava lá, dirigindo, ouvindo música, e no sinal da Heitor, isso, Heitor Penteado, dois criolos bateram no meu vidro, com a arma, calibre doze, eu sei, conheço arma. Eu pulei pro banco de trás um deles dirigiu o outro pediu o meu cartão a minha senha eu esqueci três vezes bloqueou ele apontou a arma eu lembrei do outro cartão falei a senha. Ele ligou pra alguém pediu pra eu repetir eu repeti ele disse rosa colombiana e desligou. Cocaína né só pode ser. Pensei tô fudida né comprando pó com o meu cartão. Desculpa. Aí eles pararam, na frente dum ponto, isso, de ônibus, aquele da Rebouças, com a Oscar Freire, me deixaram lá, o carro o cartão tudo. Levaram nada. Eu tinha feito xixi na calça nem percebi. Fui pra casa do meu namorado, mora ali, nos Jardins, desmaiou quase, coitado, coisa horrível. Aí no dia seguinte, vi no extrato, eles gastaram sessenta reais na floricultura da Doutor Arnaldo, dividiram ainda, três parcelas de vinte. É foda né, desculpa, mas arma na cabeça, mulher sozinha, pra comprar florzinha, colombiana, é foda, desculpa. 404 A corte, em recesso, delibera agora se o réu é culpado ou inocente e retorna, em duas horas, com o veredicto, e a pena, havendo pena. Carol Rodrigues nasceu no Rio de Janeiro-RJ, em 1985, e vive em São Paulo. Em novembro lançará Sem Vista Para o Mar (contos de fuga) pela Edith. Tem contos publicados na Revista Rosa (2014), no jornal Proibido Para (2013) e um poema na Antologia Off-Flip (2013).
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Tudo quanto Conto: Karla Linck | Ilustração: Nathalia Queiroz
Tudo mudou quando ele iniciou o seu novo ofício. O resto da casa ficou nulo, esquecido diante da imensa janela da sala de jantar, que tendo medidas de tal proporção propiciava o conforto que exige um ambiente onde se precisa permanecer. Desde que deixara o emprego, perdera o hábito de sair às ruas. Mal podia lembrar-se de suas antigas ações rotineiras, pois já completara três anos que tudo havia mudado.
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Os conhecidos, vizinhos e amigos não o podiam entender. Tentavam com um esforço vão demovê-lo de sua incompreensível mudança e davam-lhe extensos conselhos, que ele ouvia com dissimulada e paciente atenção. Foram, um a um, resignando-se, e passaram a se contentar com acenos entristecidos e saudosos quando cruzavam por acaso a rua em frente a sua casa, localizada num agitado vilarejo perto da praia. Isadora, servil como era, nem ao menos questionou a decisão do marido. Relatava risonha aos poucos amigos que sobraram “Um dia ele não foi trabalhar, sentou-se em frente a janela e começou a contar.” E ele apenas contava. Contava os carros que passavam, os paralelepípedos das ruas, os azulejos das casas vizinhas, os passos dos pedestres, as flores estampadas nos vestidos das senhoras. No início sentia-se confuso e irritado, especialmente aos domingos, quando a festa na praça lhe dava tantas e tão intermináveis possibilidades que ele mal podia decidir-se. Com o passar dos meses, foi se aperfeiçoando e o tal ofício tornou-se para ele tarefa ágil como respirar. Podia fazer inúmeras contagens simultâneas e a prática desenvolvera suas habilidades seletivas a tão elevado grau que em matéria de distinções tornara-se genial. Quando escolhia, por exemplo, contar sons, sabia distinguir entre ruídos de todos os tipos, de diferentes ritmos e volumes, que eram para ele tão claramente diversos que os números rapidamente se desenhavam à sua frente. Aprendera a distinguir frequências, amplitudes e timbres de variadas espécies, e fazia combinações musicais compondo melodias numéricas. Outras vezes contava cores. Escolhia matizes, montava brilhos e contrastes. Fazia consecutivas combinações cromáticas, às vezes ordenadas na disposição do arco-íris, às vezes selecionando apenas tons de ocre, cinza ou púrpura. Seu maior desafio e prazer consistiam, no entanto, em unir todos os sentidos formando uma composição que se movia agilmente à sua frente, salientada pelo extremismo de sua atenção. O mundo, como um coração exposto, tornou-se para ele a matéria mais viva de toda a vida que ele antes conhecera. Isadora até gostava da excentricidade do marido que, abandonando o comércio de tecidos, fazia-lhe companhia o tempo todo. Como mulher dedicada que era, encarregava-se ela própria de presenteá-lo em dias de pouco movimento, chamando a frente de sua casa o carro de frutas para que ele pudesse com entusiasmo contar ameixas, uvas, pêssegos, maçãs ou até mesmo as falhas na madeira
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da carroça do vendedor. Fazia-lhe falta apenas que o marido dormisse com ela na cama, já que há três anos ele abandonara o quarto, onde nada mais havia para contar, e acomodara-se em uma cadeira ao lado da janela. Durante as outras horas do dia, ela sentava-se no sofá da sala, tricotando prazerosamente ou lendo em voz alta uma estória, enquanto ele contava os pontos da lã ou as sílabas que ela pronunciava. O que Isadora não suspeitava era que, com o passar do tempo, a janela havia ficado pequena e que o homem, que aprimorou a sua arte, não mais suportava as restrições da moldura. Foi quando em um dia como outro qualquer, ela acordou e não viu mais o marido. Chamou a polícia, os bombeiros, os vizinhos. Mobilizou todo o vilarejo, que se empenhou solidário na busca sem obter sucesso. Era Isadora quem agora dormia na janela, com os olhos marejados à espera de alguém que se dispusesse a contar as suas lágrimas. Alguns meses depois, em alto mar, foi encontrado um barco e nele havia um homem. Os olhos ainda fixos miravam ao longe as estrelas.
Karla Linck nasceu em Recife-PE, em 1975. Graduada em psicologia e design. Trabalha com diagramação no Diario de Pernambuco.
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Concha Conto: Nathalie Lourenço | Ilustração: Isabela Stampanoni
A primeira providência, chegando na praia, é demarcar o território: fazer sumir na areia um palmo do cabo do guardassol, chutar as havaianas e abrir o isopor. A segunda providência, mania pessoal, é cavucar a areia úmida com os pés até eles ficarem plantados, enterrados até aqui ó - na canela. A Dandara acha graça, como acha graça em todas as minhas manias, mas enterrar os pés é sagrado, é o equivalente do que o carregador é pro iPhone,
20 vacatussa #8 me plugar e sentir a energia borbotando para dentro de mim. Me esvazia da sujeira da semana, da brancura desagradável do escritório, do relatório para terça-feira, da gravata que às vezes parece querer virar forca. O efeito é imediato, uma tranquilidade muito grande avança e recua em mim, no ritmo do mar. Essa é a mesma praia que eu vinha criança, eu, o pai e os primos, nos fins de semana que eram do pai. Ficou tanta infância nessa areia. No guardassol à esquerda a menina faz um castelo de respingos com a lama de um balde. Deixa os pingos caírem por entre os dedos, formando torres e muros. Se não tivesse aprendido na faculdade, acreditaria que esse era o método que usava o Gaudí. Não consigo imaginar um elogio maior que esse: tudo que você constrói parece um castelo de areia. Abro a primeira cerveja. - Amor, você quer? - Ainda não. Brigada. A ilhazinha engana tão bem. Finge que é perto. Aos 10 anos parece mais perto ainda, se você tem uma prancha de bodyboard e algo a provar. Meus primos tinham 12, 13. A molecada do prédio tinha mais. O Breno que apareceu com a ideia, Vamos Passar a Tarde na Ilha? E surrupiaram cerveja e cigarro do apê dos pais, tudo enrolado dentro de saco plástico dentro da mochila. A Renata pegava na minha mão e perguntava baixinho Você Vem Também, Né, Neto?, até hoje não sei se ela me queria por perto ou se só não queria ser a mais nova dali. A menina do guardassol à esquerda agora está concentradíssima na mais nova reforma em sua obra: o fosso duplo com água de verdade, com direito à ponte de palito de picolé na entrada sul. De longe, o menino mais velho observa inquieto, e qualquer um que foi criança já sabe, só de olhar, que dentro de instantes o menino será godzilla e o castelo será Tóquio. Eu avisei que a gente ia pra ilhazinha, meio querendo que ele nos impedisse, mas o pai não ligou muito, só falou pro Fábio e pra Renata Fica de Olho Nele, Hem?. Eram 2 da tarde e o sol tava queimando a ponto de todo mundo entrar no mar de camiseta. É estranho mas parece que o pano com água salgada cola mais. Amarrei a cordinha da prancha no punho e me joguei nas ondas atrás dos mais velhos. A ilhazinha engana. O mar também. Você acha que nadou 20 metros, mas mal saiu de perto da areia. O sal entrava no olho. A cabeça parecia que ia pegar fogo. Cada chato tem seu jeito de destruir um castelo de areia. O do menino era com todo entusiasmo que você puder imaginar, correndo desde a água em li-
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nha reta, dando impulso e aterrisando com os dois pés no meio da construção. Teve grito, mas em segundos o fosso já era uma fonte lama para tacar no irmão. É claro que eu fui o último a chegar, vermelho, esbaforido, salgado, com a prancha algemada arrastando no chão. A mulher do padre. Tavam todos estendidos na areia e o Breno começou a distribuir as cervejas mornas de mão em mão. Achei azedo, mas tomei. Ninguém mandou andar com os mais velhos. Se quisesse picolé, que ficasse na praia com o papai. Do Gaudí miniatura, ficou só um círculo no chão. O menino agora jogava alguma espécie de gameboy compridinho, e a menina pulava ondas, mergulhava, subia, boiava. Como eu suspeitava, brincar de adulto era um saco. É a brincadeira mais chata do mundo, com bebida amarga e cigarros sem chocolate. Fui dar a volta na ilha, pro tempo passar e achei uma concha muito grande. Dizem que pondo na orelha dá pra ouvir o barulho do mar, mas como saber se o som vinha da concha quando as ondas de verdade estão quebrando bem ao lado? Fui bordejando a ilhota, a areia acabava, daí tinha pedra, a pedra acabava, daí tinha mato, sempre com a concha no ouvido falando Alô, Alô, Houston, Temos Um Problema. E de repente eu ouvi Alô, e gelei. Não era a concha. Era o Breno. Se Perdeu? Tô Só Dando Uma Volta. Entediou? Achou a Gente Chato, Foi? Não, tou só Dando Uma Volta Mesmo. Vou te Mostrar Uma Brincadeira Nova. Cê Nunca Mais vai Ficar Bodeado. Eu tive certeza que eu não ia gostar da brincadeira, podia sentir meu estômago dando cambalhotas dentro de mim. Nesse dia eu descobri como meus instintos são bons, porque meio segundo depois ele puxou pra baixo o elástico da bermuda florida e perguntou Você Já Brincou de Bater Punheta? Eu não sabia o que era punheta e a última coisa que eu queria era ficar lá pra descobrir. Corri de volta, ralando os joelhos nas pedras, e deixei lá o Fábio, a Renata, peguei só minha prancha e fui, fui pra onde tinha sorvete e as pessoas deixavam seus pipis guardados. O pai tava bêbado com os amigos e eu construí uns quantos castelos de areia olhando pro mar, meio culpado de ter deixado os primos lá, com medo deles ali, ilhados com um mostra-pintos. Se eu pudesse escolher agora, eu teria chutado o cara nas bolas com toda a força.O menino do guardassol à esquerda continua jogando videogame. A menina. A menina está bem longe, e eu vejo só a tampinha da cabeça. Um bracinho e espuma. Essa cena parece estranha e as minhas entranhas de repente começam a pesar dentro do meu corpo. O salva-vidas não está na cadeirinha, e enquanto eu arranco os pés afundados da areia, Dandara levanta os olhos do
22 vacatussa #8 livro, Que Foi, Amor? Não dá tempo de explicar, eu aponto e saio correndo, ainda dá pra ver a cabecinha castanha ali no fundo, e agora já não dá, e o sal arde nos olhos quando eu tento enxergar debaixo da água, mas eu fico de olhos abertos e não encontro, e vejo bolhas perto das pedras, mas não era nada, e eu mergulho por mais tempo, vejo o salva-vidas finalmente pulando n’água, mas quando eu subo a onda me afunda e perco a noção de qual lado é para cima, o peito aperta de urgência, mas outra onda me carrega com força e dessa vez eu sinto as pedras, os pequenos mariscos cortantes que moram nas pedras e não preciso de nenhum médico para saber que esse impacto foram minhas costelas se quebrando como um titanic qualquer, o último fôlego escapando do pulmão misturado com um grito, meu pobre corpo automático aspirando água pra dentro de mim, os pulmões ficando pesados como uma âncora dentro de mim, e agora é impossível não afundar, abro os olhos e não vejo a criança e não sei pra que lado fica o céu, pra que lado fica o chão, para que. Lado. fica. Minha casa. Tenho pena. De Heloísa. Vai sobrar pra ela. O relatório.
Nathalie Lourenço é paulista e paulistana desde 1984. Trabalha como redatora publicitária e teve textos publicados nas revistas Parênteses, Vacatussa e Flaubert, e na coletânea Edifício Marquês de Sade (ed. Valer). Escreve, ainda que raramente, no blog www.sabedoriadeimproviso.wordpress.com
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O duplo Conto: Sonia Nabarrete | Ilustração: Mauricio Castro
O cientista decidiu construir seu duplo, que foi desenvolvido absolutamente à sua imagem e semelhança. A mesma aparência, a mesma personalidade, ele mesmo em dose dupla. A ideia é que o duplo ficasse com as atividades chatas, como acordar cedo, trocar pneu, discutir a relação, participar do almoço de domingo na casa da sogra, pedir empréstimo no banco, pagar impostos, ir à assembleia do condomínio, acompanhar a mulher nas compras. Ele ficaria
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apenas com o que é gostoso: comer e beber bem, viajar, ter uma vida cultural intensa, encontrar-se com a amante fogosa. Assim foi feito. O único problema era acertar as agendas porque ambos não poderiam ser vistos simultaneamente em lugares diferentes. Nem precisa ser cientista para saber disso. Qualquer estudante de Física sabe que dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo. O cientista tomou precauções e a sua vida se tornou o sonho de qualquer homem. Mas apenas por um tempo. Ser feliz o tempo todo cansa. Começou a ter vontade de comer arroz com ovo de vez em quando, de ficar quieto em casa vendo um filme leve e até de dormir de conchinha com a esposa, após um honesto papai e mamãe. Já o duplo começava a ficar revoltado com a sua vida cheia de obrigações e aporrinhações. Encontraram-se para discutir a relação. Enquanto conversavam, o cientista olhou bem para o seu duplo. Caramba, que bonito. Que olhos, que boca. Como fala bem. Sabe argumentar feito um político. Como um Narciso, encantou-se com a própria imagem. Aproximou-se e o beijou na boca. Um longo beijo de língua, com os dois virando alternadamente a cabeça, se abraçando, passando a mão na bunda do outro. - Sou espada - retrucou o duplo. - Disso eu tenho certeza - garantiu o cientista. - Você é apenas minha cópia. E eu tenho uma grande autoestima. Não há problema se a gente se divertir um pouco. - Pela lógica, não. Cientista e duplo se amaram de forma despudorada e apaixonada. Ao final do ato, um certo constrangimento em ambos, semelhante ao que sentiam após a solitária masturbação. - Nossa, como você é gostoso. Amanhã, de novo, na minha, quero dizer, na nossa casa? - propôs o cientista - Sim, amor - concordou o duplo, já envolvido. Os encontros se tornaram rotineiros, mas sempre carregados de muita paixão. Até que bateu o ciúme. Um tinha ciúme do outro e ambos das mulheres de suas vidas. - Você sente prazer com a Débora? - Claro, ela é minha amante.
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- E você, gosta da minha mulher. - Nossa mulher você quer dizer? Muito. A Ana é deliciosa. Olharam-se com fúria. A seguir, uma sequência de socos e pontapés terminou com alguém morto após bater a cabeça com força na quina de um móvel. O outro deu fim ao corpo. E a vida continuou com todas as suas dores e delícias para o sobrevivente. Seu único problema é que às vezes tem crises de identidade. Não sabe se é ele mesmo ou sua cópia.
Sonia Nabarrete nasceu em São Caetano do Sul-SP, 1953. É jornalista formada pela Universidade Metodista de São Paulo. Participou das antologias: Quem conta um conto (2012), A arte de enganar o Google (2013) e Coletânea do 4o Concurso de Microcontos de Humor do 41o Salão de Humor de Piracicaba (2014). Publicou conto na revista S.E.X.U.S.
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Cláudia Crônica: Tiago Germano | Ilustração: Ana Vizeu
Até Cláudia, a morte era a parte do filme que eu não conseguia entender. Era o que acontecia quando a polícia atirava no ladrão e a brincadeira se acabava. Quando o cachorro parava de sofrer e não latia mais no quintal. Quando alguém muito velho viajava para um lugar muito longe e não voltava nunca mais. Quando o jornal não tocava a vinheta e o homem de gravata não dizia boa noite. Quando o juiz mandava todos se calarem antes de começar a partida. Quando juntava gente na frente de uma casa e o dono não estava lá para fazer a festa.
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A vida não era esse emaranhado de mistérios. Não se buscava um sentido para as coisas porque as coisas eram mais sentidas, tivesse ou não permissão para fazê-las. O dia de amanhã era um grande brinquedo como todos os outros, só que mais eterno, mais duradouro. Cláudia tinha seis anos, os cabelos curtos, um sorriso que eu via todos os dias a duas cadeiras da minha. Quando vi Cláudia pela última vez, era dia de sábado, dia de feira. Enterrávamos nossas mãos nos sacos de farinha e ela sorria. Sorria porque iria ver o mar. No carro, quando era minha família que voltava da praia, fingi muitas vezes dormir para ouvir a conversa dos meus pais. Falavam sempre de Cláudia. Claudinha. “Morte estúpida”, diziam. E eu tentando imaginar como se podia morrer de maneira inteligente. A morte passou a confundir as minhas ideias. Como nas transmissões de TV. Exibiam o enterro do morto e ofereciam “ao vivo”. Não podia suportar essa lógica. Passei a ter pesadelos. A morte me sorria à distância de duas cadeiras, com os cabelos daquela menina que o pai agarrou na esperança de poder salvá-la, com o uniforme que eu usaria pela manhã, o mesmo que a mãe de Cláudia vestiu nela para ser enterrada, enterrada como as nossas mãos no saco de farinha, com o mesmo uniforme azul, da mesma cor do mar que enchia minhas pernas, que me puxava para dentro dele e me empurrava de encontro às rochas. Naquela segunda-feira do velório de Claudinha, minha mãe me acompanhou por todo o caminho. No almoço, tentou afogar minha mágoa numa garrafa de refrigerante. Na infância, não me lembro de outra vez que tenha tomado refrigerante em dia de semana. Não me lembro de outra vez em que a morte tenha tido um gosto tão doce.
Tiago Germano nasceu em Picuí, no interior da Paraíba, em 1982. Mora em João Pessoa, onde é repórter do caderno Vida e Arte, do Jornal da Paraíba. É autor de um romance ainda inédito e escreve atualmente o segundo. Seu conto O Domador de Hienas ficou entre os finalistas do Prêmio Off-Flip 2014 e será publicado em coletânea no próximo ano. Cláudia faz parte de um livro de crônicas, também inédito.
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autora convidada { Micheliny Verunschk }
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30 vacatussa #8 Nada é o que parece quando visto de dentro. As palavras mudam de significado quando vistas de dentro e ganham amplidões desconhecidas quando pronunciadas, amplidões desconhecidas. E é justamente isso, H., eu queria dizer seu nome livremente, mas nada escapa, nada pode escapar daqui e nem mesmo o seu nome, ainda que só de sopro sussurrado, nem mesmo o seu nome pode. Me mantiveram doze dias no isolamento. Eu poderia dizer que foi infernal, mas seriam lápis da mesma caixa de cor. 3X4, 12. 3+3+3+3, 12. 1+1+1+1+1+1+1+1+1+1+1+1, 12. Seria óbvio também falar de umidade, aperto, escuridão. Mas não posso falar em silêncio, você sabe, porque ele não existe e é inútil falar em insônia. Eu chovia em punhetas, mas matar o tempo não foi possível. Quando me tiraram de lá, veio a luz. Ela doeu e me senti de novo em trabalho de parto, lançado fora da mãe. 6+6, 12. No fim das contas, o que importa é que doeu, H. Isso pode ser uma fábula ou um cálculo. Vai depender das escolhas que serão feitas. A escolha está em tudo, no éden, nos círculos de luz da quarta esfera brilhante, no arcano 6 do tarô. 8+4, 12. É o número mais alto da roleta. A bala na agulha. Quantas pessoas fizeram a sua escolha por você? Quantas vezes você permitiu? E permitir foi também uma escolha, saiba. Os médicos alegam que quanto mais velhos fazemos a escolha, melhor para nós. Mas nós sabemos que quanto mais cedo melhor e nem dói tanto assim. Foram 12 os dias. Abri minhas asas como um carro abre suas portas. Lágrimas da terceira esfera caíram no chão, H. Cristalinas no chão, quartzos no chão, diamantes no chão, chão escuro e encardido como uma ratazana de olhos vermelhos e dentes amarelos. Mas minhas asas continuavam limpas como no dia em que cheguei. Senti saudades de usá-las, H., e desculpe se parece que choro, mas asas são portas também. Achei que eram dias, anos, séculos de isolamento e sei que tudo isso é lugarcomum. Desculpe, não consigo mais ser genial em tudo. Às vezes eu creio que será necessário criar uma nova língua, com uma gramática superestruturada em símbolos avançados para que eu possa entender quem eu sou, quem você é, quem são os outros fora de mim. Dopamina. Ele já destruiu as máquinas para não me pagar o que deve. Uma frase fora do contexto deve ter algum valor semiológico. O ser da segunda esfera não entende como posso dizer os palavrões que aprendi com os homens sujos. Não entende como posso me espojar em sexo barato com prostitutas estrangeiras. 6X2, 12. Não há repugnância em nada. Nem no
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isolamento nem nos homens sujos, nem nas bocetas sorridentes. Não há nojo, H. , você me entende? Dopamina, neurotransmissores. Podemos elevar os níveis de serotonina no organismo só comendo chocolates e todos seriam mais felizes. Me trancaram na jaula por doze dias, H. Doze dias entre urina e bosta, mas isso não é nada. Isso realmente não é nada. Ouvi dizer que também chamam o isolamento de solitária. Mas você sabe que essa palavra não traduz bem a realidade, porque não é de solitária que estou falando. Havia comigo o Ser da Primeira Esfera do Círculo Brilhante, O Grande, e foi Ele quem ajudou a abrir minhas asas limpas e imaculadas. Ele massageou as articulações com a energia saída de suas mãos. Foi Ele que, no meio da compressão de tijolos e escuridão, me fez ver quem eu sou, quem eu nunca deixei de ser. Por isso nunca use a palavra solitária como porta, nem como asas, nem como o teu nome ou como as lágrimas que derramei nos rios da Babilônia. Apaguei. Flashes coloridos. Um cheiro de extrato de tomate vindo da cozinha. Talvez fosse sopa. Não se deve comer maçãs no inferno, era assim que começava uma canção de que eu gostava muito. Acho que me surraram antes de me jogarem no isolamento. Quando acordei tinha um gosto de terra na boca, que é o gosto de sangue do sangue da gente. Doíam as costas e o corpo todo. Devem ter me surrado e me drogado. Agora nada mais me quebra, H. Nada mais quebra a minha memória, a consciência de quem sou e de onde estou. E vou contar tudo a você porque é possível que eu nem saia vivo daqui, como também é possível que eu saia vivo e você nem me reconheça. É possível que eu saia daqui embrulhado num plástico cinza como uma barra de chocolate ou que eu saia vestido na glória dos círculos brilhantes e você me pergunte: Quem és tu, Senhor? E se assim for então não haverá nenhum Pedro para me negar. Então é isso, H., contarei a você o voto desses 12 dias, 10+2, 12. Dia por dia, a sua dor, sua glória.
Micheliny Verunschk nasceu em Recife-PE, 1972. É autora de Geografia Íntima do Deserto (Landy 2003), O Observador e o Nada (Edições Bagaço, 2003) e A Cartografia da Noite (Lumme Editor, 2010), b de bruxa (Mariposa Cartonera, 2014). Publica em 2014 seu primeiro romance Nossa Teresa – vida e morte de uma santa suicida (Editora Patuá, com patrocínio do Petrobras Cultural). É doutoranda em Comunicação e Semiótica e mestre em Literatura e Crítica Literária, ambos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
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