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Maximus
pressa os particulares deixaram de partilhar com os deuses sua grande ou pequena fortuna.
A situação do paganismo, ainda que tivesse encontrado no devotamento de alguns fiéis o meio de subvencionar os gastos de um culto suntuoso, permanecia, todavia, transformada pelos editos de Graciano. Até então, sendo a religião oficial e nacional, representava o Estado e se confundia com a pátria. Quem se negasse a observar suas práticas não era somente um ímpio, mas um mau cidadão que se excluía da lei do Estado. A verba que o tesouro público lhe concedia era o sinal visível desta união do Estado e da religião. Desde o momento em que os gastos do culto não eram mais pagos, o acordo estava rompido e a religião perdia seu privilégio mais precioso e sua principal razão de existir.
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c) A rejeição da veste e do título de
Pontifex maximus
Na época imperial, o Augusto era também, de direito, o chefe supremo da religião. Enquanto no Oriente o imperador se constituía em obstáculo para os cristãos,143 no Ocidente o poder imperial rompia pela primeira vez seus liames oficiais com o paganismo. Aquilo que não ousou fazer o todo poderoso Constantino, o que o prudente Valentiniano nem sequer teve a idéia de tentar, seu filho Graciano empreendeu com a audácia própria do jovem, mas também como um espírito tenaz que mostra uma decisão maduramente refletida. Quando assumiu o governo, nos últimos dias de 375, o colégio dos pontífices teria oferecido a ele, como de costume,
143 Trata-se do imperador Constâncio, de confissão ariana e adversário dos cristãos nicenos (católicos). Vide nota 172, capítulo I.
as insígnias do sumo pontificado. Graciano teria recusado aceitálas. “Uma tal vestimenta, teria dito ele, não convém a um cristão”.144 Esta decisão, sem ser um atentado à liberdade de culto, nem aos privilégios do culto pagão, resume a política religiosa de Graciano, de separação entre Estado e paganismo.
O historiador bizantino Zósimo é o único a fazer menção direta a esse ato num texto cuja data muitos escritores tem posto em dúvida: “No ato da posse de um novo soberano, é-lhe apresentada também pelos pontífices a veste sacerdotal, e imediatamente é inscrito como pontífice supremo, isto é, como sacerdote do colégio dos pontífices. Todos os imperadores sempre testemunharam a maior diligência em receber esta honra e usar esse título. Mesmo depois que o Império esteve sob o poder de Constantino, que se desviou do reto caminho nas coisas divinas, preferindo a fé dos cristãos, agiram do mesmo modo seus sucessores, Valentiniano e Valente. Os pontífices apresentaram, segundo o costume, a veste a Graciano que a rejeitou, afirmando que não convém a um cristão usar tal vestimenta”.145
Para muitos historiadores antigos, Zósimo é um pagão fanático e historiador mal informado e, por isso, não merece nenhum crédito. Graciano não podia rejeitar as insígnias de sumo pontífice porque os imperadores cristãos já não usavam mais as insígnias dessa função. A numismática parece, a priori, confirmar esse ponto de vista, pois Constantino é o último imperador que aparece nas moedas com o título de Pontifex Maximus; a epigrafia, porém, contradiz essa opinião pois há inscrições em que o sumo pontificado faz ainda parte
144 Zósimo. Storia Nuova, IV, 36. 145 Zósimo. Storia Nuova, IV, 36.
dos títulos imperiais.146 Não se pode, portanto, duvidar do testemunho de Zósimo. Os autores recentes apenas não aceitam a data em que, segundo ele, a rejeição teria ocorrido. O advento imperial a que se refere, aconteceu para Graciano em 367; foi nessa ocasião que Valentiniano I, em Amiens, fez proclamar Augusto seu filho, com oito anos de idade. Seria inverossímil supor que o jovem príncipe, ainda sob a rígida tutela do imperador, tivesse sonhado em separar-se da política paterna, despedindo a delegação pontifical. Mas não é nem necessário fazer apelo a esse argumento psicológico, pois as inscrições de 370 e 371 nos atestam que Graciano era então ainda pontifex maximus e em 379 Ausônio lhe dá a qualificação de pontifex. 147
Palanque admite a seguinte solução: “Graciano aceitou em 367 a stola, se é verdade que lhe foi oferecida, mas renunciou, por sua vez, aos poderes pontifícios. A rejeição à veste ocorreu mais tarde, certamente em 382, quando adotou as outras medidas hostis ao paganismo”.148
Depois de Graciano, ninguém mais ocupou oficialmente a função de pontífice supremo; nem mesmo por ocasião da reação pagã de 392-394, há notícia de que o colégio pontifical tivesse reclamado novo titular para essa função. O cargo foi acolhido provavelmente por Símaco que o desempenhou por muitos anos.149
146 Cf. Cohen. Description historique des monnaies impériales, t. VII e VIII. 147 Ausônio. Gratiarum actio, 35 e 42. 148 Palanque, J.R. “L’empereur Gratien et le grand pontificat païen”, in: Byzantion, VIII (1936), p. 45. 149 Cf. Zeiller, J. “Critique d’une inscription fausse attribuant à l’empereur Justin le titre de Pontifex Maximus”, in: Bulletin de la Societé Nationale des Antiquaires de France (1928), p. 177.
O sumo pontificado sempre esteve estreitamente associado à dignidade do Augusto. Desde o começo do principado, quando se confundia com o Imperator Augustus, esta associação, ou melhor, esta fusão era legítima, num ambiente animado da mesma fé. Depois de Constantino, os imperadores, apesar de haverem pessoalmente aderido ao cristianismo, continuaram, no entanto, por razões políticas, usando a pontifical dignidade pagã. Porém, no tempo de Graciano e de Teodósio, com o extraordinário progresso da nova fé e as numerosas conversões, aquele compromisso havia-se tornado ilógico. Graciano, certamente influenciado pelas idéias político-religiosas de Ambrósio, rompeu com esse dualismo tradicional, subtraindo ao culto nacional, na Cidade Eterna, todo caráter oficial. As decisões que afetaram a Urbe e seu Senado, provocaram uma viva emoção e uma obstinada reação nos meios da tradicional aristocracia pagã. Veremos o empenho de Símaco, líder e porta-voz dos pagãos, para conseguir a revogação dos decretos do imperador.
A renúncia ao título pontifical que, em suma, equivalia à supressão do sumo pontificado, não provocou nenhuma reclamação. Esta dignidade concernia somente à pessoa do príncipe e à sua dignidade imperial. O Senado não tinha, do ponto de vista jurídico, nenhum argumento objetivo para reclamar o título, pois, sendo uma dignidade pessoal, não caía sob a jurisdição do Estado. Assim, não pôde mover ao príncipe nenhuma censura pelo abandono da prerrogativa pontifical, nem obrigá-lo a reassumir a dignidade. Esta é, sem dúvida, a razão porque esse ato de Graciano não entrou no rol das discussões e passou desapercebido pelos contemporâneos.
O acontecimento, aparentemente insignificante, tem, no entanto, grande importância histórica: a originária fusão dos dois poderes – o político e o religioso –, própria dos Estados
pré-cristãos do mundo antigo, acabava sendo abandonada. Por esse gesto, Graciano operava verdadeira separação entre paganismo e Estado, ou seja, a laicização da púrpura. Graciano fez do Estado um Estado leigo, introduzindo, pela primeira vez o conceito e a praxe da separação da religião do Estado. Esta medida colocou inesperadamente a gente pagã numa condição de inferioridade, ao menos na prática, porque o cristianismo tinha, enfim, campo aberto e possibilidade de desenvolvimento imprevisível enquanto que o paganismo, que se apoiava numa hierarquia tradicional tendo como chefe o Imperador, o Pontífice Máximo, ficava desprovido de seu vértice, despreparado para uma luta a fundo, em que manifestava seu fatal declínio.
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